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ANTONIO CANDIDO FORMACAO DA LITERATURA BRASILEIRA (Momentos decisivos) 1° volume (1750-1836) 9? edigao 2 EDITORA ITATIAIA LIMITADA Belo Horizonte — Rio de Janeiro Copyright © 1975, by ANTONIO CANDIDO Sao Paulo FICHA CATALOGRAFICA (Preparada pelo Centro de Catalogagao-na-fonte, Camara Brasileira do Livro, SP) Candido, Antonio, 1918- C223f Formagao da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo 6.ed. Horizonte, Editora Itatiaia Ltda, 2000. ilust. (Colegdo reconquista do Brasil. 2" série; vol. 177-178) Bibliografia. Contesido. — v. 1. 1750-1836. — v.2. 1836-1880. 1. Literatura brasileira — Hist6ria crftica 1. Titulo. I. Série: Reconquista do Brasil. 2, Série; vol. 177-178. 75-0832 CDD-869.909 fndice para catélogo sistemético: 1. Literatura brasileira : Hist6ria e critica 869.909 2000 Direitos de Propriedade Literdria adquiridos pela. EDITORA ITATIAIA LTDA Belo Horizonte - Rio de Janeiro Inapresso no Brasil Printed in Brazil INDICE Preficio da 1* edigio 9 Prefacio da 2* edigdo 15 Preficio da 6* edigio 19 INTRODUCAO 1, Literatura como sistema 23 2. Uma literatura empenhada 26 3. Pressupostos 29 4, O terreno e as atitudes criticas 31 5. Os elementos de compreensio 33 6. Conceitos 36 LTragos gerais eee Al 2. Razao e imitagio 43 3. Natureza e rusticidade 53 4. Verdade e Ilustragio 61 5. A presenca do Ocidente 66 CAPITULO II - TRANSICAO LITERARIA 1 Literatura congregada.- 2... - beeen eee 3 2. Gramios e celebragdes sees 76 3, Sousa Nunes ¢ a autonomia intelectual 81 4.No limiar do novo estilo: Claudio Manuel da Costa 84 CAPITULO III - APOGEU DA REFORMA 1, Uma nova geragao . Naturalidade e individualismo de Gonzaga N 3. O disfarce épico de BasiliodaGama .... 1-1... eee ee eee 4. Poesia e musica em Silva Alvarenga e Caldas Barbosa .....-...-..-, CAPITULO IV — MUSA LITERARIA 1, O poema satirico e herdi-cémico . . 2, 0 Desertor e o Reino da Estupidez 3. Cartas Chilenas . . 4. A laicizagao da inteligéncia . 2... eee CAPITULO V - 0 PASSADISTA Santa Rita Duro... ee eee eee 1. Rotina 2. Pessoas 3. Mau gosto 4, Sensualidade e naturismo 5, Pitoresco e nativismo 6. Religiio 1. As condigdes do meio we ee 2. A nossa Aufkldrung 3. Os generos puiblicos CAPITULO VIII - RESQUICIOS E PRENUNCIOS 1. Poesia a Reboque 2. Pré Romantismo franco-brasileiro 3.0 “vagon’alma” so... 2... eee 4, Independéncia literdria . . 5.0 limbo Biografias Sumérias Notas Bibliograficas Indice de Nomes 181 184 190 195 200 205 215 225 230 253 260 267 281 285 293 307 325 CAPITULO III APOGEU DA REFORMA 1. UMA NOVA GERACAO 2, NATURALIDADE E INDIVIDUALISMO DE GONZAGA 3. 0 DISFARCE EPICO DE BASILIO DA GAMA 4, MUSICA E POESIA EM SILVA ALVARENGA E CALDAS BARBOSA 1 UMA NOVA GERACAO Os ideais neoclassicos sé se realizaram, quanto aos escritores brasileiros, nos da Geracdo seguinte a dos fundadores da Arcadia Lusitana, dos quais receberam, polidos e afinados, os instrumentos literdrios. Sao, de um lado, Basilio da Gama e Silva Alvarenga, acentuadamente pombalinos no pensamento e muito libertos na forma; de outro, Alvarenga Peixoto e seu parente Gonzaga, mais presos formalmente aos canones arcadicos e 4 influéncia direta de Claudio Manuel da Costa, que os estimulou sem duvida no caminho da poesia, — pois a absoluta maioria dos poemas que deixaram, € que podem ser datados aproximadamente, so posteriores ao convivio com ele’. Em todos, porém, ha nitida superagéo do momento inicial de compromisso entre Cultismo e novo estilo, caracteristico da sua obra, inclusive menor interesse pelas formas tradicionais, como o soneto e a écloga, Basilio da Gama transfunde musicalidade serena, mas calorosa, no decassilabo soll onzaga da admirdvel plasticidade a ode; Silva Alvarenga imprime nova orientagao melédica ao verso, inventando o rond6; Caldas Barbosa empresta categoria literdria & modinha. Sao tragos importantes para completar a expressdo da nova sensibilidade, amaciando, colorindo, adocando 0 verso portugués a fim de dobré-lo as suas exigéncias, num processo de contrapeso ao estilo regular e l6gico do Classicismo. Junto ao legado harménico da Arcadia e as suas nobres cadéncias prepara-se deste modo uma invasio de melodia que habituard o ouvido 4 melopéia, facilitando, desintelectualizando a percepcao lirica. A sensibilidade natural comega a se tornar sentimental e procura as formas expressionais adequadas, que o Romantismo levard as tiltimas conseqiléncias. Basilio da Gama e Silva Alvarenga, mineiros de nascimento, sio cariocas pelo sentimento da agua, das cores, exprimindo-se com certa macieza que nos faz imaginé-los nas sombras frescas do Passeio Puiblico, envoltos no denso fascinio da natureza tropical e na clara luminosidade do mar. Alvarenga Peixoto, carioca de nascimento, € mineiro de sensibilidade, como Claudio, impregnado pela aspereza e os problemas da terra do our. Gonzaga, portugues, filho de carioca, crescido na Bahia, participa de um universo plastico e psfquico mais genérico, e talvez por isso mesmo foi o que melhor realizou a compenetracio do sentimento com a expresso universal. Em todos eles, sobretudo quan- 1 Nota da 2* edicdo — Esta opinido fica abalada, no tocante a Alvarenga, depois da edigio recente de Rodrigues Lapa (V. adiante, pag. 314), 105 do querem ser anacreénticos, repontam laivos de amaneiramento que sio um eco, ou uma transformagio do Cultismo, e que marchetam a sua orientagio neoclassica de um preciosismo que chamariamos por analogia, e com as precaucdes devidas, de rococé Basilio e Silva Alvarenga conviveram na Metrépole, indo 0 segundo em 1782 para © Rio, onde ficou até morrer; em Vila Rica esteve Cléudio sé desde 1754; depois, na companhia de Alvarenga Peixoto a partir de 1776, completandose o trio com a chegada de Gonzaga em 1782. Durio (caso 4 parte) saiu do pais aos 9 anos e nunca mais voltou. Nao ha portanto uma Escola Mineira como grupo; mas é fora de duivida que o Arcadismo brasileiro encontrou a sua mais alta expressio em poetas ligados 4 Capitania das Minas por nascimento ou residéncia, podendo-se por este lado justificar a velha designagio. Alvarenga Peixoto Perfeitamente enquadrado na li¢ao arcadica, Alvarenga Peixoto escreve como quem se exercita, aplicando formulas com talento mediano e versejando por desfastio. Por isso é mediana a qualidade de quase todos os seus poemas, sendo impossivel equipard-lo literariamente, — como é uso, — aos outros poetas mineiros. E admissivel que o seqitestro e a desgraca houvessem dispersado 0 seu espélio poético, deixando apenas as pecas destinadas a louvar e comemorar. Seja como for, estas constituem quase tudo nas vinte e oito restantes, dando a impressio de que o infeliz conspirador s6 invocava as “‘canoras Musas” para celebrar poderosos e amigos, numa demonstragao compacta do cardter de sociabilidade da literatura setecentista. O interesse que apresenta hoje é, todavia, devido a algo implicito na poesia de circunstancia e que ja pudemos entrever em Claudio. Quero falar da utilizagéo que os poetas fizeram do louvor a reis e governantes para, através dele, chegar 4 meditagao sobre problemas locais, cumprindo assim um dos objetivos da literatura ilustrada, em busca da verdade social. A homenagem tornava-se pretexto, tanto mais seguro quanto © poeta se escudava no homenageado e mesclava habilmente lisonja e reivindicagao. E ‘0 que vernos em muitos poemas de Claudio; nos de poetastros sem conseqiiéncia, como Bartolomeu Anténio Cordovil; no que resta de mais vivo entre os de Alvarenga Peixoto: duas odes, o fragmento de uma terceira, uma cantata e 0 famoso “Canto Genetliaco”. Combinadas, referidas a alguns sonetos e devidamente lidas, desvendam um claro roteiro de poesia ilustrada, com apoio em alguns temas fundamentais: louvor do governo forte que promove a civilizagao; preeminéncia da paz sobre a guerra; necessi- dade de civilizar o Brasil por uma administracao adequada; desejo que 0 soberano viesse efetivamente tomar conhecimento da nossa realidade; aspiracdo de sermos governados por brasileiros, que compreendessem os caracteres originais do pais, marcado pela fuso das racas e a aclimacdo da cultura européia. E a mistura, tipica dos nossos ilustrados, de pombalismo, nativismo e confianga nas Luzes. 106 , Tais pontos nao aparecem, é claro, expressamente definidos € organizados; vém contidos de modo mais ou menos explicito em seqiiéncias e imagens, com regularidade suficiente para fazer de Alvarenga Peixoto um ifustrado a brasileira. Alids, parece ter sido, dentre os poetas “mineiros”, 0 mais resolutamente envolvido na Inconfidencia, nao contando que seria homem progressista e cheio de planos, como os que procurou aplicar na melhoria das suas lavras do Sul de Minas, A ode a Pombal é com certeza a sua obra melhor e, apesar de descaidas ocasionais, uma das mais belas que nos legou o século XVIII no género estritamente politico. O verso é conciso € seco, nao raro lapidar, descrevendo a brutalidade da guerra para chegar, por contraste, a uma nobre visdo da paz e do trabalho, bens maiores na vida dos povos. Mais longe: Ensangitentados rios, quantas vezes Vistes os férteis vales Semeados de langas e de arneses? Quantas, 6 Ceres loura, Crescendo uns males sobre os outros males, Em vez do trigo, que as espigas doura, Viste espigas de ferro, Fnutos plantados pela mdo do erro, E colhidos em monte sobre eiras, Rotos pedagos de servis bandeiras! Grande Marques, os Sdtiros saltando Por entre as verdes parras Defendidas por ti de estranhas garras; Os trigos ondeando Nas fecundas searas; Os incensos fumando sobre as aras, A nascente cidade, Mostram a verdadeira heroicidade. Em Pombal revia o esforco construtor que admirava, como Claudio, na obra de Pedro, © Grande, 0 qual, ..errando incerto e vago Bérbaros duros civiliza e doma. (Son. VII) A incultura da patria — sublinhada na “Ode a rainha D. Maria I” - surge todavia nos versos do “Canto Genetliaco”, ao batizado de um filho do Governador Conde de 107 Cavaleiros, como rica diversidade de promessas, cujo alcance apenas um administrador brasileiro poderia apreender; daf 0 subterftigio, por meio do qual atribuia ao pequenino D. José Tomés de Menezes, nascido nas Minas, o sentimento que iam tendo os intelectuais e proprietarios da necessidade de autonomia: Isto, que Europa barbaria chama, Do seio de delicias tao diverso, Qudo diferente é para quem ama Os ternos lacos do seu pdtrio bergo. Como em Basilio da Gama, Silva Alvarenga, Cordovil e 0 Cléudio da tltima fase, também para ele o indio ia se tornando simbolo do Brasil. Nas representacées plisticas — escultura, pintura, artes aplicadas ~ isto se vinha dando desde 0 Descobrimento, por todo o Ocidente: mas a recorréncia dos temas, em arte e literatura, s6 pode ser tomada em sentido estritamente contextual; de acordo com este, tal pratica, no século XVIII € no Brasil, vem acrescida de significado diverso, englobando as idéias de homem natural, liberdade e nativismo, que convergem para a imagem do indio com algemas rompidas, corrente no tempo da Independéncia para exprimir a libertagio do pais. Em Alvarenga Peixoto e seus contemporaneos, ainda nao se trata disso: também nao se trata mais da emplumada alegoria da Quarta Parte do Mundo, ao nivel dos jacarés, oncas e ananases. Na “Cantata”, e principalmente na “Ode & rainha D. Maria I", o selvagem € um portavoz que exprime & Europa os desejos locais, em particular dos poetas ilustrados, convictos da necessidade, para a Colénia, de bom governo que promovesse o império das Luzes, resgatando 0 povo da dura condigo em que se achava e que ¢ nitidamente denunciada num verso ousadissimo, logo abafado em reticéncias pela tatica ligeira da adulacao: Néo hd barbara fera Que 0 valor e a prudéncia ndo domine; Quando a razdo impera, Que ledo pode haver que ndo se ensine? Eo forte jugo, por si mesmo grave, A doce méo que o pée, o faz suave. Que fez a natureza Em por neste pais 0 seu tesouro Das pedras na riqueza, Nas grossas minas abundantes de ouro, Se o povo miserdvel.. Mas que digo! Povo feliz, pois tem o vosso abrigo. (“Fragmento") Todavia, s6 quando aparecem poetas capazes de superar a estrita preocupagio iustrada e comunicar no verso a beleza do mundo e emoco dos seres, é que esta geracio alcancard verdadeiramente a poesia, — com Tomas Gonzaga, Basilio da Gama e Silva Alvarenga. 108 2 NATURALIDADE E INDIVIDUALISMO DE GONZAGA «.tomando o Réu respondente isto em menos preco, e dando as razées, por que lhe parecia isto impossivel, concluiu dizendo, que quando eles safssem ia fazer uma Ode, que tdo sossegado ficava no seu espirito...” Nesta resposta ao inquérito, Gonzaga deixa implicita uma teoria da criagdo postica bem diferente da que reputariamos ajustada & sua obra. Espirito em paz e desanuviado nao parece ter sido o que presidiu a feitura da maior parte das suas liras, compostas na prisio ou entre as dividas duma corte amorosa, nem sempre livre de oposigdes dificuldades. Nem tampouco 4 das Cartas Chilenas, a ser realmente ele o oculto Critilo. No entanto, ha neste recurso de acusado uma leveza de expressdo que nos deixa pensativos: to sossegado que ia fazer uma ode... O exemplo que escolheu aponta, — queiramos ou nao, — para aquela nobre serenidade, aquela majestade tranquila que marca as suas boas liras, mesmo quando pungentes, sempre que superam o dengue da moda anacreéntica. Talvez a criagdo nao dispensasse, para ele, a paz superior da visio artistica, imposta pela forga do espirito ao impulso freqiientemente desordenado da paixdo, E este invélucro brilhante e sereno daria dignidade e valor coletivo 4 nota da experiéncia pessoal. Seja como for, 0 certo é que em Tomas Gonzaga a poesia parece fenémeno mais vivo € auténtico, menos fiterdrio do que em Claudio, por ter brotado de experiéncias humanas palpitantes. 0 poeta Gonzaga existe, realmente, de 1782 a 1792; poeta de uma crise afetiva e de uma crise politica, diferente nisto de Claudio, cuja atividade parece um longo, consciencioso artesanato de escritor, no sentido estrito da palavra. O problema consiste em avaliar até que ponto a Marilia de Dirceu é um poema de lirismo amoroso tecido & volta duma experiéncia concreta — a paixdo, 0 noivado, a separagéo de Dirceu (Gonzaga) e Marilia (Maria Dorotéia Joaquina de Seixas) — ou o roteiro de uma personalidade, que se analisa e expée, a pretexto da referida experiéncia. E certo que os dois aspectos nao se apartam, nem se apresentam como alternativas. Mas também. é certo que o significado da obra de Gonzaga varia conforme aceitemos a predominancia de um ou de outro. Para podermos formar juizo, é preciso mencionar pelo menos trés pontos: a sua aventura sentimental, a sua formagao poética, as caracteristicas da sua poesia. 109 Presenga de Marilia Gonzaga é dos raros poetas brasileiros, e certamente 0 Unico entre os arcades, cuja vida amorosa tem algum interesse para a compreensao da obra. Primeiro, porque os ‘seus versos invocam quase todos a pastora Marilia, nome poético da namorada e depois noiva; segundo, porque eles criaram com isto um mito feminino, dos poucos em nossa literatura. E possivel que os organizadores das edicdes gonzaguianas, seguindo a primeira selecado feita nao se sabe por quem (1792), desprezassem composigées nao ligadas ao tema, que deste modo se extraviaram em maior numero. Seja como for, o que resta é um bloco compacto, todo formado 4 volta de Marilia. A Glaura de Silva Alvarenga, pode, ou nao ter vivido; a sua existéncia corporea nao interfere com a pastora estilizada e despersonalizada que aparece nos rondés e madrigais; a nossa curiosidade nao necessita ir além do que estes nos dizem. O mesmo nao acontece com a heroina de Gonzaga, muito mais viva e presente. O tema de Marilia é, pode-se dizer, modulado por ele com certa amplitude. Temos desde uma presenga fisica concretamente sentida, até uma vaga pastorinha incarac- teristica, mero pretexto poético semelhante as Antandras e Amarilis. Quando apareces na madrugada, mal embrulhada na larga roupa, e desgrenhada, sem fita ou flor; ah! que entéo britha @ natureza! Entéo se mostra tua beleza inda maior. (i, 17) Fito os olhos na janela, aonde, Marilia bela, tu chegas ao fim do dia. (21) Quando a janela satires, sem quereres, descuidada, tu verds Marilia, a minha, e minha pobre morada (Hl, 12) 110 Pintam que entrando vou na grande igreja: pintam que as méos nos damos, (iH, 34) Entra nesta grande terra, passa uma formosa ponte, passa a segunda; a terceira tem um palécio defronte. Ele tem ao pé da porta uma rasgada janela: 6 da sala, aonde assiste a minha Marilia bela. (I, 37) Versos como estes personificam e localizam concretamente a bem-amada, dandothe uma realidade que podemos reconstruir, superpondo a Vila Rica um roteiro amoroso que o visitante procura captar, contemplando janelas, medindo distancias, refazendo itinerdrios, de todo possuido pela topografia magica do antigo amor. No entanto, se procuramos completar esta presenca exterior de Dorotéia por um conhecimento mais completo do seu ser, as Liras fogem nossa curiosidade. Entrevemos aqui um citime — Minha Marilia, tu enfadada? — imaginamos ali um leve snobismo de mocinha fina — E methor, minha bela, ser lembrada Por quantos hdo de vir sdbios humanos, que ter urcos, ter coches e tesouros que morrem com os anos; — apenas pressentimos mais longe certa frieza ante os ardores do poeta, que chama entao como argumento A devorante mao da negra morte para persuadila: Fagamos, doce amada, os nossos breves dias mais ditosos;— e mais nada, Na medida em que é objeto de poesia, Dorotéia de Seixas vai-se tornando cada vez mais um tema. Desprende-se da vida cotidiana, mal esbocada, para entrar na farandola rococé, de chapeuzinho de palha, corpete de veludo e cajado florido, num sbah desalinho convencional que estimula a musa anacreéntica do Ouvidor e Procurador dos Ausentes. Todo este lado Sevres e Fragonard contrabalanca 0 outro, Dorotéia se desindividualizou para ser absorvida na convencio arcddica: é a pastora Marilia, objeto ideal de poesia, sem existéncia concreta. Por isso mesmo, ora é loura, ora morena; ora compassiva, ora cruel: em qualquer caso, sem nervo nem sangue. & um biscuit arrebicado que 0 poeta envolve na revoada de cupidos, rosas e abelhas: Apenas the morde, c’o dedo fugiu. Amor, que no bosque estava brincando, aos ais acudiu. (, 20) Lembremos apenas que sob esta Marilia dos poemas podem na verdade ocultar-se pedacos de Lauras, Nizes, Elviras, Ormias, Lidoras e Alféias, que o poeta cantara em versos anteriores, 0 belo poema, talvez inspirado num soneto de Gargao, Eu ndo sou, minha Nize, pegureiro, que viva de guardar alheio gado- refeito em seguida — Eu, Martlia, ndo sou algum vaqueiro que viva de guardar alkeio gado— leva a pensar que nao hesitava em retomar composigdes anteriores para ajustd-las as novas condigées. E possivel que outras liras enderecadas a Marilia — sobretudo as anacreénticas — sejam adaptacdes de poemas mais velhos. Dai, em parte, a pastorinha que vai e vers como peteca, em tantos versos de habil negaceio sentimental. Isto ajudaria a explicar a predominancia do ciclo de Marilia, que é quase toda a sua obra: seria realmente pouco vulgar que apenas aos quarenta anos tal poeta abrisse as asas, ¢ 0 fizesse de maneira desde logo tao consumada. Por outro lado, nao hd como escapar ao fato de que apenas em Vila Rica, a partir de 1782, a poesia avultou na sua vida. No Brasil, o homem de estudo, de ambigao e de sala, que provavelmente era, encontrou condigées inteiramente novas. Ficou talvez mais disponivel, e 0 amor por Dorotéia de Seixas o iniciou em ordem nova de sentimentos: 0 classico florescimento da primavera no outono. Foi um acaso feliz para a nossa literatura esta conjungio de um poeta de meia idade com a menina de dezessete anos. O quarentao é 0 amoroso refinado, capaz de sentir poesia onde o adolescente sé vé o embaracoso quotidiano; ¢ a proximidade da velhice intensifica, em relagéo & moga em flor, um encantamento que mais se apura pela fuga do tempo e a previsdo da morte: 112 Aht enquanto os destinos impiedosos ndo voltam contra nés a face irada, facamos sim, facamos, doce amada, 08 nossos breves dias mais ditosos (...) Ornemos nossas testas com as flores ¢ facamos de feno um brando leito; prendamo-nos, Marilia, em laco estreito, gozemas do prazer de sdos amores (...) (..) aproveitese o tempo, antes que faca 0 estrago de roubar ao corpo as forcas ¢ ao semblante a graca. (f, 13) Dai, em sua poesia, a substituicdo da antiga pena de amor como impaciéncia sensual, pela aspiraco ao convivio doméstico, que coroa e consolida os amores da mocidade. As suas liras so copiosas na celebragao do lar, nos sonhos de vida conjugal. Por isso dignificam os sentimentos quotidianos, superando os disfarces alegéricos que o Ar- cadismo herdou da poesia seiscentista e quinhentista. Marilia aparece entao realmente como noiva e esposa, desimpedida de toda a tralha mitolégica, livre da idealizagio exaustiva com que aparece noutros poemas. Estas liras de cunho por assim dizer doméstico se tornam mais belas e pungentes quando escritas da prisio — de onde imagina a vida junto a esposa, delineando a velhice trangiiila. Para o seu mestre Anacreonte, a fuga da mocidade, importando sobretudo ‘em privacao dos prazeres, despertava a evacacao exaltada dos bens que se iam afastando; para ele, sendo nao obstante ameaca ao amor, a velhice motiva de preferéncia a invocacao da paz doméstica. E ele a trata com realismo nada inferior ao dos antigos. Jé, jd me vai, Marilia, branquejando loiro cabelo, que circula a testa; este mesmo, que alveja, vai caindo, e pouco jd me resta, (Hi, 4) diz retomando Anacreonte: Jé me alvejam as teémporas e a cabeca é calva: jd passou a cara juventude e os dentes se arruinaram. Resta pouco tempo da doce vida E, mais préximo aqui de Hordcio, a visio burguesa da decrepitude: Mas sempre passarei uma velhice muito menos penosa. ‘Néo trarei a muleta carregada, 113 descansarei 0 jé vergado corpo na tua méo piedosa, na tua mao nevada, As frias tardes, em que negra nuvem os chuveiros n@o lance, irei contigo ao prado florescente: aqui me buscards um sitio ameno onde os membros descanse, @ ao brando sol me aquente. (, 18) Um homem de paixdes fortes, de individualidade acentuada, que se embebe nao obstante na visio da felicidade doméstica. E que pelo fato de nutrir tais visdes, primeiro da posigdo de um namorado maduro, depois na solitude do cércere, soube darlhes (superando muito remeleixo pernéstico), ora uma dignidade, ora uma pungéncia que as tornam das experiéncias poéticas mais sentidas da nossa lingua. “O meu Glauceste” Estabelecido que o amor pela mocinha de Vila Rica influiu decididamente no rumo da sua vocagdo, é preciso agora tocar noutra grande influéncia: a de Cléudio Manuel da Costa. Gonzaga, pertencendo 4 nova gerac¢do, sofreu o influxo da Arcadia Lusitana, e portanto de Cliudio, cujas Obras, vindas a lume no ano mesmo em que terminava 0 curso (1768), teria certamente lido. O ambiente em que se formou era outro, jd penetrado das tendéncias de reforma, que haviam passado o apogeu quando veio de Portugal para as Minas Gerais (1782). Aqui, ligou-se desde logo ao colega mais velho que porventura admirava hé muito e com certeza o animou a escrever, empurrando no caminho da poesia o talento logo pressentido e manifestado. Nas liras, fala constantemente do amigo; a intimidade entre ambos fica patente, nao 86 ai, como nos Autos da devassa, onde declara que Claudio o aconselhava em matéria poética: “(..) 0 Doutor Claudio Manuel da Costa (..) sabia muito bem, que ele tratava da sua retirada, que estava lendo e emendando as poesias do Réu Respondente que tratavam desta”. Num de seus poemas, querendo tracar o paradigma do poeta, diz: € 0 terno Alceste chora a0 som dos versos, a que 0 genio o guia? (6) 2. Autos de Devassa, cit, vol. IV, pag, 259-260. 3, Aleeste seria Claudio, como se depreende do contexto de varias liras, E opiniio de Alberto de Faria, estribado numa argumentacao engenhosa (“Criptonimos das Cartas Chilenas”, Acendathas, pags. 38:39), 114 Gomes Freire de Andrada por Antonio Manuel da Cunha - Século XVIII. (Cortesia do D. P. H. A. N) Motivo indianista no teto de uma residéncia setecentista em Sao Sebastio — Sio Paulo. (Cortesia do D. P. H. ALN.) Na Lira 31 da I Parte, faz do amigo o elogio mais alto que se poderia esperar de um homem apaixonado: Porém que importa ndo vatha nada seres cantada do teu Dirceu? Tu tens, Maritia, cantor celeste; o meu Glauceste @ voz ergueu: ird teu nome aos fins da terra, @ ao mesmo Céu, Na lira em que traga mais acuradamente o préprio perfil, manifesta 0 orgulho que tinha em ser admirado por Claudio: Com tal destreza toco a sanfoninha, que inveja até me tem o proprio Alceste: 0 som dela concerto a voz celeste, nem canto letra que nao seja minha. ay Pressentimos af a enternecida reveréncia do mais velho, profundo conhecedor do oficio; o ultimo verso talvez indique, da parte de Gonzaga desvanecimento, nio de estreante, mas de quem sé entdo comecava a poetar com verdadeiro discernimento e forca para prosseguir: “nem canto letra que nao seja minha.” © profundo amor de Claudio pela terra mineira teria passado em parte ao luso- brasileiro Gonzaga. Por ocasido da contenda com 0 Governador Luis da Cunha Menezes, © sentimento de justiga e o ardor combativo mais reforcariam 0 apego nascente, que haveria de contribuir para interessé-lo na Inconfidéncia, onde parece ter tido papel vagamente marginal, se é que teve algum. E bela e comovente a amizade dos dois grandes poetas, tao chegada e afetuosa como se vé nas liras, onde Gonzaga fala no “meu honrado companheiro” e na “mais fiel unido” (II, 12); ou nas declaracdes da devassa, onde procura, sempre, desviar de Claudio perigo e suspeita. De Claudio, que antes de matar-se no desespero 0 comprometera tio desastradamente, ilustrando 0 prdprio verso, que mais diriamos profeciat Ah! que falta valor ao sofrimento. (Ecloga, Vi) Mais notdvel se torna o calor dessa fraternidade sem ciumes, se repararmos que Gonzaga vinha de certo modo superar a obra de Claudio, trazendo 4 literatura 115 Juso-brasileira um tom moderno dentro do Arcadismo, deslocando para um plano mais individual e espontineo a naturalidade, que na geracdo anterior ainda é quase académica. O “caro Clauceste” nado combate nem rejeita estas manifestagdes como fazem geralmente os que, aos sessenta, vém os mais mocos inovar na literatura em que produziram. Pelo contrario, emenda os versos do amigo, certamente entusiasmado e rejuvenescido pelo seu cristalino frescor; e, quem sabe, sentindo neles a conseqiiénci natural da reforma que ajudara a empreender, trinta anos antes, em busca da naturali- dade, Gonzaga, de sua parte, seguia a orientagao e o ensino do companheiro mais velho, porque nela encontrava o instrumento para dar corpo aquele mundo de poesia que descobriu entre as serranias mineiras, Dirceu transfigurado Em nossa literatura é dos maiores poetas, dentre os sete ou oito que trouxeram alguma coisa 4 nossa visio do mundo. Com ele a pesquisa neoclassica da natureza alcanga a expressdo mais humana e artisticamente mais pura, liberta ao mesmo tempo da contor¢ao barroca e dos escolhos da prosa, Nas literaturas romanticas do tempo, forma sem deslustre ao lado de um Bocage ou um André Chénier. Na primeira fase da sua poesia, anterior & prisio, denota preferéncia pelo verso leve e casquilho, tratado com facilidade que Cldudio incrementaria, satisfeito de ver o amigo brilhar num campo que nunca trilhou com éxito. Depois de preso, supera este lado rococé da inspiragao, concentrando-se em formas mais severas; nao obstante, é desse tempo a mais bela das odezinhias amorosas que compés: A minha amada é mais formosa que o branco lirio, dobrada rosa, que o cinamomo, quando matiza co’a folha a flor. Venus ndo chega ao meu amor; (Ul, 27) melodia pura de que ha varios exemplos na sua obra, e onde germinam os melhores ritmos, as mais belas imagens de um Casimiro de Abreu. 4. As pecas leves de Gonzaga, anacrednticas no sentido convencional, de metro geralmente curto € com a presenca de Venus e Cupido, sio 24 sobre as 110 consideradas hoje auténticas com alguma certeza: delas 17 pertencem ao periodo anterior & prisdo e 7 20 periodo desta. 116 Superando a todos os contempordneos brasileiros e portugueses no verso gracioso, nao é porém nisto que fundamenta a sua preeminéncia. Esta deriva principalmente do realismo e do individualismo, com que elabora, em termos de poesia, um sentimento da vida e uma afirmagio de si mesmo. “(...) Nao é a persisténcia dos elementos tradicionais. da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dao definitivamente o seu estilo, Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforco de remoer sem cessar a antiguidade.”” Em Gonzaga, € interessante o contraste entre as precaugdes mitolégicas com que celebra a mulher e 0 senso de realidade com que a integra no panorama da vida, Mais. de uma lira é votada a tarefa quase didatica de mostrar bem amada a naturalidade do amor, mostrandolhe a ordenagéo das coisas naturais. E, por outro lado, valorizar a nogio civil da vida social, salientando a nobreza das artes da paz, o falso heroismo da violencia, a ordem serena da razio. Em alguns dos seus melhores poemas, a beleza aparece como contemplacdo singela da regularidade das coisas. Um pouco meditemos na regular beleza, que em tudo quanto vive nos descobre a sdbia Natureza. (1, 19) A recuperagio da naturalidade, cujos artifices foram os primeiros arcades, encontra em Gonzaga a nota fundamente humana. A simplicidade de chd-com-torradas em que se despoetizou o estilo de Cargo, substitui a vivencia calorosa do quotidian. A suprema importincia de sua obra é a maturacdo do psicologismo esbocado naquele poeta, mas que sé avulta com ele e Bocage. A delegacdo poética referida anteriormente nao perturba aqui a emergéncia do lirismo pessoal: Gonzaga surge, vivo, de sob o ténue disfarce do pastor Dirceu, e a sua obra é a Unica, entre as dos Arcades, que permite acompanhar um drama pessoal e as linhas duma biografia. O impacto emocional sobre o leitor aumenta gracas a este degelo do eu, sem o qual nio irrompe 0 auténtico lirismo individual. Ao contrario da tradigao impessoal do Cultismo e da delegacdo arcédica, vemos uma personalidade que se revela, mas ao mesmo tempo se constr6i no plano literério. Por outras palavras: que considera a si mesma como objeto legitimo da arte, e por isso se desvenda, nas suas penas, no seu gosto, em toda a escavaao profunda e sinuosa da confidéncia; mas sé desvenda para atingir a imagem elogiiente, a frase bela que permite elaborar uma expressdo artistica, ou seja, uma estilizagio de si mesma. Gonzaga se distingue ainda niste dos roménticos, que captam as mais das vezes a forma emergente no calor da inspiragdo, ansiosos por registrar o impulso afetivo. Ndo encontramos nele 5. Rodrigues Lapa, prefécio a edigdo Sa da Costa, pags. XXVILXXVIIL 7 esta variabilidade de sismégrafo, riscando na percepgio do leitor um traco nervoso € desigual. Nao caca momentos fugazes, nem prefere a notagdo rara e pitoresca do que 36 acontece uma vez. O que procura construir é a linha média da sua vida moral, num tragado seguro, eqdiidistante do inexprimivel e das exigéncias de clareza. As liras sio um roteiro pessoal, nao uma série de indicagdes, como, setenta ou oitenta anos depois, as Primaveras, de Casimiro de Abreu. Se elas pudessem ter sido ordenadas e publicadas pelo préprio autor, talvez isso ainda ficasse mais acentuado. Este equilibrio verdadeiramente neoclassico entre o eu ea palavra perdeu-se a seguir. A obra de Gonzaga € admiravel gracas a tal capacidade de extrair uma linha condutora dentre a variedade de afetos e estados d’alma, construindo um s6 movimento, que funde a sua natureza e a forma que a demarca e revela. Deste modo ela é verdadeiramente sincera no plano artistico e, nas partes em que superou os modismos bastante corrup- tiveis do Rococé literdrio, admirdvel, geralmente superior as produgdes do Romantismo. A superagio do Rococé se opera principalmente pelo cunho muito especial que Tomds Antonio imprimiu a expressio do seu eu: todo pautado pelo decoro neoclassico € nio obstante muito individual e revelador. E que o sentimento da propria pessoa aparece, nele, exaltado e altivo. A gabolice e aos disfarces da poesia anterior, substituiu a revelagdo sincera e minuciosa do seu modo de ser. Fala com naturalidade e abundancia (sem o ar de indiscrigdo que caracterizaria mais tarde os romanticos) da sua inteligéncia, posigdo social, prestigio, habilidades. Preocupa-se com a aparéncia fisica e a erosto da idade; com o conforto, futuro, planos, gléria, Talvez a circunstancia de namorar uina adolescente rica (ele, pobre e quarentao) tenha exacerbado esta tendéncia, que seria além disso exibicionismo compreenstvel de homem apaixonado, Entretanto, é mais provavel que a descoberta do amor e da poesia 0 tenham levado a descobrir a si prdprio e a comunicar o achado. Suponhamos, com efeito, que o triunfo na carreira judicial, o prestigio na sociedade nao bastassem para satisfazer certas necessidades espirituais. O malogro da carreira universitaria, a falta de oportunidade e estimulo para a literatura, teriam bloqueado par- te das suas aspiragées; 0 encontro de Dorotéia e de Claudio (do amor e da técnica...), abriu novo trilho para ela e a poesia surgiu deste modo, de repente, como veiculo para. afirmar brilhantemente o seu ser. Ainda mais num momento em que o Governador Luis da Cunha Menezes feria o seu pundonor e os Ferrves, tios e tias de Doroteéia, procuravam guardéJa para melhor partido.” Dai o cunho especifico das liras pessoais; dai serem elas um roteiro pontilhado pela afirmagao da propria dignidade e valia. Esta tendéncia se acentua e vem predominar na fase da prisic, quando a poesia passa a constituir quase a tinica via de manifestagio da sua pessoa e 0 confinamento do cdrcere desenvolve uma orgulhosa jactancia, verdadeiro recurso de preservacao da dignidade e integridade espiritual. 6. Diz Tomds Brando que a familia de Dorotéia néo desejava o casamenta e tudo fez para evitélo, por ser Gonzaga muito mais velho e estar de safda para Bahia, devendo pois levar a esposa. Mandaramna inclusive para fora de Vila Rica, e s6 mesmo a tenaz insisténcia do Ouvidor péde quebrar a oposicdo. A lira “Eu, Marilia, 1ndo sou nenhum vaqueiro”, (1, 1) teria sido escrita para alegar as suas qualidades, em resposta & prosdpia da familia materna de Dorotéia, Maritia de Dirceu, pags. 142-166. 118 Enquanto tem posig&o e liberdade, Gonzaga se aplica principalmente a celebrar Dorotéia, envolvendo-a cada vez mais nas vestes pastorais de Marilia. Sio, de modo geral, as odezinhas, anacreénticas ou nao, da I Parte, onde predomina 0 amaneiramento rococé.” Jé af, porém, em seis liras dentre as melhores que escreveu, aparece o timbre novo e inconfundivel da sua mesurada confidéncia, vazada em metros mais longos que contrastam com os metros curtos, o ritmo saltitante da maioria dos poemas de louvac’o amorosa. E hoje, se dermos um balanco nesta Parte, reconheceremos certamente em tais liras a melhor e mais pura matriz gonzaguiana: Eu, Marilia, ndo sou algum vaqueiro q@) Oh! quanto pode em nés a varia estrela (6) Eu sou, gentil Marilia, eu sou cativo oy Minha bela Marilia, tudo passa (4) Nao vés aquele vetho respeitdvel (18) Alexandre, Marilia, qual o rio, (27) Nelas, percebemos uma circunsténcia significativa, que avulta, até dominar nas liras, da II Parte (fase da prisio) e esclarece o 4mago da poesia de Gonzaga: na maioria dos poemas de envergadura, em que 0 espirito e o coragdo alcam véo largo, Marflia, nao obstante invocada a toda hora, aparece, quando muito, como pretexto, ou pelo menos ocasiéo dos versos. Nesta II Parte, so 21 sobre 36 as pecas em que ele préprio é 0 centro, enquanto as de puro enleio amoroso oram por 10. Em outras 4, equilibram-se 08 dois movimentos (como alias nas Liras 1 e 14 da I Parte, j4 citadas), vibrando porém com maior ressonancia a nota do destino pessoal, a ponto de podermos ampliar para 25 sobre 36 a conta das pecas pessoais. £ nelas que encontramos, como na I Parte, 0 melhor da inspiragao de Gonzaga e 0s toques novos que trouxe & poesia. Assim, a sua grande mensagem é construida em torno dele prdprio; ndo apenas da sua paix4o, que entra muitas vezes como ponto de partida e ingrediente, mas da sua personalidade total, amadurecida e de certo modo recomposta pelo amor, a poesia, a politica e a desgraca ~ que veio encontrar misturados na decadente Villa Rica de Ouro Preto. Gragas a esta aventura humana e artistica, Tomas Anténio pode tracar e exprimir 0 nitido contorno com que passou a Histéria, Pode legar através das geracées, a milhares de homens e mulheres que se dobram sobre o seu canto de ternura, dor e orgulho, uma imagem de grandeza invulgar: 7. 24 liras sobre as 34 desta parte. 119 Eu é que sou Herdi, Marilia bela, seguindo da virtude a honrosa estrada; (1, 22) Eu tenho um coracéo maior que 0 mundo, tu, formosa Marilia, bem o sabes; um coracao, e basta, onde tu mesma cabes. (Hl, 2) Nao importa que por duas vezes fraquejasse ou, penso eu, se fizesse de esperto, re- comendando Marilia ao Visconde de Barbacena e dobrando-se ao pé deste (If, 14 e 23). Sio tricas de defesa, equivalentes as que desenvolveu com habilidade no decorrer do processo. O que resta € a brusca tomada de consciéncia com que esculpiu contra 0 tempo a sua figura. Confiow mais do que ninguém em si mesmo e na forca imortalizadora da poesia — Sé podem conservar um nome eterno 8 versos ou a histéria — (22) e afirmou a dignidade do poeta, com uma seguranga que sera das posicées-chaves do bardo romintico, do futuro vidente que Halderlin definia mais ou menos por este tempo e Magalhies proclamaria mediocremente no Brasil, em 1836. Sao impressionantes a firmeza e a sabedoria reveladas nas liras da prisdo. Nem um momento de desmoralizagao ou rentncia; sempre a certeza da sua valia, a confianca nas préprias forcas. Um dos melhores critérios para constatarmos a inautenticidade da falsa III Parte é precisamente o desalento e a lamuria que a envolvem, tao em contraste com a fibra dos demais poemas. Assim pois, amor e poesia refinaram a personalidade de Gonzaga; sem Dorotéia e sem Cldudio nao teriamos a sua obra. Entretanto, mais do que o cantor de Marilia, ele éo cantor de si mesmo. A pieguice pastoral se esbateu nos seus versos porque, 4 medida que os compunha e se descobria, ia ficando cada vez menos o pastor Dirceu, cada vez mais 0 poeta Tomas Anténio Gonzaga, lancando dos jardins da Arcddia a sua forte alma sobre a posteridade. 120

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