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| Ns.Alo Deixar o conhecido, em viagem real ou nao, 6 assumir um ponto de vista critico sobre viver e estar no mundo, perceber e ser percebido Saudades de casa ‘ANA ALMEIDA ‘Ludwig Wittgenstein, A Lecture ‘0m Ethics", in Philosophical Occasions 1o12-1951Indianspolis: Hackett Publishing, 1993. Fred Sandback ight Variations for Galerie Heiner Friedrich, 1971-1973 © 2014 Fred Sandback Archive Foto de Ron Amstutz Cortesia Fred Sandback. ‘Archive Ludwig Wittgenstein referiu-se ao estado mental de abso- luta seguranga como aquele em que saberiamos que nada nos pode fazer mal.’ Estar num lugar estranho pode ser 0 oposto pratico desse estado. E, no entanto, a relativa inse- guranga sentida em lugares estranhos nao chega a ensom- brar os seus variados beneficios. Certas coisas so se perce- bem quando, por exemplo, estamos em lugares que nos sio estranhos. A extemporaneidade de um dia passado nas urgéncias de um hospital ou a solidao de um quarto de hotel podem aproximar-nos do reconhecimento da importancia daquilo que nos é familiar, mas também podem levar-nos a perceber o que de outro modo nao perceberiamos sobre nds e nossa relagdo com o que nos rodeia. Tais experiéncias podem levar-nos a perceber, por exemplo, que nao suporta- mos a solidao. Ou a saber com precisio quanto tempo con- seguimos ficar mal sentados. Ou a descobrir, pelo contrario, que nos sentimos afinal protegidos ao sermos lembrados de que nao estamos sozinhos numa mesma suscetibilidade & doenga, ou a perceber, de uma vez por todas, que nao supor- tamos pessoas, Nao € necessario que o misantropo que existe em alguns. de nos se liberte em todos os ambientes hostis, mas um ambiente estranho pode apresentar-nos ao misantropo que nao sabiamos haver em nos, Nessa altura, se poderia sIho, nos devolve uma descricao maig izer quea realidad, COND Hossoastém omesmo PO de experiéncig ae doque somos. AIBU esas ruas do nosso baitTo S40, Por vezes, ag completa dO um pais diferente: paisa que nao gostamos de perten. hospital, um : : inhadas de Saat porém, oestrangeiro pode realmente nos n . “i id apo que nao nos fail Hone pxiem percebersaincdo do nOSso pats. Pode Eis algumas cosas MT que gostamos mais de calor que de frio, oy amos pereebe, por conte ao pessoas de cha. Podemos perceber co. Paar nsamos dos outros: perceber que preferimos og S25 nova sO aneses e os parsienses. E, por fim, podemos aumen. madrlen i nhevimento sobre o que OS OULTOS PensaM nosso respeit e sobre o que pensamos de nos mesmos: perceber que somos mais gordos em Paris do que em Madri, que somos mais introvertidos do que pensiva- mos, que os nossos sapatos, que julgavamos discretos, chamam a atencio urgéncias ap cer. Num senti¢ devolver uma imagem 4 de muitos transeuntes. A banalidade de semelhantes conquistas epistemol6gicas nao oblitera, todavia, o seu valor como conquistas e o que genuinamente acrescentam 0 que sabemos sobre 0 que pensamos dos outros e de nos. A afirma- io de Wittgenstein sobre seguranca absoluta pode inspirar-nos a relacio- nar oestado de estar longe de casa, e de sentir saudades de casa, com certa experiencia de inseguranca, mas no nos impede de ver essa experiéncia como um estado acrescentado de esclarecimento, Ter saudades de casa é casa i Me banaidade des none 248A coisa sobre o que somos, para as : lgarmente se cee Preferéncias e em irracdes, A experiéncia que pin 28. aliés, perceber pene Aull para que foros feitos” implica, : er a nossa afini jue 7 Que existiam, Nenh = finidade com coisas que nio sabiamos <1¥e Somos pessoas de Penho introspectivo Nos pode levar a perce- pessoariee | cain dooms ¥ezes,uma oa tvermos provado. Perceber que se feitos” sig e = completas.ay “vio imediata, Provavelmente esse- t ike SOMos, as “coisas para que foros acal timos sa i Padodecontecs ia. — instantaneamente, mesmo que velhos amigos, elas nos deixam @ 2. Walter Benjamin, “Infancia em Berlim”, in Obras escolhidas 1: 1ua de mao tinica, So Paulo: rasiliense, 2004. impressao de as conhecermos desde sempre. sig Nos liaimediata,a que nenhuma introspeccio nos cong | Por vezes, em lugares estranhos, lutamos Para libe -nos daquilo que conhecemos, e ganhamos gosto em mar. nos gestos novos e na nossa Tepresentacao do gosto tiramos de tais novidades, até constituirmos um ue mundo de novos habitos, um mundo de uma ou dus ee 7 duas ou trés ruas, um pequeno colonato, como uma boia g salvacdo que nos chega para que possamos viver, “Isto es capaz de me chegar”, pensamos. Esse mundo, Percebemo.jy em pouco tempo, tem contudo um prazo de validade, um prazo de suportabilidade. Nao se trata de o prazo de vali. dade desse mundo provis6rio dizer muito sobre nés, Trata- -se antes de que esse prazo é qualquer coisa que aprendemo, sobre nds. Ele é um dado a nosso respeito que de outro modo desconhecemos, e que nao é sequer um fato acerca de todas as pessoas. O prazo da suportabilidade de lugares estranhos € qualquer coisa sobre nds que s6 aprendemos em luga- res estranhos. Ele parece consistir em saber até que Ponto suportamos 0 que é estranho enquanto algo de estranho, Walter Benjamin conta nas suas memorias de infancia como os postais ilustrados da sua avé estavam “ocupados" pela sua caligrafia de tal forma que os lugares distantes das ilustragées Ihe pareciam “coldnias de Blumenhof”,’ a casada sua avo. Assim sao também os pequenos colonatos de fami- liaridade que erguemos em viagem, a coreografia caracte- ristica das nossas novas rotinas. Vista a essa luz, qualquet cidade é uma composi¢ao de colonias privadas de habitos, justapostas e entrecruzadas. Os rituais de uns tomam lugar no intervalo dos rituais dos outros: a mesa de café a qual passamos a sentar-nos escrupulosamente das nove as dez é, das dez as onze, a mesa de outra pessoa. E comum que os turistas se observem e se reconhecam uns aos outros 10 decurso da pratica desses rituais. Associar a repeti¢ao, ness casos, a uma procura de seguranga s6 é talvez pertinentes? preservarmos certa dose de pragmatismo. E possivel i © turista rotineiro queira apenas uma digestao agrad 0 Procurar que as nossas refeigdes nao nos caiam mal pean vezes, a tinica e nada patética verdade por detras de oe habitos. E, é claro, existem as pessoas que, stead estiverem, nunca se sentam no mesmo sitio, nunca a es 0s mesmos percursos, pessoas para quem isto € = ‘Lydia Davis, “A Position at the University’, in Almost No Memory. mente indiferente. Pode ser, no entanto, que tais formas de desprendimento testemunhem, na verdade, acerca de um modo alternativo de procurar nos sentir seguros. A ideia da descrigéo completa de uma pessoa ocorre na seguinte hist6ria de Lydia Davis: Um cargo na universidade Eu acho que sei que tipo de pessoa eu sou. Mas ai eu penso, mas esse estranho vai me imaginar completamente diferente quando ele ou ela ouvir que faco isso ou aquilo, por exemplo, que tenho ‘um cargo na universidade: o fato de eu ter um cargo na univer- sidade vai parecer querer dizer que eu deva ser o tipo de pessoa que tem um cargona universidade. Mas ai eu tenho que admitir, surpresa, que, afinal, é verdade que tenho um cargo na univer- sidade. E se isso é verdade, entdo talvez eu de fato seja 0 tipo de pessoa que vocé imagina quando ouve dizer que alguém tem um cargo na universidade. Mas, por outro lado, sei que eu nio sou o tipo de pessoa que imagino quando ougo dizer que alguém tem ‘um cargo na universidade. Aieu vejo qual é0 problema: quando ‘0s outros me descrevem assim, eles parecem me descrever com- pletamente, ainda quena verdade nao me descrevam completa- ‘mente, e que uma completa descrigdo de mim incluiria verdades {que parecem perfeitamente incompativeis com o fatode que eu tenho um cargo na universidade* Essa historia expde o problema de sabermos em que medida 0 que somos se esgota nas posigées que ocupa- mos, Estar num lugar estranho assemelha-se a estar fora ‘da nossa posi¢do. Uma descrigao completa de mim acarreta vyerdades incompativeis com 0 fato de que ocupo as posi- ocupo, diria Lydia Davis. Ocupo esta posigao, mas goes que uma ocupar este tipo de nao sou o tipo de pessoa que cost! posigio e de algum modo sou, aliés, incompativel com esse tipo de pessoa. Mas 0 que é uma descrigéo completa? Estar rnum lugar estranho pode ser um modo de aceitar uma des- crigdo completa da minha pessoa, no sentido de estar fora das posigdes que habitualmente ocupo, como um. ministro no supermercado. — Uma descrigao completa de uma pessoa seria, assim, uma descrigio dessa pessoa fora de todas as posicdes que normal mente ocupa. Adescrigdo que, por exemplo, um milanés faria ' ‘John Bawls, 0 tberaliama politica ‘to Paulo: wise Martins Fontes, 2015 de mim, aquilo a que John Rawls designou “posigio original”, isto 6, um estado em que cada um ignorasse sua “posicio social” ¢ seus “dons naturais”, por meio da agdo de um dis- positivo como um “véu de ignorancia”.* A Rawls interessava 0 tipo de acordo que pode ser possivel entre estranhos. Um “véu de ignorancia” assegura o grau de indiferenga mutua necessario para que estranhos entrem em acordo, desco- nhecidas as condigdes que suscitariam disputas em debates acerca daquilo que cabe a cada parte. A indiferenga que as pessoas que no nos conhecem tém para com os nossos tra- 60s distintivos pode revelar-nos descrigdes completas do que somos, que nos podem potencialmente surpreender. © que perceberiamos sobre nés préprios numa posi- ‘cdo original, uma posico em que o que nos individua nao é capturavel? Uma posigao original no pretende ser uma ocasiao de aprendizagem, no que se distingue de uma estada num lugar estranho ~ a qual pode sé-la por acidente ou de modo premeditado. E alias ocioso e por vezes até errado encarar qualquer ocasido como uma ocasiao de aprendiza- gem e pensar que isso a redime. £, por exemplo, errado ima- ginar que depois de, por hipétese, perdermos tudo seremos redimidos pelo que aprendemos com isso. O erro esté em exagerar a importancia que damos ao que aprendemos com o que nos acontece e até mesmo a importancia de aprender- mos com o que nos acontece. Estar num lugar estranho consiste em viver sob a indife- renga dos outros e em ver suspensa a rede de importancia que nos liga as pessoas que nos sio familiares. Torna- -se assim claro que a posicao que ocupamos depende da maneira como 0s outros nos representam e nos identificam, mais que da maneira como nos vemos, como € perceptivel pela importincia do ponto de vista dos outros na histéria de Lydia Davis. A experiéncia de estar num lugar estranho seria mais bem descrita pela imagem de um véu que se inter- pée entre nés ¢ os outros do que pela de um véu que bota- ‘mos sobre nossa propria cabeca. Uma descricdo completa do que somos inclui o nosso peso em Mili? Inclui o modo como somos vistos pelos milaneses? Aquilo que sentimos e de que viremos a sentir falta pode ser a maneira como os milaneses nos veem, essa forma afinal tao completa de descrever 0 que somos. Este tiltimo aspecto, que traduz a percepgao de algu- mas pessoas, incorre todavia numa falacia a que a historia de 4 .duz e de que ela depende, que €a de imaginarmos g Lydia Davis nos condu? © letas de nds mesmos. Por que haveriay reconheceriamos descrigoes complet issoniia mg rae ea instancias autenticadoras das opinides que os outros ty de nao servir como 1uenos esforgamos tanto por nos fazer entender? Talyg Se Te oe numa parole doméstica, a lingua em que, em todp ae snevsentimes por vezes| percebidos, mas que nao dominamos - como afigg ninguém domina. 7 Perceber que ndo nos esgotamos nas posigdes que Ocupamos € pei que existem coisas mais importantes do que essas posiedes, como se pod ria perceber, estando em viagem, a importancia que tem para nds qua coisa de trivial e muito familiar. E como se precisassemos sair das posi que ocupamos para perceber no a importancia dessas posicdes, masa. importancia das coisas para além dessas posigdes. A vida que assim nosé mostrada é a vida para la da nossa vida. Que haja vida em Milo enqua nao estamos la da-nos uma imagem disso, do tipo de burburinho que ex além de nds e que sobrevivera ands. £ nesse sentido que tomar contato com 0 fato de que ha vida em Milao pode ser uma experiéncia de humildade. Sai de onde estamos faz-nos perceber que nao nos esgotamos na posigio que ocupamos, faz-nos perceber que existe vida do outro lado. Mas, se assim. © que aprendemos sobre nés em lugares estranhos € acerca de nossa vid Paraalém daquilo que nos ¢ familiar. Talvez isso seja necessariamente assim 4 medida da nossa suportabilidade a um lugar estranho também 68 medida da nossa suportabilidade a indiferenca generalizada a nosso res Peito, e que também podemos encarar como a suportabilidade a exposigio taal de nosretrbuir: Uma descricao completa é, vistas as coisas asi hal Das C0188 2 que 80 se pode ser exposto e a que, apesar do otimismo de avis, nao chegamos sozinhos. Isto é, trata-se de algo a que nao chef » NOs ambientes em que se sente sau a incompati eeber que uma descri¢ao completa 409% | vel com as Posigdes que ocupamos 00S § 3 0 familiares, TX f *O quelhe amiiang no ge U4 PeSSOa pela posigdo que ocuP# ia >No finde conta, otipo de coisa que s6 um est faria. Para as pessoas importantes, estamos, como a Populacao tem, Taig. mente ignorante da teoria de Rawls, razoavelmente desapossados de atriby. tos, tal como um estrangeiro nos veria. Veem-nos afinal como nos Veem og turistas, as pessoas Para quem somos importantes, O ponto em que estiio acertadas sobre né: mal toca por vezes no Ponto em que esto acert: quem somos importantes. Falamos frequentemente numa 4 Com as pessoas que nos conhecem bem. Talvez elas o Percebam e, 3 seme. Thana do estranho da historia de Lydia Davis, nos vejam como o tipo de Pessog que fala numa parole doméstica com Pessoas conhecidas, Também é Possj- vel que tudo o que percebem sobre Nés, as pessoas que nos conhecem bem, sejaa parole doméstica em que porventura hes falamos e, apesar disso, nog sintamos em casa juntoa elas, Ou ainda que nos sintamos fatal mente mal-en- tendidos por pessoas, que nos conhecem bem, dido no Havai—epensa “aqui, tio longe de cas, T QUE a Dosicig Original s6 é inteligivel como ‘samente como uma familia e,em Provenincia se toma ime 2. A Nossa casa também é um sitio onde a nossa MO Nos sitios onde somos conhecidos, € 2 Tenovaveig Sucessdes de afazeres, : 88 Vestimentag de todas as Nossas posicées. é iar pala ce azemos em familia, nas casas onde vive- dam. 0 4 i0 de volta a casa mine lomésticg © esperar que nos enten- Mente “nao ha | a ” EXPrESSO por Tothy ao dizer repetida- a '?! y (eg Para que nos ent, » quivale nessa al zar OS fen essa al tura a cru; J Eum fato COtidiang toma ace Voltar asa seria, assim, ser compreendido- Vidas que por vezes estejamos numa ‘5. Thomas Carlyle, On Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History, 18.41. Parole doméstica junto das pessoas perante as quais estamos desapossados de atributos, as pessoas que nos importam e para quem somos importantes. Sermos muito familiares nao significa que somos entendidos, que nos entendemos, que entendemos. Thomas Carlyle falou da vida depois de “todos 0s tipos de professores terem feito para nds o melhor que podiam”, mas talvez essa vida nos ensine a ndo exagerarmos aimportancia daquilo que os outros tém para nos ensinars O mais importante pode ser nao esperarmos ser com- preendidos e nao esperarmos aprender. O que se fala é uma parole doméstica em muitas das casas de que ainda assim temos saudades. Fazem-se entender a custo, e entendem- -se a custo, pessoas mutuamente muito importantes. Que- rer ser compreendido no tem as vezes nada que ver com o que é realmente importante em nossa vida. Estar num lugar estranho pode apresentar-nosa nossa condigio junto daquilo que nos é familiar. O que nos conduz abruptamente a ideia de seguranga por onde comegamos: também ela nao parece rela- cionar-se com sermos compreendidos. A impressio de que nada nos pode fazer mal ¢ sentida distraidamente em familia, nas familias em que se pode estar distraido, as familias em que muito possivelmente se fala uma parole doméstica. ANA ALMEIDA (1982) nasceu em Luanda € cresceu em Lisboa. Em 2012, doutorou-se em teoria da literatura na Universidade de Lisboa. £ codi- retora da Forma de Vida, revista do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa. Este ensaio foi o terceiro colocado no 2° Prémio de Ensaismo serrote. Nas esculturas criadas com fio acrilico de lé colorida que se tornaram sua marca, 0 americano FRED SANDBACK (1943-2003) parece desafiar a nogdo de volume. Em 2010, o Instituto Moreira Salles langou Fred Sandback - O espaco nas entrelinhas, catilogo da exposigio do artista no mesmo ano, nasede do Rio.

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