You are on page 1of 19
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raizes de um paradigma tndictario. in: iios, ‘emblemas, sinais: Morfologia ¢ histéria, So Paulo: Companhia das Letras, 1989. Pp. 143-180. SINAIS RAIZES DE UM PARADIGMA INDICIARIO Dens esté no particular. A Warburg Um objeto que fala da perda, de destrugio, do desapazecimento de objetos. Nio iala de si. Fala de outros, Incluish também a eles? J. Joba Nessas paginas tentarei mostrar como, pot volts do final do séeulo x1x, emergin silenciosamente no Ambito das ciéncias huma- ‘nas um modelo epistemolégico (caso se prefira, um paradigma’) a0 qual até agora nfo se prestou suficiente atencéo. A anélise desse paradigma, amplamente operante de fato, ainda que nfo teorizado cexplicitamente, talvez possa ajudar a sait dos incOmodos da con- ‘taposiclo entre “racionalismo” e “itracionalismo”. 1 1. Entre 1874 ¢ 1876, apareceu na Zeitschrift fir bildende Kunst uma série de artigos sobre a pintura italiana. Eles vinham assinados por um desconhecido estudioso russo, Ivaa Lermolieff, ¢ fora um igualmente desconhecido Johannes Schwerze que os 143 traduzira para o alcmao. Os artigos propunham um novo método para @ atribuigio dos quadros antigos, que suscitou entre os his toriadores da arte reagées contrastantes ¢ vivas discuss6es. Somen te alguns anos depois, 0 autor titoa a dupla méscara na qual se escondera, De fato, tratava-se do italiano Giovanni Morelli (sobre- nome do qual Schwarze € uma c6pia ¢ Letmolieff 0 anagrama, ou quase). E do ‘‘método morelliano” os historiadores da arte falar correntemente ainda hoje? Vejamos rapidamente em que consistia esse método. Os mu- seus, dizia Morelli, esto cheios de quadros atribuidos de manei incorreta. Mas devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor é dificil: muitissimas vezes encontramo-nos frente a obras naorassi- nnadas, talvez repintadas ou mum mau estado de conservacio. Nes sas condigées, é indispensivel poder distinguir os originals das pias. Para tanto, porém (dizia Morelli), € precisa nfo se basear, como normalmente se faz, em caracteristicas mais vistosas, portan- to mais facilmente imiraveis, dos quadros: os olhos erguidos pata © céu dos petsonagens de Perugino, 0 sorriso dos de Leonardo, assim por diante, Pelo contrério, é necessétio examinar os porme- rnores mais negligenciéveis, ¢ menos influenciados pelas caracteris- ticas da escola a que o pintor pertencia: os Idbulos das orelhas, 1s unhas, as formas dos dedos das mios ¢ dos pés. Dessa manciza, Morelli descobriu, ¢ escrupulosamente catalogou, a forma de ore: ha propria de Botticelli, a de Cosmt Tura © assim por diante: ‘tragos presentes 10s otiginais, mas ndo nas c6pias. Com esse méto- do, propés dezenas e dezenas de novas atribuigSes em alguns dos principais muscus da Europa. Freqientemente tratava-se de atri- buigées sensacionais: numa Vénus deitada conservada na galeria de Dresden, que passeva por uma eépia de uma pintura perdida de Ticiano feita por Sassoferrato, Morelli identificou uma das pou: ‘quissimas obras seguramente aut6grafas de Giorgione. “Apesar desses resultados, o método de Morelli foi muito ei: ticado, talvez também pela seguranga quase arrogante com que ¢r4 proposto. Posteriormente foi julgado mecinieo, grosseiramente po- sitivista, € caiu em deserédito:’ (Por outro lado, & possivel que 144 muitos estudiosos que falavam dele com desciém continuassem tuséelo tacitamente para as suas attibuigdes.) O renovaco interesse pelos trabalhos de Morelli € mérito de Wind, que viu neles um exemplo tipico da atitude moderna em relagdo & obra de arte — atitade que leva a apreciar os pormenores, de preferéncia & obra em seu conjunto. Em Morelli existiria, segundo Wind, uma exa- cerbacio do culto pela imediaticidade do génio, assimilado por ele na juventude, no contato com os efrculos romanticos berlinenses.* E uma interpretagio pouco convincente, visto que Morelli no se colocava problemas de ordem estética (o que depois The foi censu- rado), mas sim problemas preliminares, de orcem fillégica’ Na realidade, as implicasSes do método proposto por Morelli eram outras, e muito mais ricas, Veremos que o ptéprio Wind esteve muito présimo de intutlas 2. “Os livros de Morelli” — escreve Wind — “tém um aspecto bastante insélito se comparados aos de outros historiado- tes da atte, Eles estio salpicados de ilustragies de deds ¢ orelhas, cuidadosos registros das mindcias ceracteristicas que taem a pre senca de um determinado artista, como um criminoio € traido pelas suss impresses digitais... qualquer muscu de arte estu- dado por Morelli adquire imediatamente o aspecto de um museu criminal...”"* Essa compatagio foi brilhantemente desenvolvida por Castelnuovo, que aproximou 0 método indicidrio de Morelli 80 que era atribuido, quase ros mesmos anos, a Sherlock Holmes pelo seu criador, Arthur Conan Doyle? © conheveder de arte € compardvel 20 detetive que descobre 0 autor do crime (do qua- dro) baseado em indicios imperceptiveis para a maioria, Os exem- los da perspicécia de Holmes ao interpretar pegadis na lama, cinzas de cigarro etc, slo, como se sabe, incontéveis. Mas, para se convencer da exatidio da aproximacdo proposta por Castelnuovo, vyejase um conto como “A caixa de papelio” (1892), no qual Sherlock Holmes literalmente “dé uma de Morelli”. C caso come- 2 exatamente com duas orelhas cottadas ¢ cnviadas pelo correio ‘4 uma inocente scnhorita. Eis o conhecedor com mios & obra: Holmes 5 se interrompen eu [Watson] figuet surpreso, olhando-o, 20 ver gue ele fixava com singular atencio o perfil da senhorits, Por ‘um segundo foi possfvel ler no seu rosto ansioso surpresa € satis- fagio 20 mesmo tempo, ainda que, quando ela se virou para descobrie 0 motivo do seu siléncio, Holmes tivesse se tornado impassfvel como sempre! Mais adiante, Holmes explice a Watson (e aos leitores) © percurso do seu brilhante trabelho mental: Na sua qualidade de médico 0 senhor nao ignoraré, Watson, que no existe parte do cospo homano que ofereg maiores variagées do que uma orelhs. Cada orelha possui caracterfsticas propria: mente sues € difere de todas as outras. Na Revista Antropotdgica do ano passado 0 senhor encontrard sobre este sssunio duas bre ‘ves monogeafiss de minha lavra, Portanto, eximinei as orelhas contidas na csixa com olhos de especialista e observei aGurada- ‘mente as suas caraccerfsticas anatOmices. Imagine entio a minha surpresa quando, pousando 03 olhos sobre a senhorita Cushing, rotei que a sua orelha co:respondia exatamente & orelha feminina ‘que havia examinado pouco antes, Nao era possivel pensar numa coincidéncia, Nas duas existia o mesmo encuriamento da aba, a ‘mesma ampla curvatura do Isbulo superior, a mesma circunvo- lugio da cartilagem interna, Em todos os pontos essenciais trata ‘vase da mesma orelha. Naturalmente percebi de imediato a enor- ime importincia de uma tal abservagio. Era evidente que a vitima devia ser uma patente consangifnea, provavelmente muito pré: ima, da senorita...” 3. Veremos em breve as implicagSes desse parallismno.” Antes, porém, sexi bom setomar ume outra ‘preciosa intuigio de Wind ‘A alguns dos criticos de Morelli parecia estranho 0 ditame de que “a personalidade deve ser procurada onde 0 esforgo pessoal menos intenso". Mas sobre este ponto a psicologia moderna estarie certamente do lado de Morelli: os nossos pequenos gestos inconscientes revelam o nosso cardter mais do que qualquer ati- tude formal, cuidadosamente preparada por nés."* “Os nossos pequenos gestos inconscientes...”: a genética expressio “‘psicologia moderna” pode ser diretamente substituida pelo nome de Freud. As péginas de Wind sobre Morelli, de fato, 146 atcafram, a atengio dos estudiosos para uma passagem, por muito tempo negligenciada, do famoso ensato de Freud Q Moisés de Michelangelo (1914). No comeso do segundo patégrafo, Freud cescreviat Muito tempo antes que ex pudesse ouvir falar de psicanilise, vyim a saber que uum especslista de arte rusto, Ivan Lermolieff, cuj0s primeiros ensaios foram publicados em aleméo entre 1874 ¢ 1876, havia provocado uma revolugio nas galerits da Europe recolocando em discussio a atribuigio de muitos qutdros a cada pintor, ensinando « distinguit com seguranga entre as imitapSes f 08 originals, e construindo noves individualidades artisticas pertic daguelas obras que haviam sido liberadas das suss atti buigdes anteriores, Ele chegou a esse resultado prescindindo da impressio geral ¢ dos tragos fundamentais da pintuts,ressaltando, pelo contrésio, 2 importéncia caracteristica dos detelhes secundé- ios, des particularidades insignficantes, como a conformacio das tunhas, dos lobos auricultes, da auréola e outzos elementos que ormaimente passuvam desaperecbidos © que o copista defxa de Fmitar, ao passo, porém, que cada artista os executs de um modo que o diferencia, Foi depois muito interessante para mim sabet Que sob 0 pseudénimo russo escondiase um médizo italiano de nome Morell. Tendo se tornado senador do reino da Ttdia, Mo- relli morreu em 1891. Creio que 0 seu método esti esttitamente apmrentado 2 técnica da psicanilise médica. Esta também tem por hndbito penetrar em coisas concretas ¢ ocultas atrasés de elemen- tos pouco notados ou desapercebdos, dos detstos ou “refogos” dda notea observacto (auch diese ist gewéhnt, aus ering neschitz- ten oder nicht beachtenten Zigen, aus dem Abhub — dem “refuse” — der Beobachtung, Gebeimnes und Verbotegenes mu cerraten) © ensaio sobre 0 Moisés de Michelangelo num primeito mo- mento apatecera anGnimo: Freud reconheceu sua psternidade s0- mente na ocasifo de inclut-lo em suas obras completas, Supdsse que a tendéncia de Morelli para apagar, ocultando- sob pseudé- nimos, stra personalidade de autor acabasse de certo modo por ‘contagiar também a Freud; apresentaram-se hipéteses mais ou menos aceitéveis sobre o significado dessa convergéncia." © cetto que, coberto pelo véu do anonimato, Freud declarcu de mancira a0 mesmo tempo explicita € reticente a considerével. influéncia 147 intelectual que Motelli exerceu sobre ele, numa fase muito ante: rior & descoberta da psicandlise (“lange bevor ich etwas von der Psychoanalyse héren konnte...”). Reduzir essa influéncia, como se fez, apenas ao ensaio sobre 0 Moisés de Michelangelo, ou em etal 405 ensaios sobre temas ligados 3 historia da arte," significa restringir indevidamente o alcance das palavras de Freud: "Crcio que o sea método [de Moreli) esté estreitamente aparentado a técnica da psicandlise médica”. Na realidade, toda a declaracio de Freud que citaios garante a Morelli um lugar especial na his. ‘dria da formacio da psicanslise. De fato, trata-se de uma conexio documentada, ¢ nao conjecural, como a maior parte dos “antece dentes" ou “precutsores" de Freud; além do mais, o encontro com (05 textos de Morelli ocorreu, como jé dissemos, na fase “pré-ana: litica” de Freud. Temos de tratar, portanto, com um elemento ‘que contribuiu diretamente para a cristalizaqio da psicandlise, € no (como no caso da pagina sobre o sonho de J. Popper “Lynkeus", lembrada nas reedig6es da Trasmdeutung) ® com umoa coincidéncia encontrada posteriormente, quando ja se dera a des coberta. 4. Antes de tentar entender 0 que Freud péde extrair da Ieitura dos textos de Morelli, seré oportuno determinar o momen: to em que ocorreu essa leitura. © momento, ou melhor, os mo ‘mentos, visto que Freud fala de dois encontros distintos: “muito tempo antes que eu pudesse ouvir f saber que um especialista de arte russo, Ivan Lermolielf...”; “Foi depois muito interessante para mim saber que sob o pseud6. imo russo escondia-se um médico italiano de nome Morelli ur de psicandlise, vim a ‘A primeiza afirmacio é datavel apenas hipoteticamente, Como Jerminus ante quem podemos colocar 1895 (ano da publicagio dos Estudos sobre a bisteria de Freud Brevet) ov 1896 (quanclo Freud sou pela primeira ver o termo “psicandlise”).” Como ter: minus post quem, 1883. Em dezembro daquele ano, de {ato, Freud contou numa longa carta & noiva a “descoberta da pintura” feita durante uma visita a galeria de Dresden. No passado, a pintura no 0 interessara; agora, escrevia, “tirei de mim a barbarie c come- 148. cei a admirar’”." B dificil supor que, antes dessa data, Freud fosse atraido pelos textos de um desconhecido historiador da arte; € perfcitamente plaustvel, pelo contrétio, que se puseste a Telos pouco depois da carta a noiva sobre a galeria de Dresden, visto que 08 primeiros ensaios de Morelli reunidos em livro (Leipzig, 1880) referiam-se as obras dos mestres italianos nas galetias de Munigue, Dresden ¢ Berlim” (O segundo encontro de Frend com os textos de Morelli € da- tivel com uma precisdo talvez maior. © verdadeiro nome de Ivan Lermolieff tornow-se piblico pela primeira vez no frontispicio da tradugio inglesa, publicada em 1883, dos ensaios que acabamos de citar; nas reedigGes e tradugGes posteriores a 189. (data da morte de Morelli) aparecem sempre tanto 0 nome como o pseucdlo- rnimo.® Nao é de se excluir que um desses volumes chegasse antes cou depois as mios de Freud; mas provavelmente ele veio a co- ahecer a identidade de Ivan Lermolieff por puro aceso, em seter bro de 1898, bisbilhotando numa livratia milanesa. Na biblioteca de Freud conservada em Londres, de fato, aparece um exemplar do livro de Giovanni Morelli (Ivan Lermolieff), Da pintura ita- liana, Estudos bistoricos eriticos. As galerias Borghese e Doria Pampbiti em Roma, Milo, 1897. No frontispicio esti escrita a data da aquisigio: Milo, 14 de setembro” A tinica cstada mila: nnesa de Freud ocorrew no qutono de 1898.” Naquele momento, por outro lado, o livro de Morelli tinha para Freud mais um outro motivo de interesse, Havia alguns meses, ele vinha se ocupando dos lapsos; pouco tempo antes, na Dalindcia, ocorzeu 0 cpisédio, depois analisado na Psicopatologia da vida cotidiana, em que ten- tara inutilmente lembrar o nome do autor dos afrescos de Orvie- to. Ora, tanto o verdedeiro autor (Signorelli) como os autores ficticios que num primeiro momento vietatn 3 meméris de Freud (Botticelli, Boltraffio) eram mencionados no livro de Morelli." Mas 0 que péde representar para Freud — pati 0 jovem Freud, ainda muito distante da psicandlise — a leitura dos ensaios de Morelli? 1 0 proprio Freud a indicé-lo: a proposta de um mé- todo interpretative centratlo sobre os residuos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, porinenotes nor 149 smalmente considerados sem importincia, ou até triviais, “baixos”, forneciam a chave para aceder 208 produtos mais clevados do espi- ito humano: “os meus adversétios”, escrevia ironicamente Mo- relli (uma itonia talhada para agradar a Freud), “comprazem-se em me julgar como alguém que no sabe vet o sentido espiritual de wma obra de arte e por isso dé uma importincia particular a ieios exteriores, como as formas da mio, da orelha e até, horri- bile dictu, de win objeto tao antipético como as unhas”* Morelli também poderia se apropriar do lema virgiliano caro a Freud, es- colhido como epigrafe pata A interpretagio de sonbos: “Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo" [Se nfo posso dobrar os poderes superiotes, moverei 0 Aqueronte] = Além disso, esses dados marginais, para Morelli, eram reveladores, porque consti- tufam os momentos em que 0 controle do artista, ligado @ tradi fo cultural, distendiase para dar lugar a tragos puramente indi viduais, “que Ihe escapam sem que ele se dé conta”.* Ainda meis do que a alusio, no excepcional naquela época, a uma atividade inconsciente,” impressiona a identificaglo do néicleo intimo da in- dividualidade artistica com 0s elementos subteaidos a0 controle da consciéncia, 5, Vimos, portanto, delinearse uma analogia entre os méto dos de Motelli, Holmes e Freud, Do nexo Morelli—Holmes ¢ Mo- relli—Freud jé falamos. Da singular coavergéncia entre os proce- dimentos de Holmes e os de Freud por sua vez falou S. Marcus.” O proprio Freud, aliés, manifestou a um paciente (“o homem dos Jobos”) o seu interesse pelas aventuras de Sherlock Holmes. Mas, um colega (T. Reick) que aproximava o' método psicanalitico a0 de Holmes, falou antes com admira¢lo, na primavera de 1913, das técnicas attibutivas de Morelli. Nos trés casos, pistas talvez infinitesimais petmitem captar uma realidade mais profunda, de otra forma inatingivel, Pistas: mais precisamente, sintomas (no cavo de Freud}, indicios (no caso de Shetlock Holmes), signos pictéricos (no caso de Morelli)? Como se explica essa tripla analogia? A resposta, & primeira vista, € muito simples, Freud era um médico; Morelli formou-se 150 em medicina, Conan Doyle havia sido médico antes de dedicar-se 4 literatura. Nos trés casos, entrevé-se o modelo da semistica mé- ddica: a disciplina que permite diagnosticar as doengas inacessiveis a observacéo direta na base de sintomas superticiais, as vezes irrelevantes aos olbos do leigo — 0 doutor Watson, por exemplo (De passagem, pode-se notar que a dupla Holmes — Watson, o de- tetive agudissimo e 0 médico obtuso, representa o desdobramento de uma figuta real: um dos professozes do jovem Conan Doyle, famoso pelas suas extraordindrias capacidades diagnésticas.) ” Mas nfo se trata simplesmente de coincidéncias biogréficss. No final do século xix — mais precisamente, na década de 1870-80 — comegou a se afirmar nas ciéncias humanas um patidigma indi cifrio baseado justamente na semistica. Mas as suas raizcs eram muito entigas. IL 1. Por milénios 0 homem foi cacador. Durante inimeras per seguigdes, cle aprendeu a reconstruit as formas € morimentos das ppresas invisiveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pélos, plumas emaranhadas, odores estagna- dos. Aprendeu a farejar, registrar, interptetar e clasificar pistas infinitesimais como fios de barbs. Aprendeu @ fazer operagdes men- tais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clateita cheta de ciladas. Geraoses ¢ gerasties de cagadores enriquecetam ¢ transi tam esse pattiménio cognoscitivo. Na falta de uma documentagao verbal para se por ao lado das pinturas rupestres © dos artefatos, podemos tecorter as narrativas de fabulas, que do seber daqueles remotos cagadores transmitem-nos as vezes um €co, mesmo que tardio e deformado. Trés irmos (narra uma fébula oriental, di- fundida entre os quirquizes, tértaros, hebreus, turcos . .) " encon- ‘ram um homem que perdew um camelo — ou, em cutras varian- tes, um cavalo. Sem hesitar, descrevem-no para els: é branco, cego de um olho, tem dois odzes nas costes, um cheio de vinho, 0 D1 outro cheio de éleo. Portanto, viram-no? Nao, néo v viram, Entio ‘so acusados de roubo ¢ submetides a julgamento. E, para os iimios, 0 triunfo: num instante demonstram como, através de indicios mfnimos, puderam reconstruit 0 aspecto de um animal ‘que nunca viram, Os tiés itmfos sto evidentemente depositirios de um saber de tipo venatério (mesmo que no sejam descritos como cagado- tes). O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciéveis, remontar a uma realidade complexa nfo experimentivel diretamente. Pode-se ecrescentar que esses dados so sempre dispostos pelo observador de modo tal a dar lugar @ uma seqiiéncia narrativa, euja formulagdo mais simples po- dezia ser “alguém passou por 14”, Talvez a propria idéia de nacra 0 (distinta do sortilégio, do esconjuro ou de invocagio) * tena nascido pela primeira vez numa sociedade de cacadores, a partir da cexpetiéncia da decifracio das pistas. O fato de que as figuras retéri- cas sobre as quais ainda hoje funda-se a linguagem da decfracdo vvenatéria — a parte pelo todo, o efsito pela causa — so tecondu- iveis a0 eixo narrative da metonimia, com rigotosa exelusio da metifora,” reforgaria essa hipétese — obviamente indemonstrivel O cacador teria sido o primeito a ‘narrar uma histéria” porque era 6 tinico capaz de ler, nas pistas mudas (se nio imperceptiveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos. “Decifrat” ou “let” as pistas dos animais si0 metiforas. Sen- timo-nos tentados a tomitlas a0 pé da letra, como a condénsagio verbal de um processo hist6rico que levou, num espaco de tempo talvez longufssimo, & invengéo da eserita. A mesima conexdo é formulada, sob forma de mito ctiolégico, pela tradigio chinesa que atribufa a invengao da eserita a um alto funcionéio, que cbservara as pegads de um péssaro imprimidss nas margens arenosas de um tio Por outro lado, se se abandona o ambito dos mitos e hipé- teses pelo da historia documentada, fica-se impressionado com as inepéveis analogias entre © paradigma venatério que delineamos € 0 paradigme implicito nos textos divinatérios mesopotimicos, redigidos a partir do terceiro milénio a.C. em diante:’ Ambos Pressupsem 0 minucioso reconhecimento de uma realidade calvez 132 {nfima, para descobrir pistas de eventos néo ditetamente experi mentéveis pelo observador. De um lado, esterco, pegedas, pélos, plumas; de outro, entranhas de enimais, gotas de, dleo na gua, astros, movimentos involuntétios do corpo e assim por diante, E verdade que a segunda série, 2 diferenca da primeira, € pratica mente ilimitada, no sentido de que tudo, ou quase tudo, podia tornar-se objeto de adivinhecio para os adivinhos mesopotimicos. Mas a principal divergéncia aos nossos olhos € outra: o fato de que a adivinhacdo se voltava para o futuro, ¢ a decifrasio, para 0 passado (talvez um passado de segundos), Porém a atitude cognos. citiva era, nos dois casos, muito parecida; as operacGes intelectuais, \lenvolvidas — andlises, comparagées, classificaqdes —, ‘ormalmen- te idénticas. E certo que apenas formalmente: 0 contexto social era totalmente diferente, Notou-se, em particular;* como a inven- io da escrita modelou profandamente a arte divinatétia mesopo- timica. As divindades, de fato, cra atribuida, entre as outras prer- sogativas dos soberanos, a de se comunicar com os siditos através cde mensagens escritas — nos astros, nos corpos humanos, em toda parte —, que os adivinhos tinham a tarefa de decifrar (idéia essa destinada a desembocar na imagem multimilenar do “livro da na- tureza”). E a identificacdo da atte divinatéria com a deciftacao de caracteres divinos inscritos na realidade era reforgada pelas caracteristicas pictogréficas da escrita cuneiforme: cla também, como a arte divinatdria, designava coisas através de coisas.” ‘Também uma pegada indica uu animal yue passou, Ex com paragdo com 2 concretude da pegada, da pista materialmente en: tendida, 0 pictopeama jé representa um incalcufével passo 4 frente no caminho da absttasao intelectual. Mas as capacidadss abstrati- ‘vas, pressupostas na introdugto da escrita pictogréfica, so por sua vez. bem poucas em comparagio com as exigidas pela passagem para a escrita fonética. De fato, elementos pictogséficos e fonéti ‘cos continuaram a cocxistir na escrita cuneiforme, assim como na literatura divinatéria mesopotimica a progressiva intensificagio dos tracos-aprioristicos e generalizantes nfo apagou « tendéncia fundamental de inferir as causas a partir dos efeitos." fesse atitu- de que explica, por um lado, a infiltracio na lingua di arte divi 153 natéria mesopotimica de termos téenicos extraidos do léxieo juri- dico; por outro, a presenca nos tratados divinatdrios de trechos Depois de um longo rodeio, portanto, voltamos & semistica Encontramola incluida numa constelacio de disciplinas (mas o termo é evidentemente anacrOnico) de aspecto singular. Poder-se-ia ficar tentado a contrapor duas pseudociéncias como a arte divina- téria € a fisiognomonia a duas ciéncias como o direito ¢ a medi na — atribuindo « heterogeneidade da sproximacio 3 distincia espacial ¢ temporal das sociedades de que estamos falando. Mas seria uma conclusio superficial. Algo ligava realmente essas for mas de saber na antiga Mesopatimia (se excluirmos a adivinhagio Inspirada, que se funclava em experiéneias de tipo extética):" uma atitude orientaca para a andlise de casos individuais, reconstrul- veis somente através de pistas, sintomas, indicios. Os préprios textos de jurisprudéncia mesopotimicos nio consistem em coleté |\neas de eis ou ordenagSes, mas na discussio de uma casuistica creta Fim suma, pode-se falar de paradigma indiciétio ou di vinatbrio, dirigido, segundo as formas de saber, pera o passado, o presente ou o futuro. Para o futuro —e tinha-se a arte diving {ria em sentido préprio —; para o passado, o presente € o futu ro —e tinhese a semiética médica na sua dupla face, diagnéstica ¢ prognéstica —; pata o passido — e tinhese a jurisprudéncia, Mas, por tras desse paradigma indiciério ou divinatorio, entrevé se 0 gesto talvez mais antigo da hist6rla intelectual do-género hhumano: o do cagador agachado na lama, que escruta as pistas dda presa 2. Tudo © que dissemos até aqui explica como uma diagnose de traumatismo craniano, formulada a partir de um estrabismo bilateral, podia se encontrar num tratado de arte divinatéria me sopotiimico; ® de modo mais geral, explica como apareceu histori- camente uma constelagéo de disciplinas centradas na decifragio de signos de vatios tipos, dos sintomas 4s esctitas. Passando das civilizagdes mesopotamicas para a Grécia, essa constelagio mudou profundamente, em seguida 4 constituigio de disciplinas novas, 154 como a historiografia ¢ a filologia, e & conquista de uma nova autonomia social e epistemolégica por parte das antigas discipli- nas, como a medicina. O corpo, a linguagem e a tistéria dos homens foram submetidos pela primeita vez a uma investigacio sem preconceitos, que por principio excluia a intervencéo divina, Dessa virada decisiva, que caracterizon a cultura da potis, nds somos, como € dbvio, ainda herdeiros. Menos dbvio.é o fato de que nessa vitada um papel de primeiro plano tenba sido desempe- nhado por um paradigma definivel como semistico ou indiciétio.® ‘Issa é particularmente evidente no caso da medicina hipocrstica, ue definiu seus métodos refletindo sobre a nosio decisiva de sin- toma (semeion), Apenas obsetvando atentamente ¢ registrando com extrema minéicia todos os sintomas — afitmavam os hipocré ticos —, € possfvel elaborar “hist6rias” precisas de cida doenca: 1a doenga é, em si, inatingivel. Essa insisténcia na nacureza indi- cidria da medicina inspirava-se, com todas as probabilidades, na contraposi¢io — enunciada pelo médico pitagérico Alemeon — entre a imediatez do conhecimento divino e a conjeturalidade do hhumano: Nessa negocio da transparéncie da realidade, implicit em esferas de atividades muito diferentes. Os médicos, os histo- tiadores, os politicos, o& oleitos, os carpinteiros, os marinheiros, os cacadores, 0s pescadores, as mulheres: sio apenas algumas entre as categotias que operavam, para 0s gregos, no vasto teritério do saber conjetural. Os confins desse territétio,significativamente go- vernado por uma deusa como Métis, a primeira esposa de Jépiter, que personificava a adivinhacdo pela gua, eram delimitados por termos como “conjetura”, “conjeturat” (tekmor, tekmairesthai). Mas esse paradigma permaneceu, como se disse, implicio — esma- zgado pelo prestigioso (e socialmente mais elevado) modelo de co- nhecimento claborado por Plato 3. © tom apesar de tudo defensivo de certas pessagens do “corpus” hipocritico dé a entender que, jf no séeulo v a.C., co- mecara a manifestarse « polémica, destinada « durar até nossos dias, contra a incerteza da medicina. Tal persisténcia se explica 155 pelo fato de que as relagdes entre 0 médico € o paciente — carac- terizadas pela impossibilidade, para o segundo, de controlar © saber e © poder detidos pelo primeito — nfo mudaram muito desde 0 tempo de Hipscrates. Mudaram, pelo contrério, durante quase 2500 anos, os termos da polémica, a pat com as profundas transformagies sofridas pelas nogdes de “rigor” e “‘ciéncia’”. Como 6 ébvio, a cesura decisiva nesse sentido é constitufda pelo apare cimento de um paradigma ciemtfico centrado na fisica galileana, mas que se revelou mais duradouro do que ela. Ainda que a fist cca moderna nfo se possa definir como "galileana” {mesmo nao tendo renegado Galileu), o significado epistemolégico (e simbéli- co) de Galileu para a ciéncia em geral permaneceu intacto.” Ora, € claro que 0 grupo de disciplinas que chamamos de indiciétias (inclufda a medicina) nfo entra absolutamente nos critérios. de cientificidade deduaiveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de disciplinas eminentemente qualitativas, que tém por objeto casos, situagdes e documentos individuais, enguanto individuais, € justamente por isso alcangam resultados que tém uma margem inelimindvel de casualidade: baste pensar no peso das conjeturas (o ptdprio termo é de otigem divinatéria)* na medicina ov na filologia, além da arte méntica. A cincia galileana tinha uma natu reza totalmente diversa, que poderia adotar o lema escoléstico individuum est ineffabile, do que é individual nio se pode falar. (© emprego da matemitica e 0 método experimental, de fato, im- plicavam respectivamente a quantificagio ¢ a repetibilidade dos fendmenos, enquanto « perspectiva individualizante exclufa por definigio a segunda, ¢ admitia a primeira apenas em fungées aux Tiares. Tudo isso explica por que a histéria nunca conseguiu se romar uma ciéncia galileana. Justamente durante o século xvi, pelo contrétio, © enxerto dos métodos do conhecimento antiqué- rig no tronco da historiografia trouxe indiretamente & luz as distantes origens indiclétias desta hima, ocultas durante séculos, Esse ponto de partida permaneceu inalterado, no. obstante as relagdes sempre mais estreitas que ligam a hist6rie as ciéncias sociais. A histéria se manteve como uma ciéncia social sui generis, irremediavelmente ligada a0 conereto. Mesmo que 0 historiedor 156 info possa deixar de se referir, explicita ou implicitamente, a séries de fendmenos comparivels, a sua estratégia cognoscitive assim como os. seus cédigos expressivos petmanecem intrinsecamente individualizantes (mesmo que 0 individuo seja talvez um grupo social ou uma sociedade inteira). Nesse sentido, o historiador € comparével 20 médico, que utiliza os quadros nosogrsficos para analisar 0 mal especifico de cada doente. E, como o do médico, 0 conhecimento histérico € inditeto, indicirio, conjetural:” Mas a contraposigio que sugerimos € esquemética demais, No Ambito das disciplinas indiciétias, uma delas — a filologia, ¢ mais precisamente a critica textual — constituiu desde o sev surgimen- to um caso sob certos aspectos atipico. O seu objeto, de fato, constituise através de una dréstica selecio — destinada a se reduzir ulteriormente — dos elementos pertinentes, Esse acontecimento interno da disciplina foi escondi- do por duas cesuras histéricas decisivas: a invencio da escrita e @ da imptensa, Como se sabe, a critica texmal nascen depois da primeira (quando decidiu-se transcrever 0s poemas haméticos) € consolidou-se depois da sezunda (quando as primeiras e freqiien- temente aptessadas edigdes dos cléssicos foram substituidas por edigdes mais confidveis).” Inicialmente, foram considerados no pertinentes ao texto os elementos ligados a oralidade ¢ 4 gestuali- dade; depois, também os elementos ligados a0 carter fisico da esctita, O resultado dessa dupla operacio foi a progressiva.desma- terializagdo do texto, continuamente depurado de todas as refe- réncias sensiveis: mesmo que seja necesséria uma relacfo sensivel para que 0 texto sobreviva, 0 texto no se identifice com 0 seu suporte.*' Tudo isso nos parece dbvio, hoje, mas nido o €em termos absolutos. Basta pensar na funcio decisiva de entonagio nas lite raturas ofais, ou da celigtafia na poesia chinesa, pata percebet.gue 1 nogiio de texto que acabamos de invocar esta ligada a uma esco- tha cultural, de alcance incalculével. Que essa escotha nfo tenhe sido determineda pela afirmacao da reprodugio mecénica em lugat dda manual € demonstrado pelo exemplo clamoroso da China, onde 4 invengio da imprensa nio rompeu o elo entre texto literdtio € 17 caligrafia, (Veremos em breve como o problema dos “textos” figu- tativos se colocou historicemente em termos totalmente dife reates) Essa nogao profundamente abstrata de texto explica por que a critica textual, mesmo se mantendo largamente divinatéa, tinba ‘em si potencialidades de desenvolvimento em sentido rigorosa- mente cientifico que amadureceriam durante 0 século x1x. Com uma deciséo radical, ela levaza em consideragio apenas os elemen- tos reprodutiveis (antes manualmente, depois mecanicamente, a partir de Gutenberg) do texto. Desse modo, mesmo assumindo como objeto os casos individuais,® acabara por evitar o principal obstéculo das ciéncias humans: qualidade. E significativo que, no momento em que se fundava — com uma reduefo igualmente dréstica — a moderna cigncia da natureza, Galileu tenhe invocado a filologia. A tradicional comparagio medieval entte mundo ¢ livro fundase na evidéncia, na legibilidade imediata de ambos: Gilileu, pelo contritio, ressaltou que “a flosofia .... escrita neste enorme livro que esté continuamente aberto diante dos. nosso’ alhos (digo 0 universo)... xo se pode entender se antes nao se aprende a entender a lingua, conbecer os caracteres nos quis esta escrito”, isto 6, “trifngulos, citculos e outras figuras geométti cas” * Para 0 fil6sofo natural, como para o filélogo, 0 texto é tama entidade profunda invisivel, a ser reconstrufda pare além dos dados-sensiveis: ‘as figuras, os mimeros e os movimentos, mas no os odores, nem os sabores, nem os sons, os quis fora do ant mal vivo nao creio que sejam nada além de nomes” Com essa frase Galileu imprimia & ciéneia da natureza uma guinada em sentido tendencialmente antiantropocéntrico © anti- antropomérfico que ela ndo vitia mais a abendonar. No mapa do saber abriase um rasgo destinado a se alargar continuamente, E certamente entre o fisico galileano, profissionalmente surdo 80s sons ¢ insensivel aos sabores e aos odores, e 0 médico contempo- riineo seu, que arziscava diagnésticos pondo 0 ouvido em peitos estertorantes, cheirando fezes ¢ provando utinas, © contraste no poderia ser maior. 158 4. Um desses médicos era Giulio Mancini, de Siena, médico. mor de Urbano vitt. Nao parece que conhecesse Gaiileu pessoal mente; mas é bem provével que os dois tenham se encontrado, porque frcqiientavam os mesmos ambientes romanos (da corte papal a Accademia dei Lincei) ¢ as mesmas pessoas ‘de Federico Cesi a Giovanai Ciampoli, « Giovanni Faber) * Num vivissimo retrato, Nicio Eritreo, alias Gian Vistotio Rossi, delineou o ates mo de Mancini, suas extraordinérias capacidades diagnésticas (des critas com termos do Iéxico divinatério) ¢ a falta de escrdipulos em extorquir dos clientes os quadros de que era “intelligen- tissimus”.” Mancini de fato redigita uma obra intitulade Alge ‘mas consideracées referentes & pintura como deleite d= um gentil homem nobre e como introdugio ao que se deve dizer, gue cixculou amplamente em manuscrito (e primeira impressio integral remon- ta a duas décadas)* O livro, como mostra o titulo, era ditigido no aos pintores, mas aos gentishomens diletantes — aqueles vir- ‘uoses que, em niimero sempre maior, lotavam as exposigdes de quadros antigos e modernos que sconteciam todos 0s anos no Pantheon, em 19 de imazgo.® Sem esse mercado attistico, a patte talvez mais nova das Consideracées de Mancini —adedicada 20 “reconhccimento da pintura”, isto 6, aos métodos para teconhecer 0s falsos, para distinguir os otiginais das cépias ¢ assim por diante® — nunca tetia sido escrits. A primeira tentativa de fun- dacio da connoisseurship (como se chamatia um sécalo depois) remonta, portento, a um médico eélebre pelos seus Zulminantes diagnésticos — um homem que, encontrando um doenie, com um répido olhar “quem exitam morbusille esset habiturus, divinabat” Ladivinhava que fim aquela doenca vitia a ter]. Seré permitido, 4 esse ponto, ver no pat olho dlinico-olho do conhecedor algo ‘mais que uma simples coincidéncia. Antes de seguir de perto os argumentos de Mancini, desta- ‘quemos um pressuposto comum @ ele, ao “‘gentil-homem nobre” @ quem se ditigiam as Consideragées, e a nés. Um pressuposto no declarado porque julgado (erroneamente) ébvio: o de que entre um quadro de Rafael ¢ uma cépia sua (trate-se de uma pintura, luma gravure ou, hoje, uma fotografia) existia uma difetenga ineli- 9 rmindvel. As implicagoes comerciais desse pressuposto — de que uma pintura é por definigio um umicum, inxepetivel® — sio Sbvias. A elas esté ligedo o surgimento de uma figura social como © do conhecedor. Mas trata-se de um pressuposto que nasce de uma escolha cultural de forma alguma prevista, como mostra o fato de néo se aplicar aos textos escritos. Os supostos caracteres ‘eternos da pintura ¢ da literatura no cabem af. J4 vimos antes as guinadas histérices pelas quais a nogio de texto escrito foi de purada de uma série de elementos considerados nao-pertinentes. No caso da pintura, essa depuragio (ainda) no se verificou. Por isso, aos nossos olhos, as cSpias manuscritas ou as edigées do Orlando Furioso podem reproduzit exatamente o texto desejado por Ariosto; as edpias de um retrato de Rafael, nunca.® O diferente estatuto das cépias na pintura € na literatura explica por que Mancini nfo podia se servir, enquianto conhece- dor, dos métodos da critica textual, mesmo estabelecendo em prin- cpio uma analogia entre 0 ato de pintar ¢ 0 sto de escrever Mas, justamente partindo dessa analogia, recorreu em busca de ajuda a outras disciplinas, em vias de formagio, primeiro problema que ele se colocava era 0 da datacio das pintutas. Pata tanto, afitmava, € necessétio adquitir “uma certa prétca na cognicéo da variedade da pintura quanto ao seu tempo, como tém esses antiquérios e bibliotecérios dos caractetes, os quais reconhecem o tempo da esctita”.* A alusio 3 “‘cogni- ‘glo... dos caracteres” refere-se quase certamente aos métodos ela- orados nos mesmos anos por Leone Allacci, bibliotecério da Va- ticana, para datar os manusctitos gtegos c latinos — métodos destinados a set retomados e desenvolvidos meio século mais tarde pelo fundador da ciéncia paleogréfica, Mabillon Mas, “além da propriedade comum do século”, existe — continuava Mancini — “a propriedade prépria individual”, assim como “vemos nos escri- tores em que se reconhece essa propriedade distante"”. Q nexo ianalégico entre pintura e escrita, sugerido antes em escala mactos- ‘Spica (“os tempos”, “o século”’), era entio novamente proposto em escala microscépica, individual. Nesse “ambito, os métodos protopaleogréficos de um Allaeci nio eram utilizAveis. Houvera 160 porém, nesses mesmos anos, uma tentativa isolada de submeter a andlise, de um ponto de vista incomum, as escritas individuais. O médico Mancini, citando Hipécrates, observava que € possivel re- ‘montar das “operagdes” as “impresses” da alma, que por sua vez tém ratzes nas “propriededes” dos corpos singulares “suposicio pela qual ¢ com a qual, como creio, algumas belas inteligéacias deste nosso século escteveram e quiseram dar regra para reconhe- cer o intelecto ¢ a inteligéneia dos outros com o mode de escrever € da escrita deste ou daquele homem”. Uma dessas ‘belas inteli- géncias" era, com todas as probabilidades, o médizo bolonhés Camillo Baldi, que em seu Tratado sobre como de uma carta mis- siva se conbece a natureza ¢ a qualidade do escritor hevia incluido uum capftulo que podese considerar o mais antigo texto de grafo- logia j& aparecido na Europa. “Quais sio os significados” — € 0 titulo do capitulo vr do Tratado — “que na figure do carter podem-se aprender”: onde “‘cardter” designa ‘a figum, e 0 trace- do da letra, que se chama clemento, feito com a pena sobre 0 apel””!” Mas, ndo obstante as palavras clogiosas que lembramos, Mancini desinteressou-se quanto 20 objetivo declarado da nascente sgrafologia, sto é, a reconstrugio da personalidade dos escreventes remontando-se do “cardter” escrito ao “caréter” psicdlégico (sino afmia esta que remete, ume vez mais, a uma mesma remota mattiz

You might also like