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A arte da ficcao * : Eu nao deveria ter escolhido um titulo tao abran- jente para estas poucas observagées, necessariamente Ancompletas quando se trata de um assunto sobre o qual poderiamos ir tao longe, se ndo me parecesse ter ‘descoberto um pretexto para tal temeridade no interes- te panfleto recém-publicado sob esse titulo pelo Sr. alter Besant. A conferéncia do Sr. Besant na Royal Instirution — a fonte original de seu panfleto — aparece emo indicio de que muitas pessoas esto interessadas arte da ficcao, e de que nao estao indiferentes as sbservacées que aqueles que a praticam possam querer + sobre ela. Estou ansioso, em consequéncia, por desperdicar o beneficio dessa associagao favoravel acrescentar algumas palavras, acobertando-me da ngdo que o Sr. Besant esta certo de ter chamado. Ha © muito encorajador no fato de ele ter dado forma a gertas ideias suas sobre o mistério da narrativa. il Esse fato é uma prova de vitalidade e curiosidade —curiosidade tanto por parte da irmandade dos roman- cistas quanto por parte de seus leitores. Ha bem pouco tempo, era de supor que o romance inglés nao fosse o que os franceses chamam de. “discutable”. Ele nao apa- rentava ter uma teoria, uma convicc4o, uma autocons- ciéncia por tras de si—a de ser a expressao de um credo artistico, o resultado de escolha e comparacio. Nao | digo que isso fosse necessariamente ruim: seria preciso muito mais coragem do que possuo para sugerir que a forma como Dickens e Thackeray viam o romance (por exemplo) tivesse qualquer sombra de incompletude. Isso, no entanto, era naif (se me p€rmitéM outra pala- vra francesa); e evidentemente, se se deve softer por causa da perda da naiveté, existe agora a ideia de que também se deve extrair as respectivas vantagens. Durante © periodo a que aludi havia em outros paises uma sensagao confortavel, bem-aceita, de que um ro- mance é um romance assim como um pudim é um pudim, e de que s6 nos cabe engoli-lo. Mas em um ano ou dois, por um motivo ou outro, houve sinais do retorno de uma animagao — a era da discussao, ao que parece, estava sendo iniciada, A arte vive de discussao, de experimentacao, de curiosidade, de variedade de tentativas, de troca de visées e de comparacao de pon- tos de vista; ¢ presume-se que os tempos em que nin- guém tem nada de especial a dizer sobre ela e em que ninguém oferece motivos para o que pratica ou pre- fere, embora possam ser tempos honrados, nao sejam tempos de evolucao — talvez sejam tempos, até, de uma certa monotonia. A pratica bem-sucedida de qualquer arte € um espetaculo agradavel, mas a teoria também é 17 interessante; ¢, embora haja uma grande quantidade da segunda sem a primeira, suspeito de que nunca tenha havido um sucesso genuino que n4o tenha tido um amago larente de convicg4o. Discussao, sugestio, for- mulacao, essas coisas sao férteis quando sao francas € sinceras, © Sr. Besant deu um exemplo excelente ao dizer o que pensa que deva ser a mancira de escrever ficcdo, assim como a maneira de public-la; pois sua visio da “arte”, explicada no apéndice, abrange isto também. Outros trabalhadores da mesma drea vao ler © argumento, colocd-lo & luz de sua experiéncia, ¢ 0 efeito certamente ser4 o de tornar nosso interesse pelo rofhance um pouco maior do que aquele que por um tempo ele ameagou deixar de ser — um interesse sério, ativo, investigativo, sob cuja protecao esse agradavel estudo pode, em momentos confessionais, aventurar-s¢ a dizer um pouco mais sobre o que o romance pensa _ de si mesmo. O romance precisa se levar a sério para que © ptiblico o leve a sério também. A velha superstigao sobre a ficcio ser “iniqua” sem divida morreu na Inglaterra; mas seu espirito subsiste num certo olhar obliquo que se dirige a qualquer histéria que nao ad- mita, mais ou menos, ser apenas uma anedota. Mesmo © romance mais anedético sente de algum modo o peso da proscrigdo que antes se dirigia contra a levian- dade literaria: a anedota nem sempre consegue passar _ por ortodoxia. Ainda se espera, embora as pessoas tal- ver tenham vergonha de dizer, que uma produgao que, afinal, é apenas uma “simulagao” (pois o que mais é uma histéria?) deva ser de algum modo apolo- pética — deva renunciar a pretensao de tentar realmente 7 representar a vida. Isso, claro, qualquer histéria sen- sata, consciente, rejeita fazer, pois logo percebe que a tolerancia que lhe é emprestada sob essa condi¢ao é apenas uma tentativa de sufocd-la, disfarcada na forma de generosidade. A velha hostilidade evangélica ao ro- mance, que era tao explicita quanto estreita, e que o considerava tao. pouco favoravel ao nosso ser imortal quanto a peca de teatro, era na verdade bem menos insultuosa. A tinica razdo para a existéncia de um ro- mance é a de que ele tenta de fato representar a vida. Quando ele desdenha essa tentativa, a mesma tentativa que se vé na tela do pintor, ter4 chegado a uma situa- ¢ao muito estranha. Nao se espera de uma pintura que seja tao humilde que possa ser esquecida; e a ana- logia entre a arte do pintor e a arte do romancista é, até onde posso ver, completa. Sua inspiragio é a mes- ma, sua técnica (a despeito da qualidade diferente dos meios) é a mesma, elas podem explicar e sustentar uma a outra. Seu motivo é 0 mesmo, e a honra de uma é a honra da outra. Os maometanos pensam que a pintura € uma coisa profana, mas j4 se vai muito tempo desde que os cristéos pensavam assim, ¢ portanto é mais es- tranho que na mente crista tragos (ainda que dissimu- lados) de suspeita contra uma arte irma subsistam até hoje. A tinica maneira eficaz de apagd-los é enfatizar a analogia a que acabei de me referir — é insistir no fato de que, se a pintura é realidade, o romance ¢ histéria. Essa é a tinica descrigdo genérica (que lhe faca justica) que se pode dar do romance. Mas a histéria também se permite representar a vida; nao se espera dela, nao mais do que da pintura, que faga apologias. O tema da fic- go esta arquivado, como em documentos e registros, ¢ para que seja explorado ¢ preciso falar dele com segu- ranca, com a tonalidade do historiador. Alguns roman- cistas de renome tém um costume de entregar-se que deve, com frequéncia, levar as lagrimas pessoas que to- mam sua fic¢ao a sério. Recentemente me espantei, ao ler muitas p4ginas de Anthony Trollope, com sua falta de discrigao quanto a isso. Numa digresséo, num pa- réntese ou aposto, ele concede ao leitor que ele € esse amigo confiante estao apenas “simulando acreditar”. Admite que os eventos que narrou nao aconteceram realmente, ¢ que pode mudar sua histéria do modo como o leitor preferir. Tal traigao de um oficio sagrado me parece, confesso, um crime terrfvel; era o que eu queria dizer quando falei sobre a atitude de apologia, ¢ isso me choca, por menor que seja, tanto em Trollope quanto teria chocado em Gibbon ou Macaulay. Implica que o romancista esté menos ocupado em procurar a verdade (quero dizer, claro, a verdade que ele assume, as premissas que lhe garantimos, quaisquer que sejam) do que o historiador, e ao fazé-la estd se privando de uma pincelada do quarto em que esta. Representar € ilustrar o passado, as agées do homem, € a tarefa de qualquer escritor, e a tinica diferenga que posso ver é a favor do romancista, se bem-sucedido, porque ele tem bem mais dificuldade do que o historiador em coletar suas provas, que estao longe de ser puramente literd- rias. Parece-me que lhe dé um grande carater o fato de ele ter em comum tanto com o filésofo como com o pintor; essa dupla analogia é uma heranga magnifica. E por isso evidente que o Sr. Besant esta certo ao insistir no fato de que ficgao é uma das belas artes, merecedora por sua vez de todas as honras e ganhos 15 que até agora tém sido reservados 4s bem-sucedidas profissées de musico, pintor, poeta, arquiteto, E di- ficil insistir tanto numa verdade tao importante, ¢ o lugar que o Sr. Besant reclama para o trabalho de romancista pode ser representado, um pouco me- nos abstratamente, dizendo-se que ele pede que seja reputado n4o sé como artistico, de fato, mas tam- bém como muito artistico. E étimo que ele tenha feito soar essa nota, porque o fato de té-la feito in- dica que havia uma necessidade disso, que sua pro- posicao pode ser para muitas pessoas uma novidade. Esfregam-se os olhos diante desse pensamento; mas i o resto do ensaio do Sr. Besant confirma a revela- ao. Na verdade, suspeito que seja pdssivel confir- ma-la ainda mais, e que ndo estaria errado quem — dissesse que, além das pessoas a quem nunca ocor- reu que um romance deve ser artistico, hd muitos outros que, se lhes fosse explicado esse principio, — ficariam cheios de uma indefinivel desconfianga. Achariam dificil explicar sua repugnancia, mas isso os deixaria fortemente em guarda. “Arte”, nas nossas comunidades protestantes, em que tantas coisas mu- daram tao estranhamente, imagina-se em certos circu- los que tenha algum efeito vagamente injurioso sobre aqueles que a consideram, que dao certo peso a ela: Supde-se que ela se oponha, de alguma maneira miste- riosa, 4 moralidade, ao lazer, A educacao. Quando estd © incorporada numa pintura (escultura é outro assunto!) sabe-se o que ela ¢; ela esta 14 diante de vocé, na hones- tidade do rosa e do verde e uma moldura dourada; vocé pode ver a parte pior dela de relance e ainda se manter protegido. Mas quando ela se introduz. na literatura se 16 torna mais insidiosa — hd o perigo de que ela o machu- que antes de vocé conhecé-la. A literatura deveria ser ou instrutiva ou divertida, e hd em muitas cabegas a impressdo de que essas Preocupacées artisticas, como a busca da forma, nao contribuem em nenhum dos dois sentidos, ¢ mesmo interfere em ambos. Sido muito frivolas para ser edificantes ¢ muito sérias para ser di- vertidas; ¢, além disso, s4o pretensiosas e paradoxais ¢ supérfluas. Isso, creio, representa a maneira como o pensamento latente de muitas pessoas que leem ro- _ mances como um exercicio fugaz poderia explicar a si mesmo se fosse articulado. Elas argumentariam, claro, que um romance tem de ser “bom”, mas interpreta- riam este termo A sua maneira, o que certamente iria variar bastante entre um critico e outro. Alguém diria _ que ser bom significa representar Personagens virtuo- I ose inspiradores, situados em Posig6es proeminentes; _ outro diria que isso depende de um “final feliz”, uma ' distribuigao final dos prémios, pensées, maridos, mu- _ Iheres, bebés, milhées, pardgrafos anexos e observagées odivertidas. Outro, ainda, diria que ser bom significa 1 repleto de incidentes e movimento, de modo que queira saltar adiante, para ver quem era o misterioso tranho € se o objeto roubado foi encontrado, e de ‘anilise ou “descrigao”. Mas todos concordariam quea “Ideia “artistica” traria uma perda para seu entreteni- mento. Um a associaria com a descri¢ao, outro a veria ‘revelada na auséncia de simpatia. Sua hostilidade a um final feliz seria evidente, e em alguns casos até fa- fia qualquer conclusdo ser impossfvel. A “conclusio” “do romance é, para muitas pessoas, como ade um bom v7 jantar, uma sequéncia de sobremesas e sorvetes, € 0 artista na ficcio é visto como uma espécie de um mé- dico chato que proibe prazeres supérfluos. E portanto verdadeiro que essa concepgao do Sr. Besant do romance como uma forma superior encontra uma indiferen¢a nao sé negativa mas também positiva. Pouco importa 4 esséncia da obra de arte que supra finais felizes, perso- nagens simpaticos e um tom objetivo, como se fosse uma obra mecAnica: a associagao de ideias, embora in- congruentes, poderia ser demais para ela se uma voz eloquente as vezes nao se erguesse para chamar atengao para o fato de que a ficcao € um ramo da literatura a um tempo tao livre e sério quanto qualquer omtro. Certamente € preciso as vezes duvidar disso na presenga do enorme ntimero de obras de ficgo que apelam A credulidade da nossa gerag4o, porque pode facilmente parecer que nao deve haver nenhuma gran- de personagem numa mercadoria téo répida e facil" mente produzida. Deve-se admitir que bons romances sao bastante comprometidos por maus, ¢ que 0 campo como um todo sofre descrédito quando superpovoado. Acho, no entanto, que essa injuria ¢ apenas superfi- cial, e que a superabundancia de fic¢ado nada prova contra o principio em si. Ela foi vulgarizada, como todos os outros tipos de literatura, como tudo o mais hoje em dia, ¢ provou mais do que os outros tipos ser acessivel 4 vulgarizagao. Mas hd tanta diferenga quanto sempre houve entre um bom romance ¢ um mau: 0 mau romance é varrido com todas as telas borradas e mdarmores danificados em diregao a um limbo nao visi- tado, ou para o infinito depdsito de lixo atrds das janelas- do mundo, ¢ o bom romance subsiste ¢ emite sua luz ¢ | 18 estimula nosso desejo por perfeicao. Se posso tomar a liberdade de fazer uma tinica critica ao Sr, Besant, cujo texto € tao repleto do amor por sua arte, devo fazé-la agora. Ele me parece equivocado ao tentar dizer tio definitivamente no que consiste um bom romance. Indicar 0 perigo que existe nesse erro foi o propésito destas poucas paginas, como o de sugerir que certas tradigées nesse campo, aplicadas a priori, j4 tenham assumido responsabilidades demais, e que a boa satide de uma arte que téo imediatamente se dispée a repro- duzir a vida exija que essa arte seja perfeiramente livre. Ela vive de exercicio, e o préprio sentido do exercicio é a libtrdade. A tnica obrigagio que devemos imputar | previamente a um romance, sem cair na acusagao de arbitrariedade, é a de que seja interessante. Essa responsabilidade geral é a tinica que vejo repousar so- bre ele. As formas como ele é livre para tentar atingir _esse resultado (de ser interessante) sao surpreendente- "Mente numerosas, ¢ sé podem sofrer com as restric6es _@ prescri¢6es. Sao tao variadas quanto o temperamento jo homem, e bem-sucedidas 4 medida que revelem uma mente particular, diferente da dos outros. Um romance, sua defini¢do mais ampla, é uma impressao direta e ssoal da vida: isso, para comegar, constitui seu valor, ue é maior ou menor de acordo com a intensidade da pressao. Mas nao haverd intensidade alguma, ¢ por- | nto valor algum, se nao houver liberdade para sentir dizer. Tragar uma linha a ser seguida, um tom a ser | tido, uma forma a ser preenchida, é uma limitagao sa liberdade e uma supressdo justamente daquilo I que estamos mais curiosos. A forma, parece-me, é ra ser apreciada depois do fato: sé entaéo a escolha do autor terd sido feita, seu padrao indicado; s6 entao po- demos seguir linhas e diregées ¢ comparar tonalidades e semelhangas. E, em suma, podemos desfrutar um dos prazeres mais charmosos, podemos avaliar a qualidade, podemos aplicar 0 teste da execug’o. A execugado per- tence apenas ao autor; é o que hd de mais pessoal, ¢ o medimos por ela. A vantagem do artista, o seu luxo, as- sim como seu tormento e sua responsabilidade, é a de que nao ha limites para o que ele quiser tentar como executante — nao ha limites para seus possiveis experi- mentos, esforgos, descobertas, conquistas. E especial- mente neste ponto que ele trabalha, passo a passo, como / o seu amigo do pincel, de quem sempre dizemos que pinta da melhor maneira que conhece. Seu estilo é seu segredo, nao necessariamenre um de dar inveja. Ele nao. poderia reveld-lo em termos genéricos se quisesse; estaria perdido se quisesse ensind-lo a outros. Digo isso com a devida lembranga de que insisti na similaridade do mé- todo do artista que pinta um quadro e o que escreve um romance. O pintor é capaz de ensinar os rudimentos de _ seu oficio; ¢ é possivel, com o estudo das boas obras (ha- vendo a aptidéo), tanto aprender a pintar como a escre- ver. No entanto, continua sendo verdade, sem injiria ao rapprochement, que o artista literdrio seria obrigado a di- zer para seu discipulo, mais do que 0 outro, “Ah, bem, faca como vocé puder!” E uma diferenca de graduacao, uma questéo de delicadeza, Se existem ciéncias exatas, também existem artes exatas, e a gramatica da pintura ¢ tao mais definida que isso faz diferenga. Tenho de acrescentar, entretanto, que se o Sr, — Besant diz no comeco de seu ensaio que “as leis da | ficcao podem ser estabelecidas ¢ ensinadas com tanta ee precisdo e exatid4o quanto as leis da harmonia, pers- pectiva € propor¢4o”, ele amortece o que poderia pare- cer uma extravagancia ao aplicar sua observac4o a re- gras “gerais” ¢ ao expressar a maioria dessas regras de um modo do qual certamente seria incémodo discor- dar. Que © romancista deve escrever a partir de sua experiéncia, que seus personagens “devem ser reais ¢ tais que poderiam ser encontrados na vida real”; que “uma jovem criada numa calma aldeia eeiipesiec deve impedir descrigées de uma vida luxuosa” ¢ “um escri- tor cujos amigos e experiéncia pessoal pertencem 4 classe média baixa deve introduzir cuidadosamente seus personagens na sociedade”; que se devem colocar as préprias notas em um livro de citagées; que as figu- ras devem ter contornos claros; que fazé-los claros por algum truque de linguagem ou de procedimento é um mau método, e “descrevé-las longamente” é pior ainda; que a Fiegao Inglesa deve ter um “propésito moral cons- ciente”; que é “quase imposs{vel estimar em excesso 0 valor do artesanato cuidadoso — isto 6, o estilo”; que “o ponto mais importante é a histéria”, que “a histéria é tudo”: esses s40 principios com a maioria dos quais é certamente impossivel nao simpatizar. A observacéo sobre o escritor de classe média baixa e sobre ele saber seu lugar talvez seja um tanto cruel; mas, quanto As restantes, acho dificil discordar de qualquer uma. Ao mesmo tempo, acho dificil aderir a elas, com excecio, talvez, da que fala sobre colocar notas préprias em um livro de citagées. Elas pouco me parecem ter a qualidade que o Sr, Besant atribui as regras do romancista — a “precisao e exatidao” das “leis de harmonia, perspectiva © propor¢ao”. Sao sugestivas, até mesmo inspiradoras, mas n4o sao exatas, embora elas possam ser, dependendo do caso — 0 que é uma prova da liberdade de interpre- taco que defendi. Pois o valor dessas diferentes obser- vagées — tao belas e tao vagas — esta todo no significado que cada um der a elas. As personagens, a situagio que assustam alguém por sua realidade serao as que mais o tocarem ¢ interessarem, mas a medida da realidade é dificil de fixar. A realidade de Dom Quixote e do Sr. Micawber é uma sombra muito delicada; é uma reali- dade tao colorida pela visio do autor que, por mais vi- vida que seja, hesita-se em propé-la como um modelo: perguntas muito embaragosas poderiam ser feitas pelo discipulo. Nem € preciso dizer que voté nao*vai_escre- _ ver um bom romance se nao possuir um senso de reali-_ dade; mas sera dificil Ihe dar uma receita de como dar existéncia a esse senso. A humanidade ¢ imensa, ¢ a__ realidade tem uma miriade de formas: o casi ae se odor dela, outras ni nao; is nao; jd ieee a aeprincipio como o Ge: qué deve ser composto, é outro assunto. E igualmente excelente e inconclusivo dizer que se deve escrever a partir da experiéncia; para nosso hipotético aspirante, tal declaragao pode ter sabor de zombaria. Que tipo de experiéncia é pretendida, e onde ela comega e termina? A experiéncia nunca é limitada e nunca ¢ completa; ela € uma imensa sensib vilidade, uma espécie de vasta teia fina seda, suspensa_no quarto de _ nossa consciéncia, apanhando qualquer particula do ar_ em seu tecido. Ea propria atmosfera da mente; ‘amente €1 é ‘imaginativa — muito mais quando « acontece de ela ser a mente de um génio ela leva para si mesma os de aranha, da m: mais (énues vestigios de vida, ela converte as prop ias ty pulsagdes do ar em revelagdes. A jovem que foi criada na aldeia tem de ser apenas a donzela com a qual nada se perde quando se faz parecer injusto (como me pare- ce) que ela declare nada ter a dizer sobre os militares. JA se Viram. milagres maiores que, coma ajuda da imagina- g4o, o de alguém como ela falar a verdade sobre alguns desses cavalheiros. Lembro-me de uma romancista in- glesa, uma mulher de talento, dizendo-me que estava muito satisfeita com a impressao que conseguiu dar em uma de suas histérias sobre a natureza ¢ modo de vida da juventude protestante francesa, Perguntaram-lhe onde aprendeu tanto sobre essas pessoas tao recondi- tas, deram-lhe parabéns por ter tido oportunidades tao peculiares. Essas oportunidades consistiam no fato de ela ter, uma vez em Paris, ao subir uma escada, passado por uma porta aberta onde, na casa de um pasteur, alguns jovens protestantes estavam sentados ao redor de uma mesa, ao fim da refeicdo. O olhar de relance constituiu uma pintura; durou apenas um instante, mas esse instante foi experiéncia. Ela teve uma impressio pessoal direta, e extraiu seu modelo. Sabia que juven- tude era aquela, e que protestantismo; também tinha a vantagem de ter visto o que era ser francés, de modo que ela converteu essas ideias numa imagem concreta e produziu uma realidade. Acima de tudo, no entanto, ela foi abengoada com a faculdade de quem recebe uma mo e obtém um brago, ¢ que para o artista é uma fonte de poder maior do que qualquer acidente como o lugar de residéncia ou a posi¢4o social. O poder de adivinhar 0 nao visto do visto, de tragar a implicagao das coisas, de julgar toda a pega pelo padrao, a condigao de sentir a vida em geral tao completamente que vocé se sente ” disposto a conhecer cada canto dela — esse actimulo de capacidades pode quase ser chamado de experiéncia, e ocorre na cidade ou no campo, e nos mais diversos estdgios de educacao. Se a experiéncia consiste em im- press6es, pode-se dizer que as impresses sdo experién- cia, jA que (nao é o que vimos?) sio o préprio ar que respiramos. Portanto, se eu dissesse a um novato: “Escreva a partir da experiéncia e s6 dela”, sentiria que se trata de uma adverténcia tantalizante se nao acres- centasse imediatamente: “Tente ser uma das pessoas com quem nada se perde!” Longe de mim pretender com isso minimizar a importancia da exatidao — da verdadedo degalhe. Cada um fala melhor daquilo que prova, entao posso me ar- riscar a dizer que o ar de realidade (a solidez da especi- ficagao) parece-me ser a suprema virtude do romance —o mérito do qual todos os outros méritos (inclusive o propésito moral consciente, de que o Sr. Besant fala) inevitdvel e submissamente dependem. Se ele nao existe | os outros nao s4o quase nada, ¢ se estes existem devem seu efeito ao sucesso com que o autor produziu a ilusao de vida. O cultivo desse sucesso, o estudo desse exce- lente processo formam, para 0 meu gosto, 0 comego € o fim da arte do romancista. Sao sua inspiragdo, seu | desespero, sua recompensa, seu tormento, sua delicia. E aqui, na verdade mesma, que ele compete com a vida; € aqui que ele compete com seu irm4o, o pintor, na sua tentativa de produzir a viséo das coisas, a visio que comunica o significado delas, de captar a cor, 0 relevo, a expressao, a superficie, a substancia do espeta- culo humano. E por isso que o Sr. Besant esta bem-inten- cionado quando diz ao autor para tomar notas. Talvez — 24 cle nao possa tomar muitas, talvez nao possa tomar as suficientes. A vida toda o solicita, e “produzir” a mais simples superficie, conseguir a mais momentanea ilusao, ¢um negécio muito complicado. Seu trabalho seria mais facil, e a regra mais exata, se o Sr. Besant tivesse sido capaz de lhe dizer que notas tomar. Mas isto, receio, ele nunca poderd aprender em qualquer manual; é 0 objetivo de sua vida. Ele tem de tomar muitas notas a fim de selecionar umas poucas, tem de retrabalhd-las como puder, e mesmo os guias e filésofos que poderiam ter muito a lhe dizer devem deixd-lo sozinho quando chega a hora de aplicar os preceitos, como se deixa o pintor em*comunhdo com sua paleta. Que seus personagens “devem ter contornos claros”, como diz o Sr. Besant — ele sabe disso em seu 4mago; mas como deve fazer isso é um segredo entre seu anjo da guarda e ele mesmo. Seria absurdamente simples se a ele fosse ensinado que ‘uma grande quantidade de “descri¢do” os faria assim, ou que, ao contrario, a auséncia de descric¢do € o culti- vo do didlogo, ou a auséncia de didlogo ¢ a multiplica- 40 dos “incidentes”, o salvaguardariam das dificulda- des. Nada, por exemplo, é mais possivel do que ele ter um tipo de mente para a qual essa oposigdo bizarra e literal entre descricdo e didlogo, incidente e descrig4o tem pouco significado e luminosidade. As pessoas ge- ralmente falam dessas coisas como se elas tivessem uma espécie de distingao intrinseca, em vez de se mistura- rem umas as outras a cada respiragdo e serem partes intimamente associadas de um esforgo de expressao ge- ral. Nao posso imaginar a composicao existindo em uma série de blocos nem conceber, em qualquer romance que valha a pena discutir, uma passagem de didlogo que nao tenha intengao descritiva, um toque de verdade que nao partilhe da natureza dos incidentes, ou um incidente que derive seu interesse de qualquer outra fonte que a fonte tinica e genérica do sucesso de uma obra de arte — a de ser ilustrativa. Um romance é uma coisa viva, e 4 medida vive sera vi i em cada uma de suas partes ha alguma coisa das outras. lho acabado, pretenda tragar uma geografia dos itens marcard algumas fronteiras tao artificiais quanto, acre- dito, qualquer uma das conhecidas pela histéria, H4 uma velha distingdo entre o romance de personagem e o romance de incidente que deve ter provocido muito sorriso nos fabulistas conscientes que gostam de seu tra- balho, Essa é uma distingdo téo pouco significativa para mim quanto a igualmente celebrada distingdéo entre “novel” e “romance” — pouco corresponde a realidade alguma. Ha bons e maus romances, assim como boas e mas pinturas; mas esta é a tinica distin¢do em que vejo algum sentido, pois nao posso me ver falando em romance de personagem assim como néo posso me ver falando em pintura de personagem. Quando alguém diz. pintura, diz pintura de personagem; quando diz romance, diz romance de incidente, e os termos podem ser trocados avontade. O que é um personagem sen4o a determinagao do incidente? O que ¢ um incidente sendo a ilustragdo do personagem? O que sao uma pintura ou um romance que ndo sejam de personagem? O que mais procuramos e encontramos neles? E um incidente para uma mulher que ela esteja em pé, com a mfo apoiada sobre uma mesa, e olhe vocé de um certo modo; ¢ se ndo é um incidente acho que ser dificil dizer o que é. Ao mesmo tempo é a expresso de um personagem. Se vocé disser que nao vé isso (um personagem nisso — allons done!), eis por que o artista que tem suas préprias raz6es para achar que vé isso deve ‘mostrar a vocé, Quando um jovem conclui que nao tem fé bastante para entrar na igreja como pretendia, isso é um incidente, ainda que vocé nao vd se apressar em dire¢do ao final do capitulo para ver se talvez ele nado mude de ideia de novo. Nao estou dizendo que esses sejam incidentes extraordindrios ou surpreendentes. Nao tenho a pretensao de avaliar o grau de interesse procedente deles, pois isso dependera da habilidade do pintor. Soa pueril dizer que alguns indidentes sao intrinsecamente muito mais importantes que outros, e preciso tomar essa precaugdo depois de ter professado minha simpatia pelos incidentes maiores ao observar que a tinica classificagio do romance que posso entender é a de ele rer-vida-ou-nao. “Novel” e “romance”, o romance de incidente ¢ 0 de personagem — essas separagées grosseiras me pare- cem ter sido feitas por criticos ¢ leitores para sua pré- pria conveniéncia, e para ajudd-los em algumas situa- goes eventualmente problematicas, mas me parecem ter pouco interesse ou realidade para o criador, de cujo ponto de vista estamos tentando considerar a arte da ficgao. O caso é 0 mesmo em outra categoria nebulosa que o Sr. Besant aparentemente esta disposto a estabe- lecer —-a do “romance inglés moderno”; a nao ser, cer- tamente, que ele tenha cafdo numa acidental confusao de pontos de vista. Nao estd claro se ele pretende, com as observagées em que alude a essa categoria, ser did4- tico ou histérico. E tao dificil imaginar uma pessoa pretendendo escrever um inglés moderno quanto ima- gind-la pretendendo escrever um romance inglés antigo: este € um rétulo questiondvel. Escreve-se um romance, pinta-se um quadro, com a linguagem de seu tempo, ¢ chamda-la de inglés moderno n4o tornard a tarefa mais facil. Tampouco, infelizmente, chamando este ou aquele trabalho artistico de “romance” ~ a no ser, claro, queseja pelo prazer de fazé-lo, como quando Hawthorne assim qualificou seu romance Blithedale. O's franceses, que deram 4 teoria da ficgdo uma notavel completude, tém. apenas um nome para o romance, e nem tentaram destacar nele coisas menores, que eu saiba, para esse fim. Nao vejo nenhuma obrigacao que o “romancer” tenha que o “novelist” nao tenha; o padrao de execugao é igualmente alto para os dois. E claro que estamos falando de execuc’o — sendo este o tinico ponto de um romance que est4 aberto 4 disputa. Talvez se perca muito isso de vista, o que s6 produz intermindveis confusées e mal-entendidos. Deve-se garantir ao artista seu assunto, sua ideia, sua donnée: a critica deve ser aplicada apenas ao que ele faz disso. Naturalmente nao” estou dizendo que estamos inclinados a gostar disso ou achar aquilo interessante: se ndo estamos, nossa atitude” deve ser simples — abandond4-lo, Podemos acreditar que de uma determinada ideia, mesmo o mais sincero~ romancista nada fard, e o fato poderd justificar perfeita- _ mente nossa crenca; mas a faléncia terd sido uma fa-~ léncia na execugio, ¢ é nela que a fraqueza fatal estara registrada. Se pretendemos realmente respeitar o artista, © devemos permitir sua liberdade de escolha, mesmo apesar, ” em certos casos, de intimeras presungées de que a op¢ao nao dard frutos. A arte deriva uma parte considerdvel — de seu exercicio benéfico de enfrentar as presungées, 23 i e algumas das experiéncias mais interessantes de que ela é capaz estao ocultas no seio das coisas comuns. Gustave Flaubert escreveu uma histéria sobre a devo- cdo de uma empregada a um papagaio, ¢ o resultado, altamente acabado como é, nao pode ser, de todo, chamado de um sucesso. Somos perfeitamente livres para considerd-lo superficial, mas eu o acho interes- sante; € estou extremamente feliz por ele té-lo escrito; é uma contribuicéo para o nosso conhecimento do que pode ser feito — ou do que nao pode. Ivan Turgueniev escreveu um conto sobre um servo surdo e mudo e um cachorro vira-lata, e o resultado é tocante, adoravel, uma pequena obra-prima. Ele fez soar a nota da vida onde Gustave Flaubert a deixou escapar — ele enfren- tou uma presun¢ao e a venceu. Nada, claro, vai em algum dia tomar o lugar da velha e boa moda do “gostar” de uma obra de arte ou nao gostar dela: a critica mais evoluida no abolira esse teste primitivo, final. Menciono isso para me pro- teger da acusacao de sugerir que a ideia, o assunto, de um romance ou pintura néo importa. Importa, a meu ver, no mais alto grau, ¢ se pudesse pregar uma regra ela seria a de que os artistas devem selecionar apenas os assuntos mais ricos. Alguns, como ja reconheci ante- cipadamente, séo muito mais recompensadores que outros, ¢ este seria um mundo mais feliz se as pessoas que pretendessem tratar deles estivessem isentas de confusdes ¢ equivocos. Essa condicao afortunada s6 chegard, receio, no mesmo dia em que os criticos se purgarem de erros. Entretanco, repito, nao julgamos o artista com justiga se no lhe dizemos, “Eu lhe legitimo © ponto de partida, porque se nao o fizesse estaria 29 prescrevendo regras a vocé, ¢ Deus me livre dessa respon- sabilidade. Se tenho a pretensdo de lhe dizer o que nao fazer, entao vocé me chamard para dizer 0 que fazer; e nesse caso estarei encrencado, Além disso, é s6 depois | que recebo suas informagdes que posso avalid-lo. 7 Tenho um modelo, um registro; nao tenho o dircitdl de mexer na sua flauta e entéo criticar sua musica, Claro que nao devo me preocupar com sua ideia, de. modo algum; ela pode ser tola, antiquada ou obscura; nesse caso lavo minhas maos imediatamente. Devo contentar-me em acreditar que vocé n4o va consegui ser interessante, mas, claro, nao devo tentar demons- trar isso, e vocé serd tio indiferente para copnigo quanto eu para com vocé. Nao preciso lembrar vocé de que existem todas as variedades de gosto: quem saberd qual o melhor? Algumas pessoas, por motivos excelentes, nao. gostam de ler sobre carpinteiros; outras, por motivos me- lhores ainda, nao gostam de ler sobre cortesis, Muito: fazem objecées a americanos. Outros (acredito que seja principalmente editores e editoras) nao olhario para ita- lianos. Alguns leitores nao gostam de assuntos tranquilos; outros n4o gostam dos inquietantes. Alguns gostam de. uma completa iluséo, outros da consciéncia de grandes. privilégios, Escolhem os romances de acordo com isso, S¢ nao se preocupam com seu assunto também nio Preocuparao, a fortiori, com seu tratamento”. ’ Volta-se, assim, rapidamente, 4 questao do gostar, apesar do Sr. Zola, que racionaliza menos poderosa- mente do que representa, e que nao se reconciliaré com. esse absolutismo do gosto, achando que ha certas coisa de que as pessoas devem gostar e de que elas podem ser levadas a gostar. Sinto-me bastante perdido se tiver de 30 imaginar qualquer coisa (em qualquer sentido, quanto a ficgao) de que as pessoas deveriam gostar ou nao. A selegio certamente tomard conta de si mesma, pois tem um motivo constante por tras. Esse motivo é ee cionada a ela. Essa intimidade de relacao nao pode ser esquecida quando se fala no esforgo do romance. Muitas pessoas falam da ficgao como uma forma arti- ficial, facciosa, um produto da engenhosidade, cuja fungao é alterar e arranjar as coisas que nos cercam, traduzi-las em moldes convencionais, tradicionais. Essa, ao entanto, é uma visio que nao nos leva longe, que condena a arte a uma eterna repeti¢ao de uns pou- cos clichés familiares, encurta seu desenvolvimento e nos leva em diregao a um muro letal. Capturar 0 verda- deiro tom e truque, o ritmo estranho ¢ irregular da vida, essa é a tentativa cujo vigor mantém a Ficga’o em pé. A proporg4o que vemos vida no que ela nos oferece sem rearranjos, sentimos que estamos tocando a verdade; & proporcao que a vemos com rearranjos, sentimos que estamos diante de um substituto, uma acomodag¢ao ¢ convengio. Nao é incomum ouvir uma assergao convicta quando se trata dessa questao do rearranjo, do qual fre- quentemente se fala como se fosse a ultima palavra em arte. O Sr. Besant parece-me & beira de cair nesse grande erro com sua conversa um tanto descuidada em torno da “selegio”. A arte é essencialmente selecdo, mas é uma se- lego cuja preocupag’o central é ser tipica, ser inclusiva. Para muitos, arte significa janelas réseas, e selegao signi- fica pegar um buqué para a Sra. Grundy. Eles vao lhe dizer loquazmente que consideragées artisticas nada 31 tém a ver com o desagradavel, com o feio; vao gritar lugares-comuns vazios sobre a provincia da arte e os limites da arte até que vocé sinta certo maravilhamento, em compensa¢do, quanto 4 provincia e aos limites da | ignordncia. Parece-me que jamais alguém conseguiu fa- 7 zer uma tentativa seriamente artistica sem se tornar | consciente de um incrivel aumento — uma espécie de! revelacéo — da liberdade. Percebe-se nesse caso — sob a” luz de um raio solar ~ que a provincia da arte é toda vida, toda sentimento, toda observacio, toda visdo. Como o Sr. Besant téo justamente sugere, ¢ tod experiéncia. Essa é uma resposta suficiente para os que sustentam que ela nao deva tocar as*parte#mais tristes'| da vida, os que enfiam em seu peito divinamente in-” consciente pequenas inscrigées proibitérias na ponta de | estacas, como se vé em jardins ptiblicos “E proibido pix sar a grama; E proibido tocar nas flores; Nao é permitida aentrada de cAes ea permanéncia até a noite; Mantenha-se_ 4 direita”. O jovem aspirante na linhagem da fic que continuamos a imaginar nao faré nada sem_ experimentar, pois nesse caso a liberdade seria de po uso para ele; mas a primeira vantagem de sua experiéncl é revelar a ele o absurdo das pequenas inscricées e thetes, Se ele tiver gosto, devo acrescentar, certame: terd engenhosidade, ¢ minha recente referéncia des respeitosa a essa qualidade nao queria dizer que ela’ fosse inttil na ficcao. Mas trata-se de um recurso ape=" nas secundario; o primeiro é a capacidade para receber” impressées diretas. i O Sr. Besant tem algumas observagées sobre a” questo da “histéria” que no tentarei criticar, embora me paregam ter uma singular ambiguidade, porque a> acho que néo as entendo. Nao entendo o que ele quer dizer quando fala como se uma parte do romance fosse a histéria e a outra, por misticas razGes, nao fosse — a nao ser, de fato, que a distingdo seja feita no sentido de que é dificil supor que alguém tente comunicar algo. “A histéria”, se representa alguma coisa, repre- senta o assunto, a ideia, a donnée do romance; € certa- mente nao ha nenhuma “escola” — o Sr. Besant fala em uma escola — que proclame que um romance deva ser todo tratamento e nao assunto. Seguramente deve haver algo do que tratar; todas as escolas estao intima- mente conscientes disso. Essa nogao da histéria como sendp uma ideia, o ponto de partida do romance, é a tinica coisa que entendo que se possa falar como algo diferente de seu todo orginico; e, j4 que o trabalho é bem-sucedido 4 medida que a ideia o permeia e pene- tra, o informa e anima, cada palavra e cada pontuagio contribuem diretamente com a expressao, e da mesma forma perdemos nosso sentido da histéria como uma _ espada que pode ser mais ou menos tirada de sua bai- _ nha. A histéria e o romance, a ideia e a forma, sio a _agulha ¢ o fio, e nunca ouvi falar de alfaiates que reco- mendem o uso do fio sem a agulha, ou da agulha sem © fio. O Sr. Besant nao é o tinico critico a ter falado como se houvesse coisas na vida que constituem histé- tlas ¢ outras que nfo. Encontro a mesma concluséo _ esquisita num interessante artigo na Pall Mall Gazette, _ dedicado, como séi, A palestra do Sr. Besant. “A histéria _ é0 essencial!”, diz o gracioso escritor, como num tom _ le oposicao a alguma outra ideia. Eu deveria pensar que ¢ isso mesmo, assim como o pintor, na hora em que se prepara para “mergulhar” em sua pintura, olha 33 para o infinito, em busca de algum assunto — com o qual qualquer artista ainda indeciso sobre seu tema certamente concordard. Ha assuntos que falam a nés e outros que nao, mas seria um homem mais esperto aquele que se submetesse a estipular uma regra — um index expurgatorius — pelo qual se distinga a histéria da | nao historia. E impossivel (ao menos para mim) ima- | ginar uma tal regra que no seja arbitréria. O escritor 1 na Pall Mall opée o delicioso (como suponho) roman- | ce Margot La Balafrée a certos contos em que “ninfas | bostonianas” parecem ter “rejeitado duques ingleses | por razées psicolégicas”. Nao estou familiarizado com/ o romance mencionado, ¢ mal posso-perdgar o critica da Pall Mall por nao ter citado o nome do autor, mas” o titulo parece se referir a uma dama que teria ga-/ nhado uma cicatriz numa aventura heroica. Nao po me consolar por nao conhecer o episédio, mas me sin” to terrivelmente perdido ao tentar explicar por que ele” é uma histéria quando a rejeicao (ou aceitagao) de duque nao é, ¢ por que uma razao, psicoldgica ou outro tipo, nao é um assunto quando uma cicatriz 0 Todos eles sio partes de uma vida miltipla com a qual o romance lida, ¢ certamente nenhum dogma que p! e- tenda legitimar a abordagem de um e nao a do out ficard em pé por mais de um instante. E a pintura es pectfica que fica em pé ou cai, 4 medida que parece verdadeira ou nao. O Sr. Besant, a meu ver, nao il mina © assunto ao sugerir que uma histéria deva, a pens de nao ser uma histéria, consistir em “aventus) ras”, Por que aventuras ¢ nao um par de éculos ve! Ele menciona uma categoria de coisas impossiveis, ¢ entre elas p6e “ficgao sem aventura”. Por que sem 34 aventura, e ndo sem casamento, sem celibato, sem par- to, sem célera, sem hidropatia, sem jansenismo? Isso me parece trazer o romance de volta para o réle peque- no e infeliz de ser uma coisa artificial, engenhosa — ti- ra-lo de sua natureza livre e imensa que é ser uma am- pla e notavel correspondéncia com a vida. E o que é aventura, por falar nisso, ¢ por que sinal deve o aluno- -ouvinte reconhecé-la? E uma aventura — uma enorme aventura — para mim escrever este pequeno artigo; ¢ para uma ninfa bostoniana rejeitar um duque inglés é uma aventura menos excitante apenas, devo dizer, do que para um duque inglés ser rejeitado por uma ninfa bosgoniana. Vejo dramas dentro de dramas, e inume- raveis pontos de vista. Uma razdo psicolégica é, para minha imaginagao, um objeto adoravelmente pictéri- co; captar as tintas de sua complexidade — sinto que essa ideia pode inspirar alguém a esforgos ticidnicos. Ha poucas coisas mais estimulantes para mim, em suma, do que uma raz4o psicoldégica, e além disso, afirmo, 0 romance me parece ser a mais magnifica forma de arte. Li recentemente, ao mesmo tempo, a deliciosa histéria de A Ilha do Tesouro, do Sr. Robert Louis Stevenson, e, de maneira menos consequente, o ultimo relato do Sr. Edmond de Goncourt, que se chama Cherie. Um desses trabalhos trata de assassinatos, mistérios, ilhas de reputa- gho assombrosa, fugas assustadoras, coincidéncias mira- culosas e dobrées enterrados. O outro trata de uma pe- quena garota francesa que vivia numa agradavel casa em Paris ¢ morreu com a sensibilidade ferida porque nin- | guém quis se casar com ela. Chamei A Ilha do Tesouro de delicioso, porque me parece ter se sucedido maravi- Ihosamente bem em sua intengdo; e ouso néo conferir 35 nenhum epfteto a Chérie, que me parece ter falhado deploravelmente em sua intengdo — ou seja, tragar 0 ~ desenvolvimento da consciéncia moral de uma crianga. a Mas cada um deles me surpreende como romance tan- — to quanto o outro, € por ter a mesma quantidade de “histéria”. A consciéncia moral de uma crianga € tio parte da vida quanto as ilhas espanholas, ¢ um tipo de! geografia me parece conter tantas daquelas “surpresas” de que o Sr. Besant fala quanto o outro. Para mim Gj que sempre se termina, como dito, na preferéncia indi+ | vidual), a imagem da experiéncia da crianga tem a vanta~ gem de que posso, em passos sucessivos (uma volipia imensa, préxima ao “prazer sensual” do quaba critica Pall Mail fala), dizer Sim ou Nao, como quer que sej diante do que o artista dispde diante de mim. Fui w crianca na realidade, mas sé procurei por um tesoura™ escondido na suposigao, e foi apenas um acidente que’ com o Sr. de Goncourt eu tenha precisado dizer Nao maior parte do tempo. Com George Eliot, quz quando pintou aquele campo com uma inteligéncia b bem tinta, eu sempre < disse Sim. A parte mais interessante da palestra do Sr. Besant infelizmente a passagem mais curta — sua alusao bastante breve ao “propésito moral consciente” do romance. / 1 novamente nao est claro se ele esta registrando um 4 ou estabelecendo um principio; é uma grande pena q 7 no tiltimo caso, ele nao tenha desenvolvido a ideia. Esse ramo do assunto é de imensa importancia, € as poucas! palavras do Sr. Besant apontam para consideragées maior alcance, que devem ser levadas a sério. Tera tras tado com superficialidade a arte da ficcao quem nao" estiver preparado para avangar um pouco que seja nao 36 diregao a que o levam essas consideragées. E por esse motivo que no inicio destas observagées tive o cuidado de avisar ao leitor que minhas reflexGes sobre um assunto tao vasto nao tinham pretens4o de esgotd-lo. Como o Sr. Besant, deixei a questao da moralidade do romance para o final, e no final vi que meu espaco se acabava. E uma questao cercada de dificuldades, como pode teste- munhar quem nos encontra, sob a forma de uma per- gunta definitiva, dentro das trincheiras. Vagueza, em tal discussao, é fatal, e qual é o sentido da sua morali- dade e do seu propésito moral consciente? Vocé nao definird seus termos e explicard como (um romance sendo uma pintura) uma pintura pode ser moral ou imoral? Vocé deseja pintar um quadro moral ou escul- pir uma estétua moral: nao quer nos dizer como fard isso? Estamos discutindo a Arte da Ficcao: quest6es ar- tisticas sio questées (no sentido mais amplo) de execu- - 640; questées morais s4o outro assunto, ¢ vocé nao nos deixard ver como pode achar tao facil mistur4-las? Essas coisas s4o t4o claras para o Sr. Besant que ele deduziu delas uma lei que vé encarnada na Ficgao Inglesa, ¢ que é “uma coisa realmente admiravel ¢ um grande motivo de congratulagao”. E realmente um grande motivo de congratulagao quando problemas tao espinhosos se tornam tio macios quanto seda. Devo acrescentar que, enquanto o Sr. Besant acha que a Ficgao Inglesa se di- rigiu preponderantemente para essas questées delica- das, parecerd a muita gente ter feito apenas uma va des- coberta. Essas pessoas ficarao positivamente surpresas, ao contrario, com a timida moral do romancista in- glés médio; com a aversao dele (ou dela) a enfrentar as dificuldades que por todos os lados o lidar com a rea- a7 lidade suscita. Ele € apto a ser extremamente timido (ao passo que a imagem que o Sr. Besant faz é uma de coragem) e o signo de seu trabalho, na maior parte, é um siléncio prudente sobre certos assuntos. No ro- mance inglés (no que também incluo o americano, i claro), mais do que em qualquer outro, hd uma di- ferenca tradicional entre o que as pessoas sabem e 0 © que elas concordam em admitir que sabem, entre o- que veem ¢ o de que falam, entre o que sentem ser parte da vida e o que permitem entrar na literatura. | Ha uma grande diferenca, em resumo, entre 0 que elas abordam em conversas ¢ o que elas conversam por | escrito. A esséncia da energia moral éypesquisar 0 cam- — po todo, e devo reverter a observacio do Sr. Besant e | dizer nao que a Ficgdo Inglesa tem um propésito, mas _ que tem um acanhamento. Em que medida um pro- | pésito numa obra de arte é uma fonte de corrup¢cao | nao tentarei saber; o que me parece menos perigoso é — © propésito de fazer uma obra perfeita. Quanto ao | nosso romance, devo dizer enfim que o que nesse sen- tido encontramos na Inglaterra hoje me surpreende 4 por se dirigir em larga escala aos “jovens”, ¢ que isso, por si, faz presumir que ela seja um tanto timida. Isso certo, mas a auséncia de discusséo néo é um sintoma _ de paixio moral. O propésito do romance inglés — © “uma coisa realmente admirdvel e um grande motivo | de congratulagao” — me surpreende, portanto, de © modo bastante negativo. a Ha um ponto em que o sentido moral ¢ o sen- tido artistico se aproximam muito; e isso sob a luz | bastante ébvia de que a qualidade mais profunda de. 33 uma obra de arte sempre ser4.a qualidade da mente do criador. A medida que essa inteligé: es romance, a pintura e a escultura participam da subs- tancia de beleza e verdade. Ser constituido de tai mentos é, a meu ver, ter propésito bastante. Nenhum bom romance jamais vira de uma_mente esse me parece um axioma que, 9 arti fice’ cobrird todo 0 terreno moral necessério: se o joven aspirante o assumir com paixao ele he iluminard mui- tos dos mistérios do “propdsito”. Ha muitas outras coisas titeis que podem ser ditas para ele, mas cheguei ao fim do meu artigo ¢ sé posso tocar nelas de passa- gein. O critico na Pall Mall Gazette, que ja citei, cha- ma ateng4o para o perigo, ao falar na arte da fic¢do, de generalizar. O perigo que ele tem em mente é antes, creio, o de particularizar, pois ha algumas observagées abrangentes que, além das presentes 4 sugestiva pales- tra do Sr. Besant, sem o temor de desvirtuar suas ideias podem ser enderegadas ao estudante engenhoso. Devo lembrd4-lo primeiro da magnificéncia da forma que se abre diante dele, que oferece 4 vista tio poucas restri- g6es e tio numerosas oportunidades. As outras artes, em compara¢ao, recém-confinadas e embaragosas; as variadas condigées sob as quais sao exercidas sao rigi- das e definidas. Mas a tinica condigéo que posso pen- sar associada 4 composigéo do romance é, como ja disse, a de que seja sincera. Essa liberdade é um privi- légio espléndido, ¢ a primeira li¢ao do romancista é estar a altura dela, “Aproveite-a como ela merece”, eu lhe di- ria; “tome posse dela, explore-a até a ultima con- sequéncia, publique-a, regozije-se nela. Toda vida lhe pertence, e ndo dé ouvidos nem para os que o querem 9 fech4-lo num canto dela ¢ lhe dizem que a arte reside apenas aqui ou ali, nem para os que alegam que esse mensageiro dos céus faz seu caminho por fora da vida, respirando um ar super-rarefeito, € virando o-frosto para © a verdade das coisas.” Nao ha impressio da vida, ne- | nhuma maneira de vé-la ou senti-la, a que o projeto do” romancista nao possa dar lugar; voce tem apenas de Jembrar que talentos tao dessemelhantes como os de = Alexandre Dumas e Jane ‘Austen, Charles Dickens € q Gustave Flaubert atuaram nesse campo com igual glo- — ria. Nao pense tanto em otimismo ou pessimism; — experimente € capture © colorido préprio da vida. Na | Franca hoje vemos um esforco prodigioso (o de Emile 7 Zola, a cujo trabalho sdlido e sério nenhum &plorador ~ da capacidade do romance pode aludir sem respeito), ; vemos um extraordinario esforco viciado pelo espirito | do pessimismo em uma base estreita. O Sr. Zola é mag- | nifico, mas ele espanta um leitor inglés com sua igno- 4 rancia; ele tem um ar de quem trabalha no escuro; se tivesse tanta luz quanto energia, seus resultados seriam / da mais alta valia. Quanto as aberragées de um otimismo j raso, o campo (da fiogio inglesa especialmente) esta coberto de frageis particulas assim como de vidros quebrados. Se vocé quer se perder em conclusdes, deixe-as ter o sabor do | amplo conhecimento. Lembre-se que seu primeiro dever é4 ser tio completo quanto possivel — fazer a obra perfeita. ” Seja generoso € delicado e persiga 0 prémio. Critica Se se pode dizer que a critica lirerdria floresce entre nés agora, certamente ela floresce em grande escala, pois flui pela imprensa como um rio que rompeu os diques. Sua quantidade é prodigiosa, ¢ é uma mercadoria que, por maior que seja a demanda estimada, o suprimento - por certo jamais serd insuficiente. O que mais espanta 0 observador, sobretudo, em tal afluéncia, é a inesperada propor¢ao que © discurso leva para os objetos sobre os quais discorre — a paucidade de exemplos, de ilustragdes ¢ produgées, ¢ 0 dilivio de doutrina suspenso no vacuo; a profusio da conversa ¢ a contragao do experimento, do que se poderia chamar de conduta literaria. Isso, de fato, deixa de ser uma anomalia assim que olhamos para as condicées do jornalismo contemporineo. Entéo vemos que essas condiges engendraram a pratica da “resenha” uma pratica que no geral nada tem a ver com a arte da critica. A imprensa € uma vasta boca aberta que tem de ser periodicamente alimentada— um vaso de enorme capacidade que tem de ser preenchido. E como um trem regular que sai numa hora marcada, mas que s6 pode sair se todos os lugares estiverem ocupados. Os lugares so muitos, 0 trem é consideravelmente longo, e dai a fabricagio de bonecos para as estagdes em que no ha passageiros suficien- tes. Um manequim é colocado no assento vazio, onde passa por uma figura real até o final da jornada. Parece-se bastante com um passageiro, e vocé sé percebe que ele j nao o é quando nota que no fala nem se move. O guarda vai até ele quando o trem para, limpa as cinzas de sua face de madeira e muda a posic4o de seu cotovelo, de” modo que sirva para uma nova viagem. Da mesma for- ma, num jornal bem conduzido, os blocos desremplissage | sio os bonecos da critica — os pontos regularmente | vazios na maré de conversa, Tém uma razdo de ser, ¢ a 7 situa¢do é mais simples quando a percebemos. Ajuda a _ explicar a desproporcao que acabo de mencionar, assim como, em muitos casos, a qualidade desse discurso pe- | culiar. Ajuda a entender que os “érgaos da opinido pie blica” nao devem ser menos copiosos do que pontuais, que a publicidade deve manter seu alto padrao, que as damas ¢ cavalheiros podem pagar um tost4o honesto em vez de gastar tinta, Dé-nos um relance da pilha alta presumivelmente formada por todos os tostes honestos _ acumulados pela causa, e nos langa numa espécie de” fulgor sobre a marcha da civilizagdo e a maneira como ~ organizamos nossas conveniéncias. Desse ponto de vista, ~ pode nos levar até o ponto de nos deixar entusidsticos quanto 4 nossa época. O que é mais calculado para nos © inspirar com justa complacéncia do que a visio de uma — industria nova e florescente, uma refinada economia de producao? O grande negécio da resenha tem, em sua 42 sonora rotina, muitos sinais de satide crescente, muitas das caracteristicas que seduzem alguém a render uma ho- menagem involuntaria 4s bem-sucedidas empreitadas. No entanto, ¢ impossivel negar que existam pessoas que nao se deixam levar pelo espeticulo, que o enca- ram com dividas, que néo veem sendo nebulosamente para onde ele tende a ir, e que néo encontram ajuda para ver nem mesmo diante da grande luz (sobre si mesmo, sobre seu espirito e seus propésitos, entre ou- tras coisas) que se esperava que ele difundisse. “Existe de fato alguma grande luz?”, podemos imaginar os mais inquietos céticos se perguntando, “e sera que o efeito nao é apenas o de um fulgor pretensioso e int- til?” A vulgaridade, a brutalidade, a estupidez que essa apreciada combinagao entre a resenha de segunda mao e nosso maravilhoso sistema de publicidade colocou em circulagéo em tao alta escala pode ser represen- tada, com tal espirito, como uma invengao sem pre- cedentes em favor do enfraquecimento da troca de ideias. O espirito arisco pode se perguntar, sem res- posta 4 mao, qual a fungao na vida de um homem dessa periodicidade de platitude e irrelevancia? Tal es- pirito vai se perguntar como a vida de um homem sobrevive a isso e, sobretudo, o que é mais importante, como a literatura resiste a isso; e se, na verdade, a lite- ratura, de fato resiste e se ndo vai rapidamente desapa- recer sob isso. Os sinais da catdstrofe, no caso, supo- nho que nao serao tao sutis que nao possam ser apon- tados — a faléncia da disting4o, a faléncia do estilo, a faléncia do conhecimento, a faléncia da reflexio. O caso é, portanto, reconhecer com desalento que esta- mos pagando um prego tremendo pela difusao das 43 oportunidades para o profissional das letras; que a multiplicagao de contribuigées para o palavrério pode ser tao fatal quanto uma doenga infecciosa; que a lite- ratura vive essencialmente, nas sagradas profundidades 4 do ser, do exemplo, da luta pela perfeicao; que, como. | outros organismos sensiveis, ela é alramente suscetivel 4 de desmoralizagao, e que nada é mais bem calculado © do que a pedagogia irresponsdvel para fechar-lhe a q boca ¢ os ouvidos. Tornd-la pueril ¢ superficial é retirar dela ar e luz, e a consequéncia de ela persistir em md | companhia é a total perda de sua esséncia. Podemos, | claro, continuar a falar sobre ela, mesmo depois de ela ter se saturado até a morte, ¢ hd bastamte evieléncia de _ que ¢ assim que nossos descendentes ouvirao falar dela, _ Eles, porém, vao aquiescer com sua extingdo. Essa, estou ciente, é uma conviccao desanimadora, € nao pretendo colocar a coisa em termos alegres. O mdximo que posso dizer é que ha lugares e épocas que uma Pessoa sente como menos desesperadores do que outros. Um dos lugares é Paris, e uma das épocas € qualquer ocasidéo em que seja confortavel estar 14. O 4 costume da resenha tosca e imediata é, entre os france- ses, muito menos enraizado do que entre nds, ea dig- nidade da critica é, a meu ver, consequentemente maior, A arte é sentida como uma das mais dificeis, delicadas, eventuais; e o material sobre o qual ela é exercida é su- jeito a selecao, a restrigao. Ou seja, estejam franceses sempre certos ou nado no que escolhem noticiar, eles me surpreendem por serem infaliveis no que escolhem nao noticiar. Publicam centenas de livros que nio sio nem sequer anunciados, e no entanto existem l4 muito mais fabricantes de livros do que aqui. E sabido que a4 tais volumes nada tém a dizer ao senso critico, que nao pertencem 4 literatura, ¢ que a posse de um senso critico é justamente o que torna impossivel lé-los ¢ estéril dis- cuti-los — e os coloca, como parte da experiéncia criti- ca, fora de questao. O senso critico, na Franga, ne se dérange pas, como eles dizem, por tao pouco. Ninguém negaria, por outro lado, que quando ele se pée em movi- mento vai além do que entre nés. Manipula o assunto, em geral, com dedos mais refinados. A aspereza do nosso, como utensilio manual dirigido a um processo de exceléncia, é ainda surpreendente As vezes, mesmo depois de exibig4o tao frequente. Entramos e saimos de seusexercicio como se ele fosse uma estacao de trem —a mais facil e publica das artes. Na realidade, é a mais complicada e particular. O senso critico esta tao longe” de ser frequente que é absolutamente raro, ea posse do arsenal de qualidades que ele exige ¢ uma das mais altas distingées. E um dom inestimavelmente precioso e bo- nito; portanto, afora o fato de que ele passa demais de mao em mao, sabe-se que basta ficar durante uma hora observando-o para yer que ele é feito com a moeda mais barata. Temos professorzinhos demais; no entanto, nao s6 afirmo na literatura a alta utilidade da critica, mas também me sinto tentado a dizer que a parte que ela representa talvez seja a mais benéfica quando ela vai as profundezas, combinando eficientemente experiéncia e percepcao. Sob esse angulo vé-se o critico como o verdadeiro auxiliar do romancista, um guia de tocha 4 mao, o intérprete, o irmao. Quanto mais o tom é no- tado e a dire¢ao observada, mais nos aproveitamos da conveniéncia de uma literatura critica. Quando se pensa na capacidade de trabalho livre requerida para esse espirito, 45 pode-se render qualquer homenagem A inteligéncia que © pés a caminho; e quando se pensa na nobre figura, completamente equipada — armada cap-d-pie de curio- sidade e simpatia —, venera-se tal aparicio. Ela certa- mente representa o cavaleiro que permaneceu ajoe-— lhado durante toda sua vigilia e que tem a compaixio _ do seu oficio. Pois ha algo de sacrificio nessa funcao, © conquanto ela se oferega como pedra de toque. Dedicar-se, projetar-se e devotar-se, sentir e sentir até compreender, — ¢ compreender tao bem até que possa dizer, ter percepgio | no auge da paix4o ¢ ter expressio tio abrangente quanto _ o ar, ser infinitamente curioso e incorrigivelmente pa- | ciente, € no entanto maledvel e inflamével e determind- vel, humilhando para conquistar e servindo para con- duzir — essas sio chances unicas para uma mente ativa, | que acrescentam a ideia de beleza independente a con- ” cepgio do sucesso. Exatamente na medida em que é- sensivel e incansavel, na medida em que reage e rebate 4 ¢ aprofunda, o critico é um instrumento valioso; pois | na literatura, seguramente, a critica é 0 critico, assim, j como a arte é o artista; pois, seguramente, foi o artista — que inventou a arte e o critico que inventou a critica, e— nao o contrario. ig E ocorre com os tipos de critica o mesmo que 4 9ocorre com os tipos de arte—o melhor tipo, o tinico de — que vale a pena falar, é 0 que nasce da mais viva expe- riéncia. HA centenas de rétulos e etiquetas, em toda €ssa questéo, que foram atribuidas de fora ¢ parecem — existir para a conveniéncia dos passantes; mas 0 critico — que vive dentro da casa, andando por seus inumerdveis quartos, nada sabe sobre os cartazes A porta. Ele apenas sabe que, quanto mais impressées ele tiver mais capaz 46 serd de registrar, e que quanto mais saturado estiver, coitado, mais poderd dar aos outros. Sua vida, nesse sentido, é heroica, porque é imensamente vicdria. Ele tem de entender pelos outros, responder pelos outros; estd sempre armado. Sabe que toda a honra da questao, para ele, além do sucesso a seus proprios olhos, depende de que seja infatigavelmente flexivel, ¢ essa é uma missao formidavel. Nao me deixem falar, no entanto, como se seu trabalho fosse uma opera¢4o consciente, pois o senso de esforgo é facilmente dispensado no entusiasmo da curiosidade, Toda vocagao tem suas horas de intensi- dade, a qual € tao intimamente ligada a vida. A do cri- tio, na literatura, é duplamente ligada, porque lida com a vida em segunda mo assim como em primeira; ou seja, ele lida com a experiéncia dos outros, que tra- duz para a sua prépria, e ndo com aquelas outras inven- tadas e selecionadas com as quais o romancista se poe em termos confortaveis, mas com o intransigente en- xame de autores, as ruidosas crian¢as da histéria. Ele tem de fazé-las tao vividas e livres quanto o romancista faz seus bonecos, e no entanto ele tem, como se diz, de toma-las como elas sio. Temos de ser afaveis com ele, se a imagem, mesmo quando o objetivo tenha sido se aprofundar, estiver algo confusa, pois ha assuntos obs- curos € assuntos ingratos; e temos de the dedicar a mais pura estima quando o retrato realmente for, como os felizes retratos da outra arte, um texto preservado pela tradugao. 47

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