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Modos brasileiros de escapar do "não"

Universalmente, as pessoas se escondem atrás de expressões comprometedoras para evitar


assumir responsabilidades por atos ou opiniões e para fugir dos confrontos embaraçosos. Se essa
"esquiva retórica" fosse uma disciplina acadêmica, os brasileiros seriam Ph.Ds. nela.

Seu talento nesse campo vem deles terem aprendido como navegar em torno aos negativos.
Veja as expressões propositadamente vagas como "pode ser", "vamos ver", "se der", da qual os
brasileiros diariamente se apropriam para desviar a palavra "não". É por essa razão que frases
igualmente descompromissadas como "eu te ligo", "a gente se vê" e "apareça lá em casa"
normalmente são escapadas, e não promessas, de um novo encontro.

A dificuldade com o negativo fica clara principalmente em alguns cariocas, que são craques
em convites sem fundo; marcam e depois dão o "bolo". O álibi: "houve um desencontro".

"Pô, você sumiu!!?", uma esquiva mais sutil, não deveria ser confundida com "que
saudade", que pode ser, ou não, verdade. "Sumiu!???" é uma reação sem graça, que transfere
habilmente o peso do sumiço para o outro.

Esses hábitos já estão enraizados nessa cultura. Sergio Buarque de Holanda os flagrou mais
de meio século atrás no seu estudo do "homem cordial", um tipo de enganador charmoso.

Membros dessa espécie híbrida, meio malandra, meio diplomática, podem ser classificados
como "morde-e-assopra brasilienses". Eles se comunicam por meio de frases como "eu fico
devendo". Essa declaração faz com que qualquer trato não cumprido soe como um acordo amistoso.

"Não deu" é uma outra forma dessa camaleão social camuflar sua saída de um trato não
assumido. "Não deu" antecipa "fica para a próxima", que , como "eu fico devendo", empurra
qualquer compromisso para o dia de São Nunca, o padroeiro do "homem cordial."

"Eu estou com a maioria" é como alguém, não querendo se expor, mascara sua opinião
diante de uma discussão politicamente inflamável - sem ter menor idéia de quem está com a maioria
ou o que ela pensa. Assim como, ao descrever alguém como "uma boa aparência", ele tenta
fracamente mascarar uma preferência racista para que não pareça ofensiva.

"Foi uma fatalidade" ou "o elemento faleceu" é como um policial, que atirou em um
suspeito, se pronuncia ante a imprensa. tradução: "Deus tirou-lhe a vida. Eu só fiz o furo."

E locutores de futebol driblam o erro do seu jogador preferido, que chutou uma bola para
fora, narrando: "o campo estreitou" ou "o campo acabou".

Católicos praticantes, craques em usar a confissão para se absolver de seus deslizes e de suas
enganações mais graves, têm transformado esse ato sagrado na mais institucionacionalizada de
todas as esquivas brasileiras.

Eu foi criado não no brasil, mas na América protestante, onde a salvação está ligada à
conduta pessoal e moral rígida no cotidiano, e não na redenção. Isso ajuda a explicar por que os
americanos são muito mais bruscos do que os brasileiros, que são mais corteses. É por isso que os
brasileiros nos chamam de "objetivos" para não dizerem que somos grosseiros.
Este modo brusco explica por que um americano encerra um convite, informando "I'm sorry,
but I can't. I'm too busy" ("Desculpe, mas não posso, estou ocupado demais"). Essa resposta
definitiva, como "no" (não) americano categórico, dá um golpe no ego. Mas enrola menos do que
"Eu te ligo".

Meus conterrâneos acham que quanto mais rápido se sofrer esse golpe, mais rápido se
recupera. Muito mais rápido do que o "bolo" bem brasileiro. E a idéia de um "desencontro" para nós
é tão alienígena quanto essa palavra é intraduzível em inglês.

Brasileiros também recorrem aos gestos padronizados para tirar o corpo fora de seus atos.
Quando um motorista apressado dá cortadas no trânsito, enquanto sorri, pisca o olho e mostra o
polegar para cima, ele não esta pedindo sua perdão. Ele está pedindo sua cumplicidade pra suas
burradas.

Nessa costura de tantas cortadas, esse "homem cordial" pode até agradecer por essa
cumplicidade, gesticulando que seu farol está aceso ou que sua porta está aberta. Essa espécie
"morde-e-assopra" está longe de do perigo de extinção e é facilmente encontrada nos
engarrafamentos de verão.

A dificuldade de assumir compromissos nessa cultura é tão enraizada, que é árduo crer nos
brasileiros que fogem desse padrão.

Então, quando alguém que acabo de contratar diz: "Deixa comigo", e, pior ainda, me da "já,
já" como prazo, a experiência tem-me ensinado a "botar as barbas de molho".

Essa é a única forma de me resguardar de uma explicação meio confusa, que começa com "é
o seguinte...", prossegue com "não deu" e acaba com "fica para a próxima".

Michael Kepp
(Folha de S. Paulo, 25 de fevereiro de 1996)

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