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Percepgao, imagem e memoria na modernidade: uma perspectiva filos6fica Maria Critina Franco Ferraz* Resumo Partindo dos instigantes trabalhos de Jonathan Crary acerca do processo de modernizacio da percepgao e do estatuto do obser- vador no século XIX, este ensaio investiga os conceitos bergsonianos de imagem e de meméria, propostos em’1896, enfatizando sua estre- ita relagéo com os meios de comunicagao .¢ as tecnologias de pro- dugdo e reprodugao de imagens entao em amplo desenvolvimento. Palavras-chave: modernizagao da percepgao, imagem, meméria. Resumen A partir de los trabajos de Jonathan Crary sobre el proceso de modernizacién de la percepcién y del estatuto del observador en el siglo XIX, este ensayo investiga los conceptos bergsonianos de imagen y memoria, propuestos en 1896, enfatizando su estrecha relacién con los medios de comunicacién y las tecnologfas de produccién y teproguccién de imdgenes que_entonces se encontraban en pleno desarrollo, Palabras-clave: modernizacién de la percepcién, imagen, memoria. * Professora Titular de Teoria da Comunicagao, Universidade Federal Fluminense. 59 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICACAO Abstract Exploring Jonathan Crary’s approach on the process of moder- nization of perception and on the status of the observer during the 19th century, this paper deals with the concepts of image and memory pro- posed by Henri Bergson in 1896. It emphasizes the intimate connection between these concepts and the development of new channels of Communication and new technologies in the production and repro- duction of images by the end of the XIXth century. Keywords: modernization of perception, image, memory. ‘$40 Paulo ~ Volume XXVII, n® 1, janeiro/junho de 200¢ O processo de modernizacao da percep¢ao insere-se em um contexto mais amplo, que diz respeito a uma série de transformagées vinculadas 4 mecanizagao da producdo nas sociedades capitalistas oci- dentais, 4 correspondente aceleragao dos deslocamentos e 4 complex- ificagdo crescente da vida urbana. Tal processo intensificou-se expo- nencialmente nas tltimas trés décadas do século XIX, solicitando novas formas de atengao (tanto adestrada quanto distrafda, sublimi- nar), estimulando todos os sentidos (em especial, 0 olhar) nas me- trépolis em que se desenvolvia a emergente industria cultural de massa. Entretanto, precisar tais muta¢6es, que implicaram expressiva mudanga nos regimes de percepgao e temporalidade do homem mo- derno, no corresponde a uma tarefa de facil realizagao. O recente trabalho de Jonathan Crary (sobretudo o livro Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture (Cambridge/Massachussets: MIT, 2000]) contribui, conceitual e metodologicamente, para o desenvolvimento dessa temdtica, estab- elecendo um rico paralelo entre as tecnologias de comunicagao, infor- magio, produg&o e reprodugéo de imagem ento desenvolvidas (transportes mecanizados e eletrificados, telégrafo, fotografia, telefonia etc), os saberes da época (neurologia, psicologia, fisiologia ética), a experiéncia pictérica finissecular (Manet, Seusat e Cézanne) 0 pensamento filoséfico. Privilegiando a énfase atribufda na época ao novo problema da atengao e afastando-se da tematizacao mais usual, que em geral concede primazia ao estudo dos novos regimes de visualidade, Crary analisa os desdobramentos da emergéncia, nessas’ esferas da vida, da arte, da ciéncia e do pensamento, de um novo “obsetador”, de uma nova forma de subjetivagao que marcou a mo- detnidade. Tendo por base, de modo explicito, o método genealdgico foucaultiano - a andlise minuciosa das miltiplas relagdes entre poder e¢ saber modernos -, o autor nao estabelece uma selagdo causalista, redutora e mecAnica, entre praticas sociais e discursos, pensando em paralelo - como “adjacéncias histéricas”', como efeitos de uma for- magio histérica em incessante transformagio - tecnologias, industria cultural, ciéncia, arte e filosofia. Para dar maior rigor a seu trabalho, detém-se especialmente em trés décadas distintas (1870, 1880 e 1890), mapeando, de modo detalhado e preciso, alteragSes nessas diversas esferas passiveis de serem relacionadas. inema, 61 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICAGAO Para melhor entendermos as alteragdes pelas quais passava a percepcao na modernidade e os. novos conceitos de imagem e de meméria surgidos nesse contexto, interessa-nos privilegiar os estudos em torno da década de 1890, em que emerge, por exemplo, o cinema eem que se desenvolve a filosofia de Henri Bergson, que expressa ¢ intensifica 0 processo de modernizagao da percepgao. No capitulo de Suspensions of perception intitulado “1900: Reinventing Synthesis”, Jonathan Crary privilegia, em paralelo, a pintura de Cézanne, os estudos em fisiologia dtica (as experiéncias laboratoriais e a série de aparelhos ent&o desenvolvidos para medir e estudar a atenc4o), em nevrologia (sobretudo a marcante e inovadora obra de Sherrington) e a filosofia de Henri Bergson. Em todos esses campos, delineia-se 0 novo estatuto do observador moderno, imerso em um ambiente de apelo constante e insistente a ateng4o, acarretando igualmente novas experiéncias patolégicas ¢ artisticas de dissociacéo e, sobretudo, uma fratura decisiva da crenga em um sujeito coeso em um mundo coer- ente, bem como em uma relago nao problematica entre ambos. Esvazia-se, assim, o modelo cléssico sujeito-objeto que assegurara pre- viamente tanto o conhecimento quanto a crenca na estabilidade do homem e do mundo. E nesse rico contexto que, na passagem do século XIX ao XX, Henri Bergson elabora seus principais conceitos filosdficos, inte- grando em sua obra experiéncias perceprivas préprias & época (como a fotografia e o cinema) e incorporando-as ao movimento mesmo de seu pensamento, Nesse sentido, termina por inovar radicalmente o horizonte da psicologia e filosofia da época, na medida em que extrai dessas expesiéncias modernas - impares, inaugurais — potentes con- ceitos capazes de constituir um novo campo filosdfico, nao mais bali- zado por uma ontologia e por uma légica de fundo metafisico, Sua empreitada filosdfica consistiu em apartar-se das duas vias mais preg- nantes do pensamento da época: o idealismo subjetivista e o realismo materialista. Para tal, no primeito capitulo de Matéria e meméria (ensaio sobre a relagéo do corpo com o espifito), intitulado “Da selegao das imagens para a representa¢a0/O papel do corpo”, ao tem- atizar a “percep¢ao pura” (que — conforme salienta — nao passa de abstracéo)?, propde um conceito radicalmente novo, e mesmo sur- preendente, de “imagem”. Ultrapassando dualismos cldssicos e bas- 62 ‘$80 Paulo — Volume XXVII, n* 1, janeirofjunho de 2004 tante arraigados, tais como “eu”/“mundo”, “sujeito”/“objeto”, “exteri- oridade”/“interioridade”, Bergson elabora dois conceitos j4 clara- mente expressos desde o titulo do livro: “matéria e meméria”. Que nfo se entenda, entretanto, com isso a postulacdo de um novo “dua- lismo”, mesmo que atenuado, pois o par matéria/meméria nao mime- tiza nem reduplica a légica em geral presente nos dualismos anterior- mente citados, uma vez que os dois termos em questo no so regi- dos por uma relagao negativa, simplesmente excludente’, mas encon- tram-se em constante tensio. Alids, a igor “meméria” no equivale a um dos “pédlos” de um suposto “dualismo”, pois, como Bergson ira mostrar, corresponde a prépria articulacao e intersegao entre matéria ¢ espfrito — este sim o dualismo especial postulado pelo fildsofo. Para a efetivagao de toda essa operacao filosdfica de rara agudeza, contribui fortemente 0 conceito bergsoniano de “imagem”, que ganha maior inteligibilidade uma vez remetido, como veremos, ao campo onto- logicamente configurado do qual emerge. Toda a matéria e nosso préprio corpo se resumem, para Bergson, a imagens. O universo é 0 conjunto das imagens; o mundo. material, um “sistema de imagens soliddrias ¢ bem ligadas” (p. 182). Imagem entre imagens, nosso corpo é um centro de ago. Nossa per- cepgao delineia “precisamente no conjunto das imagens (...) as ages virtuais ou possiveis” de nosso corpo, facultando-lhe um amplo espec- tro de possibilidades de agao. No final do primeiro capitulo do livro A evolucio criadora (1907), referindo-se especificamente & percepgao visual, Bergson afirma que “os contornos vis{veis dos corpos sao 0 desenho de nossa a¢do eventual sobre eles”. No primeiro capitulo de Matétiwe meméria, propée entao duas definigdes: o que chama de matéria seria “o conjunto das imagens” e o que denomina de per- cep¢ao da matéria, “essas mesmas imagens remetidas 4 ag4o possivel de uma certa imagem determinada — meu corpo” (p. 173), Desta- quemos aqui um trecho mais longo do primeiro capftulo de Matéria e memeéria em que talvez esse conceito (nem um pouco dbvio) me- Thor sé explicite: ... colocando o mundo material, demo-nos um conjunto de ima- gens ¢ é, alids, impossivel se dar outra coisa. Nenhuma teoria da matéria escapa a essa necessidade, Que se reduza a.materia a dto- 63 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICACAO mos em movimento: esses dtomos, mesmo desprovidos de quali- dades fisicas, sé se determinam, no entanto, com relacdo a uma vistio ¢ a um contato posstveis (...), Que se condense o dtomo em centros de forca e se 0 dissolva em turbilhoes evoluindo em um Siuido continuo: esse fluido, esses movimentos, esses centros $6 sé determinam com relagio a um toque impotente, a uma impul- so ineficaz, a wma luz descolorida: so ainda imagens. E ver- dade que uma imagem pode ser sem ser percebida; ela pode estar presente sem ser representada; e a distancia entre esses dois termos - presenga e representacho - parece justamente medir o intervalo entre a propria matéria e a percepgéo consciente que dela temas. (p. 185) Observe-se que 0 conceito de “imagem” é eminentemente telacional, mas, ao mesmo tempo, nem um pouco desmaterializante: ao conrario, como propée Bergson, corresponde a prépria materiali- dade. As relagdes se dao no Ambito da matéria, mas 0 filésofo toma o cuidado de alertar que, se existe uma rede de relag6es que a constitui, a matéria nao deriva sua determinagao do que She viria (suposta- mente) “de fora”. Daf porque menciona, ao se referir nessa passagem ao jogo de relagées entre imagens, a “um toque impotente, a uma impulsdo ineficaz, a uma luz descolorida”. O “ser relacional” é sufi- ciente e como que “anterior” as préprias relagdes efetivamente estabe- lecidas. O fato de tudo ser relacional, de tudo ser imagem, entretan- to, nao pulveriza a matéria. Acostumados a uma nogio tradicional- mente desrealizadora de “imagem” e a pensar em termos de relag6es espacializaidas (tal como “exterioridade”-e “interioridade”), enfrenta- mas inevitavelmente dificuldade para entender esse conceito bergso- niano. Sobretudo a afirmagSo segundo a qual uma “imagem pode ser sem ser percebida”. Mas justamente aqui pensamos encontrar 0 atalho mais promissor (e talvez mais curto) para uma primeira aproximagao: esclarecer, na brevidade de espago que aqui se impée, de que ontolo- gia se trata nesse caso, radicalmente diversa daquela que matcou a filosofia ocidental desde seus momentos inaugurais, antes mesmo de Sécrates ¢ Platéo, com Parménides (de cuja ontologia partiu a filosofia socratico-platénica), por exemplo, e as famosas teses imo- bilistas dos -eleatas, tal como Zendo, cujos paradoxos Bergson insis- 64 840 Paulo Volume XXVI, n* 1, janeiro/junho de 2004 tentemente retoma ao longo de sua obra, para desconstrui-los, iden- tificar suas implicagées e criticd-las. O pensamento sobre o ser no ocidente foi de fato profunda- mente marcado por um gesto ¢ uma necessidade de imobilizagio, de essencializagdo € substancializago, servindo como ponto de apoio e fundamento para 0 modelo de identidade que tem sustentado, por exemplo, a persistente crenga no “eu”, no “mundo”, na estabilidade de ambos e nas relagdes que, uma vez colocados os dois pélos, viriam lig4-los. O conceito bergsoniano de “imagem” apéia-se, ao contrario, em uma ontologia isenta de qualquer estabilidade ou imobilidade, dissolvendo, de modo definitivo, toda pretensio & fixagao, sob a forma de supostas esséncias imutdveis ou de pretensas identidades definitivas. Para mostrar de que forma-a imobilidade nao passa de uma ilusfo ética, no inicio da segunda conferéncia sobre “A per- cep¢ao da mudanga” (1911), Bergson refere-se a uma experiéncia per- ceptiva e de deslocamento cara & virada do século, e que, alids, tam- bém se encontra fortemente presente em outras esferas do conheci- mento eda cultura no limiar do século XX (como o atestam a experi- éncia pictural impressionista, e mesmo anterior’, os estudos de fisica da época, 0 cinema nascente ¢ as viagens de trem). Pata mostrat, no Ambito da conferéncia, tanto a ilusdo de imobilidade quanto a tinica tealidade do incessantemente movente, o fildsofo evoca a imagem de dois trens em movimento, em velocidade equivalente. Eis a passagem: Na verdade, nunca hd verdadeira imobilidade, se por isso entendemos auséncia de movimento. O movimento é a realidade mesma e 0 que chamamos de imobilidade é um certo estado de coisas andlogo aquele que s&produz quando dois trens-andam com a mesma velocidade, em um mesmo sentido, em vias paralelas: cada um dos dois trens ¢ entao imédvel para os viajantes sentados no outro. Mas uma situagdo desse tipo — que é, no final das contas, excepcional — parece-nos ser a situ- agdo regular e normal, pois é a que nos permite agir sobre as coisas que também permite que as coisas ajam sobre nds: os viajantes dos dois trens sé podem estender as mos uns para os outros pela porta e conversar entre si se estio “iméveis”, ou seja, se se deslocam no mesmo sentido na mesma velocidade. Sendo a “imobilidade” aquilo de que nossa ag&o necessita, nés a algamos a realidade, dela fazemos um absoluto e vemos no movimento algo que se acrescenta a ela.‘ 65 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICACAO Bergson nada objeta 4 necessidade humana de dotar 0 que existe da ilusio de estabilidade, de imprimir, ao que é puro movi- mento e incessante mudanga, os nftidos contornos de ilusdérias formas estanques, pois tal se da em fungao das necessidades e vicissitudes da agio, fundamentais para o viver humano. A ago estd intimamente associada, em seu pensamento, ao tema da “atengdo & vida” - termo que, ao mesmo tempo, o aproxima e o afasta das preocupagées € pesquisas (especialmente fisiolégicas) de sua época a que jd aludimos. O que o fildsofo questiona enfaticamente é a transferéncia constante, no pensamento ocidental, dessa necessidade vital para 0 campo da especulacao teérico-filoséfica, o que cria problemas tao falsos quanto insoldveis, além de fechar nossos olhos ao que, segundo ele, “hé de mais vivo no real” (p, 1379). Assim € que, em-nossa tradi¢ao filosdfi- ca, tanto © movimento quanto a mudanga terminam por ser expur- gados do pensamento; o movimento (unica realidade) passa a ser como que aplicado a um “mundo” antecedente, tomado como imév- el, estatico, e remetido a uma visdo imobilista do ser. Quanto a ilusdo de permanéncia, Bergson langa mao ainda uma vez, um pouco adi- ante nessa mesma conferéncia, da analogia dos dois trens em movi- mento, enfatizando, nesse caso, a percepgéo em movimento, a per- cep¢ao do movimento, a fim de desestabilizar toda ontologia que pre- tenda homogeneizar, fixar, essencializar e deter o que ¢é mudanga con- stante, continua. O exemplo é claro, eloqiiente, ¢ remete ainda tanto as experimentagdes culturais e pictéricas finisseculares quanto aos avancos do conhecimento cientifico em fisica, sobretudo acerca da cor: Nee == Toda mudanga real ¢ uma mudanga indivistvel. Gostamos de tratd-la como uma série de estados distintos que se alinhariam, de algum modo, no tempo. Isso também é natural. Se a mudanca é continua em nés e continua também nas coisas, por outro lado para que a mudanga ininterrupta que cada um de nds chama de “ex” possa agir sobre a mudanca ininterrupta que chamamos uma ‘coisa’, é necessdrio que essas duas mudangas se encontrem, uma com relagto 4 outra, em uma situagao andloga aquela dos dois trens de que faldvamos hd pouco. Dizemos por exemplo que um objeto muda de cor e que a mudanga consiste, nesse caso, em ‘SGo Paulo - Volume XXVII, n® 1, j eiro/junho de 2004 uma série de tons (teintes) que seriam os elementos constitutivos da mudanca e que, eles. mesmos, niéio mudariam. Mas, de inicio, 0 que existe abjetivamente em cada tom (teinte) é uma oscilagao infinitamente rdpida, é mudanga. E, por outro lado, a percepsio que dele temos, no que ela possui de subjetiva, nada mais ¢ do que um aspecto isolado, abstrato, do estado geral de nossa pessoa, que muda globalmente de modo incessante e faz com que tal per- cepeio dita invaridvel participe de sua mudanga: de fato, niio existe percepgio que nao se modifique a cada instante. De modo que a cor, fora de nds, ¢ a mobilidade mesma, e nossa prépria pes- soa &, ainda, mobilidade.” Essa passagem, to esclarecedora’quanto luminosa, desembo- ca na seguinte afirmagao, enfatizada por Bergson na conferéncia: “H4 mudangas, mas nao hd, sob a mudanga, coisas que mudam: a mu- danga néo tem necessidade de um suporte. Hd movimentos, mas ndo hd objeto inerte, invaridvel, que se movimente: 0 movimento ndo implica um mével” (1381-1382). Aproximando-se nesse ponto da perspectiva de Nietzsche, Bergson aponta aqui, indiretamente, para os vinculos entre nossos hdbitos de linguagem, nossa gramatica®, e uma metafisi- ca, uma ontologia, comprometidas com fixagdes identitdrias que se- apdiam, como insiste em sua obra, em uma constante operagéo de espacializacéo do tempo. Essa operagdo, com diversas vantagens de ordem prdtica, acarreta sérios problemas para a legftima especulagao filoséfica, na-medida em que inviabiliza pensar 0 préprio movimen- to, a incessante mudanga de tudo o que é, Nessa tradicdo de pensa- mentd}'> movimento e a mudanga sdo sempre rebatidos sobre um plano imével ao qual se aplicariam. Mas tal plano, justamente, nao passa de uma ilusdo, importante sem diivida para a ago e a vida humanas, mas que nao corresponde, segundo Bergson, ao que efeti- vamente é. “Imagem” é ento um conceito precioso: no interior de nossa linguagem usual e potencializando experiéncias tecnologica- mente equipadas, configura um horizonte ontolégico que é pura mudanga, puro movimento. “Imagem” € 0 que é plena e material- mente, o nome do movente, do necessariamente relacional e cam- biante, que, esquivando-se das penumbas do n@o-ser, constitui um mundo real, material ¢ luminescente, 67 REVISTA BRASILEIRA QE CIENCIAS DA COMUNICACAO Cabe lembrar que a pintura também explorou, desde meados do século XIX, tanto a percepgao-em velocidade (as viagens de trem, por exemplo) quanto a poténcia da imagem pictérica, com suas infinitas nuangas de luz e cor, para flagrar 0 puro movente. Mencionemos, a esse respeito, a obra de Turner (pintor referido por Bergson) intitulada “Chuva, vapor e velocidade” (1844), sobre qual conta-se a seguinte anedota: A senhora Simon ficara muito surpreendida quando um senhor de idade e de aspecto simpdtico, que estava sentado & sua frente no trem, colocou a cabeca para fora da janela durante uma chuva torrencial e sé a retirou ao fim de nove minutos aproxi- madamente. Escorrendo dgua, aquele estranho homem perma- neceu com os olhos fechados cerca de quinze minutos. A senhora Simon, ardendo de curiosidade, colocou também sua cabeca para fora da janela, ficando igualmente encharcada, Mas néo negou ter passado por uma experiéncia inesquectvel. Podemos imaginar sua alegria quando, um ano depois, viu Chuva, vapor e veloci- dade exposto na Academia Real, E, ao ouvir alguém dizer, com ar de troca: ‘E mesmo coisa de Turner, nito é verdade? Quem é que jd viss wma associagao tao ridtcula?’ respondeu: Eu vil! A experiéncia moderna da percepgao dinamica e cinética, vinculada ao amplo desenvolvimento de tecnologias ticas, percepti- vas ¢ 3 acelerac3o-dos-deslocamentos na passagem do século XIX ao XX, foi fortemente incorporada (no sentido mais literal da palavra) e explorada elo pensamento de Bergson, na medida justamente em que, como procuramos mostrar no caso do conceito de “imagem”, forneceram novas € potentes armas para o combate a uma metafisica da representagio e a uma ontologia imobilista, de cunho essenci; zante. As novas tecnologias da época, as pesquisas em fisica e o regime perceptivo e cognitivo em mutagao, tragados para o campo da filosofia, colaboraram para solapar as bases da metafisica tradicional. Mas, para isso, era preciso extrait suas implicagdes mais radicais e tornd-las filosoficamente produtivas, como 0 fez Bergson. Para obser- vatmos ainda mais de perto esse movimento, cabe assinalar a relevan- cia das tecnologias no movimento da filosofia bergsoniana, destacan- i- 88 ‘So Paulo~ Volume XVII, n* 1, janeiro/junho de 2004 do duas passagens relevantes do primeiro capftulo de Matéria e meméria em que Bergson convoca analogias com tecnolagias comu- nicacionais e éticas para afastar-se de certos vicios e habitos préprios ao pensamento da época. Na primeira delas, 0 filsofo compara o cérebro a uma espé- cie de “central telefénica” cujo papel seria o de “dar a comunicacio”. Nesse caso, afastando-se da abordagem do cérebro centrada. no “co- nhecimento puro” e na representag4o (como na tradigaéo kantiana persistente nas discussdes cientificas, filoséficas ¢ psicolégicas de sua época), Bergson o vincula & aco, a atengao a vida, enfatizando sua fungdo conectiva, seu funcionamento andlogo ao das centrais tele- fonicas da época, capazes de estabelecer conexdes mediadas e diferi- das. Inicialmente, ao distinguir, nos animais vertebrados superiores, 0 automatismo puro (remetido 4 medula) da atividade voluntdria (que exige a intervencao do cérebro), recusa a concepgio difundida pelo pensamento da ¢poca segundo a qual a impressao recebida se espiri- tualizaria em conhecimento. Apés descrever como se processa a ativi- dade reflexa prépria ao sistema medular, afirma que a fungao do cére- bro nao é a de representar ou conhecer, mas a de munir-se da possi- bilidade de diferir, de adiar e retardar a reagio, abrindo um amplo leque de aces possfveis na medida mesma em que funciona em um circuito mais longo, ¢ nao automatico e imediato, como no caso do sistema medular, Bergson considera todos os seres vivos como “cen- tros de indeterminagao”"' nos quais a presenga das imagens (a prépria matéria, como totalidade de imagens soliddrias) se restringe sob a forma de “imagens virtuais”, na percep¢do, que, sempre “interessada” e partial, reduz as imagens efetivamente presentes, suprimindo as partes dos objetos em que suas fungées ndo estao interessadas. Eis como 0 fildsofo descreve o funcionamento do sistema cerebral: O abalo periférico, em vez de se propagar diretamente a célula motora da medula e de imprimir ao muisculo uma contragéo necesstria, sobe primeiro ao encéfalo, depois desce até as mesmas células motoras da medula que intervinham no movimento reflexo. O que ele ganhou, portanto, nesse desvio e o que foi pro- curar nas células ditas sensitivas (do cérebro)? Nio entendo e nunca entenderei que ele tenha ido buscar nelas a poténcia mira- 69 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICACAO culosa de se transformar em representagao das coisas (...). Mas 0 que vejo muito bem é que essas células das diversas regiées ditas sensoriais (...) permitem que 0 abalo recebido ganhe & vontade tal ou tal mecanismo motor da medula e escolha assim seu efeito (...). O cérebro nao deve ser outra coisa seniio, em nossa opiniao, uma espécie de central telefonica: seu papel ¢ 0 de “dar a comu- nicagéo’, on de fazé-la esperar. Ele nio acrescenta nada ao que recebe; mas, como todos os drgios perceptivos lhe enviam seus ultimos prolongamentos e como todos os mecanismos motores da medula e do bulbo tém nele seus representantes legitimos, ele con- stitni realmente um centro em que a excitagho periftrica se poe em relacao com tal ou tal mecanismo motor, escolhido, e nao mais imposto, (...) Assim a papel da cérebro éora a de conduzir o movimento recolhido a um érgio de reagio escolhido, ora o de abrir esse movimento & totalidade das vias motoras para que ele delineie nelas todas as reagoes posstveis de que é prenhe (...). (p. 180-181.) Como se pode claramente observar nessa passagem, a analo- gia entre o cérebro e a central telefonica permite repensar a ttadigao filoséfica e cientifica que privilegiava a representa¢ao e o conhecimen- to, em detrimento da acdo. A conectividade, a circulagio da infor- mago e da comunicagao de modo mediado, diferido, ganham assim estatuto tedrico ¢ filoséfico, ao mesmo tempo em que, realizando-se nas tecnologias em-franco desenvolvimento ¢ em ampla disseminagio na época, v4o alterando a percep¢ao, modulando o imagindrio da virada do ¥ééulo e transformando a experiéncia de temporalidade. Outro exemplo direto dessa exploragéo da poténcia filosdfica das tec- nologias desenvolvidas sobretudo no final do século XIX aparece mais adiante no mesmo primeiro capitulo de Matéria e meméria, quando Bergson explora a comparaco entre certa concepgo da percepgao € a fotografia. Acompanhemos mais de perto a passagem: Toda a dificuldade do problema que nos ocupa vem do fato de que se representa a percepgio como uma visto fotogrdfica das coisas, que se tomaria de um ponto determinado com um apar- eho especial, tal conio o drgdo de percepeito, e que se revelaria em seguida na substancia cerebral por nao se sabe que processo de ela- 70 ‘So Paulo — Volume XXVII, n* 1, janeiro/junho de 2004 boragéo quimica e pslquica. Mas como nao ver que a fotografia = se é que hd fotografia — jd esta tirada, no préprio interior das coisas e para todos os pontos do espace? (...) Que se componha o universo com dtomos: em cada um deles fazem-se sentir, em qualidade e quantidade, varidveis segundo a distancia, as agoes exercidas por todos os dtomos da materia. (...) Apenas, se con- sideramos um lugar qualquer do universo, podemos dizer que a acéo da materia inteira passa por ele sem resistencia e sem perda, e que a fotografia do todo é transhicida: falta, por detrds da placa, uma tela escura sobre a qual se destacaria a imagem, Nosas “zonas de indeterminagdo” exerceriam de algum modo o papel de tela. Elas nada acrescentam ao que é; apenas fazem com que a agao real passe e que a acao virtual permaneca.” Observemos, inicialmente, que Bergson critica a analogia, que certamente se manifestava no pensamento da época, entre per- cepgao e fotografia, mobilizada para sustentar uma concepgao do cétebro como aparelho ¢ lugar de representagao, como cAmera capta- dora e reveladora de imagens — estas tiltimas entendidas, entao, como produgo desse aparelho, remetidas, portanto, téo-somente a per- cepgao ea seus érgaos. Apds colocar prudentemente em suspensao a propria analogia (“se é que hd fotografia’), o fildsofo retoma, entre- tanto, a comparacao, para clarear, agora, sua prépria hipétese. As coisas jé sao-imagens (“a fotografia ja est tirada [...] no préprio inte- rior das coisas”), pois, no universo begsoniano, nao ha “coisas”, no sentidt*imobilista, estatico, fechado, isolado. Conseqiientemente, a percep¢ao nada acrescenta 4 materia, mas, ao contrdrio, a restringe; remetida A acdo, ela nfo convoca um aparelho de representacio. Bergson esquiva-se assim do falso debate entre realismo e idealismo, bem como da visdo subjetivista acerca da percep¢4o, ao postular que a percepgao ¢ extensiva a matéria - idéia extremamente instigante e que se articula evidentemente & definic&o de matéria como um con- junto de imagens, nela sustentando-se: (...) 40 colocar meu corpo, coloquei uma certa imagem, mas, no mesmo gesto, a totalidade das outras imagens, jd que nto hd obje- to material que nio deva suas qualidades, suas determinagoes, sua existéncia, enfim, ao lugar que ocupa no conjunto do univer- n REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICAGAO so. Minha percepgdo sb pode ser, portanto, alga desses préprios objetos; ela estd neles, e naoeles nela. (...) perceber consiste em destacar do conjunto dos objetos a ago posstuel de meu corpo sobre eles. A percepeao nada mais é, entéo, do que uma selesio. Ela nio cria nada; seu papel é, ao contrdrio, o de eliminar do conjunto das imagens todas aquelas sobre as quais eu nito teria qualquer preenséo; a seguir, de cada uma das prdprias imagens retidas, tudo 0 que niio interessa as necessidades da imagem que chamo de meu corpo. Revela-se ento claramente a rentabilidade filosdfica da con- cepgao bergsoniana da matéria como “imagem”, que acaba por colo- car a percepgio de certo modo nas coisas, portanto “fora”, em um lugar relacional que, a rigor, desmonta e ultrapassa a prépria divisio entre “interioridade” e “exterioridade”, Nossa percepgao estd, assim, nas coisas, que, elas, nada mais s4o do que imagens interligadas. Alterando ¢ como que regulando o foco da analogia entre percepgao e aparelho fotogrdfico, Bergson se apropria ent4o dessa compatacio, fazendo-a funcionar em seu inovador horizonte filosdfico: imagem entre imagens, centro de agao'e zona de indeterminacao, 0 corpo esta equipado para perceber (para agir), refratando como que em uma tela escura (onde a “imagem virtual” se revelard) a ago real da matétia pata s6 circunsctever e conservar sua ago virtual, ligada aos interes- ses € agdes possiveis desse mesmo corpo. Pois, como acrescenta, na auséncia dessa tela de projecio, a fotografia (se fotografia houver) ser4 “transhicida}* . Convoquemos, agora, de modo breve, 0 segundo conceito bergsoniano que aqui nos interessa: 0 de “meméria’. Esse conceito também remete a wma concepcio do cérebro desvinculada da repre- sentagao, da especulacio, do conhecimento puro, e remetida & acao. Bergson nao cessa de afastar-se de uma viséo espacializada da meméria, que faria do cérebro e de suas células um lugar de atmazenamento, de mera arquivacdo do passado. Partindo da dis- cussio das doencas da meméria, insistentemente afirma que o cérebro néo € um reservatério de imagens e de lembrangas: no caso das afasias, por exemplo, que correspondem a lesdes locais do cérebro, nR ‘S40 Paulo —Volurne XVI, nt 1, janeiro/junho de 2004 entende a lesio psicolégica ndo como uma abolicao das lembrangas (supostamente guardadas, estocadas — segundo a perspectiva a qual se contrapée — nas células cerebrais), mas como uma impoténcia para evocd-las, para atualizd-las. Prova disso € que um certo esforgo ou uma emocfo podem trazer bruscamente de volta a consciéncia palavras que acredit4vamos perdidas. Bis o que conclui daf: “Tais fatos (...) concorrem para provar que o cérebro serve aqui para escolher no passado, para diminui-lo, para simplificd-lo, para utilizd-lo, e nao para conserva-lo”.' O cérebro nao contém, portanto, “caixas de lem- brangas” que conservariam fragmentos do passado; ao contrdario, serve a propria vida na medida mesma em que suspende ou inibe as lem- brangas que nos acompanham integralmente em nosso viver. O cére- bro esta, assim, muito mais ligado ao esquecimento, 4 nossa adesfo ao agir presente, do que A imagem de um arquivo ou armazém de lem- brangas. Bergson vincula argutamente tal visio do cérebro (cara a época) a determinada concepgao do tempo, a uma nogio do passado derivada de um gesto de aboligdo do tempo como puro movimento € mudanga cont{nua, ininterrupta, indivisfvel: eis 0 que chama de “espacializacao do tempo’, ligada a uma idéia igualmente espacializa- da e interiorizada do cérebro e de suas fungées. Enfatiza entao que pensamos assim por termos contrafdo o habito de acreditar que o pas- sado estd abolido. E preciso entio remeter 0 conceito bergsoniano de memé6ria & sua critica constante 4 concepgio espacializada do tempo que atravessa toda a tradicao filosdfica ocidental e convocar, breve- mente, a nova imagem do tempo fornecida por Bergson: a temporali- dade pensada como tempo vivido, como duragio real. Ne*Para Bergson, o passado ea meméria esto em uma relag4o de simultaneidade com 0 “presente” e 0 vivido. A rigor, se pensamos o “presente” como o “instante” em que se instalaria nossa experiéncia, teremos de admiti-lo como pura ficgao.'* Em sua obra, Bergson alude a conhecida experiéncia do déa vu para atestar a verdadeira coin- cidéncia, na duragao real, entre passado (c, portanto, meméria) e “presente”. Nessa experiéncia, por uma breve fragio de segundos, em fungao de certo relaxamento de nossa “atengdo 4 vida” pragmatica- mente orientada - que em geral nos acompanha ¢ restringe nossa per- cepgio -, assistimos a simultaneidade entre 0 “presente”, o imediata- mente vivido, e a produgao de “passado”, de meméria. Para Bergson, 3 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNIGAGAO virtualidade; ela nos acompanha por inteiro ao longo da vida, mas sé se atualiza, em geral, em fungao das exigéncias da agao. Na segunda conferéncia sobre “A percepcdo da mudanga”, refere-se a outra situ- ago em que se pode verificar a coincidéncia entre passado ¢ presente, postulando mais uma vez que o passado se conserva por si mesmo, de modo automatico € que, portanto, a meméria esté sempre presente, por inteiro, de modo virtualizado. Eis a passagem, de grande interesse também para ressaltarmos o rendimento filosdfico que as tecnologias éticas do final do século XIX alcangaram no pensamento de Bergson: Uma atengio 2 vida que seria suficientemente potente e suficien- temente desligada de qualquer interesse prdtico abragaria assim, em um presente indiviso, toda a histéria passada da pessoa con- Sciente, - nio como no instantaneo, niio como um conjunto de partes simulténeas, mas como 0 continuamente presente que seria também o continuamente movente (...). Trata-se de um presente que dura. (...) Ocorre, em casos excepcionais, que a atengao renuncia de repente ao interesse que tinha pela vida: imediata- mente, como por encanto, 0 passado se torna de novo presente. Nas pessoas que véem surgir diante delas, de modo imprevistvel, @ ameaga da morte repentina — no alpinista que escorrega para o Siendo do precipicio, nos afogados e enforcados -, parece que pode se produzir uma brusca conversio da atengéo, algo como uma mudanga de orientagao da conscitncia que, até entio voltada para o futuro e absorvida pelas necessidades da ago, subitamente se desinteressa por eles, Isso basta para que milhares de detalhes “estpuecidos” sejam rememorados, para que toda a histéria da pes- soa se desenrole diante dela em um mavente panorama.'® Se a analogia com a fotografia foi explorada por Bergson para repensar a percep¢4o e o modo de funcionamento do cérebro, a pro- ducio de “instantaneos” revela aqui seu limite e convoca outra experi- éncia visual tecnologicamente equipada de grande relevancia no sécu- lo XIX e diretamente vinculada 4 histéria do cinema: a experiéncia dos “panoramas”. Pode-se entio mais uma vez verificar como a expe- riéncia do cinema, entdo nascente, ganhou estatuto filosdfico no pen- samento de Bergson, sobretudo em sua aposta no movente e na con- mh ‘S40 Paulo - Volume XXVII, n® 1, janeiro/junho de 2004 tinuidade indivisfvel do tempo.'’ Apenas a titulo ilustrativo, men- cionemos 0 ultimo capitulo do livro Evolugao criadora, intitulado “O mecanismo cinematogrdfico do pensamento e a ilusdo mecanfstica”"’. Para efeito deste breve artigo, basta ressaltar a analogia entre o modo de funcionamento da meméria e a experiéncia de duragao e de mo- véncia que também se expressavam no desenvolvimento das experién- cias dticas possibilitadas pelas tecnologias do final do século XIX, sobretudo os “panoramas” e, por fim, o cinema. Tais experiéncias per-. mitiram vivenciar e pensar o tempo de outro modo, abalando o per- sistente hdbito de espacializar a temporalidade (no pensamento comum e na teoria) e de conceber estaticamente 0 cérebro e a meméria. Na perspectiva inaugurada por Bergson, estamos imersos na duragSo, em um presente que dura; nossa meméria no consiste de modo algum em uma “regress4o do presente ao passado, mas, ao con- trdrio, em um progresso do passado no presente”"”. Nosso corpo, com tudo o que o cerca, nada mais € do que “a ponta movente que nosso passado empurra a todo momento para nosso futuro”, Para finalizar, assinalemos de que forma, um século depois, por conta da aceleracAo inaudita da percep¢ao propiciada em grande parte pelo processo de digitalizacdo da informagao e da comunicacao, a experiéncia da duragao — que alcangou estatuto tedrico-filoséfico na filosofia de Bergson — parece tornar-se crescentemente problematica. Cada vez mais instalados em um tempo fragmentério, instantaneo, frenético, tendemos a nos tornar, como caracterizou Bauman, insacidveis colecionadores de sensag6es instantaneas”, pouco afeitos 4 temporalidade distendida da duragao. Nesse sentido, o tema da me- méri%parece dar lugar a uma intensa problematizagao acerca do esquecimento”, tanto na teoria quanto em diversas experiéncias cin- ematogréficas atuais, que tematizam insistentemente a perda da meméria, a dificuldade de conceder linearidade narrativa ao vivido, de produzir histéria, trama, meméria (citemos os recentes filmes Amnésia, de Cristopher Nolan [2001], Spider, de David Cronenberg [2002], e O homem sem passado, de Aki Kaurismaki [2002]), e parece alcangar expresso patolégica em certa sintomatologia do mal-estar contemporaneo, sob a forma radical do mal de Alzheimer. 15 REVISTA BRASILEIRA DE CIENCIAS DA COMUNICACAD Notas ~ 1. CE Jonathan Crary, Suspensions of perception, Cambridge/Massachussets, MIT Press, 2000, p. 343. ~ 2, Segundo Bergson, a rigor “percepcio pura” é uma ficgdo, necesséria entretanto para seu projeto filoséfico: desvencilhé-la da esfera da especulagio, do “conhecimen- to puro” e da representacao, para vinculé-la 4 acdo. Nesse sentido, tal nocéo se impée mais “de direito do que de fato”, pois nossa percepgio concrera € complexa, insta- lando-se sempre em uma espessura de duracao, 0 que implica necessariamente a intervengdo de lembrangas (cf. Matéria e meméria., in Oeuvres [Paris, PUF, 2001], primeiro capitulo, em especial p. 184-185). 3, Como jé mencionamos, por exemplo, a prépria nogéo de “percepgio pura’ € pos tulada como “de direito”, ¢ nda “de fato”. Nao se estabelece, portanto, uma relacio meramente excludente entre percepcio (s6 “pura” por hipétese) e lembranca. 4, Lévolusion créatrice, op. cit., p. 577. 5. Em certa passagem das referidas conferéncias, Bergson menciona a pintura de Corot ¢ de Turner (p. 1371). 6. CE. Bergson, op. cit., p. 1378-1379. 7. Idem, ibid., p. 1380-1381, bem como 0 oitavo capitulo do meu livro Nove vari- agies sobre temas nietaschianos (Rio de Janeiro: Relume Dumard, 2002). 8, Lembremos aqui a afirmacao lapidar de Nietzsche, extratda do final do pardgrafo 5 dasessiio “A ‘razAo’ na filosofia’, do livro Crepsisculo dos ddolos: “Temo que nao nos livraremos de Deus porque ainda acreditamos na gramatica,..” (Simtliche Werke, vol. 6, p. 78, minha tradusio). 9. Cabe também lembrar a entrada do trem (na estag4o de Ciotat) no cinema nascente, pelos itmaos Lumiére, no ano anterior ao da publicagio de Matéria e meméria. 10. Citado em Mestres da pintura/Turner, Sao Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 20. 11. Cf. Matéria ¢ membria,p. 186. 12. Ibid., p. 188, 13. Ibid, p. 359-360. 14. CE. a segunda das conferéncias apresentadas em mn Oxford, op. cit, p. 1389, a que remetemos também para 0 desenvolvimento que se segue imediatamente & citagao. 19. CE ibid., p, 1385-1386: “.,. se a mudanga é real ¢ mesmo constitutiva da reali- dade, devemos encarar o passado de modo diverso do que a filosofia e a linguagem nos habituaram a fazer. (:..) Reflitamos, com efeito, sobre esse “presente” que seria 0 nico existente. O que é exatamente o presente? Se se trata do instante atual — ou seja, de um instante maremético que setia para 0 tempo 0 que o ponto matemético éparaa linha -, é claro que um tal instante € uma pura abstracao (...); ele nfo pode- ria ter qualquer existéncia real. (...) Suponhamos que ele exista: como haveria um instante anterior a ele? Os dois instantes nao poderiam estar separados por um intes- valo de tempo, ja que, por hipétese, reduzimos 0 tempo a uma justaposicao de instantes. Logo, eles nfo estariam separados por nada e, conseqilentemnte, seriam um sé”, 1B ‘Sao Paulo - Volume XVII, n° 1, janeiro/junho de 2008. 16. Ibid., p. 1387. 17. Cabe lembrar que © préprio cinema ird explorar essa experiéncia do movente e da meméria em diversos filmes, ao longo de todo o século XX. 18. Cf. op. cit,, p. 725-807. 19. Matéria e meméria, in op. cit., p. 369. 20. Ibid., p. 373. 21. C£ Zygmunt Bauman, O mal-estar da pés-modernidade (Rio de Janeiro: Jorge Zahac, 1998). 22. Cf, a esse respeito, Erick Felinto, “Obliscéncia: por uma teoria pés-moderna da meméria e do esquecimento”, in Revista Contracampo, ntimero 5, Niterdi, UFE segundo semestre de 2000, p. 21-32. Referéncias Bibliograficas 7 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pés-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. BERGSON, Henti. Mémoire et vie (textes choisis). Paris: PUF, 1975. ___. Oeuvres (Edition du Centenaire). Paris, PUF, 2001. CRARY, Jonathan. Suspensions of perception: attention, spectacle and modern culture, Cambridge/ Massachusetts: MIT Press, 2000. . Techniques of Observer. On vision and modernity in the XIXth century. Cambridge/Massachusetts: \MIT Press, 1992. . ‘A visto que se desprende: Manet e 0 observador atento no fim do século XIX”. In: Charney e Schwartz, O cinema ea invengao da vida moderna, Sao Paulo: Cosac & Naify, 2001. FELINTO, Erick. “Obliscéncia: por uma teoria pés-moderna da meméria e do esquecimento”, Revista Contracampo, numero 5, IACS/UFEF, 2002. FERRAZ, Maria Cristina E Nove variacées sobre temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumard, 2002. 7 REVISTA BRASILEIRA UE CIENCIAS DA COMUNICAGAO . “Sociedade tecnolégica: de Prometeu a Fausto”, Revista Contracampo, nimero 4, IACS/UFF, 2000. NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke (KSA, 15 vol.). Berlim/Nova York: DTV/de Gruyter, 1988. 8

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