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Wolfgang Iser O Ficticio ¢ o Imaginario Perspectivas DE UMA Awntropotosia LiterARIA ‘Tradupo de Johannes Krachmer I Atos de Fingir! 1. 0 saber ticito da fiegdo e da realidade E hoje amplamente aceito que 0s textos literdrios sio de natureza ficcional, Por esta classificacao, distinguem-se dos textos que, nao possuindo tal carac- teristica, relacionam-se de um modo geral com 0 pélo oposto a ficgo, ou seja, com a realidade. A oposigio entre realidade e fiegio faz parte do reper- t6rio elementar de nosso “saber ticito", ¢ com esta expresso, cunhada pela sociologia do conhecimento, faz-se referencia a0 repert6rio de certezas que ‘se mostra tao seguro a ponto de parecer evidente por si mesmo. £ entretanto discutivel se esta distincao, por certo pritica, entre textos ficcionais e nao ficcionais, pode ser estabelecida a partir da oposi¢io usual. Os textos “ficcionados” serio de fato to ficcionais € os que assim nao se dizem serio de fato isentos de ficcoes? Como nao se pode negar a legitimidade da per- gunta, cabe indagar se 0 “saber ticito” a opor ficeao e realidade ainda pode ser de alguma valia para a descriclo dos textos fiecionais. Pois as medidas de mistura do real com o ficticio, reconheciveis nestes textos, relacionam ele- mentos definidos e suposigdes. Nesta relagdo, aparece, pois, algo mais que uma oposi¢lo, de modo que a relagio dupla da ficcao com a realidade deveria ser substituida por uma relagio triplice. Como o texto ficcional con- tem elementos do real sem que se esgote na descricao deste real, entdo 0 seu componente ficticio ndo tem o carter de uma finalidade em si mesma, mas & enquanto fingido, a preparagdo de um imagindrio (die Zuriistung eines Imaginaren). assim a uma relagao terndria dentro da qual uma conside- dos textos ficcionais nao s6 ¢ significativa, mas encon- 1 * 0 Ficticio oo Imagindrio enquanto “saber ticito”, ji pressupde a certeza do que sejam ficelo e real dade. A determinacio nitidamente ontol6gica atuante neste tipo de “saber tdcito” caracteriza a ficedo justamente pela eliminagao dos atributos que definem a realidade. Nesta certeza irrefletida, recalca-se também 0 problema que «amo atormentava w (euria do conhecinsenty do i ladke moderna como pode existir algo que, embora existente, no possui o carter de rea- lidade? O problema nao encontrou solugio alguma mesmo quando houve uma troca dos atributos de realidade; pois, independente destas distribu ainda neste tipo de permuta.? jo da 0e5, a relacdo opositiva basica permaneci 2A triade ‘Temos dai uma justificagio heurfstica para substituir a relagio opositiva usual pela triade do real, ficticio e imaginario, para, a partir daf, trazer a luz © ficticio do texto ficcional. A relaga0 opositiva entre ficcio © realidade retiraria da discussio sobre 0 ficticio no texto uma dimensio importante, pois, evidentemente, ha no texto ficcional muita realidade que nao s6 deve ser identificavel como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional. Estas realidades por certo diversas nao so ficeoes, nem tampouco se transformam em tais pelo fato de entrarem na apresenta- do de textos ficcionais, Por outro lado, também € verdade que estas reali- dades, a0 surgirem no texto ficcional, no se repetem nele por efeito de si mesmas. Se © texto ficcional se refere portanto 4 realidade sem se esgotar nesta referéneta, endo # repetigao € uti alu de fingis, pelo qual aparecem finalidades que nao pertencem a realidade repetida, Se fingit ndo pode ser deduzido da realidade repetida, nele entio emerge um imaginario que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Assim, o ato de fingir ganha a sua marca propria, que € de provocar a repeticao no texto da realidade, atribuindo, por meio desta repeticlo, uma configuracio ao imaginario, pela qual a realidade repetida se transforma em signo € 0 imaginario em efeito Worstellbarkeif) do que & assim referido, Decorre dai que a relago trifdica do real? com 0 ficticio' ¢ o imaginario® apresenta uma propriedade fundamental do texto ficcional. Ao mesmo tem- po, fica claro o que caracteriza o ato de fingir ¢, assim, o ficticio do texto ficcional. Quando a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre forgosamente uma transgressio de sua determinagio. © ato de fingit €, portanto, uma transgressio de limites. Nisso se expressa sua alianga com © imagindrio, © imaginario é por nés experimentado antes de modo difuso, informe, fluido e sem um objeto de referéncia, manifestando-se em situagdes ‘os de Fingir 15 que, por serem inesperadas, parecem arbitririas, situagdes que ou se inter- rompem ou prosseguem noutras bem diversas. “O proprio da fantasia”, opina Husserl, "é seu cariter caprichoso. Dai, idealmente falando, sua incondicio- nal arbitrariedade.”* Por isso 0 fingir tampouco é idéntico ao imaginério. Como o fingir se relaciona com o estabelecimento de um objetivo (Zwecksetzung), devem ser mantidas representagdes de fins CZielvorstellungen), que constituem entio a condigao para que © imaginitio trasladado a uma determinada configuragio, que se diferencia dos fan- projecdes e sonhos diurnos, pelos quais o imagindrio penetra dire- imente em nossa experiencia, Portanto também aqui se verifica uma trans- gressio de limites, que conduz do difuso ao determinado, Isto altamente significativo para 0 texto ficcional. No ato de fingir, 0 imagindrio ganha uma determinagao que nao Ihe € propria e adquire, deste modo, um atributo de realidade: pois a determinacao € uma definicdo mini- ma do real, Na verdade, 0 imagindrio nio se transforma em um real por efeito da determinagio alcangada pelo ato de fingir, muito embora possa adquirir aparéncia de real na medida em que por este ato pode penetrar no mundo dado € af agit, Neste sentido, o ato de fingir realiza uma transgresso de limites diversa daquela que € possivel observar com relagio 2 realidade da vida real repetida no texto. a determinagao da realidade repetida € transgredida por forga de seu emprego. No caso do imaginério, seu carter difuso € transferido para uma configuragio determinada que se impde 20 mundo dado como produto cle uma transgressio de limites. E significative que ambas as formas de transgressao de limites, realizadas pelo fingir no espaco da relacao triddica, sejam de natureza distinta, Na conversio da lidade da vida real repetida em signo doutra coisa, a transgressio de limites | manifesta-se como uma forma de irrealizacio; na conversio do imagindrio, que perde seu cariter difuso em favor de uma determinacio, sucede uma realizacio (ein Realwerden) do imaginario. Evidencia-se assim a articulagao resultante da relaglo entre o real, 0 ficticio ¢ imaginario no texto literdrio, A substantivacao dos adjetivos desta triade mostra serem eles apenas qualidades de um objeto construido a partir de suas relacdes reciprocas, Os componentes da triade se diferenciam na medida em que possuem fungdes distintas, cabendo porém ao ato de fingit, enquanto modo operat6rio decisivo destas relagdes reciprocas, um signifi do crescente; isso porque cle se determina como a transgressio de limites daquilo que organiza ¢ daquilo de que provoca a configuracio. O ato de fingir, como a itrealizagao do real e a realizagdo do imaginitio, cria simulta- eamente um pressuposto central que permite até que ponto as 16 * 0 Ficticio e 0 Imaginério transgressdes de limites que provoca (1) representam a condi¢ao para a reformulagio do mundo formulado, (2) possibilitam a compreensio de um mundo reformulado e (3) permitem que tal acontecimento seja expe- rimentado. Desaparece assim a oposicao entre ficcao € realidade, pois, como “saber tacito", ela sempre implica um sistema referencial que 0 ato de fingir, en- ‘quanto transgressao de limites, ndo mais pode levar em conta. Pois se trata agora de buscar relagdes, em vex de determinar posicdes. Isso ao mesmo tempo significa afastar-se do projeto constante de um lugar transcendental, irio quando se tratava de comprovar, através dos atributos correspondentes, serem ficgdo € realidade polos opostos. Desta maneira a discussdo do ficticio, fundada na triade mencionada, eliminard mais do que um simples transtorno, se nos lembrarmos da hist6ria da teoria sempre tido como neces do conhecimento da modernidade: ao tentar teorizar sobre a ficclo, ela se viu forcada a reconhecer como ficc6es as suias proprias bases, sendo obriga- da a abrir mio, face 4 crescent ficcionalizagao de si mesma, da pretensio de ser uma disciplin: hasica universal 3. A diferenciagao funcional dos atos: selegio ~ combinagio ~ auto-indicagao 0 referido pressuposto abre a possibilidade de situar o ficticio no texto ficcional, que, mediante uma observacdo mais detida, se revela composto de podem ser também apreendidos porquanto suas acao de va diversos atos de fingie. Este: fancdes sto determinaveis. Eviclentemente, € necesséria a int fungdes para que se realize a “mediagio’, no texto ficcional, do imaginario ‘como real. Mas, com base no pressuposto jd mencionado, sempre permanece ‘como caracteristica dos atos de fingir comrespondentes, que realizam a trans- gres 10 especifica de limites. Como produto de um autor, cada texto literario € uma forma determi- nada de acesso ao mundo (Weltzuwendung). Como esta forma nao esté dada de antemio pelo mundo a que 0 autor se refere, para que se imponha é preciso que seja nele inserido. Inserir nao significa imitar as estruturas exis- tentes de organizagao, mas sim decomp6-las. Dai resulta a selegdo, necessiria a cada texto ficcional, dos sistemas contextuais preexistentes, sejam eles de natureza s6cio-cultural ou mesmo literiria. A selegdo é uma transgressio de limites na medida em que os elementos do real acolhidos pelo texto se desvinculam entao da estruturagao semntica ou sistemiética dos sistemas de que foram tomados. Isso vale tanto para os sistemas contextuais, quanto para 05 textos literdrios a que os novos textos se referent. Entretanto, sucede ainda Atos de Fingir © 17 algo mais. Ressaltam, em primeiro lugar, os campos de referéncia enquanto tais, uma vez que a intervengio seletiva neles operada € a reestruturacio de sua forma de organizacao dai resultante os supdem como campos de referén- cia, Enquanto eles representam, como sistemas, a forma de organizacao de nosso mundo sécio-cultural, coincidem a tal ponto com suas funcdes regu- ladoras, que mal so observados; so tomados como a propria realidade. A selecdo retira-os desta identificagdo e os converte em objeto da percepedo. A qualidade de tornar-se perceptivel, no entanto, nao € parte integrante dos sistemas correspondentes, pois s6 a intervencdo resultante do ato de selecao, provoca esta possibilidade. Decorre dai que o ato da selecdo da a conhecer ‘os campos de referéncia do texto como os sistemas existentes em seu con- texto, campos que se do a saber no momento em que sio transgredidos. A forma de organizagao ¢ a validez dos sistemas se rompem agora porque certos elementos S40 deslocados € se inserem noutros contextos; isso vale tanto para normas c valores, quanto para citagdes e alusdes. Os elementos de seus contextos que © texto integra nil sio em si ficticios, apenas a selegdo € um ato de fingir, pelo qual os sistemas, como campos de referencia, sio delimitados entre si, pois suas fronteiras sio transgredidas. A petceptibilidade assim produzida dos campos de referéncia alcanca sua posig&o perspectivistica através da divisio destes campos de referéncia ‘em alguns elementos que sio atualizados pelo texto, enquanto outros per~ manecem inativos. Se os elementos escolhidos em principio trazem a luz um campo de referéncia, € exatamente por esta escolha que se mostra o que foi dai excluido, Os elementos que © texto retira do campo de referéncia se destacam do pano de fundo do que é transgredido. Deste modo, os elemen- tos presentes no texto sao reforcados pelos que se ausentaram. Assim o elemento escolhido alcanga uma posi¢ao perspectivistica, que possibilita uma avaliagdo do que esti presente no texto pelo que dele se ausenta. O ato de selegdo mais uma vez mostra um limite em cada campo de referéncia sele- cionado pelo texto, para outra vez. transgredi-lo, E assim o mundo presente no texto € apontado pelo que se ausenta e © que se ausenta pode ser assinalado por esta presenca. Tal processo tem carter de um acontecimento que portanto nao € referenciavel © que, no caso presente, se manif para a selecdo, pois que esta selecio € governada apenas por uma escolha feita pelo autor nos sistemas contextuais, através de seu acesso 20 mundo. Se houvesse uma regra para a selegdo, esta ndo seria uma transgressio de limites, mas apenas uma possibilidade permissivel dentro de uma concepgio vigente. Sendo 0 ato de selecao um ato de fingir, que, como transgresstio de ta pela auséncia de regras 18 + 0 Ficticio @ 0 Imaginario riter de acontecimento, sua fungao se funda no que é por do texto limites, possui o cai cle produzido. Se 0 ato de selecdo constitui os campos de referéns como sistemas contextuais de contornos nitidos e diferenciaveis, cujo limite € transgredido, entdo neste proceso articulagdes precedentes sio suprimidas € 0 clementos escolhidos se complementam com uma nova articulacao. Assim 08 elementos escolhidos ganham um valor diferente daquele que ti- ham no campo de referéncia existente, Suprimir, complementas, valorizar sio, entretanto, operacdes basicas da “produgio do mundo", como as deno- mina Nelson Goodman em seu Ways of Worldmaking’. Neste suprimir, complementar e valorizar se expressa também uma in- tengio que se mostra nestas operacdes, mesmo nao formulada no texto ficcional. Como ato de fingir, a sclecio possibilita entio apreender a intencionalidade dle um texto. Pois ela faz com que determinados sistemas de sentido da vida real se convertam em campos de referéncia do texto € estes, por suia vez, s¢ transmuitem no contexto de interpretagdes reciprocas. Ela, por fim, se manifesta no controle de tal interpretaga0, porquanto 0 campo de referencia tinico separa os elementos escolhidos do segundo plano que, por efeito da escolha, é excluido, e, desta maneira, concede visibilidade do mundo reunido no campo de referéncia uma disposicio perspectivistica. Neste processo, esboca-se 0 objeto intencional do texto, que deve sua realizacdo a irrealizagao das realidades que sao incluidas no texto. Desaparecem desta forma dificuldades que até agora sobrecarregaram a Issi0 sobre a intencio autoral. O desejo, tho freqiientemente repetido pas aulas € seminarios, de descobrir a verdadeira intengio do autor conduziu a indagacio da psique do autor ou das estruturas de sua consciéncia. Esta situagao sempre conduziu a solugdes especulativas, £ provavel que a inten- ‘eo nao se revele nem na psique, nem na consciéncia, mas que possa ser abordada apenas através das qualidades de manifestagao que se evidenciam na seletividade do texto face a seus sistemas contextuais. Por conseguinte, a intencionalidade do texto € algo que nio se encontra no mundo dado cor- respondente, sem que fosse antes algo ji imagindrio, Se ela se originar de um ato do fingir, se revelaré como “objeto transicional” (transitional objech* entre 0 real e 6 imaginario, A medida que transforma os campos de referéncia do texto no material de sua manifestagdo € realiza o imaginirio como a condigio de sua representabilidade (Vorstelfbarket) Como ato de fingir, a selecio encontra sua correspondéncia intratextual ‘na combina¢do dos elementos textuais, que abrange tanto a combinabilidade do significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os esquemas Alas de Fingir * 19 responsaveis pela organizacio dos personagens e suas agdes. A combinagao) € um ato de fingir porque tamb transgressaio de limites. Isso se mostra no plano lexical, por exemplo, no usd de neologismos, como a criagio joyciana de benefiction. Nesta combinagao de benefiction/ benediction e fiction, emprega-se 0 significado lexical para romper-se a de- terminagao semantica do léxico. O significado lexical é apagado para que um outro se ilumine; troca por intermédio da qual a combinag4o produz uma relagio de forma e fundo, que tanto permite uma delimitagao dos campos lexicais entre si, quanto uma constante alteragio de perspectivas. As transfor ‘magdes semanticas assumirdo feigdes diferentes dependendo de se a dimen- sao referencial diz respeito & forma (Figur) ou ao fundo (Grund). A instabi- lidade de uma relagio de tal modo organizada que conduz. a oscilagdo pro- voca um espectro semantico que nao mais se deixa reconduzir a nenhum dos dois campos lexicais Na poesia, estratégias da rima podem romper de modo semelhante as fronteiras do significado lexical, como mostram os versos do. Prufrock de Eliot Should |, after teas and cakes and ices, have the strength to force the moment to is ¢ (Depois de chis € bolos e sorvetes, teria eu forca de levar 0 momento & sua crise?) As palavras em situagao de rima ressaltam a divergéncia semantica jus- tamente por sua sonoridade, Se 0 mesmo aqui assinala a nao-equivaléncia, @ combinacao entdo funciona como revelacao da diferenca no semelhante. Mais uma vez esta diferenga se organiza como uma relagio entre figura € fundo, em que a crise ¢ trivializada e o sorvete pode ganhar uma significaga0, imprevisivel. Em tiltima anilise, haverd aqui ¢ em indmeros casos semelhan- tes um aumento do potencial semAntico porque a combinagao ¢ empregada de modo a permitir uma constante oscilagio face 4 relagio forma e fundo, enfatizando-se o1a una, Urs vult. Caso semelhante se dé com os elementos do contexto selecionados pelo texto que servem na literatura narrativa como exemplo para eshogar visdes esquematizadas, que apresentam personagens € agdes. Dai resultam espacos Semanticos, cujos limites o herdi geralmente transgride", de modo que o ponto de relevincia do campo de referéncia é ora o fundo, ora a figura, 20 * 0 Ficticio e 0 Imaginério originando-se assim uma rede de relagdes inexistente no simples esquema do texto. Como ato de fingir, a combinagio cria_relacionamentos intratextuais, Como o relacionamento € um produto do fingir, ele se revela, como a intencionalidade do texto, como fact from fiction". Ele alcanga esta “faticidade* especifica pelo grau correspondente de sua determinacao, mas também pela influéncia exercida nos elementos que ele relaciona entre si. Pois, ndo sendo ele mesmo uma propriedade destes elementos, nao partilha de seu cardter de realidade, embora, por sua determinagio, provoque a aparéncia de ser um real. Sua “faticidade” portanto ndo se funda no que é, mas naquilo que por ele se origina. Pode-se dai dizer que cada relacio estabelecida nao 56 altera a faticidade dos elementos, mas ainda que os converte em posicdes que obtém sua estabilidade através do que excluem. O que cluido se 1 o realizada ¢ Ihe d4 0 seu contorno; desta maneira ‘o que se ausenta ganha presenya. Se a 1elayau realizaula vive do que rechaca, entao 0 relacionamento, como produto de um ato de fingir, apresenta 0 realizado € 0 ausente em principio em um campo de co-presenga, que faz com que as relagdes realizadas incidam sobre sua existéncia de sombras ¢ possibilitem que outras consigam se estabilizar diante delas. O relacio- namento, portanto, faz com que as posigées interligadas entre si sejam transgressoras de sua posicionalidade, mas também que as relagdes realiza- das ~ de acordo com a exigéncia intencional do texto ~ transgridam as possibilidades excluidas. Nao € preciso sublinhar expressamente que o relacionamento pode as- sumir méltiplos modos no texto ficcional. Ha entretanto certas categorizagoes que devem ser ressaltadas para que se mostrem as conseqiiéncias resultantes da especificidade deste modo de fingir. Trés planos de rompimento de fron- teiras, ou seja, de sua transgressiio, se distinguem pelo relacionamento no texto ficcional. O primeiro conecta-se estreitamente ao processo de selecao e articula as convencées, normas, valores, alusdes € citagdes contidos no texto: “A fico pode manter unidas dentro de um tinico espago uma variedade de lingua- gens, de niveis de focos, de pontos de vista, que seriam contraditérios nou- tras especies de discurso, organizados quanto a um fim empinico particular." Esta paradigmatica do texto, derivada da selegao, se articula por meio das relagdes estabelecidas. Tais relagdes, no entanto, dificilmente podem ser deseritas como uma articulacio sintagmatica, pois 0 relacionamento nao segue regras previsiveis. Ao contrario: “A forga, o poder de qualquer texto, mesmo © mais descaradamente mimético, est4 naqueles momentos que excedem Atos de Fingir ¢ 21 nossa capacidade de categorizar, que conflitam com nossos cédigos interpretativos, mas que, apesar disso, parecem corretos.” Quando tais re- lacionamentos sio convincentes, sem que possuam uma regularidade co- mandada por um cédigo, € porque, através deles, os elementos agora inter- ligados logram transgredir os valutes de antes. A mudanga de valor é um processo plausivel que se realiza continuamente pelo relacionamento do material retirado sobretudo do contexto a que pertence 0 texto, Este processo € especialmente observado na literatura narrativa, onde os Personagens representam normas diferentes, cujo relacionamento revela a vigéncia de certas normas, para que sua transgressdo se compreenda como provocada por limitagao inevitavel. Outro plano de relacionamento se mostra onde determinados espacos seminticos so organizados no texto literirio pelo relacionamento. Surgem entio campos de referéncia intratextuais, resultantes dos elementos de que © texto se apropriou. Estes campos so em geral motivo para que um her6i transgrida as fronteiras, em principio insuperaveis, existentes entre os cam- pos. Esta transgressio de fronteiras €, no sentido de Lotman, um aconteci- mento relacionado ao tema, que se revela como “elemento revoluciondrio’ na medida em que se opée “A classi vigente.”" Mas isso nao vale apenas para a literatura narrativa, pois € também relevante para a lirica, em que 0 cu lirico se constitui como ponto de intersecao dos esquemas, que derivam dos mais diferentes discursos do contexto do texto © que sto introduzidos no poema, Resultam dai, desde logo, rclagdes diferenciadas entre os esquemas discursivos escolhidos, que devem ser transgredidos, Para que 0 cu lirico, como ponto de intersegao de todos estes discursos, ossa assumir sua configuracao individual’. Como o herdi do romance, é também apenas pelo “efeito de transgressiio” que © eu lirico € capaz de mostrar a topografia semdntica posta no poema. Assim sucede uma alte ragio dos valores, que, a partir da organizagio intratextual, produzem os espagos semiinticos. Tal violagao do sistema semantico secundirio resultante possui um carter de acontecimento porque o *referente” da seméntica dai derivada quebra com aquela determinagao provocada no texto pelos proces- 808 de selecdo © combinacio. As “aces dos personagens ficcionais importam enquanto possibilidades de relacionamento, Neste caso, a ficgio no € apenas realizagdo de um telacionamento, mas também representagdo de relacionamentos ou comuni- cagio sobre relacionamentos." Se 0 relacionamento, nesta forma, chegar até @ auto-apresentacdo, mostraré também a amplidao do leque de diferentes relacionabilidades dos elementos entre si articulados ¢ mostraré em que 22 * 0 Fictico ¢ 0 Tmaginério medica os elementos articulados na rede de retacdo podem mudar, conforme (0 modos de relacionamento. No que concerne ao terceiro plano, basta aqui a referéncia ao jé discu- tido plano lexical de relacionamento, que se manifesta no rompimento de limites, ou seja, no miituo aparecimento e desaparecimento dos significados exicais: “Os significados desaparecem em favor de certos relacionamentos."*” Na combinagao como um ato de fingit, exprime-se uma forma particular do uso verbal quando 0 relacionamento se mostra, no plano do significado lexical, como processo de ruptura de limites, em favor de uma relacionabilidade intensificada. Anula-se tanto o significado literal da lingua, quanto a sua fungio designativa, O relacionamento é 20 mesmo tempo um, processo que se manifesta desde o rompimento do significado lexical, pas- sando pela violagio dos espagos semanticos, até a alteragio do valor. El entretanto, nao possui, por seu turno, uma forma verbal propria, que seria surpreendida em determinados enunciados do texto. Segue-se dai que o relacionamento, como produto de um ato de fingir, € captavel a partir de seus efeitos mostrados na lingua, sem que a ela pertencam, O relacionamento converte a fungdo designativa em fungao figurativa. Se no uso figurativo da lingua seu cariter denotativo € paralisado, nao desapa- rece entretanto a referéncia, Mas a referéncia de uso figurativo, nascido do relacionamento, no é mais resgatavel a partir dos sistemas de referéncia existentes, Tal referencia visa a expressdo € representacio. Se compreende- mos a expressdo € a representagao, como Goodman as apresentou", como, referéncia (Bezug) a que remete o uso figurativo da lingua, resultam dai duas conseqiiéncias: 1, Aquilo a que remete este tipo de linguagem nao é, em si mesmo, de natureza verbal. Também nao existe como um dado objetivo, que exigiria apenas a funcio designativa da linguagem para que pudesse dizer algo sobre ele. Este € © motivo pelo qual a linguagem em questao deve transgredir sua fungio designativa, para manifestar, pelo uso figurativo, a intraduzibilidade de sua referencialidade. 2. Como tal linguagem nao mais designa, abre-se entdo, por intermédio de sua figuracio, a possibilidade de se representar aquilo a que se refere. Neste caso, a propria lingua se despotencializa em um andlogo, que implica tao s6 a condi¢io para a representabilidade possivel, ¢, ao mesmo tempo, significa ndo ser idéntica aquilo que trata de representar. Surge entio, na referéncia da linguagem figurativa, uma ambigilidade peculiar: ela funciona ao mesmo tempo como andlogo da representabilidade € como signo da intraduzibilidade verbal da- quilo para o qual aponta. Vejamos agora a qualidade apreensivel do ficticio no relacionamento. Atos de Fingir ¢ 23 Como produto de um ato de fingir, 0 relacionamento é a configuragio con- creta de um imaginario, Este nunca pode se integrar totalmente na lingua, embora 0 ficticio, enquanto concretizagao do imagindrio, ndo possa prescin dir da determinacio da formulagio verbal, para que, por um lado, chame a atenco para. que se trata de representar e, por outro, para que introduza, por modalizagdes diversas, no campo dos mundos existentes, 0 que se manifesta na representacao”, Os atos de fingir do texto ficcional, até agora descritos, ou seja, os da selecdo e os da combinacao, dizem respeito a transgressio de limites entre texto € cont ia intratextuais. Dai evidenciar-se uma complexificagao crescente. Como produto da combi- nagio, o relacionamento nao se refere apenas a elaboragio destes campos de referéncia a partir do material selecionado, mas igualmente a0 miituo relaci ‘onamento destes campos. Isso nos leva a reconhecer uma diferenciacao re- lativa & qualidade do ficticio, Esta diferenciacao se reveste de uma importin- cia ainda maior ao tratarmos, agora, doutro ato de fingir, que consiste no desnudamento de sua ficcionalidade, Este ato € caracteristico da literatura em sentido lato, que se da a conhe= cer como ficcional, a partir de um repert6rio de signos. Nao se pode abordar aqui a multiplicidade dos repertérios de signos, pelos quais 0 texto ficcional se revela na literatura, Deve-se entretanto ressaltar que este repertorio de NOS nao se confunde com os signos lingiiisticos do texto; razio pela qual fracassaram todas as tentativas de demonstrar 0 contrario, Pois 0 sinal de ficedo no texto assinalado € antes de tudo seconhecide através de conven- (ges determinadas, historicamente variadas, de que o autor e 0 piblico com- Partilham © que se manifestam nos sinais correspondentes. Assim, 0 sinal de ficcao nao designa nem mais a ficgdo como tal, mas sim 0 “contrato” entre autor € leitor, cuja regulamentacio comprova o texto nao como discurso, mas como “discurso encenado."® Deste modo, os géneros literirios se apresen tam como regulamentacdes efetivas de largo prazo, que permitem uma multiplicidade de variacdes hist6ricas nas condigdes contratuais vigentes entre autor € pablico, Contudo, mesmo designagdes de curto prazo, caracteristica de certas situagdes, como a de “romance ccional”, funcionam do mes mo modo, porquanto a convencao é af afirmada justamente por seu desmen- tido. Nesta familiaridade rotineira que em nés desperta 0 repert6rio de signos = por certo apenas esbosadlo — ja se esconde uma conseqiténcia significativa Pois as fiegoes nao s6 existem como textos ficcionais; desempenham elas um Papel importante tanto nas atividades do conhecimento, da ago e do com- Portamento, quanto no estabelecimento de instituigdes, de sociedades e de C0, OU Seja, 2 transgressdo dos campos de rel 24 * 0 Fictcio ¢ 0 Imaginario des de mundo’, De tais modalidades de ficeio, 0 texto fiecional da lite- ratura se diferencia pelo desnudamento de sua ficcionalidade. A propria indicagao do que pretende ser altera sua fungao face aquelas fiecdes que nao se mostram como tais. © desnudamento nao acontece ali onde a ficcio precisa apresentar os processos de explicacdo e fundamentagdo. Por isso a reniincia ao desnudamento nao resulta necessariamente de uma intengio de fraude; ele nao se realiza porque do contrario afetaria o valor da explicacio ou da fundamentagio. A ficgio preocupada com a explicacao, na dissimula- cdo de seu estatuto proprio, se oferece como aparéncia da realidade, de que ela, neste caso, necesita, pois s6 assim pode funcionar como a condic: transcendental de constituigao da realidade. Mas se um texto ficcional se da a conhecer como tal, através de sinais do contrato vigente entre autor e leitor, mudara a atitude em relagdo ao que © texto apresenta, Quando isso ndo acontece, surgem erros__do leitor, que a litcratura varias vezes tematizou, por exemplo, quando Partridge, no Tom. Jones, de Fielding, toma uma apresentagio do Hamlet, no como peca de teatro mas como a propria realidade, em que, devido aos acontecimentos espantosos, acredita que deve intervir, O proprio Shakespeare ja fornecera ho Sonho de uma noite de verao o paradigma disso, quando os operirios- atores afirmam constantemente a seus espectadores que nao precisam temer © ledo, pois este nao é real mas apenas representado por Snug. A iluséo nao corre por conta da ficcionalidade do texto, mas sim da ingenuidade de um modo de pensar que nio é capaz de registrar os sinais do ficcional No entanto, o texto ficcional contém muitos fragmentos identificdveis da realidade, que, através da selecio, s4o retirados tanto do contexto s6cio- cultural, quanto da literatura prévia ao texto, Assim retorna ao texto ficcional uma realidade de todo reconhecivel, posta entretanto sob 0 signo do fingi- mento. Por conseguinte, este mundo é posto entre parénteses, para que se entenda que o mundo representado nao é o mundo dado, mas que deve ser apenas entendido como se 0 fosse. Com isso se revela uma conseqiiéncia importante do desnudamento da fic¢io. Pelo reconhecimento do fingir, todo ‘0 mundo organizado no texto literario se transforma em um como se. O por entre-parénteses explicita que todos os critérios naturais quanto a este mun- do representado devem cer suspensos. Assim nem o mundo representado retorna por efeito de si mesmo, nem se esgota na descrigio de um mundo que Ihe seria pré-dado. ‘Aqui jé aparece uma primeira diferenga significativa quanto a ficeio que lissimula seu carter, pois nela se mantém os critérios ‘naturais’. E mesmo rossivel que a fungao da dissimulacio seja a de manter intactos 0s critérios Atos de Fingir + 25 ‘naturais’, para que a ficgo seja compreendida como uma realidade, Situagao diversa se di no caso de os critérios ‘naturais’ serem postos entre parénteses, pois © paréntese implica que © mundo af posto ndo € um objeto gracas a si mesmo, mas objeto de uma encenagio ou de uma consideragio daquele tipo, Assim, na verdade, a realidade se repete no texto ficcional, mas esta repetividade € superada, uma vez que est posta entre parénteses. Resulta dai igualmente um trago caracteristico do como se: pelo paréntese € sempre assinalada a presenca de um aspecto da totalidade que, de sua parte, nag pode ser uma qualidade do mundo representado, no minimo porque este foi constituido a partir de segmentos dos diversos sistemas contextuais do texto. Neste aspecto da totalidade, destaca-se a fungio do uso, gracas a qual a ficgao entra na obra. Por conseguinte, também a realidade representada no texto nao deve ser tomada como tal; ela é a referéncia de algo que, de fato, ndo é, mesmo se este algo se torna representivel por cla. ia uma abordagem mais aprofundada do coma se para que se entendam suas conseqiiéncias. A particula da frase condicional significa, como ‘Vaihinger formula, “que a condigdo por ela estabelecida € irreal ou impos- sivel* Julgar o mundo emergente no texto ficcional como se ele se confun- disse com 0 mundo real significa ainda que se almeja encontrar um elemento de comparagio, que se limita, entretanto, a particula da condicionalidade. Entender o mundo emergente no texto como se fosse um mundo significa relaciona-lo com algo que ele nao é, “Assim se afirma forcosamente a equi- valencia de uma coisa com as conseqiléncias necessarias de um caso impos- sivel ou irreal [..] Assim se finge um caso impossivel, dele se extraem as conseqiiéncias necessirias e com estas conseqiiéncias, que deveriam ser tam- bém impossiveis, estabelecem-se equivaléncias, que ndo se deduzem da pro- pria realidade existente."** Assim 0 conjunto de particulas do como se serve para “estabelecer equivaléncias entre algo existente © as consequiéncias de um caso irreal ou impossivel.”* Se o texto ficcional relaciona o mundo por ele representado a este “impossivel”, a este “impossivel” faltara precisamente a determinagao que alcanga através de sua representagio, Podemos denomina- lo de imaginario porque os atos de fingir se relacionam com o imaginério. Portanto © como se significa que o mundo representado nao € propriamente mundo, mas que, por efeita de um determinaco fim, deve ser representado, como se 0 fosse. Pois sempre “onde ocorre esta comparacao imaginaria ou uma comparagao com algo imaginério, ndo se tratando apenas de um mero jogo de representagdes, mas com alguma finalidade pratica, de modo que da comparagio derivam conseqiiéncias, a expressio como se é adequada, pois ela compara algo existente com as conseqiiéncias necessérias de um ey E necesss 26 * 0 Ficticio e 0 Imagindrio caso imaginirio. E de se ressaltar que esta atividade imaginativa deve ter alguma utilidade pritica, alguma finalidade: s6 neste caso, a fungio imagina- tiva € consegitente; pois nao se trata, sem que haja alguma finalidade, de tomar-se como real algo que ¢ irreal."™ Se assim o “imagindrio” ganha a sua configuracao suficiente pela finalidade, deve-se observar que o mundo re- presentado no texto ainda nao € a finalidade do texto; a0 contritio, ele Cconstitui, como termo de comparagdo determinado, a condicio para que se tome representavel a dimensio do uso, indicada pelo paréntese. Esta condicdo € preenchida pelo mundo representado no texto na me- dida em que ela provoca uma dupla referéncia (Verweisung), a que devemos Permanecer atentos. O mundo representado no texto tem um efeito sempre ambivalente, porque, na concretude de sua representacao, parece designar um mundo por ela representado. No entanto, os atos da selegao ¢ da com- binacio ja revelaram que o mundo do texto, por eles construido, ndo idéntico ao do contesto, Segue-rt tf que 0 mundo representado no texto ndo designa um mundo existente; por isso seu habito designativo apenas funciona como a condiglo de uma referencia. Com © como se é possivel indicar a orientagao desta remisszio: 0 mundo representado ha de se tomar como se fosse um mundo. Dai resulta que 0 mundo representado no texto nao se refere a si mesmo e que, por seu cariter remissivo, representa algo de diverso de ¢ aqui de novo © modo caracteristico do ficticio: ser transgressdo de limites. De todo modo, deve-se destacar 0 fato de que com a fic¢io do como se ocorre a transgressio daquilo que, de sua parte, como mundo representado no texto, ji materiali um produto proveniente dos atos de fingis, Esta situagao metece ser aqui assinalada porque os efeitos acumulados de transgressio do ficticio podem explicar como um mundo constantemente reformulado pelos atos de fingir permanece, contudo, acessivel 4 compreensio. Uma observacio critica de Durrenmatt, a propésito da encenacdo de sua Yelha senhora, por Giorgio Strehler, ilustra a importancia da distingio entre © designar (Bezeichnen) e o remeter (Verweisen) ao mundo representado no texto. Dirrenmatt acha que Strehler cometeu um erro flagrante de encenaco de sua peca por haver se esforeado em apresentar a cena na estacao ¢ todas as demais com a maior fidelidadle. Desta iminelra, diz Durrenmatt, surgi na eca um tealismo que tinha de destrui-la. Pois 0 autor incorporara em seu drama uma série de alusdes, que deveriam dar ao piiblico a sensacio cons- tante de tratar-se de uma peca de teatro. Noutras palavras, a propria peca fora feita com sinais ficcionais para que apresentasse o mundo representado 20 mesmo tempo no modo do como se. No momento porém que a diregio Atos de Fingir © 27 suprimiu os sinais ficcionais e assim eliminou 0 como se, tornou-a represen- tagao de uma realidade determinada ¢ verificivel no mundo empirico dos espectadores, Como, pela encenacio, a pega se transformara na designacao de tal realidade, a dimensio remissiva se esvaziara. Se com isso se produz toma ilusao de re A medida que a realidade represen- ibe perguntar 0 que pretende esta io da realidade representada a fungao lidade, que se cumpre tada serve a0 propésito de designé-la, ca tepresentagio. Pois a recondu designativa provoca a idéia de uma redundincia bizarra, que = se ndo ma- terializa, de sua parte, uma possibilidade refinada de representacéo ~ torna de fato supérflua a realidade representada. Se, entretanto, a redundancia fosse um modo de representagio, jf se teria nela manifestada a dimensio remissiva, na medida em que a redundancia nao aponta para si mesma, mas € representacio de algo outro. Este € um modo de representagio com que tabalha, por exemplo, a literatura documental contemporaine: Assim a critica de Diirrenmatt é muito sugestiva por mostrar que a ten- tativa de retirar da determinagio do mundo representado seu cardter de como se conduz forgosamente 4 eliminagio do elemento de comparagio ai manifestado, Se a retraduzibilidade do mundo representado em evidéncia realista condiciona a sua destruicao, isso significa que 0 mundo representado, do texto nao é mimético. ‘Ao mesmo tempo, por rialidace que, por seu ca minacao, que deve ser procurada € encontrada ape algo outro. Se um diretor como Strehler sacrifica a remis: a designacio, faz com isso aparecer uma certa ambivaléncia no mundo re- presentado no texto, que, enquanto tal, remete a alguma coisa, sem por isso suprimir a fungao designativa; esta subsiste a partir dos materiais que so retirados, pelos atos de seleclo € combinagao, do contexto do texto, € que so organizados como um mundo. Desta maneira conserva-se formalmente no texto um elemento designativo. Se 0 como se assinala que © mundo representado deve ser visto como se fosse um mundo ~ sem que seja retra- tado como tal -, entio € necessirio manter certo grau de designacao para que 0 mundo possa se transformar na condicionalidade intencionada. Esta sujeigao da fungao designativa a remissiva mostra que © mundo representa- do, enquanto designa algo, tem apenas o cariter de anilogo, pelo qual se ‘exemplifica 0 mundo mediante a forma de um determinado mundo. Se © mundo do texto se caracteriza pelo como se, isso significa que sempre algo diverso deve ser introduzido no mundo representado no texto, que ele proprio nao é. Pois o elemento de comparagio na expressio. como , 0 mundo representado no texto € uma mate- si mesmo sua deter- as em sua relaglo com do por privilegiar fer de como se, nio traz em 28 + 0 Hicticio € 0 Imaginario S@€ um ‘impossivel’ ou um ‘ireal’, a que se deve visar através do mundo fepresentado, Embora ele ndo seja um mundo real, deve ser considerado somo tal, fazendo com que a finalidade, que comega a se esbocar pelo ato dle remissio, possa ser compreendida como a possibilidade de seu ternanse Pereeptivel ( Wahrgenommenwerden). Este mundo serve apenas para tornar acessivel © que por ele € designado 4 consideracio, e que, por seu tumo, nao € parte integrante do mundo dado. Assim, 0 como se suscita também Feagdes nos receptores dos textos ficcionais. Pots imaginar o mundo do texto como se fosse um mundo provoca atitudes; com isso, se transgride o mundo, fepresentado no texto € 0 elemento de comparacdo visado recebe urna cera concrecio. Se a reagio afetiva permanece orientada pelo mundo do texto, na atitude se realiza um imagindrio como figura de representacdo. O como se rovoca, Portanto, um ato de representagio dirigido a um determinado mundo, due nio se relaciona nem subjetiva, nem objetivamente, com as referencias em vez disso, ocorre uma dupla transgressao de limites do mutido do texte, © do difuso do imaginatio. A representacio do sujeito enche de vida o mundo. do texto € assim realiza 0 contato com um mundo irreal. Causar reagoes sobre o mundo seria entio a funclo de uso produzida pelo como se Para isso € necessério inrealizar-se o mundo do texto, para assim transformi-lo em andlogo, ou seja, em exemplificagao do mundo, para que com isso se pro- Voque uma relagdo de reacio quanto 40 mundo, ‘Mas o andlogo também pode ter mais uma Fungo, © mundo represen- tado no texto, enquanto produto do fingir, resulta dos atos de selecao ¢ combinacao € nio tem nada de i Permite postaro «ue por ele sejam vistos os dados clo mundo empitico por luma 6tica que nao Ihe pertence, razo pela qual constantemente pode ele ser visto de forma diversa do que €. Dai que a reago que 0 como se desperta no Ambito do mundo do texto possa se referir também a realidade empitica Que, através do mundo do texto, é visada a partir de uma perspectiva que ndo se confunde com uma outra do mundo dado da vida real (Lebenswel) Sea ficgao do como se provoca atividades de orientagio e de represen {ago nos receptores ¢, portanto, desperta reagdes, é de se perguntar em que medida 0 mundo irrealizado do texto possui efeitos retroativos sobre os Teceptores, a partir da representabilidade por ele catimulada. Noutras pala. ras, © como se condiciona apenas a transgressio de limites do mundo posto entre parénteses ou também das atividades provocadas nos receptores? Para responder a esta pergunta, podemos lancar mio do caso concreto do ator Um intérprete de Hamlet, por exemplo, nunca pode identificar-se totalmente ‘com Hamlet, no minimo porque nunca tera plena certeza de quem é Hamlet; Altos de Fingir * 29 como pessoa, este nunca existiu, Assim ele se vera permanentemente, ou seja, a seu corpo, a suas emogées, a seu espirito, como um andlogo, para ue, desta maneira, represente 0 que ndo é. Para alcancar a determinacao de uma figura irreal, o ator tem de se irrealizar, Por este motivo a realidade de seu compo se despotencializa em um andlogo, para que, por intermédio deste, uma configuracio irreal ganhe a possibilidade de sua aparéncia real”, Ou seja, a representabilidade daquilo que & provocado pelo como se significa Que nossas capacidades se poem a servico desta irrealidade, para, no proces: so de itrealizacdo, transformé-la em realidade. Se 0 ficticio nos possibilita nos irrealizarmos para garantir a irrealidade do mundo do texto a possibilidade de sua manifestacdo, entdo, pelo menos estruturalmente, nossa relagdo com 0 mundo do texto ter4 0 cariiter de acon- fecimento, Pois este se origina da violagio de limites estabelecidos e se subtrai a referenciabilidade, pois ndo se deixa reconduzir ao estado (Gegebenheid de significado, Atraves deste cardter de acontecimento, 0 ima. gindrio se converte em experiéncia, possibilitada pelo grau de determinagao que o imaginario alcanga por meio da ficgio do como se. Dai resulta um estado de tensio, que estimula sua supressio. A possibilidade desta se di Pela recondugio do que se manifesta no acontecimento a um sentido, Pois as tensdes $6 se dissipam por um proceso de semantizagio. Sabemos pela psicologia gestaltista o quanto corresponde a nosso hibito orientar a ativida: de de classificago em curso pela percepgdo e pela representagdo, ai empre- Badas no sentido de fechar as formas de percepgio, ou seja, de representa. $40, que vierem a ser produzidas. $4 quando uma Gestalt se fecha, realiza- Se a percepsdo, ou seja, o objeto imagindrio surge na consciéncia imaginante CVorstellungsbewufisein). Por isso, nestes processos, procuramos constante- mente arranjar os dados, de maneira que os distribuamos de modo a possi- bilitar a eliminagao da tensdo existente e assim, alcancemos, na Gestalt fecha- da, a determinagio pretendida. Se o ficticio traca limites no texto ficcional para em seguida rompe-los, a fim de assegurar a necessiria concretude a0 imagindrio, com a qual ele se torna eficaz, ¢ assim que se produz nos recep- tores a necessidade de controlar a experiéncia de acontecimento do imagi- nario (das ereignishafte Erfahren des Imagindiren) A este respetto, vale assinalar um importante achado da psicolingiistica toda expressio verbal € acompanhada pela expectativa da constancia de Sentido™. Pois tudo o que € dito significa alguma coisa, muito embora deva- se levar em conta que quem deseja compreender a lingua deve compreender mais do que a lingua”. Parece portanto natural que a experiéncia do cariter de acontecimento do imaginatio provoque no receptor a demanda de fixagiio pa eae. 30 * 0 Ficticio € 0 Imaginério do sentido, para que o acontecimento seja reconduzido ao familiar, conquan- to assim se contradite © acontecimento, pois € proprio dele ultrapassar os sistemas de referéncia, No entanto, mesmo que se saiba disso, no se deve suspender a semantizagio desta experiéncia. Uma vez que estes processos So, por sua natureza, imprescindiveis, deve-se pelo menos compreendé-los com maior clareza. Se a semantizagio e os atos de doagao de sentido 1esul- tantes derivam da tensio que se apossa do receptor do texto ficcional, em Virtude do cardter de acontecimento do imaginétio, entio o senticio do texto € apenas a pragmatizagio do imaginirio € nao algo inscrito no proprio texto ou que Ihe pertencesse como sua razio final, Se assim considerarmos, © sentido do texto nao seria nem sua tltima palavra (sein Letztes), nem seu termo originario, mas sim uma operacdo inevitavel de traducio, provocada € tomnada necessaria pela forca de acontecimento da experiéncia do imagina io. Se, a0 contrario, nos inclinamos a entender o sentido do texto como sua Ultima palavra ou seu termo originario, € de se indagar se com esta suposi¢ao nao Interpolamos no texto, como sua razio constitutiva, algo que é inevitavel 4 experiéncia do imaginario, Do ponto de vista psicol6gico, esta i € plausivel. Por um lado, ela suprime a tensio resultante da forca de acon- tecimento do imagindrio e, por outro, corresponde a expectativa de con cia do sentido da expressao verbal. Entretanto, assim elidimos a agudeza da observacio que nos diz que, para compreender a lingua, € preciso compre- ender mais do que a lingua. Com esta avaliagdo dos atos de doagio de sentido, nao se pretende dizer que se deva ou se possa renunciar a eles, Ao contririo, estes atos permite Teconhecer até que ponto eles representam, enquanto pragmatizagao do ima gindrio, a inevitabilidade de um processo de tradugio, pelo qual consegui- mos assimilar uma expe ‘uma vez se origina da transgressiio do que somos. terpola ae neia, que mi Neste sentido, a semantizacio produz, no dmbito dos receptores, 0 mes- mo processo de traducio que o ficticio no texto ficcional efetua no ambito dos produtores. Se 0 ficticio € a tradugao do ima; indrio na configuragao conereta para o fim de uso, a semantizagao € a tradugao de um acontecimen- to experimentado na compreensio do procuzido. Sao estes processos com- plementares de traduciio do imaginério que comprovam que este é a energia constitutiva do texto ficcional, O texto ficcional teria uma compreensio es- treita desta dimensio se as operacdes de semantizacio inevitaveis dos recep- tores conduzissem desde ja a interpolago no texto do sentido, como se ele fosse sua razdo constitutiva originéia Corresponde ainda A nossa experiéncia com os textos que estes sejam Atos de Fingir ¢ 31 compreendidos de modos diversos. As raz6es disso sio bem conhecidas, Se ndo compreendermos a diversidade de entendimentos como 0 malogro cons- tante de uma tarefa de Sisifo, consagrada a descoberta do sentido oculto, constataremos entio como com este conceito explicitamos, simultaneamen- te, um limite da semantica; pois, em tiltima anilise, ele significa uma dimen- er entendida como experi- 1 Por certo decifravel, sem que seja plenamente determinavel ¢, com , semanticamente exaurivel. A diversidade das possibilidades de compre- ensio do texto Iiterdrio aponta para o limite da semintica, e evidencia que este problema njo pode ser resolvido tomando-se a semdntica como referén- cia. Por isso mesmo, é possivel que o mesmo texto fa muito diferenciadas, A partir dai é possivel compreender os enten mentos diversificados de um texto ficcional como a caracterizacio. pragma- tica de sua semantica. Se a seméntica de um texto é caracterizivel apenas Pragmaticamente, seria entlo penoso que, abstraindo-se das situacées, qui- séssemos ostentar um sentido do texto como sua razio constitutiva, Seria mais simples, ao invés, ver nos diversos modos de semantizagao 0 indicio da miltipla disponibilidade do imagindrio. 10 que se esfuma no texto ficcional, que pode ca “sentido” em situ- Os atos de fingir, que aparecem no texto ficcional, apresentam um traco geral dominante: serem atos de transgressio. Na selecao, sio transgredidos 6s sistemas contextuais do texto, mas também o é a imanéncia do proprio texto, por incluir em seu repert6rio a transgressio dos sistemas contextuais selecionados. Na combinacio, ocorre uma transgresstio dos espagos semin: ticos intratextualmente constituidos, o que vale tanto para a ruptura de limi tes do significado lexical, quanto para a constituigau do acontecimento cen- tral a narracio, o qual se manif 10 de limites dos herGis do romance, No como se, a ficgio se desnuda como tal ¢ assim transgride 0} mundo representado no texto, a partir da combinacio e da selecdo. Ela poe! entre parénteses este mundo e assim evidencia que nao se pode proferir nenhuma afirmacao verdadeira acerca do mundo ai posto. Em principio, o desnudamento assinala duas coisas. Em primeiro lugar, significa para o des- tinatirio da ficcao que ela deve set tomada como tal, Além disso, afirma que aqui domina a hipotese de que ha de se supor como mundo © mundo Tepresentado, apenas para que assim se mostre que representacio de algo Outro, Sucede por fim uma tiltima transgressio que 0 texto provoca no re- Pertorio de experiéncias dos receptores; pois a atividade de orientagio Provocada se aplica a um mundo irreal, cuja atualizacao tem por conseqiién- ia uma irrealizagio temporaria dos receptores, Se os atos de fingir encontram seu trago comum na transgressiio, € entdo ta na transgres: hid 32. * 0 Fiticio € 0 Imagindrio face a esta que se mostra a atualidade das diversas particularidades Gesonderhetien), pois estas se realizam como operacdes complementares, due permitem 0 processo de reformulagio do mundo, que nao encontra sea idéntico no mundo, deixando aberta tanto a experiéncia, quanto, por fim, a compreensio. O ficticio funciona assim exatamente pela ordenagao de seus Atos como experimentabilidadle © compreensibilidade de reformulagdo den. tto do mundo, 8 atos de fingir reconheciveis no texto ficcional se caracterizam entio Por darem lugar a determinadas configuracées, distinguiveis entre si: a sele. sao resulta na configuracao da intencionalidade do texto; a combinagao, na configuracdo do relacionamento; ¢ 0 autodesnucamento, na configuracao do POr-entre-parénteses, Poder-se-ia descrever estas configuracdes apoiando se na formulagio jé empregada de Goodman: fact from fiction®, Sua peculi ridade consiste em que nem so qualidades daquilo a que se referem, nem €m serem idénticas com o imaginario. Ao cantrario do imaginério, sa0 alta mente determinadas quanto a faticidade de seus campos de referencia, sio © mio-dado. © ficticio entdo se qualifica como uma especifica forma de “objeto transicional”' que se move entre o real e o imagindrio, com a fina lidade de provocar sua mitua complementaridade. Enquanto “objeto transicional”, 0 ficticio seria um fato, porquanto por intermédio dele se rea lizam continuas processos de troca, ainda que em si mesmo seja ele um nada, pois existe apenas por estes processos de comutagio. Por isso, 0 ficticio tampouco se confunde com o fundo constitutive do texto; quanto menos o sentido é este fundo, tanto menos o ficticio € capaz de sé lo, Se o sentido € a operacao semantica que se realiza entre o texto dado ¢ seu receptor, entio o ficticio € apenas a condicao para a reformulagio das realidades postas © dai transgredidas no texto. Como, no entanto, o imagindrio no texto literdrio se concretiza e se torna eficaz apenas através do ficticio, ele precisa introduzir-se na lingua. Obrigado a verbalizar-se, pode se mostrar como tal apenas por meio da abertura da organizaglo textual. Esta abertura adere tanto intencionalidade do texto, quanto ao relacionamento © quanto ao pér-entre-parénteses. Pois, na intencionalidade, as decisoes de escolha ~ aclequadas aos campos de referencia extratexuais comrespondentes, dos quais derivam os elementos selecionados - nao sio eapazes de 9e ver. balizar. No relacionamento, tampouco se verhaliza a correlacio dos campos Semanticos intratextuais, ou o acontecimento revolucionitio de sua trans- Sressio, No por-entre-parénteses, por fim, a finalidade nao se verbaliza porque foi ela que se apresentou entre parénteses. Desta maneira os pontos ‘arquimédicos" do texto se afastam da verbalizagdo, manifestando-se, na Atos de Fingir © 33 indicada abertura, pela configuragdo verbalizada do texto, a presenca do imagindrio. Deriva dai uma derradeira realizagio do ficticio no texto ficcional O ficticio oferece agora a0 imaginario a possibilidade de que este se faca Presente no produto verbal do texto, na medida em que a propria lingua é transgredida e enganada, para que, nv emgano da lingua, 0 imaginario, como causa possibilitadora do texto, se torne presente. Notas 1. Aproveitamos a traduco brasileira da primeira verso desse capitulo de Luiz Costa Tima e Heidrun Krieger Olintu, In: Lulz Costa Lima, Teoria da literatura cae suas fontes, Vol. II, 2° ed., Rio de Janeiro 1983, pp. 384-416 (Nl T), 2. Odo Marquard, "Kunst als Antfiktion - Versuch iiber den Weg der Witklichkeit ins Fiktive’, In: Funktionen des Fiktiven (Poetik und Hermeneutik 30, Dieter Henrich © Wolfgang Iser (eds.), Munique 1983, pp. 35-54 3. No presente context, 0 real € compreendido como 0 mundo extratextual, que, enquanto faticidade, € prévio ao texto e que ordinariamente constitui seus ‘ampos de referencia. Estes podem ser sistemas de sentido, sistemas sociais € lima, gens do mundo, assim como podem ser, por exemplo, outros textos, em que se efetia uma onganizagao eapecifica, ou sea, uma interpretagio da realidade, Eee consequiéncia, o real se determina como 0 miiltiplo dos discursos, a que se refere o acesso a0 mundo do autor, tal como mostrado pelo texto, 4, 0 ficticio é, neste ensaio, compreendido como um ato intencional, a fim de que, acentuando o seu ‘cariter de ato’, nos afastemos de seu cariter, difieilmente dle ser. Pois, tomado como o nio-real, como mentira ou embuste, o fictcio serve sempre apenas como conceito antagénico a outta coisa, que antes esconde do que revela a sua peculiaridade. 5 © termo ‘imaginério' € aqui introduzido como uma designagio comparativa- mente neutra e, dai, distinta das idias tadicionals sobre ele, Kenunciou-se por isso 4 conceitos como faculdade imaginativa, imaginagio, fantasia, que trazem consigo uma ampla carga de tradigio, senclo com freqiéncia justificados como faculdades fumanas bem determinadas ¢ claramente distintas doutras. Pense-se por exemplo na hist6ria do coneeito de fantasia e ver-se-i que para o idealismo alemio ela signif cava algo bem diverso do que representa para a psicanalise e que, dentro desta’ é Para Freud o que & para Lacan. Como nio se trata de, face ao texto literdtio, determinar © imaginario como uma faculdade humana, mas de circunscrever 44 ‘maneiras como ele se manifesta e opera, com a escolha desta designaglo apont antes para um programa do que para uma determinagao, Trata-se de descobrir como @ imagindrio funciona, para que, a partir dos efeitos descritveis, abram-se vias para © imaginario ~ proposta que, no preseuwe ensalo, ¢ trabalhada pela conexio enire & ficticio © o imaginitio; ef. a respeito capitulo IV, 5. ©. Edmund Husserl, Phantasic, Bildbewusstsein, Erinnerung. Zur Phinomenologie der anschaulichen Vergegenwartigungen (Gesammelte Werke XXII), Eduard Marbach (ed.), Den Haag 1980, p. 536. Alos de Fingir * 35 7. Nelson Goodman, Ways of Worldmaking, Hassocks 1978, pp. 10-17, 101-1 8, Esse termo ¢ de D.W. Winnicott, Playing and Reality, Londres 1971, pp. 14, 9. TS. Eliot, Collected Poems 1909-1935, 15* ec, Londres 1954, pp. 13 ss 10. Cf. a respeito Juri Lotman, Die Struktur literarischer Texte (UTB 103), trad. alema de Rolf-Dieter Keil, Munique 1972, pp. 342 ss. 11, Nelson Goodman, Ways of Worldmaking, Hassocks 1978, p. 102. 12, Jonathan Culler, Structuralist poetics, Structuralism, Linguistics and the Study of Literature, 2 ed.,, Ithaca 1977, p. 261 13, Ibidem, 14, Lotman, p. 334 15. Ch. a respeito Karlheinz Stierle, “Die Identitit des Gedichts - Hélderlin als Paradigma’, In: Identitét (Poetik und Hermeneutik VIID, Odo Marquard e Karlheinz Stierle, Munique 1979, pp. 505-52, assim como minha exposicao ationen des lysischen Subjekts, ibidem, pp. 746-49, sobre as teses daquele ensaio. 16. Johannes Anderegg, Literaturwissenschaftliche Stilthcorie (Kleine Vandenhoeck-Reihe 1429), Gottingen 1977, p. 93. © conceito de relacionamento também € central na teoria estilistica de Anderepe, 17. Goodman, p. 93, 18. Ibidem, pp. 29-33 e 102-107. 19. Uma andlise mais detalhada da interago entre 0 ficticio © 0 imaginario se encontra no capitulo IV, 20, Rainer Warning, “Der inszenierte Diskurs. Bemerkungen zur pragmatischen Reiation ler Fiktion”, In: Funktionen des Fiktiven (Poetik und Hermeneutik X), Dieter Henrich e Woifgang Iser (ecls.), Munique 193, pp. 183-206, 21, Cf. a respeito entre outros Amold Gehlen, Urmensch und Spitkultur. Philosophische Ergebnisse und Aussagen, 3 ed,, Frankfurt/M, 1975, pp. 205-16 22, Henry Fielding, The History of Tom Jones, XVI, 5 Londres (Everyman's library 1D 1957, pp. 307-311, Floyd Merrell, Pararealities: The Nature of our Fictions 36 * 0 Ficticio ¢ 0 Imaginério and how we know them (Purdue University Monographs in Romance Languages 12), Amsterdam ¢ Philadelphia 1983, pp. 25 ss., analisa a situagio assim: “Considere. se 0 caso dle um rapaz aterrorizado no cinema. Em certo momento da agio, quando um monstro aparece de sibito na tela, suponhamos que o garoto de repente entorte 4 cara, agarre 0 braco de sua cadeira e dé um grito, Isso parece ser uma resposta fistoldgica automdtica. Parece que 0 eu subjetivo do garoto faz parte do constructo ficctonal na tela de tal modo que hd uma relagio direta entre os dados do sentido que Ihe tocam e seu mundo imaginario ~ a ficgo concebida/percebida’ O mundo ficcional é certamente um mundo de faz-e-conta eo rapaz, mestno tacitamente, esta consciente disso. Mas, no momento em que grita, parece que se imagina ‘dentro’ do constructo ficcional e, como esse constructo faz parte de seus dados ‘extemos’ dos sentidos, ele projeta essa exterioridade dentro das experigncias de seu ‘mundo real’ Em conseqiléncia, € como se suas oscilagdes entre a ficcio e 0 ‘mundo real’ entras- ‘sem, por assim dizer, em ‘curto-ciscuito’, de modo que, por uma fragio de segundos, ele ficasse exclusivamente ‘dentro’ do frame ficcional: tal frame tornou-se 0 seu ‘inico ‘mundo real 25, Hans Vathinger, Die Philosophie des Als Ob, System der theoretischen, praktischen und religiésen Fiktionen der Menschheit auf Grund eines idealistischen Positivismus 8" ed., Leipzig 1922, p. 585. 24, Ibidem, pp. 585 ss 25. Ibidem, p. 591 26. tbidem, p, 589, 27. Cf. a respeilo Jean-Paul Sartre, Das Imaginire. Phinomenologische Fsychologie der Einbildungskraft, trad, alema de Hans Schéneberg, Hamburg, 1971, p. 296, de onde se extraiu a referéncia ao ator. Sartre termina esta referéncia com @ seguinte afirmagio: "Nao € 0 personagem que se realiza no ator, mas o ator que se irrealiza no personagem,” (ibidem.) 28, Cl, sobre este conceito Hans H6rmann, Meinen und Verstehen. Grundziige ciner psychologischen Semantik, Frankfur/M. 1976, pp. 187, 192-196, 198, 207, 241, 253, 403 ss., 410 ss. © 500, 29. Ct. ibidem, p. 210. 0. GE Goodman, pp. 10; 31. Winnicott, pp. 1-25. A partir da perspectiva psicanalitica, Winnicott desen- volve o fingir dos “objetos transicionais’ como fungdo central da primeira fase da crianga, por intermédio da qual se realiza a separagio da mae. “Desde o nascimento, Portanto, ser humano tem a ver com o problema da relacio entre o objetivamente Atos de Fingir © 37 percebido e o subjetivamente concebido. Uma boa solugio desse problema inexiste Para o ser humano que nao tenha sido bem preparado pela mie para isso. A drea intermédia a que me refiro é aquela que é concedida a crianca entre a criatividade Primdria ea percepeao objetiva, findada no teste de realidade. Os fendmenos transicionais representam os primeiros estdgios do uso da ilusio, sem os quais no ha significado para o individuo na idéia de uma relacia com 6 objeto percebido Pelos outros externos aquele individuo |... ] © objeto transicional e os fendmenos transicionais concedem a cada ser humano aquilo que lhe sera sempre importante, ‘uma drea neutra de experiéncia que nao seri desafiada. Do objeto transicional pode-se dizer que ele é um objeto de concordancia entre nés ea crianca a quem nunca perguntaremos: ‘Foi vocé quem concebeu isso ot 1850 se dpresentou a voce de fora?’ O importante é que at ndo se espera nenhuma decisiio. A questo ndo hd de ser formulada (.. } Essa area intermédia da experiéncia sobre a qual nao se indaga Se pertence 4 realidade interna ou externa (partilhada) constitui o tertit6rio maior da experiéneia da crianga ¢, por toda vida, se mantém na experimentacio intensa que Pertence as artes, religido, a vida imaginativa ao trabalho cientifico criador” (p, 11-14),

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