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© Now ~ S a UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas Departamento de Historia UM VISIONARIO NA CORTE DE D. JOAO V revolta e milenarismo nas Minas Gerais Adriana Romeiro Tese de doutoramento apresentada 20 Departamento de Histéria do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Orientador: Prof. .Dr, Sidney Chalhoub Este axeptar comeaponde eat inal ee deena f aproeads pels Comisio TENDS 96 bss pet a ta tr oon PYAAR vote ant en fore LEE Ps Den 3 a renee SET Ce, SY Campinas 1996 ReG4y (cM-00093085-5 FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Romeiro, Adriana, Um visionério na corte de D.Joxo Virevolta e milenarismo nas Minas Gerais / Adriana Romeiro, - - Campinas, SP: [s.r], 1996, Crientador; Sidney Chathoub. ‘Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humans, 1, Milenarismo - Brasil Histéria. 2. Politica e Cultura- Brasil, 3. Inquisigao. 4, Conspiragdes. 5. Brasil - Histéria Colénia. L Chalhoub, Sidney, {Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciéncias umanas, I. ‘Tilo. "Faz parte da mistria do homem o nao poder conkecer mais do que fragmentos daquito que j& passou, mesmo no seu pequeno ntundo; ¢ faz parte “da sua nobreza e da sua forga o poder conjecturar para além daquito que pode saber”. Alessandro Manzoni AGRADECIMENTOS Foram muitas as pessoas e instituigSes que me apoiaram nesta aventura pelos desvéos da historia. Devo a CAPES 0 financiamento da pesquisa em arquivos portugueses, concedido através do excelente Programa de Doutorado no Pais com Estagio no Exterior. O CNPq. ea FAPESP permitiram-me explorar os arquivos brasileiros e burilar pacientemente todo o material coletado até transformé-lo numa tese de doutoramento. Mais uma vez, pude contar com a orientagdo decisiva de Sidney Chalhoub, que sempre acreditou que a historia em minhas mics merecia ser contada, encorajando-me nos momentos de hesitagao. Em Portugal, a orientagio do prof. dr. Francisco Bethencourt abriu-me os caminhos intrincados dos arquivos portugueses ¢ contribuiu para que eu definisse 0 objeto de pesquisa quando a riqueza da documentagao me essoberbava por todos 0s lados. Robert Rowland enviou- me de Florenga um inventirio cuidadoso dos réus brasileiros processados pela Inquisicdo, poupando-me assim meses de pesquisa Como sempre, foi decisiva a _generosidade inesgotavel de Laura de Mello € Souza, com quem aprendi a partilhar o interesse pela historia mineira ¢ pelos processos da Inquisi portuguesa. Muito me valeu 0 curso ministrado por ela no segundo semestre de 1992, numa época em que eu mal suspeitava da importancia que Minas Gerais viria a assumir a0 longo da investigagao. Tive © privilégio de disontir uma versio preliminar dos primeiros capitulos com os professores Silvia H. Lara e John M. Monteiro, quando o trabalho se encontrava a meio caminho. Suas sugestdes enriqueceram a minha perspectiva das fontes e modificaram substancialmente a organizagio do texto final Com os colegas de oficio, dividi as alegrias e frustragées da pesquisa, trocando idéias e encontrando solidariedade. Ronald Raminelli, da Universidade Federal do Parana, revelou-se um grande amigo em nossas andangas pelos arquivos e bibliotecas de Portugal. Suas observagdes perspicazes ¢ sempre bem-humoradas foram um desafio vigoroso ¢ instigante. Nao haveria palavras para agradecer a Tiago dos Reis Miranda, um grande conhecedor dos arquivos portugueses e um interlocutor de rara sensibilidade, Devo-lhe as informacies valiosissimas que me convenceram a seguir até o fim o rastro de Henequim, devo-lhe também @ descoberta da documentagao do Arquivo Geral de Simancas, cuja cépia generosamente me enviou. Semele, pouco teria avangado. Em Plinio Freire Gomes encontrei um ciimplice do meu fascinio por Henequim, cuja cosmotogia esmiugou com brilhantismo em sua dissertagdo de mestrado, defendida em 1994, na Universidade de Séo Paulo. Gragas a esta, pude me dedicar a outros aspectos da historia de nossa personagem, suficientemente iniciada nos labirintos de seu universo religioso. Na Universidade de So Paulo, conheci uma geracdo de jovens colonialistas com a qual ‘aprendi e continuo a aprender muito. Fernanda Bicalho, Marcia Moisés, Paulo Assunsao, Refael Chambouleyron e tantos outros foram interlocutores sempre atentos € interessados. Jefferson Cano, colega da Universidade Estadual de Campinas, acompanhou o processo de redagio final, auriliando-me também a vencer os obstaculos da informatica. No outro lado do Atlantica, os novos amigos brindaram-me com a sua solidariedade, decisiva quando se esta longe de casa: Rita Marquilhas, Héctor Frias, Kazuya Shiraishi, Rita Costa Gomes, Elisa e Marcelo Romero e Salete Queiréz. Por fim, tudo so foi possivel porque estive cercada pelo apoio incondicional de meus familiares, com os quais cumulei uma divida de gratid3o impagavel: meus pais, Dolores, Alfredo, Lilibeth, Thelma e Donizetti, meu marido. ACL AGS AHU ANRJ ANTT APM AUC Ajuda BMSP BNL BNRJ BPADE RAPM RIHGSP ABREVIATURAS Academia das Ciéneias de Lisboa. Arquivo Geral de Simancas, Espanha Arquivo Histérico Ultramarino, Lisboa. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. ‘Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa. Arquivo Pablico Mineiro, Belo Horizonte. Arquivo da Universidade de Coimbra. Biblioteca da Ajuda, Lisboa. Biblioteca Municipal Mario de Andrade, So Paulo. Biblioteca Nacional de Lisboa. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro Biblioteca Piiblica e Arquivo Distrital de Evora, iro. Revista do Arquivo Publico Min Revista do Instituto Histérico e Geografico de Sao Paulo, 1 SUMARIO ‘A conspiracio que veio das Minas. A pristo no Rato... As voltas com o Santo Oficio. As agruras do auto-de A criagiio do heresiarc ‘Meandros da meméria... Em busca das sombras. Um Infante para o Brasil... 70 O Quinto Império brasitico. O legado vieriano. Lenfant terrible... O visiondrio e 0 Infeane.. O awesso da meméri Destino de visiondirias. © Novo Mundo entre o Milénio e a Redencio... Mitos lusocéntricos.. : Rupturas do tusocentrismo.. Pensando as origens. Linguagem e origem. O encontro das tribos no Novo Mimdo. A redengio no Brasil-Holandés Vieira e a traudigéi filossemitica O profeta dos confins da terra. Um profeta em Lisboa. Emendamdo a conta dos tempos. O fatal comet Leituras nas Minas... Opinidio sobre a Inquisigéio. Problemas de reconstituigéo. Sob 0 signo do OUr0...0.- 5. Couspiragao e cultura polit Pistas e possibilidades. Aventureiros nas Minas. No olho do furacao. Os homens de confianga de Manel Nunes Viana. A teia das palavras.... Entre paulistas ¢ emboabas... O especiro das Minas independentes. Conchislo........ . Fontes e Bibliografia.. INTRODUCAO O presente estudo originou-se, por um lado, de uma série de inquietagbes teéricas, relacionadas 4s conclusbes apresentadas na dissertagio de mestrado, e de outro, de uma verdadeira aventura intelectual, inspirada no método indiciério e vivida em arquivos portugueses e brasileiros, Narrar a génese de um texto é, muitas vezes, fo ou mais interessante quanto a propria obra e, neste caso, 0 percurso liga-se de forma tio inseparivel ao resultado que omiti-lo seria negar ao leitor algo de essencial. Parafraseando Castoriadis, uma pesquisa nunca rasce sob a forma de um proceso légico ordenado ¢ controtado, e por isto expor os entulhos é sempre um incitamento ao pensar (1). Jiché algum tempo, a historiografia vem explorando com grande sucesso 0 universo cultural das camadas populares do periodo colonial brasileiro, adaptando e aperfeigoando os seus métodos de investiga¢3o. E inegével também que grande parte destas pesquisas s6 foi possivel gragas as novas leituras de um filo valiosissimo: as fonies inquisitoriais. Redescobertas desde a tltima década, elas vém permitindo aos pesquisadores reconstituir as linhas-mestras da cultura popular, revelando ore convergéncias ora divergéncias em relagio ao modelo europeu, e impondo sempre a necessidade de filtrar os nossos proprios instrumentos de trabalho diante da esperificidade local (2). A época do mestrado, indagava-me até que ponto tais registros poderiam iluminar as grandes zonas teméticas que permaneciam na penumbra, sobre as quais pouco ou nada se sabe (3). A bem dizer, tratava-se de pdr em questo os limites de uma documentagao aparentemente estereotipada: suportaria ela, afinal, o confronto com ‘questdes atinentes 4 cultura politica popular? Como referéncia, pensava na interessante proposta de Raoul Girardet de se estender ao campo politico os principios da historia das mentalidades, abandonando a pretenséo a uma histria das idéias politicas, concebidas como “pensamento organizado, racionalmente construido, logicamente 9 conduzida" (4), E bem verdade que 0 projeto de Girardet falhou por se sustentar em demasia na fragil tese da existéncia universal, em todos os tempos ¢ culturas, de um enraizamento psiquico imutavel. Ainda assim, escoimada de sua énfase "mental" e orientada para uma abordagem mais "cultural', a sua formulago permanece um desafio para os interessados no estudo da cultura politica. Também hi que mencionar o estudo genial de Marc Bloch, Os reis taumaturgos, como uma bem-sucedida incursio no dominio das crengas populares € suas conexdes com 0 poder - obra que inaugura aquilo que Jacques Le Goff chamou de antropologia politica historica, No centro das atences de Bloch, est o problema dos significados simbélicos que fundamentam e legitimam a realeza, sem os quais 0 maravilhoso taumatirgico perde o sentido e a légica que 0 orienta (5). Decisiva, a leitura de Bloch clarificou o objeto de estudo, situando-o na encruzilhada de niveis de cultura distintos, evitando-se assim o recurso a conceitos demasiado amplos e “psicologizados” que embaracam a analise de Giardet. Aos poucas, porém, o problema mudou de sentido: no se tratava mais de esgargar as fontes em busca de respostas que aparentemente se situavam além dos limites delas, mas tio-somente de interpretar os resultados obtidos a pertir de uma nova luz. Se aheterodoxia e a irreveréacia caracterizavam a religiosidade das camadas populares da sociedade colonial, toda ela permedvel a influéncias culturais variadas, ndo seria legitimo supor que também © poder fosse alvo de suas reflexdes - ou, a0 menos, afigurasse-se- Ines como matéria-prima para discussio, constituindo assim miultiplos modos de percepgio da realidade ? Tais indagacdes tém como pano de fundo o relativo desinteresse dos historiadores da cultura pelos temas politicos E conhecida a reagio que a chamada “nova histéria” opés a velha histéria politica, definida brilhantemente por Jacques Julliard como uma historia de pequenos pontos, “para a qual toda a elaboragio historica consistia em enfiar no fio de um tempo maravilhosamente liso e homogéneo os acontecimentos-pérolas de todos os calibres: batalhas e tratados, nascimentos e mortes, reinos e legislagdes" (6). Rechagado o factual, a histéria politica voltou-se para o estudo dos simbolos ¢ rituais do poder, seguindo a esteira de uma obra pioneira como The 0 king's twe bodies, de Kantorowicz (7). Todavia, a tendéncia que ainda hoje predomina, sobretudo entre os pesquisadores franceses, ¢ a abordagem unilateral, isto é, a apreensio da ceriménia do poder a partir do seu pélo de "transmiss4o", ignorando-se freqiientemente os canais complexos que o separam do pélo de “recepofo". E significativa das dificuldades de superar tal obsticulo a tentativa, esbocada por Peter Burke em A fabricagHo do Rei, de dar conta também dos "processos de interpretacdo de mensagens" ¢ nfo apenas da imagem projetada: dos doze capitulos do livro, ele dedicou apenas um ao tema (8). ‘Alguns autores tém sugerido a possibilidade de se p6r em causa a concepgio dos rituais do poder como adestio homogénea ¢ eficaz, chamando a atengfo para determinadas préticas populares que os esvaziam do seu contetido original, como os tumultos, as criticas, as pilhérias e o burlesco, freqiientes nas ceriménias piiblicas de afirmagiio do poder real (9). A este propésito, os estudos de Peter Linebaugh sobre as reagdes da classe trabalhadora as execugdes piiblicas na Inglaterra setecentista revelam & dissondncia entre os cédigos que se dio # fer no aparato do enforcamento e es crencas populares sobre o destino dos mortos, transformando a ritualistica de imposigio da lei da autoridade em ocasido de insubordinago e conflito (10) Recentemente, Roger Chartier cbservou que, apesar da extensfo do nosso conhecimento sobre 0s varios aspectos culturais das populagées do Antigo Regime, nada sabemos sobre a sua cultura politica popular. F, como a indicar trilhas de pesquisz, chamou a ateng&o para a diversidade de significados que a palavra “politico” entéo comportava, sendo entendido de formas diferentes em contextos diferentes (11). # da historiografia inglesa de inspiragio marxista que vieram & luz as mais brilhantes andlises sobre as relagdes entre a religio e a politica. E. P. Thompson elegew como campo de pesquisa a densa tessitura das tradigdes populares, das concepgdes religiosas © da ago politica, alargando ao limite © conceito de cultura. Para ele, 0 dominio cultural é antes de tudo, a extensio dos conflitos sociais, insepardvel e indissocivel de outras modalidades de futa (12). Numa linha parecida, Christopher Hill, em O mundo de ponta-cabeca, investiga a circulagdo de idéias radicais - especialmente © radicalismo religioso - e as suas implicagdes nas conviccdes politicas dos setores At populares, Com argitcia, ele demonstra como os pilares ideolégicos do Antigo Regime Tuiram sob o influxo de formulagbes ousadas e por vezes heréticas, colocando em xeque a autoridade da Igreja e do Estado (13) Impés-se, entdo, a necessidade de constituir um objeto de estudo que, situado na intersecg3o do religioso € do politico, pudesse desvendar o jogo sutil de filigranas que © articulam num todo indissociado. E © milenarismo surgiu como via adequada para uma tal prospecgo. Objeto de anilises de inspirago funcionalista, em que 0 complexo simbélico das crengas tem pouco peso, 0 tema tem sido abordado como uma espécie de reagio a determinados contextos de crise, configurando uma resisténcia Gesencadeada contra a instanragao de uma nova ordem (14). Incorrendo freqientemente no tisco do anacronismo, esta abordagem parte do pressuposto de que © milenarismo nada mais é que a expresso, em linguagem religiosa, de anseios ¢ expectativas eminentemente politicas. Ou ainda, avizinhando-se do campo da psicologia, alguns autores, especialmente Norman Cohn, propuseram interpreti-lo como exteriorizagio de desordens psivéticas, resultantes de situagSes de crise, ¢ que se polarizariam em tomo da figura dos messias e profetas (15). A unir todas estas abordagens esta a indiferenga a dimensdo simbélica das crengas envolvidas nos movimentos mitenaristas, entendidas como mero veiculo de teases mais profindas, das quais nao passam de organizacio simaxica (16). Mas, afinal, por que € que os valores religiosos conseguem se potencializar em ago politica ? Ou ainda, por que tais movimentos assumem certas formas particulares ¢ nao outras ? No eram poucas as dificuldades impostas pelo tema, a comesar pelo seu relativo ineditismo: & excego dos numerosos estudos sobre o profetismo na obra do padre Anténio Vieira, apresentado por sua vez como variante individual das formes milenaristas ibéricas, pouco ou quase nada foi escrito sobre 0 assunto - € mesmo o problema da difitsdo do sebastianismo luso no contexto colonial néo suscitou ainda uma pesquisa de grande félego (17). Significativamente, os estudiosos privilegiaram os 2 fendémenos milenaristas ocortidos nos séculos XIX e XX, descuidando-se das pistas luminosas de Euclides da Cunha, cujo olhar "geol6gico" jé 0 fazia observar, em 1902, a relagio entre "os messias insanos" do sertdo ¢ as “figuras dos profetas peninsulares de outrora" (18). Outra dificuldade estava nas fontes a explorar. A aparigo de um sebastianista nos autos da Primeira Visitag%o do Santo Oficio reforcou a suspeita de que ‘os fundos inquisitoriais ofereciam um fildo promissor, uma vez que alguns estudos haviam mostrado que a repressio do visionarismo profético esteve também a cargo da Inquisiggo - sem mencionar, é claro, a fileira de messias e profétas que emergiram de tempos em tempos no Portugal da Epoca moderna (19). Dentre as pistas, a mais consistente era 0 processo inquisitorial de Pedro de Rates Henequim, mencionado rapidamente - e de segunda mio - por Sérgio Buarque de Holanda no preficio & segunda edigdo de Visto do Paraiso, em 1968. Citava-o como exemplo tardio de edenizag3o da América portuguesa, ajuntando que Henequim havia sido condenado 4 morte pela Inquisigao de Lisboa, em 1744, por sustentar, entre outras coisas, que 0 "Paraiso Terreal ficara © se conservava no Brasil” € que “no Brasil se haveria de levantar 0 Quinto Império" (20). Aqueles trés paragrafos pareciam, enfim, indicar a ocorréncia, no periodo colonial, de formulagies milenaristas, abrindo caminho para pér em questo @ concepgo corrente averea do milenarismo profético de Vieira como um espécime extraordinario, completamente desvinculado do universo colonial Aquela que deveria ser mais uma fonte em meio a um vasto corpus documental acabou por absorver e dominar toda a pesquisa. O processo movido pela Inquisigao contra Pedro de Rates Henequim constitui uma pega tinica e instigante: a sofisticagdo de suas idéias, a ancoragem destas tanto na cultura erudita quanto na popular, @ clara influéncia do pensamento de Vieira e complexidade dos temas ali apresentados contrastam vivamente com o quase siléncio que reina nos autos dos réns brasileiros, no que respeita & temética milenarista. 3 Ademais, havia uma outra questo ainda mais perturbadora a cercar 0 proceso de Henequim, a qual Sérgio Buarque de Holanda explanara apenas por alto. Tratava-se da suspeita da participagdo dele numa conspiragdo destinada a coroar Infante D. Manuel como Imperador da América Meridional - referida primeiramente por Alberto Pimentel em fins do séoulo XIX, com base em um tinico manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, supostamente perdido (21) No Arquivo Nacional da Torre do Tombo, com a ajuda preciosa de Tiago dos Reis Miranda, colega de oficio, pude consultar um documento que fortalecia a teoria da conspiragao, complicando ainda mais o perfil da personagem. E posto o desafio, ndo tardou para que eu localizasse o tal manuscrito em meio & Colegio Pombalina, resgatando uma peca fundamental, dada por desaparecida ou extraviada. Como o fio de um novelo, desenrolei aos poucos a trama obscura que envolve heresia, conspiragao € milenarismo, e vi-me diante das interrogagées tedricas que haviam originado o plano de pesquisa: as concepgdes ali em jogo imbricam-se de tal forma que é impossivel separar a dimensio religiosa da politica. Decididamente, as fontes relativas a0 caso proporcionavam um excelente material para averiguar todas aquelas questdes metodoldgicas que eu vinha remoendo havia algum tempo. Por outro Indo, a auséneia, no proceso, de qualquer slusio aos planos de emancipagao politica - numa palavra, conspitagio - oferecia outra sorte de problema: a utilizagio, por parte da Coroa portuguesa, da maquina inquisitorial para reprimir, numa mesma instincia, dois delitos de natureza diversa, isto é, 0 crime religioso ¢ © crime politico, exagerando um para omitir 0 outro Evidentemente, os desvios da fé e as heresias eram considerados, no limite, crimes contra a Monarquia, uma vez que abalavam a verdade oficial e divina, mas a averiguagZo deles estava a cargo do Santo Oficio, um auténtico Tribunal de Fé. Delitos de natureza estritamente politica, como a alta traig#o on o crime de lesa-majestade, pertenciam, por sua vez, a competéncia da Tustiga secular, sujeitando-se, porém, a uma leitura religiosa, & medida que © absolutismo pressupunha uma concepgao sacralizada da realeza (22) W A dissonincia entre a opacidade dos autos processuais e os bastidores explosivos do dossié Henequim sugeria ainda a necessidade de refletir na _credulidade com que os estudiosos por vezes Idem as fontes inquisitoriais, subestimando a astucia com que as instituigbes viciaram a meméria, deixando em seu rastro armadilhas to sofisticadas quanto a do siléncio premeditado. Afinal, se o problema do emprego dos autos da Inquisigao como. evidéncia fidedigna para o estudo da cultura popular tendeu 2 se refinar cada vez mais, a partir da constatagio da defasagem entre a fala do réw € 0 registro dos juizes - nfo teriamos entio passado ao largo de uma questo bisica primordial, como a sua manipulagSo deliberada para ocultar crimes de natureza diversa (23)? Este foi, de longe, - e continua a ser - 0 maior desafio da pesquisa: investir contra a mudez dos arquivos e reconstituir em Jinhas gerais, duzentos ¢ cingtienta anos depois, a histéria de uma conspiragdo e, num certo sentido, de uma farsa. Se hoje descoberta de novos episédios ou fatos j4 deixou de ser a principal atividade do historiador, a verdade € que cla tem um fascinio irresistivel para quem a realiza, propondo-nos o desafio de dar voz aos mortos, de Ihes desenterrar o pasado sepultado no siléncio, de surpreender 0 ato falho das engrenagens que fabricam a meméria. Nao ha davida de que este é um estudo incompleto - muitas questées permanecem sem respostas e aspectos importantes ainda esto por elucidar.... Mas, nfo esta a historia fadada a ser sempre assim ? Dai o segundo grande desafio: como formular as perguntas para as quais a documentaggo tivesse resposta ? Como extrair dela 0 mais importante ¢, a0 mesmo tempo, submeté-la ao inquérito das indagagdes originais do trabalho - tendo em vista, ovidentemente, a existéncia de vasos comunicantes entre eles ? Afinal, os documentos raramente surgem ao acaso diante do pesquisador; por mais surpreendente que tenha sido 0 meu encontro com estas fontes praticamente inéditas, ele somente ocorreu porque eu estava a procura das questdes ali colocadas. Junto com elas, vieram outras infinitas possibilidades de sondagem, acenando com infinitos modos de constituir © meu objeto de estudo, Experimentava, literalmente, a "vertigem do arquivo” 18 ‘Um dos muitos riscos a que esté sujeito o historiador foi deliberadamente evitado. Jacques Le Goff definiu-o como o fascinio pelo aneddtico, tanto mais presente quando se trata de uma historia repleta de lances empolgantes, como a de Henequim (24). £ bem verdade que a historia puramente descritiva, desprovida de problema, apurou seus métodos narrativos ¢ abandonou o ordenamento cronologico, logrando, por vezes ume estrutura aparentemente complexa, Um bom exemplo disso ¢ dado pelo livro de Jonathan D. Spence, O palicio dx meméria de Matteo Ricci, cuja narrativa, organizada em toro de quatro imagens bisicas, mal disfarga um enfoque convencional, farto de informag&es e escasso em problematizagio (25) Ao contririo do case-study, a orientagao’ que prevaleceu foi a de aprender a dimensio coletiva de todo 0 material, buscando dissolver, sempre que possivel, & aparente atipicidade de seu conteddo em uma grelha de ressondncias mais gerais, detectando aqui ¢ ali 0s processos mais subterraneos em curso na sociedade colonial Considerar 0 caso Henequim um acontecimento extraordinario significaria repetir 0 veredito do Santo Officio e do Desembargo do Pago, ingenuamente convencidos de que se tratava de uma anomalia momentanea, € ndo um indice revelador da cultura politica constituida no Brasil do inicio do século XIU. Dificilmente, este estudo pode ser visto como a historia de Henequim, no sentido de uma biografia convencional, Ela € antes 0 fio condutor que permite estabelecer ligago entre fendmenos aparentemente descontinuos, revelando @ unidade fundamental existente entre eles. E a propria estrutura dos cepitulos busca ressaltar um tal movimento em diregdo a um tema mais amplo, superando a suposta dimensio individual do estudo, Assim, invertendo a trajetdria de Henequim, © texto principia em Lisboa ¢ recua paulatinamente até as Minas Gerais. © primeiro capitulo - * conspiragéo que veio das Minas" - desenrola-se num tom propositadamente narrativo ¢ trepidante, pleno de idas e vindas no tempo € no espago. Nele, tento reconstruir as circunstancias da prisdio de Henequim e apresento as evidéncias de seu envolvimento ‘uma conspiraggo destinada a romper com o dominio metropolitan. Apresentada a 1S trama principal, procedo a um exame da fortuna de Pedro de Rates Henequim na historiografia, associando © siléncio @ que foi relegado as eficazes estratégias postas em aio pelo governo joanino para ocultar os acontecimentos anteriormente descritos. © segundo capitulo - "Um Infante para o Brasil" - busca fixar numa tnica imagem o réa suspeito na Fé e o réu de lesa-majestade, resgatando assim a totalidade original que 0 Santo Oficio estithagou quando o transformou em heresiarca. Uma das ‘questdes fislerais deste capitulo consiste em confrontar as idéias arroladas no processo inquisitorial com o seu perfil politico, de modo a perceber, na aparente opacidade dos autos, as pistas que revelariam a trajetdria intelectual de um visionario cabalista em diregio a0 projeto de emancipagdo colonial. Fiet ainda ao propésito de conferir profundidade aos episddios narrados no capitulo anterior, submeto a alegada ago do Infante D, Manuel ao exame sistemitico de fontes contiguas no tempo e no espago, flagrando em sua biografia os elementos que Ihe garantem plausibilidade histérica, O terceiro capitulo - "O Novo Mundo entre o Milénio ¢ a Redengao" - traz ‘uma proposta ousada, de se iluminar as representagdes que cristdos-novos € judeus projetaram no Novo Mundo, atrelando-as 4 vertigem messidnica do século XVII Pouco estudado, o tema abre uma nova senda de problematizagao da obra do padre Vieira, vista sob a perspectiva de influxos culturais provenientes da cultura erudita judaica, e propde a necessidade de se redimensionar a penctragdo destes no interior de setores cristios da sociedade colonial. F, num certo sentido, uma genealogie dos conceitos que, firndamenteis no pensamento de Vieira, iriam desembocar nas expressdes milenaristas da primeira metade do século XVIII, das cuais © caso de Henequim constitui apenas um dos exemplos. E sobre um outro profeta que versa 0 quarto capitulo - "O profeta dos confins da terra". Quase vinte anos antes da morte de Henequim, um padre baiano protagonizou uma histéria muito semethante & dele em 1720, ele aportou em Lisboa, depois de ume répida passagem nas Minas, com o intuito de anunciar ao rei D. Joao V a iminéneia do fim dos tempos e revelar a sua condigdo de profeta e messias. Preso pela Inquisiggo de Lisboa, acabou por ser queimado no Campo da La, sob a acusaglo de judaismo. "7 As semelhangas entre um © outro vio muito além do trégico desfecho. Ambos haviam sido marcados pelas idéias do padre Vieira; demonstravam uma atitude francamente filossemita, expressa pelo esforgo de compatibilizar 0 cristianismo e 0 judatsmo; valorizavam a estada ou 0 nascimento no Brasil como um fator decisive no proceso de revelagao religiosa; e finalmente, tanto um quanto outro haviam estado nas Minas na década de 1710. As informagées contidas nos autos inquisitoriais do padre Manoel Lopes de Carvalho preenchem algumas lacunas importantes de um proceso ainda mal conhecido, ou seja, a circulagdo das teses milenaristas, elaboradas pelos jesuitas & roda da obra de Vieira, para além dos muros dos colégios da Companhia de Jesus ¢ a penetragao delas nas Minas Gerais num periodo altamente favoravel & reatualizagao dos mitos edénicos. Uma parte dos elos desta cadeia nos ¢ dada pela histéria do padre baiano e, ao fazé-lo, la ilumina alguns dos pontos obscuros da formacdo intelectual de Henequim. Constatar a migragao de idéias no tempo ¢ no espaco pouco ou nada explica se nao for enfientada uma questéo fundamental; por que as formulagdes milenaristas encontraram um solo propicio na regifo mineira ? E por esta razo que o quinto ¢ “ltimo capitulo - "Conspiragao e cultura politica” - desloca-se para o cenario das Minas, ‘nos anos em que ai viveu Henequim. Langando mo da documentagdo consultada nos arquivos mineiros ¢ cariocas, retrago o ambiente tumultuado das primeiras das décadas do século XVIII, perseguindo os rastros do protagonista, restabelecendo a rede de seus contatos pessoais ¢ localizando-o no conilito que se convencionou chamar de Guerra dos Emboabas. A proposta deste capitulo consiste em abordar a historia mineira do periodo a partir de uma perspectiva renovada pelo estudo de caso de Henequim: em que medida suas idéias e agdes jogam luzes sobre a cultura politica que fermentou ali? Ou ainda, de que modo oferecem elas um novo olhar sobre alguns dos modelos explicativos cristalizados para explicar as revoltas mineiras ? Finalmente, a conclusio apresenta-se como um esforgo de reunir algumas questdes diluidas a0 longo do texto e implicé-las num debate historiogréfico mais amplo sobre as interpretagdes vigentes a respeito dos movimentos politicos coloniais. Como 0 dossié Henequim propde uma reformulago para o problema clissico do surgimento de 18 uma "consciéncia colonial", para empregar uma terminologia igualmente convencional ? Longe de um acerto de contas com as diversas correntes historiogréficas em jogo, as piginas finais apenas oferecem novos elementos para acirrar ainda mais 0 carter polémico do tema, sug Perseguindo um objeto de fronteiras fluidas, constniide no eixo de jo novos encaminhamentos para futuras pesquisas. articulagdo entre reliziéo € politica, a pesquisa resultou igualmente multifacetada ¢ impermedvel a cortes rigidos. Seu pano de fundo consiste nas relagées politicas entre ‘Metropole e Coldnia na primeira metade do século XVIII: de um lado, @ emergéncia, ‘nas Minas, de uma cultura politica especifica, tributaria de tradigdes tao dispares como as especulagées milenaristas de Vieira, a edenizacio do Novo Mundo e as formulagdes sobre a origem do homem americano, e revigorada pela tradicao de rituais de revolta urbana, tio comuns na regio aurifera naquele periodo; por outro lado, 2 crescente percepgo, por parte da Coroa portuguesa, do nascimenta de uma nova espécie de perigo interno: © siidito colonial que pde em causa os principios ideolégicos que legitimam ¢ justificam © colonialismo. Neste sentido, as agruras de Henequim com o Desembargo do Pago ¢, mais tarde, com o Sante Oficio funcionam como um instantineo paradigmatico de um processo muito mais profundo, instalado num arco de tempo mais longo: a crescente diferenciacao entre colonial © metropolitano ¢ a percepgao de que a ‘América nao é um outro Portugal - diferente, ela é. sob muitos aspectos, até mesmo superior. E inevitavel que o texto final deixe transparecer © ritmo detetivesco € labirintico da pesquisa, parando aqui ¢ ali, iluminando alguns dos temas presentes ao longo da trilha empirica, atendo-se mais a uns, menos a outros, Longe de uma deficiéncia, penso que este efeito caleidoscépico explicita bem a nogio de histéria como tessitura de fios que nunca se esgotam, que esto sempre a remeter a novas tramas. ‘Assim, este estudo tem finalidade tanto descritiva quanto enalitica. Desereve © apresenta um epis6dio praticamente inédito, buscando reconstrui-lo em detalhes, nao por ser inédito, mas porque € histérico, analitico porque a descrigéo somente tem sentido dentro de um esquema gerai de investigagao, cujo objeto temético consiste na trajetoria das crengas milenatistas no Brasil colonial, Este ainda se ramifica em diregao yp a outros problemas: 0 papel dos letrados judeus do Brasil Holandés na énfase filossemitica do milenarismo de Vieira, a manipulagdo do aparelho inquisitorial com objetivo de escamotear crimes de natureza politica, a existéncia de uma cultura politica contestatéria nas Minas, e a inadequagao das velhas categorias historiogréficas para dar conta dos movimentos politicos coloniais, Também & possivel ver nestas paginas 2 encruzilhada de muitas histérias individuais - homens como Henequim, Santa Marta, 0 Infante D. Manuel, Simifio de Oliveira e Sousa, Isaac de Castro ¢ muitos outros, flagrados, em instantdneo, nas vielas sinuosas da Lisboa setecentista ou nas ladeiras escuras de Olinda ¢ Vila Rica. 2» (1) “A apresentagio do resultado como totalidade sistemitica e burilada, 0 que na verdade ele nunca é, ou mesmo do processo de construgio - como é to freqitentemente © caso, pedagégica mas falaciosamente, de tantas obras filoséficas - sob forma de processo logico ordenado e controlado, s6 reforga no leitor a ilusfo nefasta para a qual ele, como todos nés, jé tende naturalmente, de que o edificio foi construido para ele e Goravante basta habité-lo se assim Ihe apraz" - C. Castoriadis, A instituigao imaginaria da sociedade, trad., 2a. ed., Rio de Janciro, Paz ¢ Terra, 1982, p. 12. (2) Refiro-me aqui aos trabalhos luminosos da nova gerago de colonialistas: Laura de Metto e Souza, O diabo ea Terra de Santa Cruz: feitigaria e religiosidade popular no Brasil colonial, So Paulo, Companhia das Letras, 1986; da mesma autora, O Inferno Atlintico: demonologia e colonizacio (séculos XVI- XVII), Sdo Paulo, Companhia das Letras, 1993; Ronaldo Vainfas, Trépico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisi¢ao no Brasil, Rio de Janeiro, Campus, 1989; do mesmo autor, A heresia dos indios: catolicismo ¢ rebeldia no Brasil colonial, S40 Paulo, Companhia des Letras, 1995; a série de artigos do antropétogo Luis Mott, em especial 0 livro Rosa Egipcinea: uma santa africana no Brasil, Rio de Janeiro, Bertrand, 1993. Nao hhaveria espago para citar as recentes teses de mestrado e doutorado que, orientadas por estes autores, continuam a escavar com grande éxito os arquivos da Inquisigao portuguesa. (3) Adriana Romeiro, Todos os caminhos evam ao céu: relacdes entre cultura popular ¢ cultura erudita no Brasil do século XVI. Dissertagdo de mestrado apresentada ao Departamento de Historia do LF.CH. da Universidade Estadual de Campinas, 1990, (4) Raoul Girardet, Mitos ¢ mitologias politicas, trad, Sdo Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 9 (5) Mare Bloch, Os reis taumaturgos - 0 cardter sobrenatural do poder régio, trad., S40 Paulo, Companhia das Letras, 1993 (6) Jacques Julliard, "A politica”, in J. Le Goffe P. Nora, Historia: novas abordagens, trad., 3a. ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, p. 181 (7) Cito aqui a traduglo francesa: Ernst Kantorowicz, Les deux corps du roi: essai sur Ia théologie politique au Moyen Age, Trad., Patis, Gallimard, 1989. (8) proprio Burke chama a atengao para o problema: "nenhum estudo de comunicagao pode ser considerado completo, como os historiadores da literatura ¢ da arte acabaram por compreender, sem alguma discussiio da recepgdo da mensagem, a natureza da audiéncia ¢ os modos como esta reagiu" - Peter Burke, A fabricagao do rei: a construgio da imagem piblica de Luis XIV, trad., Rio de Janeiro, Zahar, 1994, p. 163. (9) Se em “Ritos ¢ cetimdnias da monarquia em Portugal (séculos XVI a XVIII)", 0 objetivo de Diogo Ramada Curto prende-se antes ao sistema de produgao das ceriménias da monarquia do que as formas de recep¢io delas, ainda assim ele esta atento 20 problema da descronga, que "obriga a ultrapassar as leituras simplistas que pretender associar aos mecanismos das ceriménias ou 20s dispositivos simbélicos formas de adesso afectiva ou de reconhecimento imediato" - in Francisco Bethencourt ¢ Diogo Ramada Curto (org), A meméria da nagfio: coléquio do Gabinete de Estudos de Simbologia realizado na Fundacio Calouste Gulbenkian, Lisboa, $4 da Costa, 1991, p. 213 e ss. (10) Peter Linebaugh, "The Tyburn riot against the Surgeons" - in Hay, Thompson, Linebaugh, Albion's fatal tree: erime and society in Eighteenth-century England, London, Allen Lane, 1973, pp. 65- 117, Aqui ele pde om xeque a caracterizagao do espectador das ceriménias piblicas como passivo e’ submisso, jogando por terra a suposta introjegao dos cédigos cutturais que pautam os espetaculos de enforcamento. 0 autor ampliaria significativamente o dominio da investigagao em The London hanged: ¢ and civil society in the Eighteenth century, Cambridge, Cambridge University Press, 1992 (11) Roger Chartier, A histéria cultural - entre priticas e representagées, trad, Lisboa, DIFEL, 1990, pp. 189-213 (12) Ver, entre outros. Thompson, "Time, work-discipline, and industrial capitalism”, in Past and Present no. 38, dez. 1967, pp. 56-97; "The moral economy of the English ‘crowd in the eighteenth century", in Past and Present no. 50, fev, 1971, pp, 76-136, ¢ principalmente, 0 cléssico A formagiio da classe operaria inglesa, trad., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. (13) Sobre as décadas revoluciondrias na Inglaterra, escreveu Bill: "por um breve espago de tempo as pessoas comuns tiveram uma liberdade face 20 poder da Igreja e das classes dominantes como nunca antes existira, nem tdo cedo voltaria a existir. Por muitissima sorte dispomos de registros bastante completos do que elas discutiram. Especularam sobre o fim do mundo e a vinda do milénio; sobre @ justiga de Deus em condenar a massa da humanidade por um pecedo que, se alguém cometen, foi Adao; alguns até puseram em questo a existéncia do inferno...” - Christopher Hill, © mundo de ponta-cabega: idéias radicais durante a Revolugao Inglesa de 1640, trad., Séo Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 345 (14) Para uma visio geral do assunto, ver Dominique Julia, "A religido: historia religiosa", in J. Le Goffe P. Nora, Historia: novas abordagens, op. cit., pp. 106-131 (15) Norman Cohn, Na senda do milénio: milenaristas revolucionarios ¢ anarquistas misticos da Idade Média, trad., Lisboa, Presenga, 1981. (16) A este respeito, escreve E, P, Thompson: "Embora historiadores e sociélogos tenham recentemente se dedicado com maior atengio aos movimentos ¢ fantasias 22 milenaristas, © seu significado se mantém parcialmente obscurecido pela tendéncia de discuti-los em termos de desajuste ¢ ‘parandia"® - A formacio da classe operiria inglesa, op. cit., vol. : "A drvore da liberdade", pp. 50-54 (17) Como exemplo do siléncio sobre as manifestagdes milenaristas de origem européia. no periodo colonial, cumpre mencionar o livro classico de Maria Isaura P. de Queiroz, © messianismo no Brasil e no mundo, So Paulo, Dominus-EDUSP, 1965, que, distinguindo os movimentos messifnicos primitivos dos nisticos, observa apenas que "é licito supor que desde os primeiros tempos aqui tivessem chegado individuos que conhecessem as Trovas de Bandarra, tanto mais que boa quantidade de cristdos-noves, ~ talvez a camada da populago portuguesa mais atingida pela orenga, - era enviada para a colnia" ¢ acrescenta, logo adiante, "é no século XIX, nas vésperas da Independéncia e depois dele, que viajantes e memorialistas vao assinalar a existéncia de novos sebastianistas no pais”. (18) "Esta justaposigao histérica calca-se sobre trés séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imével o tempo sobre a ristica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolugdo humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalcavam, doidos, 0 Miguelinho ou o Bandarra. Nao Ihe falta, para completar 0 simile, 0 misticismo politico do sebastianismo, Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertées do Norte" - Euclides da Cunha, Os serties, S40 Paulo, Trés, 1973, vol. I, p. 152. (19) Na primeira visitagdo do Santo Oficio & Bahia, Gregorio Nunes foi denunciado por se refetir as trovas do Bandarra: “aguillas ¢ leones/ ganarao la fortaleza! subiram em tania elteza,/ que amansen los dragones/ y todos rebueltos en lid, vernam en sus comfusiones/ subiram francos leones/ con uno de sangre de David" - Primeira Visitagio do Santo Oficio as partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendoca. Denunciagées da Bahia (1591-1593), Si Paulo, Paulo Prado, 1925, pp. 316-317 Para um estudo informative dos falsos D. Sebastizo que apareceram na peninsula Thériea, ver Miguel d’ Antas, Les faux Don Sébastien. Etude sur I' histoire du Portugal, Paris, Auguste Durand, 1866, Uma proposta de mudanga do paradigma sobre © tema encontra-se em Diogo Ramada Curto, "O Bastidio! O Bastido! (Actos politicos & modalidades de crenga, 1578-1603)", in Yvette Kace Centeno (coord), Portugal: mitos revisitados, Lisboa, Salamandra, 1993, pp. 139-176. Para ele, trata-se de fugir a0 circulo vicioso que estabelece uma relagZo causal entre 08 falsos reis ¢ 0 sebastianismo, ¢ abordar a questo por vias diversas, como o conjunto de praticas e representagSes que envolvem tais crengas, alargando o repertério dos temas propostos, sem confinilos a uma matriz sebastianista, Sugere também o abandono do recurso facil a cultura popular como depositaria das crengas sebastianistas, substituindo-o por uma metodologia que valotize a encruzilhada de interesses sociais em jogo. Em resumo, Ramada Curto questiona a tradigfo historiogréfica portuguesa que inventou o sebastianismo como expresso do sentimento nacional 23 (20) Sérgio Buarque de Holanda, Visio do paraiso: os motivos edénicos no descobrimento e colonizacio do Brasil, Sa. ed., Sao Paulo, Brasiliense, 1992, p. XXIL. (21) Alberto Pimentel, As amantes de D. Joio V, Lisboa, Livraria Ferin & Cia, 1892 Neste livro, © manuscrito é citado pela primeira vez, Mais tarde, o pesquisador Emesto Ennes tentou localizé-lo na Biblioteca Nacional de Lisboa e, no 0 conseguindo, atribuiu 9 fato a um erro de citagao. (22) Sobre o assunto, consultar Luis Reis Torgal, Ideologia politica e teoria do Estado na Restauragio, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1981- 1982, 2 vols. (23) Um dos livros que melhor exploram as ambigiidades da documentacio inquisitorial, evidenciando os hiatos que separam o discurso dos acusados e as erengas dos juizes, 6 da autoria de Carlo Ginzburg, Os andarithos do bem: feiticarias ¢ cultos agririos nos séculos XVI e XVIL, trad., Sao Paulo, Companhia das Letras, 1988. (24) Jacques Le Goff, "A historia do quotidizno”, in Duby. Ladurie, Le Goff et alii, Hist6ria e nova histéria, trad., Lisboa, Teorema, 1986, pp. 73-82. (25) Jonathan D. Spence, O palicio da meméria de Matteo Ricci, a histéria de uma jagem: da Europa da Contra-Reforma a China da dinastia Ming, trad., Sao Paulo, Companhia das Letras, 1986 CAPITULO 1 A CONSPIRACAO QUE VEIO DAS MINAS GERAIS $0 preso sojfe tants semrastes. tantes injivias, tamu Insipiénela, tantas.estultices, santas Injustigas, ramtas tranias, eantes violincias, & por se ver vexado e oprimido de poder. sem comunicagto nem recurso algum... Eé vista deste semoratdes, injustigas e mulidades, se persuade haver empenho em que sefa castiguddo tenka ou nao tenka culpa, Pedro de Rates Henequim 28 A’ PRISAO NO RATO Eram onze horas da noite de 21 de novembro de 1740. Aquela hora, quando Lisboa estava as escuras, as pessoas, temerosas de crimes ¢ roubos, andavam "embugadas", escondidas por grandes capotes que thes cobriam a cabega até os pés. Na encruzithada do Rato, ndo mais se ouvia o alarido de vozes ¢ coches que emanava da faina ditria dos caboqueiros, empreiteiros e pedreiros, responsiveis pela construgéo do Aqueduto das Aguas Livres. Somente uns poucos aguadeiros e carreteiros vinham encher suas pipas ou dar de beber aos animais no seu chafariz (1) Junto as paredes irregulares e sinuosas dos claustzos conventuais das religiosas da Trindade - famosas pelos doces ¢ confeitos paradisfacos, ¢ pelas reliquias de S. Joao da Meta que haviam eurado 0 pequeno D. José - o desembargador Joaquim Rodrigues Santa Marta Soares estava prestes a executar a diligéncia mais importante de sua vida - naquela noite, diria mais tarde seu filho, seria resolvido “um dos negocios mais importantes a ‘Monarcuia nestes nossos tempos" (2) Por volta dos 51 anos, o desembargador Santa Marta tinha percorti¢o com sucesso as principais etapas da carreira de magistrado no Portugal setecentista. Comegara bem cedo, mal completados 0s dezoito anos, como familiar do Santo Oficio, graduara-se em Direito Civil na Universidade de Coimbra e seis anos depois iniciara a lenta ascenstio como magistrado (3). Cavaleiro da Ordem de Cristo e ex-juiz dos érfaos, ocupava entio 0 cargo de corregedor do crime do bairro da Rua Nova - ¢ dali a dois meses chegaria a Casa da Suplicagdo de Lisboa, no obstante a exigéncia imposta pelas Ordenagbes Filipinas de que 08 magistrados devessem servir antes na Casa do Porto (4). Desde e conclusio dos estudos em Coimbra, 0 desembargador viaha acumulando uma extensa folha de servigos prestados & Coroa portuguesa, em que figuravam, ao lado de tarefas aparentemente prosaicas como a supervisdio do provimento de cal nas obras de Matra, itens mais prestigiosos, como a averiguagdo dos crimes de moeda falsa cometidos no ultramar. Ainda que nio fizesse parte do primeiro escalo do governo joanino, Santa Marta podia se orgulhar de ter conquistado a confianga dos seus integrantes, a julgar pelas diligéncias particulares e sigilosas - verdadeiras lettres de eachet - que lhe eram confiadas por El-rei (5). Nada porém se comparava A mais recente missio que D. Joao V, 0 Magnanimo, havia Ihe designado: a captura e prisio de um homem que, vindo das Minas, andava “bastante tempo convidando ao senior Infante D, Manuel passasse ao Brasil, aonde o faria aclamar imperador, € provava que nele se havia de ver 0 So. Império de que fala a Escritura" (6). O irmao mais novo do rei, celebrizado pelos feitos herdicos mas guerras contra os turcos e pelas andangas nas cortes mais faustosas da Europa, deixara-se induzir pelos "desatinos” daquele homem que Ihe prometia © trono de Imperador da América Meridional. Com efeito, por toda Lisboa, circulavam rumores sobre 0 temperamento indécil ¢ rebelde do Infante, conhecido como 0 Serenissimo, ¢ sobre o seu gosto exagerado pelo luxo ¢ ostentagao - ¢ 0 desembargador sabia bem que o luzimento do ouro cegava os homens, porque as frotas que arribavam na Ribeira traziam, além do ouro, os criminosos que as Minas Gerais vinham despejer em Lisboa e, que depois itiam infestar a cadeia do Limoeiro, Pelas suas mios, passava o ouro dos contrabandistas, dos falsérios e dos ladrdes, encerrando-se ali o circuit Europa-Minas Gerais- Costa da Mina (7) Um “dalito téo execrando” como aquele deveria permanecer em segredo e exigia, por isto mesmo, a experiéncia de um homem acosturado a diligéncias furtivas no meio da noite © subtrair sorrateiramente os desafetos de El-rei, enviando-os para além das fronteiras do Reino (8). De resto, no faltavam ao magistrado as qualidades necessérias para desbaratar uma conspirag%o urdida nas Minas Gerais, visto que nos tltimos anos estivera 4s voltas com contrabandistas e falsirios de toda sorte, desvendando conexSes que se estendiam desde as Minas até os paises do Norte da Europa. Investigara, por exemplo, es negécios labirinticos do célebre falsério Inécio de Sousa Ferreira e de seus correspondentes na Inglaterra, acompanhando 0 curso das carregagdes de diamantes até 0s ricos comerciantes judeus de Amsterdam. Descobrira assim, na teia enrodilhade dos devedores © credores de Inécio, o montante de dinheiro que, gragas a pena de contisco, deveria seguir para os coffes da Real Fazenda (9) 2 Indubitavelmente, Santa Marta, com sua galetia de falsirios, homicidas, contrabandistas hereges, cra o homem taihado para o servigo. Disposto a no medir esforgos para satisfazer a vontade real, chegou mesmo a pagar espias e fazer jornadas pelo Alentejo, no encalgo daquele homem que, conspirando contra o real poder, sonhava em fazer um novo imperador na América, arraneando a El rei a "melhor parte dos (seus} dominios" (10). Pela primeira vez, defrontava-se com o crime de lesa-majestade, considerado t2o grave e abominavel que as leis do Reino 0 comparavam a lepra, "porque assim como esta enfermidade enche todo 0 corpo, sem nunca mais se poder curar, € empece ainda aos descendentes de quem a tem", assim também o erro da traigo "condena ‘o que a comete, ¢ empece ¢ infama as que de sus linha descendem” (11) Finalmente, naquela noite, 0 desembargador avistou junto 20 convento da Trindade a figura de um "homem ja velho, calvo, de mediana estatura” (12), que, montado a cavaio, vinba pela estrada de Belas, Seu nome era Pedro de Rates Henequim. Foi preso ali mesmo, quase em flagrante, quando voltava da quinta do Infante D. Manoel, em Belas, trazendo consigo um dos criados do Serenissimo (13). AS VOLTAS COM O SANTO OFICIO Aum rei absolutista como D. Jodo V era dado fazer a justiga pessoal nos crimes politicos e alegar a razdo de Estado para justificar 0 segredo. Aqui ¢ ali, os arquivos revelam a sua intervengdo direta na prisio e no degredo de individuos que iam desde pobres-diabos até aristocratas de quatro costados. Valia- se de homens como Santa Marta que, num arremedo da Bestitha, elugavam casas especialmente destinadas a receber individuos sobre os quais convinha silenciar. ‘Nao faltavam casos em que a propria residéncia fazia as vezes de carcere privado, 08 prisioneiros dividindo 0 mesmo teto com 0 magistrado e seus familiares. Alt eram alimentados, submetidos a continuos interrogatérios e zelosamente vigiados. Dada a natureza sigilosa da diligéncia daquela noite, 0 conspirador, depois de preso, foi conduzido & rua do Outeiro, na freguesia dos Martires, onde vivia o magistrado com a mulher e 0s filhos pequenos, assistidos por uma escrava, um pagem ¢ uma ama de leite. Nos dez meses seguintes, ele ocuparia um dos quartos daquela casa por onde tinham estado alguns dos comparsas de Inacio de Sousa Ferreira. © desaparecimento repentino de Henequim chamou a atengio dos conhecidos. Ninguém sabia do seu paradeiro ¢, intrigados, uns se convenceram de que voltara 20 Brasil; outros, como a muther, deram-no por morto; ¢ alguns ainda observaram que era como se “a terra se tinha aberto com ele" (14), Enquanto isso, Sania Marta extraia do prisioneito o rol de suas culpas, mal sabendo o que ocultava nos papéis que este trazia num pequeno bat, onde guardava os manuscritos de sua autoria e, possivelmente, os oficios trocados com a Corte da Espanha Nao tardou muito para descobrito metide sama outta conspiregao, intentada em junho daquele mesmo ano, junto 20 cénsul espanhol, Jorge de Macezaga. Alegando ser o descobridor das minas de ouro ¢ diamantes do Serro do Frio ¢ conhecedor de abundantes veios inexplorados, apresentou-se ao cénsul, oferecendo seus servigos € conhecimentos @ Coroa espanhola em troca do titulo de Conde, Dizia-se escandalizado © queixoso com a indiferenca de El-rei D, Joao V ante a sua ditatada folha de servigos, tendo durante quinze anos esperado pacientemente a mercé que Ihe era devide (15). Nos papéis dirigidos as autoridades espanholas, exagerava seus feitos, aventava uma falsa nobreza de sangue ¢ comparava-se a Colombo, também ele vitima da ingratidao dos portugueses. Bastaria pois uma ordem vinda de Madrid para se pér a caminho de Cadiz. dai embarcar para Buenos Aires, de onde, em companhia de cem homens "sertanistas* mais alguns negros mineradores, subiria o rio da Prata até alcangar as minas do Serro do Frio (16) Apesar do tom algo megalomaniaco do oficio apresentado ao cénsul espanhol, ‘Henequim nada tinha de ingénuo - e bem 0 comprova a data escolhida para oferecer suas informacdes a Espanha. Tratava-se de um periodo especialmente turbulento nas relagdes entre Portugal ¢ Espanha em razdo das pretensdes de cada um deles sobre as terras do continente americano, Estava em pauta a questiio da fixagtio dos limites nas regides a Oeste - onde haviam sido feitos descobrimentos de ouro - e ao Sul, na tumultuada Colénia » do Sacramento, no estuario platino. A Coroa espanhola tinha grande interesse em obter informagées seguras sobre as minas, em especial as de Goias ¢ Mato Grosso, a posigao delas em relagdo ao meridiano de Tordesilhas - a exemplo de Portugal, que providenciara a missio cartogrifica dos padres matematicos Diogo Soares e Domingos Capassi para fomecer a base cientifica da negociacao do tratado dos limites do Brasil com a América Espanhola (17), Era tensa a situagio entre os dois paises. Cinco anos antes, o embaixador portugués havia sido expulso de Madrid, dando assim o pretexto para o fim das relagdes diplomaticas entre eles. E 0 préprio cénsul espanhol Jorge de Macazaga confessava, em carta a0 Marqués de Villarias, que em Lisboa "se vive com tanta cautela e desconfianga de qualquer espanho!, que para o intitular contrabandista, basta pouco” (18). Henequim estava a par da natureza das hostilidades, a ponto mesmo de- excitar 2 ambigo dos espanhdis com a mengo ao fato de que as grandes riquezas minerais situavam-se de tal modo que "tanto podem ser de Portugal como de Castela; assim por no estarem as terras ali demarcadas, como por no terem os portugueses da outra parte das ditas serranias ¢ ditas vertentes ainda vila, arraial, nenhumas rogas que inculque dominio (19)" Apresentado 0 oferecimento, © céasul tratou logo de enviar 0 papel escrito pelo proprio Henequim ao poderoso Marqués de Villarias, 0 secretario de Estado dos reis catélicos, pedindo-Ihe instrugdes. De Madrid, 0 Marqués encarregou o cénsul de obter informagdes precisas sobre a origem, credibilidade e veracidade das declaragdes de Henequim, e também de averiguar o prémio almejado por ele (20). Em suas diliggncias, 0 cOnsul apurou que ndo fora Henequim o autor das descobertas de diamantes, e tampouco dele tinham noticia ou conhecimento os verdadeiros descobridores, Seu nome era desconhecido também pelos homens de negocio de Lisboa. Além disso, 0 religioso da Divina Providéncia José Barbosa, de quem o ofertante dizia ser amigo, asseverou ao cSnsul que "do contexto de seus discursos inferiu seja um louco pelas extravagantes proposigdes que dele ouviu". Nada mais restava ao cénsul que concluir que “nfo se deve fazer caso de seu projeto, como fundado no ar ¢ sobre impostura" (21). A Henequim 0 cénsul, instruido por Madrid, omitiu 0 teor de sua avaliagio, restringindo-se a informé-fo que Sua Majestade nfo julgava conveniente "se faga por ora passo algum", E assim, decorridos quase dois meses de correspondéncia entre Lisboa e Madrid, 0 ex-mineiro via-se preterido nos seus planos de entregar a América aos espanhdis. Quando 0 prendeu no Rato, Santa Marta certamente ignorava este outro crime intentado por Henequim contra a Monarquia portuguesa. Fosse como fosse, a verdade & que pouco depois, em fins de fevereiro de 1741, trés meses depois da prisfo dele, 0 embaixador portugués em Paris, D. Luis da Cunha dava inicio a ume série de diligéncias junto @ Jean Jacques Amelot de Chailloux, ministro dos negécios estrangeiros da Franga, para que este obtivesse, por intermédio do Marqués de Campo Florido, embaixador espanhol na corte francesa, a destivuigio do consul espanhol de Lisboa, As instincias do embaixador portugués arrastaram-se até maio, quando aparentemente Jorge de Macazaga retirou-se de Portugal (22). El-rei via-se assim livre do individuo que ousara intermediar as pretensbes subversivas de um vassalo poriugnés com uma nagio inimiga, numa época em que as gafes mais irrisrias feriam suscetibilidades e justificavam o banimento de representantes diplométicos Em setembro de 1741, Henequim continuava preso em casa de Santa Marta "Vexado pela injustica” do cércere em que estava metido, conforme relataria depois, tratou de pér em pritica um perigoso plano de fuga, ¢ na madrugada de 24 de setembro, depois de atear fogo no lugar, conseguiu livrar-se do cativeiro, figindo em meio a confusio (23), Nao durou muito a liberdade, Dias depois, foi capturado e reconduzido & rua do Outeiro, © posto, dessa vez, “a grilhbes e algemas". Algo, porém, iria alterar decisivamente 0 curso dos acontecimentos: a deliberagto do desembargador Santa Marta em manda-lo para os carceres secretos do Santo Oficio sob acusagio de heresia. Aquela altura, 0 exame dos papéis de Henequim havia convencido o desembargador de que os delitos de seu prisioneiro iam muito além da conspiragio pela qual o prendera. Com a ajuda do irmio, o padre Teodésio de Santa Marta, arquitetou um plano bastante simples 31 para aticar a eloquéncia blasfeme pressentida naqueles escritos. Tudo consistia em se esconder atras de uma porta enquanto o padre Teodésio propusesse algumas questdes sobre matéria religiosa ao prisioneiro. Vitima do ardil, Henequim passa a ser considerado réu suspeito na £8 e logo depois, denunciado pelos irmaos Santa Marta, dé entrada nos cérceres secretos do Santo Oficio. As deniincias vio se juntar "alguns papéis da sua mesma letra" (24), encontrados em poder dele por ocasido da prisio, no Rato, através dos quais o magistrado conhecera faceta heterodoxa do conspirador vinde das Minas. Ao inquisidor Simo José Silvério Lobo, os itmios Santa Marta fazem um relate extremamente detalhado das proposigdes heréticas de Henequim. Acusam-no de defender © concubinato, a fornicagao simples, 0 uso da cabala para a perfeita inteligéncia das Escrituras, 2 existéncia de anjos machos e féineas, e a provisoriedade das penas do Inferno. Mas, dentre todas as idéias de Henequim, as mais surpreendentes eram, sem diivida, aquelas relacionadas ao Brasil. Dizia que o "Paraiso Terreal est no meio do Brasil em umas serranias", que "havia no Brasil uma arvore, a qual dava uns fiutos como mags, © como figos, e que esta era a arvore do Paraiso", que "Adio fora criado no Brasil, ¢ dele se passara a pé enxuto para Jerusalém"; que 93 quatro rios do Paraiso chamavam-se Sao Francisco, das Amazonas ¢ outros; que "Deus tinha criado o mundo no Brasil"; que 0 trono de Deus se situava sobre a linha equinocial "em lugar perpendicular ao Brasil, centro dele, onde se conservava o Paraiso”, que o dikivio "nunca chegara ao Brasil", etc (25), Todas estas idéias traziam, inegavelmente, a marea dos anos vividos nas Minas Gerais - e dali em diante, decidiriam irreversivelmente o seu destino. Nao eram falsas as deniincias feitas pelos irmaos Santa Marta. E tampouco ere aquela a primeira vez que © nome de Henequim subia a Mesa do Santo Oficio, sob suspeita de heterodoxia. Com efeito, por duas vezes ele conseguira passar ineélume diante daquele tribunal, apesar das graves acusagdes que Ihe haviam sido feites em ambas as ocasides. ‘Na primeira vez, em 1732, fora denunciado por Simiao de Oliveira e Souza, mestre de latim com quem dividia uma casa no beco do Jasmim, Haviam se conhecido numa 22 daquelas estalagens "as portas do mar” - descritas por Merveillenx como “auténticas cavernas de Caco" (26) - e Simido, "obrigado de algumas razdes ", acabou por levar 0 ‘outro para a casa que alugara naquele beco da Freguesia de Nossa Senhora do Socorro. ‘As coisas comegaram a desandar, segundo Simifo, pouco depois, quando Henequim the expés algumas “heresias reprovadas pela lereja, ¢ varios erros", primeiro dentro de casa, ¢ mais tarde, publicamente, no claustro dos padres do Quental ¢ em casa do escrivao da Almogataria-mor. Nessas ocasides, Henequim havia defendido teses pouco ortodoxas, como a concepgio da Virgem através do Espirito Santo, a salvacdo dos condenados ao Inferno, a natureza corpérea de Deus, a matéria cristalina de que eram feitos os anjos e, finalmente, 2 ideia de "que os sentidos das Sagradas Escrituras somente a ele Thos tinha Deus revetado” = convicg&o igualmente mencionada por Santa Marta quase dez anos depois. Simizo revelou também que quando falava do "mau procedimento dos Judeus", Henequim replicava-lhe, dizendo: “que mal the tem feito (.) os judeus", e ecrescentava que “brevemente, e antes de dois anos se renovara 0 Mundo, ¢ no seu governo haveré unus Pastor et unum Ovile, ¢ que os dez Tribus se vertio congregados pois estes andam espathados por toda a América, e assim renascidas as suas primeiras memorias” ‘Na mesma deniincia, feita a0 inquisidor Teoténio da Fonseca Souto Maior, Simiao contou que Henequim nunca se separava de um pequeno bati, 0 qual nao permitia a ninguém abrir, e onde guardave uma Bibiia - “pela qual esti lendo continuamente” - ¢ "varios papéis", dos quais dizia querer “fazer uma obra na qual manifeste o verdadeito sentido das Escrituras, e 0 quanto os Expositores, e Santos Padres trataram, e escreveram delas as cegas" (27) ‘Apesar de o mestre de latim confessar que fazia a denincia movido pelo “zelo cat6lico”, ele tinha motivos suficientes para agir com cautela, buscando afastar eventuais suspeitas sobre si proprio. Seus antecedentes com o Santo Oficio estavam longe de ser abonadores: havia apenas sete anos conseguira finalmente se desembaragar de uma sucesso de trés processos, iniciada em 1710, € que se arrastara por mais quinze anos, estendendo-se de Lisboa a Goa. B A historia de Simigo de Oliveira e Souza, recheada de peripécias extraordinirias, um fragmento valiosissimo que nos informa sobre os miltiplos significados da religido e da viagem na primeira metade do século XVIII. Ela revela, por exemplo, o quanto eram pequenas as distincias geograficas no universo colonial portugués ¢ os complicados mecenismos postos em agio no proceso de adulteragdo da identidade, enormemente facilitado pelo ingresso em ordens religiosas. Aos dezessete anos, 0 jovem Simigo lancou-se na vida de peregrino, partindo de Lisboa em dirego ao Rio de Janeiro. Dai passou para # Col6nia de Sacramento, ¢ logo depois a Buenos Aires. Trés meses depois estava na Universidade de Chuquisaca, na provincia dos Chareas, vice-reinado do Peru, e tendo tomado ai o habito de franciscano descalgo, fugiu ao cabo de seis anos, “discorrendo varias terras até que chegou a cidade de Lima, onde foi preso por epdstata”. Libertado, regressou @ Lisboa e, dividido entre © habito de Santo Agostinho e 0 casamento em Alvorge, optou por este iltimo. O casamento no the alterou 0 gosto da aventura ¢ logo se pds num navio com destino a Cabo Verde - dali tentou passar & Tha da Madeira mas uma investida dos mouros mudou 0 rumo da viagem. Cativo dos mouros, foi levado a Argel ¢ por algum tempo seguiu 0s costumes religiosos locais, todavia a absolvigio de um padre 0 animou a retomar 0 habito de stio Francisco e, por iniciativa propria, comegou a dizer missa e a confesser. Os impetos de novidade fizeram-no aproximar-se dos ingleses de Argel ¢ através deles travou conhecimento com o protestantismo, Acalentou entdo sonhos de se estabelecer na Inglaterra para professar livremente @ religifo de Lutero, mas os seus planos esbarraram na enérgica proibigao do padre que o havia absolvido anteriormente. Simido ainda viveria outras aventuras nos breves dois anos passados em Argel. Abandonou a amizade com os ingleses ¢ o protestantismo, ¢ passou a freqientar uma familia de judeus, com quem se iniciow nas praticas do judaismo, tormando-se seguidor delas. Certamente Simido no havia nascido nem para fincar raizes onde quer que fosse, nom para protagonizar uma biografia convencional, Apos a partida de Argel foi 34 aprisionado por franceses que o deixaram em Cartagena do Levante ¢ dai seguiu a Castela € a0 Alentejo, entrando finalmente em Portugal, Qs problemas de Simiéo com 0 Santo Oficio comegaram quando ele confidenciou a um padre as experiéncias religiosas vividas nos seus parcos trina € poucos anos. Vieram entéo @ baila os pormenores da troca continua de nomes e ordens religiosas - ¢ a “escandalosa” adesio a lei de Maforna e ao judaismo em Argel. Fora franciscano descalyo, dominicano, agostiniano, presbitero, e declarara-se judeu ¢ luterano. Preso nos cérceres do Santo Oficio, Simic colecionaria processos ¢ acusagdes com a mesma intensidade que © fizera em relagio aos habitos religiosos - € conseguiria imprimir o mesmo ritmo dindmico a sua convivéncia com os paladinos da fé catélica. O primeiro processo inquisitorial rendeu-lhe dez anos de degredo para a india. A novidede da paisagem acabou por Ihe excitar a verve de blasfemador a ponto de ter sido preso e sentenciado pela Inquisigo de Goa sob a acusagao de se gabar "de ter composto traduzido varios tratados de matérias heréticas e propagativas de seitas condenadas..." Um ano depois, ainda em Goa, Simido seria denunciado por afirmar que "Deus Nosso Senhor era muito misericordioso, que tanto havia de salvar aos que vivem bem como aos maus, especialmente aos gentios, mouros, judeus..." ¢ que "havia deménios bons e maus, os bons so aqueles que andavam pelos ares, ¢ falavam com pessoas virtuosas ¢ religiosas, principalmente no Brasil, os quais esperavamt ver a face de Deus salvando, e os maus eram aqueles que ficavam reclusos no Inferno". Em vista da complexidade do caso, Simido foi remetido & Inquisigao de Lisboa, conde conseguiu se livrar da proposigdo herética relativa aos deménios bons ¢ maus, alegando que a ouvira de um colegial das indias de Castela, E a Mesa concluiu que "a vista da qualidade da culpa, forma em que a confessa, e em que as testemunhas depaem, ¢ dificuldade de serem examinadas, e repetidas parece & mesa, que no seja processado por ela, ¢ que os cinco anos que Ihe faltam do degredo da india se comute para Angola” (28). Cumprindo 2 sina de viajante, Simiaio reapareceu novamente em Lisboa, em 1724, novamente envolvido com a Inquisigao ¢ com a proposigio sobre os deménios. Em 1725, saiu finalmente livre. ‘Tanto a vida rocambolesca quanto as opinides bizarras de Simido devem ter atraido a tengo de Henequim, com quem partilhava no s6 a experiéncia da vida no ultramar, mas também a influéncia decisiva das paisagens culturais do universo colonial, A breve convivéncia com © mestre de latim imprimiria marcas indeléveis no engenhoso edificio teolégico que 0 ex-mineiro comegara a construir desde os tempos das Minas Gerais: as suas proposigdes sobre os deménios e anjos tém um eco, ainda que longinquo, das enincias feitas contra Simido a época do degredo em Goa, Aos cingitenta e dois anos, catejado pelas vicissitudes dos anos de prisdo ¢ degredo, Simiao parecia ter abandonado a imprudéncia dos tempos das perambulagGes juvenis; e na verbosidade excessiva de Henequim, no modo facil com que emitia opinides controvertides sobre matéria religiosa, principalmente em locais pablicos, pressentiu a ameaga de vir a ser comprometide por aquele homem que acreditava na possibilidade de burlar a Inquisigio - aquete mesma Inquisigto que estendera seus tentéculos até Goa para prendé-lo Aguela altura, porém, a sua eredibilidade nfo resistiria 20 crivo do tribunal e as deniincias esbarraram no depoimento das testemunhas presentes 20 Claustro do Quental, todas undnimes em desqualificd-lo como denunciante © individuo, chamando-o de “embruthador, mentiraso, € indigno de crédito algum”, “orgulhoso e trapaceiro”, de quem se dizia “que em cada terra tomava diferente nome" (29). Desconfiado do autor das deniincias, 0 inquisidor Teoténio da Fonseca Souto Maior deu pouca atengao ao fato de que o relato daquelas testemunhas confiemava, em linhas gerais, 0 conteiido delas. © nome de Henequim voltaria a ser pronunciado nos Estaus em fins de 1733 Persistindo naquela loquacidade que atemorizara o mestre-escola, Henequim envolveu-se numa discussio sobre as palavras da Consagragio, ocorrida na casa do advogado Pedro Caetano de Tarouca, na rua das Arcas. Ali, na presenga de varias pessoas, o médico Joao Batista Gillé propds a seguinte questo: qual era o significado da palavra hoc dita durante a consagragio, uma vez que, quando proferida, nfo se tinha ainda o sacramento nem o corpo de Cristo. Henequim, descrito na denimcia como "presumido ¢ prezado de saber as Escrituras", defendeu a tese de que o corpo de Cristo ia se introduzindo no sacramento & 36 medida que as palavras eram proferidas, de modo que se 20 pregador, durante a consagragio, faltasse a voz ou mesmo morresse, impedindo-o de acabar as palavras da Consagragao, ficaria o "sacramento imperfeito", E para melhor ilustrar esta idéia, recorreu @ imagem da corrupco de um dedo "que quando se corrompia se ia introduzindo a corrupgio por partes, e sendo corrompia todo ao mesmo tempo". A idéia de “sacramentos imperfeitos", saida da boca de um homem "acostumado a ter semelhantes argumentos com presung de saber as Eserituras Sagradas, e mostrar em a maior parte detes inclinago a0 contririo semtido que a Igreja nos ensina", tevou dois dos presentes a se abalarem na mesma tarde ao Tribunal do Santo Oficio para denuncia-io Na manha do dia seguinte, um Henequim visivelmente cauteloso comparecia nos Estaus para afastar qualquer suspeita sobre o episodio dos tais "sacramentos imperfeitos” ocorrido na véspera, na rua das Arcas, Com bastante cuidado, buscou atenuar o sentido atribuido a expresso, alegando que nao chegara a declaré-lo , "porque tanto que [...] disse isto se levantou uma tal gritaria que ele [...] tomou por melhor partido o retirar-se da dita casa de que continuar na dita disputa... A tentativa, porém, nfo foi de todo bem- sucedida: mostrando no estar convencido com a explicagao aventada e farejando heresia, nas palavras daquele homem acostumado a inverter © sentido das Escrituras, o inquisidor Agostinho Gomes Guimaraes incitou-o a "declarar a verdadeira intengao com que disse a dita _proposigdo". © outro, receoso, limitou-se 2 dizer que entendia “que todo o Sactamento vilido € perfeitissimo* e o inquisidor, desconfiado, deu-the ordens para que “desta cidade sendo ausente sem expressa licenga desta Mesa, a sala da qual vird todos os dias no feriados de manhi as oito horas, e de tarde as duas até se findar a sua causa 0)". Nao ha registro, nos papéis do Santo Oficio, de que Henequim tenha cumprido 0 juramento feito naquela manh3, com as maos postas sobre os Evangelhos. A julgar pelas evidéncias disponiveis, ao menos no que respeits ao Santo Oficio, o incidente da rua das Areas no teve outros desdobramentos, ademais, possivel que ele nfo tenha se epresentado novamente, uma vez que a sua verborragia o levaria, em uma ou duas 7 sessdes, a pér para fora o turbilhdo herético que o inquisidor mal vislumbrara naquela smanha (1). Assim, Henequim podia vangloriar-se de ter escapado as garras do Santo Oficio por duas vezes, no obstante seus delatores 0 terem apresentado como um homem que dizia que os Santos Padres "no sabiam o que diziam, e nao entendiam bem a Escritura..." (32). Naguele ano de 1741, a aparente distragao da Inquisigdo tropecaria na "prova material", por assim dizer, da heterodoxia de Henequim, anexada @ dentincia minuciosa dos irmios Santa Marta; os papéis guardados no batt, mencionados por Simiao de Oliveira € Souza, dos quais pretendia fazer surgir 2 obra que reuniria suas idéias. Mencionados varias vezes na deniincia dos Santa Marta, os manuscritos tomaram-se @ pega essencial Gas acusagdes imputadas a Henequim, e, a julgar pelas palavras do desembargador e do proprio réu, foram eles decisivos no proceso de transformagao do criminoso de lesa- majestade em suspeito na matéria de #8, Lendo-os. 0 magistrado descobriu que 0 prisioneiro, além de defender proposigdes malsoantes & Igreja, “praticava, e tinha uso da cabala proibida na interpretagio das Sagredas Escrituras" (33). O proprio Henequim no negaria © uso da cabala, nem tampouco a crenca nas proposigées arroladas pelo desembargedor na denunciagZo. Por outro lado, 0 papel decisive que os manuscritos viriam a desempechar na sorte futura dele levanta um problema: se no ha diivida de que Santa Marta tivesse conhecimento, pouco depois da apreenso no Rato, do perfil herético de Henequim - 0 que é corroborado pelo fato de que, do ponto de vista dos cdnones da Igreja Catdtica, aquete estivera, a0 menos desde 1732, seriamente comprometido com a heresia -, por que teria 0 desembargador adiado por tanto tempo a prisiio nos cdrceres do Santo Oficio? Seja como for, o Henequim que entdo comparece a Mesa do Santo Oficio em nada Jembra a figura cautelosa e condescendeme que fora ali rechagar a existéncia de sacramentos imperfeitos, ¢, ao longo dos quase trés anos de interrogatérios, inquirigSes, exames, audiéncias, aquele micleo de proposigdes heréticas originalmente denunciado por Santa Marta toma proporgées inusitadas. Se 4 época em que dividia uma casa com 0 globe-trotter Simifio no beco do Jasmim, Henequim jactava-se de nao temer 0 Santo 38 Oficio, asseverando que "ele se livraria deste Tribunal porque em dizendo o que nao sentia ficava mentindo nele, ¢ assim se livrava da mesma sorte como o padre Anténio Vieira da Companhia de Jesus ¢ outros mais” (34), 05 tempos eram outros ¢ a providencial prudéncie do jesuita foi substituida por ume atitude de arrogancia inquebrantavel. Jé na primeira sessio, ele faz um apelo & Mesa para que examine os manuscritos “com toda a consideragao", descrevendo os titulos dos livros que principion a eserever. Eram ao todo quatro volumes, assim descritos por ele: "Divina Linguagem = dividida em duas partes, a primeira consta das letras do nosso abecedario em geral, ¢ a segunda de cada uma delas de per si, e em ambas elas mostram que a Linguagem portuguesa, é a que Deus fala, ¢ ensinow a Adio = Divindade feminina em que trata praticamente da Conceigo da Senhora = Paraiso Restaurado, Lenho da vida descoberto = dividido em duas partes: na primeira se mostra aonde é 0 Paraiso, e na segunda qual ¢ a arvore da fruta vedada = e finalmente = Divino do Divino = em que esto juntos os lugares da Escritura em que Deus pela sua boca fala” (35). Orguihava-se da obra ainda inacabada. Alegava que, em se tratando de “matérias [1 tao sutis que mal se podem explicar de outra forma", preferia fazer uma apresentagao escrita das idéias, solicitando “tinta e papel. ¢ a sua Biblia (36), A recusa do pedido nao 0 demoven do intento de fazer uma exposi¢ao da obra num formato rigorosamente livresco: as sessbes, caracterizadas por raras interrupgies do inquisidor, déo lugar a verdadeiras conferéncias, as quais nfo faltou nem mesmo o tam professoral, alinhavando argumentos e conceitos em longas exposiges, esolarecendo aqui e ali as sutilezas e asticias da teologia, ancorando as proposi¢Ses-chaves, perfeitamente delimitadas, nas provas retiradas da Biblia, Abundavam as passagens biblicas, citadas na versio latina e, nalguns casos, ousava mesmo cortigir @ Vulgata de sio Jerénimo, descobrindo novos sentidos nos termos hebraicos originais (37) Todo o raciocinio traia uma cultura fivresca, erudita, acostumado a embrenhar-se na critica vigorosa e sofisticada, integrando-se a um grande sistema teol6gico, cujas partes ia expondo pormenorizadamente em sessGes sucessivas, sem perder de vista o argumento principal. A metafora do edificio, fundamental para a compreensio de sua concepgo sobre 0 progresso do conhecimento, também se adequav ao modo sistémico pelo qual organizave ¢ interpretava os varios campos da teologia. A defesa apaixonada ¢ inflexivel de suas idéias justificava-se pela convicgio de ter sido eleito por Deus “como instrumento para se descobrirem e saberem no mundo muites maravilhas por ninguém até agora sabidas, nem descobertas, ¢ ocultas nas Divinas Letras” (38). Tluminado pelo Espirito Santo, que o fizera Ministro Universal, Henequim acreditava ter alcangado © grau supremo do conhecimento das coisas divinas, Para o longo aprendizado das Escrituras concorriam virios fatores: em primeiro lugar, era o eleito de Deus, o instrumento através do qual eram revelados os mistérios divinos, em segundo, era necessério que ele se aplicasse ao estudo das Escrituras mediante o exercicio da razio; € por tiltimo, ¢ mais importante, era preciso receber a Luz do Espirito Santo para alcangar aguelas verdades As ifuminagdes do Espirito Santo - denominagéo que deu 20 entendimento intelectual assim alcancado - eram uma dadiva diving. Dai rejeitar perempioriamente a suspeita de que tivesse sido instruido ow iniciado por outrem nos mistérios das Letras - sequer revelou, a0 longo dos quase trés anos de inquirigo, 0 nome de um autor ou obra que tivesse sido decisivo na sua formagao intelectual, Tudo aquito era de seu estro, Entre ele ¢ Deus, que o iluminara, nfo havia intermediarios, mestres ou iniciadores A condigdo de eleito de Deus levava-o a rechagar veementemente a afirmacio de que suas idéias entravam em conflito com a f8 catélica, uma vez que as matérias versadas estavam além dela, ou seja, eram em tudo novidade jamais tratada pelos padres. Era o depositirio de um novo conhecimento - ¢ para explicar sua visio dele, recorria & metifora do edificio que se vai aprimorando no decurso do tempo. Depois de os Padres da Tereja terem levantado as paredes de alvenaria, Deus o enviera para "aperfeicoar, ¢ lavrar pedras de cantaria, para cimalhas, corrigeras [sic], e torres, pirdmides, e grimpas desta mesma Igreja, para ficar na tltima perfeigao" (39). AS AGRURAS DO AUTO-DA-FE Na manhé de 21 de junho de 1744, primeico domingo de verdo, a populagio de Lisboa preparava-se para assistir a um dos autos-da-fé mais concorridos dos ultimos tempos: seriam trinta ¢ trés penitenciados e mais cito relaxados em carne. Participariam dete a célebre dona Maria Cristina, que se fizera passar_por homem e lutara na Franga; 0 padre José de Siqueira, que protagonizaria um dos momentos mais dramiticos do auto; a nfo menos conhecida Thereza Carvatha, defensora de opinides heréticas, varios bigamos vindos do Brasil; 03 adeptos da desconhecida seita dos pedreiros livres, cuja novidade atraia a atencao de todos, curiosos por ver os estrangeiros que a introduziram em Portugal. E finalmente, 0 heresiarca Pedro de Rates Henequim - 0 sexto na lista dos que seriam relaxados A justiga secular (40) A diversidade dos delitos era tdo impressionante que, na edigfio daquela semana, a gazeta semanal Merciirio Histérico opinaria: "no se viu Auto tio pequeno com tanta variedade de abominagdes". Ainda assim, depois de mencionar os crimes de D, Maria Cristina, a gazeta reservaria a maior parte do texto ao heresiarca Pedro de Rates Henequim, contando, em tom edustico, qué, ao Iongo do proceso, ele "descompds por muitas vezes aos Srs. Inquisidores, e 20s Padres que Ihe metiam por que era soberbo presumido de sua maldita ciéncia, ¢ to petulante que a todos tratava com desprezo de ignorantes, © até aos Santos Padres Expositores, quando Ihes alegavam." Ademais, informava - erroneamente - que o réu inventara o apelido Henequim "para se diferenciar dos mais" (41) A familia real demonstrou também um interesse especial por aquele espetéculo: na véspera, © rei sofrera um pequeno acidente, mas uma providencial purga lhe devolveu 0 4nimo para suportar os “excessos" que a ceriménia exigia - ¢ por via das. dividas, todas a5 pessoas reais pemoitaram no palécio dos Estaus para assegurar a assisténcia Arredariam dali somente quando toda a cerimdnia estivesse concluida, na manha de segunda-feira, quando jé ia alto o sol (42). 03 acontecimentos daquele dia ficaram perpetuados sob a pena indignada de um dos seus participantes, 0 lapidario suigo John Coustos, preso por magonaria. Condenado as galés, ele obteria a liberdade mediante a intervengdo do rei George Il, e, de volta & 4 Inglaterra, escreveria uma pequena narrativa das agruras softidas nos cérceres da Inquisigao portuguesa. The sufferings of John Coustos, publicado em Londres em 1746, é talvez a nica descrigdo feita por um penitenciado de um auto-da- f& em Portugal (43), Espectador atento, preocupado em registrar todos os detalhes, Coustos descreveria a meticulosa hierarquia que regia todo o cerimonial, anotando até mesmo a bizarra pragmitica que determinava o vestuério dos penitenciados pelo Santo Oficio. Assim, heresiareas como Henequim eram facilmente identificados petas labaredas pintadas na samara cinzenta, pela carocha pintada com figuras do deménio e pela indefectivel mordaga (44), Sob o olhar atento de El-rei, principiou, segundo o relato de Coustos, a marcha dos penitenciados: "a procisséo deu uma volta em torno do patio do palicio do inquisidor, na especialmente para a presenga do rei, da Real Familia e de toda a Corte, que v ocasiio" Nem toda a familia real - dige-se de passagem - estava presente: o pretendido Imperador da América Meridional ndo assistiu 4 execugdo do homem que lhe acenara com a mais valiosa jéia da monarquia portuguesa Outra personage também dedicou algumas linhas ao espetéculo daquele dia, vazadas num tom muito divers ao do propésito panfletario de Coustos. Foi o jesuita Miguel de Almeida, designado pelo Santo Oficio para prestar assisténcia religiosa ao réu Pedro de Rates Henequim, desde a notificagio da sentenga final, ainda na sexta-feira, até a sua execugfo. Ao contririo de Coustos, 0 jesuita participava de um acontecimento que the cera familiar, habituado que estava a acompanhar penitentes. Assim, quando escreveu a um amigo contando os padecimentos vividos na ocasido, flo de um modo informal, intercalando aqui e ali referéncias a aspectos prosaicos do cotidiano. Sua descrigao principia pela saida dos penitentes dos Estaus ".. saiu a procisso pelas onze horas da manha com uma horrivel calma, e pela espera, que tivemos no tabuleiro da Igreja de Sao ‘Domingos foi tal o calor, que ai aturamos, que cuidei se me frigiam ‘05 miolos. Dentro da Igreja aturei até as seis horas uma terrivel sede e calor pela inumeravel gente, que nela estava, mas sobretudo © que mais me custou foi aturar em pé a ouvir © proceso do men padecente, quando o acompanhei até junto do altar bem defronte da Tribuna de Sua Majestade ..(45)" Depois de ouvir a leitura da sentenga, que se estendeu por duas horas ¢ meia, durante as quais permaneceu em pé, segurando uma vela acesa, Henequim pede Mesa. E levado ento para uma sala separada e, diante do inquisidor Francisco Mendo Trigoso ¢ do escrivio Manoel Afonso Rebelo, prepata-se para fazer a derradcira retratagao. So 3:50 horas da tarde ¢ a seu lado esté o jeswita Miguel de Almeida. Com as mios atadas, confessa todas as culpas que Ihe imputam e, desesperado, ainda acrescenta: "e se basta confessé-las assim sem as ver, ntem delas se lembrar, as confessa, e pede a0 mesmo tempo perdio deles” (46), Em lagrimas, nfo tem condigdes de assiner a sessio, e pede a0 escrivao pare faz8-lo em seu lugar. Retne-se a Mesa, redne-se 0 Conselho Geral, ¢ a sentenga nao se altera A meia-noite, 0 cortejo sai da Igreja de Sto Domingos, dirige-se ao Tribunal da Relagio, na Casa dos Contos, e por volta das 3°30 horas, parte em dirego av Campo da La, As 7 horas, segundo o jesuita, "depois de se dar o garrote a todos", finalmente retorna 2 Sao Roque, ‘muito moido, e esquentado”. Também aquela hora, acompanhado pelo Principe D. José e pelos Infantes D, Pedro ¢ D, Anténio, El-rei abandonava 0 lugar, levando consigo o "vistoso” processo de Pedro de Rates Henequim (47) A CRIACAO DO HERESIARCA Feita a primeira dendncia contra Henequim, 0 desembargador Santa Maria - “*magistrado austero e catdlico intolerante", como o chamou Camillo Castelo Branco (48) - aparentemente no mais participaria do desenrolar do processo. Tampouco o crime de lesa-majestade e a conspiracZo tramada junto ao Infante seriam citados € o pesquisador, as voltas unicamente com 0 processo inquisitorial, seria naturalmente levado a concluir que 0 crimes imputados @ ele versavam apenas sobre matéria religiosa. Em meio aos demais, processos da Inquisigéo portuguesa, nada sugere a trama que se esconde por tris de suas folhas. B Se © Santo Oficio silencia as atividades conspiratérias do réu, todavia no as omite de todo: alguns detalhes significativos, como a informagdo dada por Santa Marta, logo na primeira denimcia, de que "prendendo ele ha bastante tempo nesta Corte por ordem de sua Majestade 2 um homem chamado Pedro de Rates Henequim...", ou ainda quando, na primeira sessio, 0 escrivo refere-se 2o réu como sendo o homem que "veio preso para os cdrceres desta Inquisigdo de casa do desembargador Joaquim Rodrigues de Santa Marta Soares, onde também se achava preso a ordem de Sua Majestade" (49). Lacdnicas reticentes, tais pistas nfo so suficientes para deslindar os bastidores obscuros daquela, primeira priso ocorrida no Rato - e a curiosidade agucada do historiador nao encontraria respostas ao longo das quase mil piginas do proceso movido contra Pedro de Rates Henequim Neste sentido, ndo parece despropositado empregar a expresso "proceso de despolitizagao” para definir os mecanismos através dos quais 0 nome de Henequim cess de ser associado a uma conspirago matograda para encarnar o esteredtipo do heresiarca, E importante notar que a expresso tem aqui um sentido lato, ou seja, o “politico” relaciona-se aos propésites dele junto ac Infante D. Manuel ¢ aos planos para aclama-lo Imperador da América Meridional, Bvidentemente, para os contempordneos no existiz uma distingZo tio rigida entre “potitico” e "religioso": os delitos da fé, sobretudo as heresias, eram também delitos contra a monarquia € contra 2 figura do rei (50). Isto nao significa, porém, que no existisse uma instincia especifica para a averiguagao de crimes de natureza politica, como o de Henequim: a legislagZo portuguesa nao apenas contemplava tal modalidade de transgresso, como também designava o tribunal da Relacdo como o 6rgio competente para o seu julgamento. No dia em que o desembargador Santa Marta conduziu Henequim aos cérceres do Santo Oficio, instaurava-se uma nitida distinggo entre as atividades conspiratorias ¢ as concepges heterodoxas - ¢ significative o contraste entre as circunstancias de ambas as prises: enquanto a primeira realizou-se 2 altas horas da noite, a outra ocorreu & luz do dia, seguindo a praxe do Santo Oficio. Hé ainda um outro aspecto que evidencia o propésito de manter ambos 03 delitos desconectados, recaleando 0 conspirador sob a ay imagem do heresiarca. Preso em outubro de 1741, 0 processo se detém, por quase um ano € meio, na averiguagio da identidade © qualidade de sangue do réu, "visto - segundo 0 inquisidor Trigoso - se nfo saber nesta Mesa quem é 0 réu nem a sua qualidade, ¢ estado, para prova da sua identidade”. Inicia-se entdo uma série de diligéncias e interrogatérios que se arrastariam até maio de 1743, 20 longo dos quais permanece a suspeita de Henequim ser um nome forjado - suspeita que o Mercério Histérico apresentaria, mais tarde, como fato. Somente quando 0 notério do Santo Oficis, André Corsino de Figueredo, localiza na Freguesia de Nossa Senhora dos Mértires, em Lisboa, 0 assento de batismo do réu, corroborando as informagées dadas por este, é que a diivida se desvanece © 0 proceso retoma o seu curso. Descobre-se enti que Henequim beira os sessenta anos, ¢ filho ilegitimo de Francisco Henequim, alto funcionério da embaixada das Provincias Unidas em Lisboa, e orgutha-se de descender de uma familia nobre, que fez um burgomestre ¢ senadores nas cidades de Delfet ¢ Roterdam, Sua mie, Maria da Silva ¢ Castro, provem de gente catdlica @ humilde da cidade do Porto, No seu sangue, néo hé “defeito algum de judeu, mouro, mulato ou cristéo-novo", apenas o leve "defeito" que a estirpe dos Henequim, todos hhuguenotes, traz em suas fileiras, mas a suspeita protestante, o proprio Henequim apressa- se em dirimir, lembrando que foi criado na religiao da mae (51). Ora, uma vez. que ele havia permanecido quase um ano sob a investigagao de Santa Marta, submetido a interrogatérios, tendo mesmo seus papéis sido examinados minuciosamente, natural seria que ao desembarzador a questéo da identidade fosse plenamente elucidada - ¢ a ele néo faltavam meios para apurer a verdade. Por que entio 0 inquisidor Trigoso - que no ignorava a prisio anterior - conduz 0 proceso seguindo rigorosamente a regra, como se Henequim fosse um réu comum, de quem é preciso epurar o verdadeiro nome? Tal procedimento € revelador da disposigio do Santo Oficio em Ihe conferir os critérios de praxe, num esforgo de enquadré-lo no estereétipo do heresiarca, relegando a sombra o seu perfit politico, E o proprio Henequim parece também aderir a este processo de despolitizago a que é submetido o exame de suas culpas. Nesse caso, contudo, & 45 possivel supor que a ac&o de restringir o crime a esfera religiosa funcionasse como estratégia de defesa, uma vez. que o livrava, ao menos aparentemente, da acusagio dos crimes de lesa-majestade e de alta traisdo. Fosse como fosse, a nica referéncia a semelhante crime parte dele proprio, ¢ ocorre quando, a certa altura, acusa Santa Marta de Ihe ter falsificado os manuscritos, colocando sob suspeigo a autoria dos papéis entregues a0 inquisidor e alegendo que “quem Ihos falsificou para o fazer réu de lesa-majestade humana, também los falsificaria para o fazer réu de lesa- majestade divina" (52) Mesmo na sesso de contraditas, quando cabe a0 réu opér o embargo as testemunhas de acusago com base em inimizades pessoais - sem divida, uma boa ‘oportunidade para se referir a eventuzis arbitreriedades cometidas contra ele -, Henequim limita-se a descrever 0 ardil protagonizado pelos irmaos Santa Marta para justificar sua entrada nos cérceres do Santo Oficio. Nem mesmo quando escreve uma carta aos inquisidores para enumerar uma a uma as injustigas de que se sente vitime, nem mesmo ai alude ele aquela primeira pristo efetuada no Rato Nio hi divida, portanto, de que 0 Sarto Oficio circunscreveui previamente o ‘campo no qual se desenvolveriam as sessGes, limitando-o a matéria religiosa e Henequim, voluntariamente, acedeu a esie procedimento, omitinds qualquer referéncia as ligagdes com o Infente D. Manuel ou com @ corte espanhola Assim, a leitura do processo, tanto ‘quanto as Fontes coevas - basta lembrar as assertivas equivocadas do Meredrio Histérico -, constréem a imagem de um heresiarca, condenado & morte pela Inquisicao por defender opinides heréticas, confundindo-o na extensa lista de penitenciados do Santo Oficio. 0s sonhos de uma América Meridional unida sob o cetro do Infante D. Manuel, & espera da realizagio do Quinto Império, acatentados por um homem que acreditava estar © Paraiso situado em algum [ugar do Brasil, dissiparam-se ante o heresiarca que a Inquisigao fizera desfilar pelas ruas de Lisboa Morto Henequim, a historia de seu envolvimento com o Infante parecia estar relegada ao esquecimento, ou, ao menos, ao siléncio, nfo fosse a indiscrigz0 dos descendentes de seus algozes, avidos de cother os beneficios daquele segredo, MEANDROS DA MEMORIA Por volta de 1790, depois de um longo degredo em Angola, Agostinho Jansen Moller ¢ Pamplona regressava a Portugal, decidido a recuperar os cabedais da familia, ento seriamemte comprometidos pelas disputas judiciais que the moviam os credores. ‘Uma de suas primeiras medidas foi a de encaminhar 4 rainha D. Maria I um extenso pedido de mercé, detalhando os motivos que haviam levado a casa Jansen e Moller a uma tio dificil situagao; entre eles, incluia “os excessivos gastos que o pai do suplicante fez sem lhe deixaram: © empenho com que geme a sua casa; mas Ihe aumentam a gliria de serem aplicados a favor da Patria, como foram os que fez para ser preso o temivel Pedro Rates, igualmente os que fez para a existéncia do Serenissimo Infante D. Manuel, tio de Vossa Majestade...” Em razio dos tortuosos e intrincados litigios entre os herdeiros, Rainha ordenou que se consultasse o monsenhor da Patriarcal Joaquim Jansen Moller, tio de Agostinho, respeito das pretensdes epresentadas por este. Aos setenta e dois anos, o velho inquisidor e ex-promotor do Santo Oficio ratificava 0 requerimento do sobrinho e, em tom de siplica, reportava-se aos servigos prestados ao "Império Lusiteno", desde que a sua familia se estabelecera em Portugal havia cento e trinta anos. Ademais, arrematava, como que A meia voz: " seja me licito nesta afigao lembrar a Vossa Majestade a primeira, € a segunda dificil prisio conseguidas pelos meus parentes do protervo Pedro de Rattes Enequim, cuja intengZo danada, e cuja vida, historia, e morte fatal, creio, mio so ocultas a Vossa Majestade, e creio também que este servigo feito 8 Coroa basta para fazer esta familia digna de durar feliz (53)". A prisio de Henequim constitufa assim o item mais grandioso da extensa folha de servigos dos Jansen Moller ao longo de todo o século XVIII; tamanha fora sua 47 importancia que o inquisidor se eximia de desorevé-lo, certo de que 4 Rainha, ainda que contasse apenas dez anos a época da morte de Henequim, saberia do que se tratava. Além disso, © monsenhor nao escondia um certo constrangimento por aludir ao episédio envolvendo 0 "protervo Henequim” - alusio apenas justificada pela "afligéo” do momento ‘Numa sociedade em que a punigdo se projetava no tempo futuro, alcancando e infamando a descendéncia do réu, constituindo a memdria um patriménio familiar e imemporal, natural pois que a premiagZo também o fosse, fazendo incorporar & heranga os feitos dos ascendentes ‘Ao préptio monsenhor, contudo, cabia uma parte no mérito se néo da prisio, a0 menos da morte de Henequim, No aro de 1744, entio deputado da Mesa do Santo Oficio, participara de todas as sessSes destinadas a examinar as suas culpas e votara mesmo a favor de sua relaxagdo & Justiga secular quando 0 réu, quase & beira do cadafalso, tentara ume titima retratagio, Durante cinguienta anos, os Jansen Moller guardaram zelosamente a meméria do ocortido, sem poder auferir proveito algum dele, submetendo-se assim “A recomendagio de inviolivel segredo intimados vocalmente pelo Snr. D, Joao V." Somente agora, em meio @ ameaga de ruina, langavam mao de seu bem mais valioso ¢, nao obstante os quarenta e seis anos passados desde ent, o velho inquisidor nfo hesitava em observar que tais servigos "parece [me] devern ser remunerados (54)" Em 1749 morria 0 desembargador Santa Marta. Teve um fim tragico, semethante Aquele que 0s cristos-novos diziam ter todos os inquisidores: a doenga levou-o em oito dias ¢ tamanha foi a pestiléncia dela que “logo se Ihe seguiu sua mulher, ¢ uma preta, ¢ infeccionou-se a casa de sorte que quase toda 2 farnilia esteve com perigo de vida" (55) Deixou aos filhos um espolio considerdvel, constituido, entre outros, por uma vaste biblioteca onde se alinhavam mais de mil titulos, e, sobretudo, pelos papéis acumulados a0 ongo de toda uma vida de diligéncias, arrumados cuidadosamente em pequenas brochuras cozidas & mao (56). A esse cartapicio, seu filho, José Ignacio Rodrigues Santa Marta Soares juntou uma representagio a El-rei, pieiteando uma comenda de jote, nio sem antes enumerar pacientemente os préstimos de seu pai, explicando que "um dos negécios mais importantes a Monarquia nestes nossos tempos foi a prisdo de Pedro de Rates Henequin, © qual foi preso de Lesa-Majestade, e que conspirava contra Seu Real poder”, e que depois de preso, sendo “achado Herege, V. Majestade o mandou remeter ao Santo Oficio, donde saiu a queimar. Sendo que senao obviassem por intervengao do pai do suplicante os altos designios deste Réu, concorreriam para a decadéncia da melhor parte dos dominios de V. Majestade" (57). Tratava-se de um pedido incomum para o filho de um magistrado que no passara de desembargador dos Agravos da Casa da Suplicago, € no parecer sobre 0 assunto, alguém observou tal impropriedade, ressalvando-se que, “ainda que se concedesse em atengao aos servigos particulares”, nao se devia criar exemplo prejudicial. Mais adequado seria atendé-lo com uma tenga, desde que “em maior quantia daquela ordinaria, vista a Gistingao com que Joaquim Roiz serviu", Ao final, José Ignacio obtém a mercé do hibito da Ordem de Cristo ea tenga de 159S; suas irmas, o lugar de freiras do Real Padroado, ou entiio uma tenga e 0 hébito de Cristo para os maridos ~ se um dia viessem a t8-os (58) ‘No mesmo parecer, constatava-se que alguns dos papéis apresentados junto a0 requerimento no estavam "justificados na forma do Regimento das mercés", © que se compreendia por ser “notério que no esto definidos estes servigos, € 05 papéis se ndo devem fazer piblicos por conterem diligéncias particulares, ¢ secretissimas" Minucioso nos scus afazeres de magistrado, Santa Marta juntara, a0 longo da vida, um conjunto de pequenos dossiés das varias diligéncias de que fora incumbido, reunindo ai um sem- niimero de interrogatorios, cartas, recibos, papéis apreendicdos, etc. Neles estio, por exemplo, os memoriais que 0 falsério Indcio de Sousa Ferreira, visivelmente desesperado, escreveu a El-rei, tentando obter a liberdade em troca de seus conhecimentos sobre a situag%o das Minas Gerais ou ainda seus pequenos bilhetes aos sécios, contendo instragdes sobre a venda de diamantes - todos eles interceptados pelo desembargador. Um exame detido confirma a observasio, feita naquele parecer, quanto a falta de papéis referentes aos casos arrolados no requerimento, perceptivel no contraste entre diligéncies bem documentadas ¢ outras extremamente lacnicas € sucintas, Exemplo destas tiltimas, o dossié sobre Pedro de Rates Henequim surpreende pelas parcas folhas: 49. no mais que trés certiddes relativas a prisdo, & entrega nos cérceres do Santo Oficio ¢ ao auto de recebimento do alcaide destes Como explicar entio que o caso mais importante da carreira do desembargador Santa Marta Ihe rendeu to poucos papéis ? A resposta encontra-se naquele parecer a respeito da petigao feita pelo seu filho, mais especificamente no trecho em que sublinha que". € 08 papéis se no devem fazer publicos por conterem diligéncias particulares, e secretissimas" (59) Isto também explica a existéncia de duas versGes diferentes da carta escrita pelo jesuita Miguel de Almeida sobre o auto-da-fé de 21 de junho de 1744, Escritas no mesmo dia, ambas as cartas dio informagdes sobre o acontecimento, diferindo, contudo, quanto ao grau de minudéncia com que abordam as circunstancias da prisio de Henequim. Evasivo numa, noutra pormenoriza a natureza da conjura e 0 intento do réu em fazer imperador 0 Infante D. Manuel. Claro esti que 0 missivista, dirigindo-se a pessoas diferentes, exercia, a seu modo, a censura do que sabia a respeito do episédio, separando © que Ihe parecia sigiloso daquilo que nio o era. De qualquer modo, a pequena ineonfidéncia do jesuita, a valiosa nota dissonante em meio aos procedimentos secretos do Santo Oficio em relagio a todo o caso, poderia ter graves consegiigncias para ele. Ela enquadrava-se no item relativo aos "que descobrem 0 segredo”, previsto nas leis do Reino, especialmente quando se tratava dz guarda de El-Rei, do “estado, ou da Rainha, ou Principe, ou guarda e defensio de nossos Reinos, ou de cousas, de que a eles se possa seguir algum dano...", Mal sabia 0 confessor que, ao narcar 0s erros de seu padecente, estava incorrendo num crime punido com "morte natural” (60) £ esta a chave, portanto, que nos permite entender 0 siféncio dos arquivos, vale dizer, as vicissitudes experimentadas ao tongo de ume investigagao sistemética em busca de evidancias sobre o crime de lesa-majestade protagonizado por Henequim. Emblemitico disso é a fortuna do tema na historiografia. Em 1808, um anénimo compds um pequeno texto, jamais publicado, que, sob o titulo Memérias politicas, historicas e criticas do Reynado do Senhor Rey D, Joao 30 So., pretendia fazer uma crénica dos bastidores da época joanina, salpicada de episédios escandalosos. De modo geral, 0 tom dessas memérias pouco difere dos esteredtipos, de inspiragao pombalina ou liberal, que a historiografia do século XIX sedimentou em torno da imagem do rei Sol portugués, Foram nos relatos e cronicas escritos durante e depois do governo joanino que ganhou forga aquele retreto de freiratico ¢ beato - retrato, vale lembrar, que extrapolara as fronteiras nacionais, atingindo uma tal difustio que o irreverente Voltaire escreveria, a respeito de D. Jodo V, que ele “passava a sua vida a fazer procissoes, mosteiros e escdndalos conventuais (61)" Nem mesmo os viajantes estrangeiros que aportavam em Lisboa deixeram de a voluntariosa Madre Paula. observar em seus didrios a torrida relagao entre Ei-re Charles Frédéric de Merveilleux, em suas Mémories Instructifs, publicadas na Franga em 1738, possivelmente uma das fontes de Voltaire, notava que “por tal procedimento se ficou assemethando a Luis XIV, cujas fraquezas ¢ desvios nao rebaixaram nunca a sua inteligéncia nem 0 seu coracéo (62)", Mais tarde, influenciada por tais escritos e pelas vagas liberais, as anilises fixariam, definitivamente, a imagem do reinado do Magnanimo como um periodo marcado pelo *luxo oriental e dissoluto”” Herdeiras dessa interpretagdo, as Memérias manuscritas de 1808 reportam-se alguns lugares-comuns do imaginério anedético em tomo de D. Joo Vo apego as perucas francesas, 05 gastos vultosos com as amantes, o temperament voluntarioso & tirdnico, 0s amores no convento de Odivelas, © lendéria falta de dinheiro para a realizagao de scu funeral, em contraste com a pompa e suntuosidade dos anos Aureos (63). Sem citar fontes, o autor clege a conspiracdo protagonizada por Pedro de Rates Henequim como um dos acontecimentos que marcaram a época joanina, inserindo-a num quadro mais geral das relagdes entre Portugal e Brasil nas primeiras décadas do século XVIII, Segundo ele, havia algum tempo o embaixador francés em Lisboa vinha pressionando 0 governo portugués a saldar uma velha divida com a Franca, cujo montante chegava a casa de um mithio de cruzados. Diante do descaso de El-rei pelo assunto e do desfecho tragico da investida de Du Clerc no Rio de Janeiro, o embaixador francés cobrou st satisfagdes do entdo secretério Diogo de Mendonga Corte Real. Sem poder negociar uma solugio razodvel, dada a indiferenga de D. Joo V em relagéo ao assunto, 0 secretirio praticamente consentiu que os franceses fossem se entender diretamente com a populagao do Rio de Janeiro, exigindo dela o resgate da divida da Coroa portuguesa Como resultado desse acordo tacito, os corsirios franceses, sob a comando de Duguay Trouen, invadiram a cidade do Rio de Janeiro, nio poupando @ populago local do saque de tado aguilo que pudesse ter algum valor. Ainda segundo o autor das Memérias, tamanha foi a indignado ante a descoberta de que o rei praticamente autorizara 0 saque a cidade - por avisar 0 governador da iminéncia da invasio, ordenando- the satisfazer as exigéncias dos corsirios - que os americanos deram "em varios tempos, @ principio de revolucdes" E neste contexto de insatisfagao geral com a Metrépole, desencadeada pela invasio francesa ¢ - tal um efeito em cadeia - alastrada pelas Minas Gerais e por Silo Paulo que se situa 0 caso Heneguim, Prossegue o autor, explicando que, descontentes com El-rei, muitos americanos principalmente do Rio de Janeiro e das Comarcas das Minas” teriam encontrado no Infante D. Manuel - cujos sucessos militares fizeram-se conhecer na América através de uma Relacdo escrita por José Freire de Montorroio Mascarenhas - 0 homem ideal para ocupar o trono da América Meridional. Uma vez tomada a decisio, elegeram como comissirio Pedro de Rates Henequim, “pacharel, denominado cristo-novo, ¢ muito esperto, para ajustar, ¢ conseguir 0 negécio, © qual mandaram a Lisboa com bolsa ¢ letra aberta para este fim’. Em Lisboa teria se aproximado do Infante e revelado-lhe os planos tragados no Brasil, junto com uma “lista dos diretores daquele negicio". A julgar pelas palavras do autor das Memérias, o eleito dos americanos no compreendeu o alcance da matéria que Ihe era proposta, e, assumindo uma atitude inconsequente, mencionou 0 caso a um dos seus criados, Ao saber do que s¢ tramava na Quinta de Belas, Elrei convocou uma Junta dos desembargadores mais antigos dos tribunais, e, apés uma reuniao acalorada, deliberou-se que "se passassem ordens para serem presos todos os culpados, ¢ se procedesse a uma 32 devassa para colher os mais que houvessem de fora daquela conta, para serem todos sentenciados em Juizo competente" ‘Terminada a Junta, interveio Alexandre de Gusmao e, rejeitando a decisio anterior, aconselhou El-rei "que mandasse prender Pedro de Rattes Ennequim [sic], comissério daquela negociacio, por ordem do Santo Oficio, e nos carceres deste Tribunal fosse questionado, com o segredo que ali se praticava, ¢ que metido em argumentos de religiao, como era tido por crist#o-novo, © inquietassem esquentando-Ihe o cérebro com despropésitos ditados pelos tedlogos da Santa Casa, até que chegasse aos termos de morrer com mordaga na boca (64)" Em linhas gerais, 6 esse 0 contetido dos parigrafos sobre Henequim constantes nas Memérias andnimas. E curioso notar a impreciséo das informagées, em comparagao & importancia do assunto - imprecisio que, de resto, se repete nas datas, muitas delas deixadas em branco (65). A razdo disto encontra-se no fato de que, com o relato dos infortanios de Henequim, o autor tencionava apenas sublinhar a imagem de D. Jo3o V como um monarca desinteressado pelos altos negécios de Estado, indiferente as vicissitudes dos "americanos" ¢ adepto da justiga pessoal. ‘Assim, ao final da longa noticia sobre Henequim, o autor conta que, depois de assistir A sua morte no auto-da-fé, o rei partiu para Odivelas, para "mostrar a sua Freira a lista de penitenciados por aquele ‘Tribunal, © também as culpas de todo 0 enredo pertencente & desgraga de Pedro de Ratles, cujos papéis ficaram em poder daquela Senhorita mais de oito dias, para ela os mostrar as suas amigas em segredo, e desta dilagao, quando Bl-rei os quis, nunca mais apareceram’. Reforgava-se aqui a imagem do rei insensivel, cruel e inconseqiiente, inescrupuloso a ponto de se langar aos prazeres da came depois de assistir a morte cruel de um inimigo e - 0 que era ainda pi irresponsivel o bastante para partilhar com a amante importantes segredos de Estado, confundindo piblico e privado. Sem o saber, o critico projetava as categorias oitocentistas do bom governo ¢ da distingdo entre piblico e privado no século XVIII, pretendendo julgé-lo a partir de principios anacrdnicos Citenta anos depois, o historiador portugués Alberto Pimentel, escarafunchando os arquivos da Biblioteca Nacional de Lisboa em busca de material para o seu livro sugestivamente intitulado As Amantes de D. Jodo V, toparia com as Memérias anGnimas escritas em 1808. A descoberta certamente the causou satisfago, pois partilhava com 0 autor delas 0 mesmo tipo de interesse pelos "bastidores" do reinado joanino, tanto que Pimentel no hesitou em compilar todas as informagdes ali arrol Mas, reservando até mesmo um singelo espago para o caso Henequim. Foi, porém , mais céustico que 0 outro e concluiu, por conta ¢ maledieéncia préprias, que o rei se dirigira a Odivelas em seguida a0 auto-da-fé com o propésito de retemperar as energias (66). A conspiragao protagonizada por Henequim pouco interessou Pimentel, que preferiu explorar a trama dos amores freirdticos do rei, buscando reconstituir detalies picantes como a célebre banheira dada de presente a madre Paula, Mesmo o relative éxito alcangado pelo livro apés a publicagdo nfo foi suficiente para incentivar outros pesquisadores 2 se debrugarem sobre aquele individuo que teria ousado se insurgir contra D, Joo V. As modas e tendéncias historiograficas eram outras, outros assuntos 2s dominavam, Fosse como fosse, a referéncia ao documento estava langada e quase quarenta anos depois, outro historiador, Emesto Ennes, teria a atengio despertada por aquelas linhas sobre uma conspiragéo ocorrida a sombra do rei Sol portugués. Em 1940, por ocasiio do Congresso Luso-Brasileiro de Histéria, ele apresentou uma comunicagdo sobre 0 assunto, inspirada nas passages das Memérias citadas por Pimentel. Apodou-a com o instigante titulo Uma conspiracio malograda em Minas Gerais para aclamar Rei do Brasil 0 infante D. Manuel (1741-1744) e enfrentou, com olhar critico, 0 desafio. ‘Na realidade, Ennes pouco pode avangar. Intrigado com aquela trama obscura, ele havia partido em busca do documento anénimo e, malgrado 0 seu vasto conhecimento dos arquivos portugueses, nao o localizara, Justificou-se alegendo um falso "erro de citagao" por parte de Pimentel e optou entdo por se restringir ao extrato publicado (67). Fazendo uso de evidéncias relacionadas & vida do Infante D. Manuel, contentou-se em demonstrar a plausibilidade do epis6dio, ainda que se embaragasse com o fato de os historiadores ‘nunca terem encontrado, nos arquivos portugueses ¢ brasileiros, qualquer referéncia a ele. Por fim, lamentava no ter localizado 0 precioso manuscrito ¢ se limitava, nas suas proprias palavras, 2 uma "mera hipétese", encerrando a comunicagdo com um incitamento aos pesquisadores no sentido de explorarem 0 assunto, que, apesar de tudo, continha evidéncias bastante promissoras (68). A época, um tema to obscuro, envolvendo por um lado, uma personagem praticamente desconhecida como o Infante D. Manuel, € por outro, um heresiarca condenado a morte - a quem Ennes considerava "desvairado, louco" e cheio de "idéias alucinadas” (69) -, enredados numa conspirago misteriosa, apoiada por sua vez mum manuscrito de paradeiro ignorado, no logrou maior interesse - ¢ Henequim, conspirador ou heresiarca, veltaria ac siléncio secular que 2 mordaga do Santo Oficio havia the imposto. ‘Mas a ventura historiografica de Henequim seria outra. O grande Sérgio Buarque de Holanda tropesaria nele bem depois de ter escrito e publicado o classico Visto do Paraiso, mas o faria por interposta pessoa, ou seja, através das poucas linhas que Ennes the dedi a no livro Dois paulistas insignes, nas quais remoia os mesmos problemas encontrados por ocasiao de sua investigagao arquivistica (70) As voltas com 0 tema da edenizagZo da América, Buarque de Holanda viu nas proposig&es de Henequim relativas 4 localizagio do Paraiso Terreal no Brasil um indicio da persisténcia tardia daqueles mitos, Apesar de Ennes fazer mengio ao proceso feito inquisitorial, depositado na Torre do Tombo, o historiador brasileiro pareceu s com as passagens da sentenga final publicadas pelo colega. Inversamente, © processo de censura softido pela obra de Simao de Vasconcelos, por conta das passagens em que ele expunha a teoria de que o Paraiso se situava na América, mereceu de Holanda uma atengo muito maior do que "ess2 amofinagdo sem tréguas que vai levar até a morte danada o antigo mineito Pedro de Rates (71)" Se 0 Henequim edenizador do Novo Mundo, perseguido pela Inquisigo, acabou por merecer alguns pardgrafos no prefiicio a segunda edigio de Visio do Paraiso, o Henequim conspirador ¢ criminoso de lesa-majestade, perseguido pelo desembargador 55 Santa Marta, parecia fadado a permanecer envolto no tom quase fantasioso ¢ inverossimil daquela distante comunicagdo de 1940. Como um jogo de ressonincias, a citagio de Holanda chamou a atengo de um outro historiador, Plinio J. Freire Gomes, que, interessado em desenvolver sua pesquisa de mestrado sobre o tema, obteve uma copia do processo inquisitorial, elegendo 0 réu a personagem principal de um estudo pioneiro. A partir dele, produziu um interessante estudo da cosmologia do ex-mineiro, enfocando 0 problema das relagdes entre cultura popular e cultura erudita dentro do contexto especifico do universo colonial, Sem desconhecer as suspeitas de seu envolvimento numa tentativa de emancipacio politica, Freire Gomes ateve-se ao ambito dos autos processuais, ¢, cuidadoso, percebeu bem a determinacio do Santo Oficio de condené-lo a qualquer prego, sem contudo par em discussiio a fidedignidade das fontes as teses professadas por Henequim. Seguindo a tritha de Ginzburg, ele adotow um pressuposto questionivel para um caso tao singular: 0 de que os juizes estariam empenhados em nio omitir as concepgbes heréticas do réu, porque “no contexto onde alguém é colocado sob uma firme pressao criminalizadora, toda ¢ qualquer manifestagio incdmoda vale mais se for transerita do que proscrita (72). Dados os antecedentes politicos do réu, nio seria mais apropriado afirmar que “toda ¢ qualquer manifestagio incdmoda vale mais se for reinventada ou exagerada do que transcrita” ? De qualquer modo, no lugar do herege ou do louco, ressurgia um homem dotado de uma cosmologia bizarra e fascinante, 0 ponto de cruzamento de estratos culturais profundos EM BUSCA DAS SOMBRAS Henequim evoca a face oculta do rei Sol portugués: por tras do brilho fulgurante da corte pomposa ¢ suntuosa, tipica do barroco, habiteva um universo de sombras, de siléncio, de diligéncias noturnas, de desaparecimentos inexplicaveis. Universo que modela, dilacera ¢ plasma a meméria e diante do qual o historiador se depara com o desafio de fazer o siléncio falar Reveladora das estratégias de produc&o da meméria, a sua historia propée mais questdes do que respostas efetivas; em vez de pisar no terreno firme das certezas, deparamo-nos com a opacidade das fontes, a multiplicidade de “talvez" ou "poderia ser", comuns naquelas situagdes em que as evidéncias se recusam a responder as questdes que thes so formuladas. De fato, os raros vestigios mal conseguem elucidar o repertério de perguntas que suscitam: quais as reais dimensdes da conspiragio imputada a Henequim ? Teria existido uma conspiracéo nos moldes descritos pelo manuscrito andnimo ? E sendo assim, quem foram os envolvidos nela 7 Que planos tinham para 0 Brasil ? Que fazer diante de uma historia a um 36 tempo to extraordindria e to fragmentaria ? Como fazer dela a ‘matéria-prima de uma reflexio historiogréfica conseqiiente, embasada numa concepgao de histéria_como probleme ¢ néo mera narrative esgergada de um enredo simplesmente interessante ? Deveriamos entfo abandonar a pretensio de saber algo mais sobre um episédio aparentemente extraordinario como uma conspiracao que atravessou o Atlantico, porque as fontes nao preenchem todas as lacunas ? Ou existiriam meios de contornar esses obstaculos e instala-la no centro de uma investigacdo historica? Ao invés do "documento ideal” - talvez as sessdes de interrogatorio conduzidas por Santa Marta, ou ainda o instigante bau de manuscritos do qual Henequim no se separava ~, 08 arquivos oferecem alguns poucos vestigios e uma infinidade de incertezas - principalmente, a conviegdo de se vasculhar um siléncio cuidadosamente construido. Bis af um primeiro nivel de problematizacio das fontes: quais as razSes que justificaram “construgéo do siléncio "9 Como bem observou Mare Bloch, a respeito do documento, a sua presenga ou a sua auséncia nos flndos dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas, que nfo escapam de forma alguma & anilise (73)". Duas démarches metodolégicas jogam luzes sobre o cipoal de indagagoes que envolve 0 objeto em estudo. Pouco tém em comum com a tematica, discorrem sobre épocas diferentes, recortem a métodos diversos - mas ambas tém o seu ponto de partida numa discussio sobre as fontes. Em The return of Martin Guerre, Natalie Z. Davis deftontou-se com uma estoria que, apesar de recontada a0 longo dos séculos e incorporada ao folclore da pequena ‘Artiget, nos Pirineus, propunha muitas incertezas. Afinal, perguntava-se ela, como explicar a aventura de uma impostura, repentinamente desmacarada, depois de seu autor, ‘Amaud du Tilh, ter conquistado a boa-fé de toda uma comunidade ? Em contraste com a infinidade de questdes que Davis colocava para si, ela deparava-se com uma lacuna preciosa’ as atas do processo instaurado contra Ammaud du Tith estavam itremediavelmente perdidas. Impedida de obter as respostas aquelas perguntas, Davis optou por resultados conjecturais, de modo a contornar 0 problema das, fontes, langando mao de uma decumentagao contigua no tempo € no espago: "Quando no consegui encontrar meu homem (...), fiz 0 maximo para descobrir, através de outres fortes da época e do local, 0 mundo que devem ter visto, as reagdes que podem ter tido (74)", No brithante coment principal repousa na possibilidade de se jogar luz sobre um caso excepcional a partir de a respeito desse livro, Ginzburg observou que o argument uma normalidade documentalmente imprecisa (75). Trata-se, portanto, de um esforgo de “contextuslizagdo" - ou seja, 0 de tentar entender a prodigiosa saga de Arnaud du Tith a partir do sistema de crengas, valores e representagtes da época Por outro lado, Davis no poderia ter enconteado 0 "documento ideal", aquole que responderia tout de suite todas as perguntas, visto que @ mera suposi¢ao da existéncia dele implica anacronismo, por pressupor ingenuamente que aquilo que se nos afigura como problema, também o teriha sido para uma outra época € que a resposta a ele pudesse ter sido formulada nos mesmos termos que nds o fariamos hoje, E claro que muitas das davidas de Davis nfo diferiam muito daquelas que os juizes de Toulouse tinham se colocado; mas se ela tivesse permanecido no ambito deles, nao teria escrito mais que uma nartagdo anedética, Do mesmo modo, ¢ historiador pode se ver, 4s vezes, na embaragosa situagio do magistrado Santa Marta, remoendo as mesmas diividas e tentando, inutilmente, refazer 0s seus procedimentos de investigeg#o. Mas no que redundaria tudo isto (76)? Se uma das premissas do livro de Davis é a de que as respostas para os problemas de historia tém invariavelmente um caminho tortuoso e estdo longe de serem resolvidos através de uma fonte ideal - senfo na percepgdo da especificidade do imaginério de toda uma época-, néo € menos verdade que ela nada mais faz do que instrumentalizar um dos conceitos bésicos da Antropologia E neste sentido, o seu argumento evoca a necessidade de se analisar um gesto ou uma palavra dentro do contexto de uma cultura, dentro de suas regras e de sua ldgica interna, Dai o principio da diferenga, ou seja, a constatagdo de que a5 categorias de pensamento no sto universais ou inatas (77) No caso especifico de Henequim, essas consideragdes permitem reformular os termos do problema da conspiragéo refecida numa documentagao insuficiente Em primeiro lugar, apontam a necessidade de se recorrer a um corte transversal como estratégia para se preencher aquelas lacunas, valendo-se de uma documentagio contigue. Por ume via indireta, ligando o caso especifico ao contexto, estabelecendo o dilogo entre evidéncias aparentemente desconectadas, as incertezas dio lugar a conjecturas bem éocumentadas. Em segundo lugar, autorizam a introdugo de conchisées conjecturzis como uma solugdo provisoria para o dilema entre produzir um texto anedético & abandonar uma trama insuficientemente documentada: ou seja, aceitar o fato de que a historia também pode se situar no campo das possibilidades historicamente determinadas. E finalmente, no interior de uma proposta de estudo do imaginério politico, abrem um caminho promissor, pois viabilizam 0 deslocamento de ubordagens tradicionalmente associadas & nova historia cultural a dominios diversos: assim, se aquele privilegion categorias como "visio de mundo", “sistema cultural" ou "mentalidades" para explicar fendmenos pontuais como 2 feitigaria, a morte € a festa, articulando-os, como Lucien Febvre, 2 um estoque de "materiais de idéias" ou uma certa “utensilagem mental" (78), nada impede que o tema da conspiragao seja analisado no interior de um conjunto mais amplo de representagdes politicas. Sem diivida, uma tal metodologia implica encontrar um ponto de equilibrio entre a longa duragdo - 0 ritmo lento das permanéncias ¢ continuidades - ¢ a curta duragdo - o tempo febrile breve recortado na lamina dos dias. 59 E em grande parte esse exercicio descrito por Ginzburg como 0 processo de entrelacar "provas" ¢ "possibilidades", o "verdadeiro” e o "verossimil", inspirado no livro sobre Martin Guerre, que esta na origem do segundo capitulo. E, nesse sentido, uma tentativa de conciliar, ao menos provisoriamente, a curiosidade do historiador ¢ os fragmentos duramente arrancados aos arquivos, plasmando-os numa _reflexo historiogréfica sobre conspiracdo e também sobre provas € possibilidades, ‘Uma outra via de interpretagao nos é sugerida por Georges Duby em Le dimanche a Bouvines, obra em tudo contraria as vicissitudes encontradas ao longo da pesquisa sobre Henequim. Trata-se de um assunto exaustivamente estudado e abordado por geragdes sucessivas de historiadores; um acontecimento sobre © qual todas as fontes haviam sido recompiladas e autenticadas, sobre o qual eparentemente nfo havia mais nada 2 escrever. Numa palavra, Bouvines estava liquidada. Duby, oprimido pelo fardo desta documentacdo, reformulou © tema, ¢, voltando-se para os discursos © as leituras suscitadas pela célebre batalha, analisou a sus constituigéo historiografica ao longo dos séculos. Segundo ele, seu objetivo era mostrar "qual a intervengio da meméria e do esquecimento na modificagio desse acontecimento, € como € que ele foi sendo recuperado, de geracdo em geracdo, e utilizado a servigo de uma certa ideologia, de uma certa concepgaio do passado (79)". E preciso notar que a batalha de Bouvines nfo esta no centro das preocupagoes de Duby - ¢ ele chega mesmo a remeter 0 leitor mais incauto 4 extensa bibliografia sobre 0 assunto, Forjando a metéfora da pedra atirada a agua, ele compara o seu objeto aos redemoinhos formados em torno dela: interessa-Ihe os efeitos produzidos por Bouvines no imagindrio historiografico (80). Autor to fecundo quanto polémico, para quem o acontecimento é “qualquer coisa que so existe porque se fala dele", a empreitada metodologica de Duby dé lugar a interpretagies céticas sobre o oficio do historiador. E houve até quem visse nela mais uma “encenagao do proprio arquivo", ou seja, mais uma das multiplas interprotagbes suscitadas por Bouvines (81). Seja como for, é preciso no esquecer as diferengas epistemolégicas existentes entre Duby © Natalie Z. Davis, sob 0 risco de se confindir concepgdes ¢ procedimentos historiograficos bastante diversos. Para efeito da anilise que se tenta esbogar aqui, @ contribuigao de Duby reside na valorizagao das ressonincias em detrimento do acontecimento e na tese de que aquelas no podem ser dissociadas de um imaginirio coletivo, ou nas palavras do proprio autor, da "visio que os homens do passado tinham da cealidade conereta (82)". E esta a chave que nos ajuda a formular mais adequadamente o problema da conspiracéo imprecisamente documentada: tanto quanto 0 acontecimento, interessa-nos integrar os “redemoinhos" ao universo mais amplo das representagdes politicas vigentes na corte joanina em relagéo Colénia ea uma eventual ameaga de perda do dominio metropolitano sobre ela. E a natureza das fontes parece se adequar a uma tal abordagem, pois tanto o siléncio_ imposto por ordem real quanto a inequivoca preocupagio desencadeada pelo episédio em questo podem ser comparados aqueles redemoinhos de que nos fala Duby. Assim, ainda que a conspiragao malograda, que bem pode ser chamada de “anti- acontecimento", em contraste com a batalha de Bouvines -este sim um acontecimento com letras maitisculas, construido pela historiografia e sacralizado pela memoria -, & possivel divisar nela a nervura complexa do olhar da Metrépole sobre a Colénia, Afinal, que motivos levaram a Coroa portuguesa a identificar em Henequim uma ameaca real e concreta, constituindo-o réu de lese-majestade to perigoso a ponto de envolvé-lo nem siléncio_premeditado ? Todas esas consideragbes metodotégicas, talvez excessivamente alongadas, recolocam a histétia de Henequim numa nova perspectiva: se ela comporta elementos pitorescos e extraordindrios, propensos a resvalar para uma narrative anedética, ela no deixa de propicier uma verdadeira aventura metodolégica - a aventura de transformar Jacunas ¢ incertezas na matéria-prima privilegiada de uma reflexio sobre os horizontes possiveis do historiador. ot (1) Para uma descrigao do Rato no periodo anterior ao terremoto, ver Suzanne Chantal, A vida quotidiana em Portugal ao tempo do terramoto, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, pp. 49-50. Sobre a falta de ituminag#o em Lisboa, consultar D. Luis da Cunha, Testamento Politico, Seara Nova, 1943, p. 49. (2) ANTT, Conselho de Guerra, mao 260, 1a. caixa - "Requerimento de Jozé Ignacio Santa Martha Soares", fl. 3v. Devo ao colega Tiago Costa Pinto dos Reis Miranda a preciosa indicagao deste documento (3) BNL, Reservados, cédice 1.077, "Catalogo alfabético dos Ministros de Letras, que servirao _nestes Reynos de Portugal e Algarve ¢ seus dominios" (1763), f. 308. O. processo de habilitagao encontra-se em - ANTT, Habilitagdo do Santo Oficio, mago 1, doc. 3 (4) "E 08 Letrados, que tomarmos para a Casa da Suplicagio, entrardo primeiro na Casa do Porto, e nella tero servido algum tempo" - Ordenagées Filipinas (Ordenacées ¢ Leis do Reino de Portugal recopiladas per mandato do muito alto catholico & poderoso rei Dom Philippe o Primeiro), Lisboa, Fundagdo Calouste Gulbenkian, 1985, livro primero, titulo V - Dos Desembargadores da Casa de Suplicaeao, pardgrafo I. p. 17 (5) ANTT, Conselho de Guerra, mago no. 251 bis, pasta 9, "Papéis pertencentes ao desembargador Joaquim Inicio de Santa Martha Soares e referentes a varias diligéncias confiadas a este Magistrado (1730 - 174...)". As lettres de cachet - ou Machtspruche & similares - encarnavam, no regime absolutista, a “ordre du roi" ¢, usades para fins diversos, especialmente para restringir a liberdade pessoal, ficariam particularmente célebres na Franca, onde tinham o papel de ordenar “desde o internamento de um alienado a pedido da familia a prisio preventiva do indiciado de um crime e a reclusto na Bastilha ou numa fortaleza, como sancao verdadeira e propria emanada da justiga pessoal do rei em relago a pessoas acusadas de certos delitos, sobretudo politicos" - Guido Astuti, "O absolutismo esclarecido em Itilia e o Estado de politica” in Anténio Manuel Hespanha, Poder ¢ instituigées na Europa do Antigo Regime: coletinea de textos, Lisboa, Fundagdo Calouste Gulbenkian, 1984, p. 283. (6) BPADE, cédice CIX/2 - 13, documenta no. $0, "Carta do pe. Miguel de Almeida a outro padre de Coimbra dando noticia do auto-da-fé em Lisboa, de 27.06.1744". Este registro € suas condigdes de produgio, fundamentals para o desenvolvimento da argumentago, sero abordados mais adiante (7) Um dos casos mais importantes da carreira de Santa Marta foi, sem davida, a investigagao em torno dos negocios de Inacio de Sousa Ferreira, acusado da fabricagao de moeda falsa e da remessa de carregamentos de diamantes para a Inglaterra, A ele coube também realizar a prisfo de dois lapidérios estrangeiros que tentavam embarcar para as Minas Gerais, com 0 objetivo de negociar diamantes para a casa de negocios Oriol. A seu cargo estiveram ainda as investigagdes sobre a galera Ogli, da nagdo holandesa, cuja carga 6 em ouro provinha das Minas Gerais ¢ da Costa da Mina, Sobre o assunto, consultar: ANTT, Conselho de Guerra, mago no. 251 bis, pasta 9, "Papéis pertencentes ao desembargador Joaquim Indcio de Santa Marta Soares ¢ referentes a varias diligéncias confiadas 2 este Magistrado (1730 - 174..)" (8) Nas palavras do filho do desembargador: "... e por no pareceu Rezo de Esto, q se soubesse delicto tio execrando de Real ordem esteve prezo em caza do Pay do Suppte. occultamte. por espago de anno e meyo..." - ANTT, Conselho de Guerra, mago 260, 1a caixa, flv, (9) ANTT, Conselho de Guerra, mago no. 251 - bis - pasta 9. Ai se encontram uma série de intesrogatérios, correspondéncia, relatérios de despesa pessoal, atestado de dbito, ¢ outros documentos pertencentes ao caso de Inacio de Sousa Ferreira (10) 0 filho de Santa Marta assim se refere a0 caso: "... sendo q se nfo obviassem por intervengio do Pay do Suppte, os altos dezignios deste Reo, concorreriéo pa a decadéncia da melhor parte dos dominios de V. Mage.” - ANTT, Conselho de Guerra, mago 260, La. eaixa. . (11) Sobre © crime de lesa-majestade, consta a seguinte definigao nas Ordenagdes Filipinas: "Lesa Magestade quer dizer traig&o comettida contra a pessoa do Rey, ou seu Real Stado [sic]". Prescrevia-se, como pena, que o "condenado mora morte natural cruelmente; todos os seus bens (..) sero confiseados para a Coroa do Reino”, quanto aos filhos de sexo masculino, “ficario infamados para sempre, de maneira que nunca posséo haver honra de Cavalleria, nem de outra dignidade, nem Officio" - Ordenagées Filipinas, op. cit, livro quinto, titulo VI - "Do crime de Lesa Magestade’, pp. 1153-4 (12) Descrigao feita tres anos depois pelo pe. fr. Henrique de Santo Antonio, religioso paulista, durante 0 proceso inquisitorial de Henequim - ANTT, Inquisigao de Lisboa, proceso no. 4864, fl. 404v, (13) BPADE, "Carta do pe. Miguel de Almeida a outro..." op. cit., fl. 01 (14) ANT, Inquisigdo de Lisboa, processo no, 4864, fl, 214v. (15) AGS, Estado, Legajo 7187, "Carta de Pedro de Rates Henequim, Lisboa, 27-VI- 1740" (16) AGS, idem, “Carta de Pedro de Rates Henequim, Lisboa, 05-VI- 1740" (17) Sobre o assunto, consultar Jaime Cortesio, Alexandre de Gusmio e 0 Tratado de ‘Madrid (1735-1753), Rio de Janeiro, Instituto Rio Branco, 1956. 8 (18) AGS, Estado, Legajo 7187, "Carta de Jorge de Macazaga ao Marqués de Villarias, Lisboa 28-VI-1740", (19) AGS, idem, "Carta de Pedro de Rates Henequim, Lisboa, 05-VI- 1740", (20) AGS, idem, "Oficio do Marqués de Villarias a Jorge de Macazaga, Madrid, 17-VI- 1740" (21) AGS, idem, "Oficio de Jorge de Macazaga ao Marqués de Villarias. Lisboa, 05-VI- 1749" (22) AUC, Cartério de D. Luis da Cunha, "Oficio de D. Luis da Cunha para a Secretaria de Estado, Paris, 27-11-1741 [documento no. $43]; "Oficio de D. Luis da Cunha para a mesma Secretaria, Paris, 06-III-1741" (doc. no. $45}; "Carta de D. Luis da Cunha para J. J, Amelot de Chailloux, Paris, 19-1II-1741" [doc. no. $47}, "Carta de J. J. Amelot de Chailloux paca D. Luis da Cunha, Paris, 08-V-1741" [doc. no. 567]. (23) ANT, Inquisico de Lisboa, processo no. 4864, fl. 395y, (24) Idem, f. 3, (25) Idem, fl. 3 ess (26) Charles Frédéric de Merveilleux, "Memorias Instrutivas sobre Portugal: 1723-1726" in O Portugal de D. Joo V visto por trés forasteiros, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1989, p. 134. Qutro viajante, César de Saussure, escreveria em 1730: "ndo existem aqui mais que duas péssimas tascas, estabelecidas numa rua a beira do Tejo e que pertencem a uns irlandeses” - "Cartas escritas de Lisboa no ano de 1730", op. cit., p. 266. (27) ANTT, Inquisigao de Lisboa, processo no. 15.520, mago 1119. (28) ANTT, Inquisigao de Lisboa, processo no. 11.213. Mais informagdes sobre Simiao podem ser consultadas no processo no. 9.333, também da Inquisigao de Lisboa, A titulo de curiosidade, eis alguns dos nomes adotados por ele a0 longo de suas viagens: padre Theodoro Pereira e Souza, frei Manoel da Conceicfo, fr. Manoel da Graga; Belchior Cameiro, e Manoel do Lancastro, Simigo ganharia ainda uma breve referéncia nas paginas, do genial Saramago, que sobre ele escreve: .., quem sabe que outros nomes teria ¢ todos verdadeiros, porque deveria ser um direito do homem escolher o seu préprio nome € mudé-lo cem vezes ao dia, um nome nao é nada..." - José Saramago, Memorial do Convento, (6a. edigo, Lisboa, Caminho, 1986, p. 52. (29) ANTT, Inquisig4o de Lisboa, Processo no. 15.520, mago 1119. (30) ANTT, Inquisigao de Lisboa, caderno do promotor no, 107 (1735-1749), livro 299, A. 305 ess, (31) O depoimento de Henequim na sesso de Genealogia é uma evidéncia inequivoca de que essa inquiriglo no teve prosseguimento. Na ocasifio, ele menciona o episédio, dizendo que “nunca foi prezo no Santo Officio, senfio agora, nem algum de seus ascendentes, ou collaterais, nem também aprezentado, menos elle, que havera seis annos veyo a esta Meza por lhe constar, que o tinhio denunciado de elle ter proferido que também havia Sacramentos imperfeitos, ¢ nella declarou o que tinka proferido, como constara da aprezentagdo que fez" - ANTT, Inquisig&o de Lisboa, processo no. 4864, fl 176. (32) ANTT, Inquisigdo de Lisboa, caderno do promotor no. 107 (1735-1749), livro 299. (33) ANTT, Inquisigao de Lisboa, processo no. 4864, fl, 14v, (34) ANTT, Inquisigdo de Lisboa, proceso no. 15,520, mago 1119 (35) Apesar desta exposicdo bem articulada, Henequim ressalvou que seus escritos "todos elles se achem informes, ou quazi em ambrifo" - ANTT, Inquisigao de Lisboa, processo no, 4864, 1.151 (36) Idem, fl. 150v. Logo na primeira sesso, em 15 de novembro de 1741, Henequim foi taxativo quanto a impossibilidade de se abordar verbalmente os problemas complexos da teologia 37) Um exemplo disso ¢ a critica que fez & tradugto latina da palavra "deus"; segundo ele, "Sio Jerénimo podia errar como homem, como com effeito errou na traducio da Scriptura no Referido Lugar, porque no texto hebreu nao se ha de achar a palavra = Deus = a qual foy acrescentada por Sdo Jerénimo, seguindo seu pensamento, que trazia de sima" - Idem, fl. 221y, grifo no original (G8) Idem, fl. 157v. (39) Idem, fls. 157v-158. (40) ANTT, Inquisigo de Lisboa, lista dos autos-da-fé, livro 7: 1563-1750. Na lista distribuida pelo Santo Oficio, o réu Pedro de Rates Henequim era acusado de "inventar, escrever, seguir e defender doutrinas, e erros heréticos, fazendo-se Heresiarca com execrandas blasfémias, convicto, ficto, falso, simulado, confitente, inuto, variante, ¢ impenitente”. Vale notar que 0 residente holandés em Lisboa, JR. Van Til, registrou aquele auto-da-fé em oficio aos Estados Gerais, e, malgrado a ascendéncia holandesa de Henequim, apenas se reportou ao caso do padre José de Siqueira - Algemeen Rijksarchief 65 Cara, Staten Generaal, Liassen Portugal, Ordinaris, 1.01.04, no. 7025 II. Agradego a referéncia a Tiago dos Reis Miranda e a Ernst Pijning. (41) BNL, Reservados, cédice 554, "Mercurio Historico de Lisboa (1743-1745)" cotigido pelo Pe. Luiz M. Mattozo, fl. 201 e ss. (42) A noticia sobre a indisposigao do rei consta duma carta escrita por Alexandre de Gusmao ao Arcediago de Oliveira: "Nosso Amo e Senhor teve um acidente na véspera éo auto-de-fé; mas nao obstante isso, foi a mesina noite dormir a Inquisigio, ¢ no domingo assistiu a toda a funeao, até sairem os presos da Relacdo, ja com sol fora, na manha da segunda-feira” - Alexandre de Gusmao, Cartas, introdugao e actualizacdo de texto por André Rocha, Lisboa, Imprensa Nacional, 1981, p. 113. (43) "The March then began, when the whole Procession walk'd round the Court of the chief Inquisitor’s Palace, in presence of the King, the Royal Family, and the whole cour, who were come thither for this Purpose" - John Coustos, The sufferings of John Coustos, London, printed by W. Strahan, for the author, 1746, p. 219. (44) Os hereges estavam vestidos, segundo Coustos, "in grey Samaras, much shorter than the San Benidos [sic] (...) The face of the Person who wears it, is copied ...from the life, standing on firebrands, with Flames curling upwards, and Devils round it. Ar the Bottom of the Samara, their names and sirnames are writ. Blasphemers are dress'd as above, and inguished only by a gag in their mouths" - idem, pp. 217-8. (45) BPADE, cédice CIX/2 - 13, documento no, 50, "Carta do pe. Miguel de Almeida a outro padre de Coimbra dando noticia do auto-da-fé em Lisboa, de 27.06.1744". Para uma anilise detalhada da estmitura do auto-da-fé, consultar Francisco Bethencourt, Historia das Inquisigées: Portugal, Espanha e Itdlia, Lisboa, Circulo de Leitores, 1994, especialmente o capitulo "O auto-da- f", pp. 195-258, (46) ANTT, Inquisigao de Lisboa, processo no. 4864, fl. 458v. (47) BNL, Reservados, eddice 554, "Mereiirio Histérico de Lisboa", edigdo de 27 de junho de 1744, f. 201v. (48) E interessante observar que o grande Camillo transformou o desembargador Santa Marta numa das personagens do romance histérico A caveira da martyr, por ter sido ele © tutor de Antdnia Xavier, envolvida na célebre historia do médico da corte joanina Jsaac Eliot - Camillo Castello Branco, A caveira da martyr, Lisboa, Livraria Mattos Moreira, 1875, tomo TI, p, 153 (49) ANTT, Inquisigao de Lisboa, processo no. 4864, fis. 3 e 149. (50) "... os crimes dos heresiarcas ¢ dogmatistas, nos quais, pela semelhanga que tém no prejuizo publico com os das conjuragées contra a vida do rei..." O iiltimo regimento e 0 regimento da economia da inquisigao de Goa, leitura ¢ prefacio de Raul Régo, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983, p. 63. (51) BNL, Reservados, Camara Eclesiistica de Lisboa, processo de habilitago in genere, ano de 1729, CE. M.474, P.4, fl. 2. As informagdes sobre o pai de Henequim encontram- se em O. Schutte, Repertorium der Nederlandse Vertegenvoordejus, Residesende in Beritenland 1584-1810, Gravenhage, Verbrijghaar bij Martirens Nijloof, 1976, XXVI, p. 434. A grafia correta do sobrenome de Pedro é Hennequin, Sou grata a0 colega Tiago Costa Pinto dos Reis Miranda que garimpou esta indicago em bibliotecas holandesas Quanto a importancia do burgomestre, eles integravam a “elite de poder" das Provincias Unidas - Peter Burke, Veneza e AmsterdA: um estudo das elites do século XVI, trad., Sao Paulo, Brasiliense, 1991, p. 31 (52) ANTT, Inquisigéo de Lisboa, processe no. 4864, fl. 248, A estranha acusagdo langada por Henequim contra Santa Marta é, talvez, uma das passagens mais obscuras de todo 0 proceso. Quando 0 inquisidor the mostra os manuscritos supostamente de sua autoria, ele replica que aqueles papéis "estiverdo hum anno em poder de seus inimigos, em cujo tempo Ihos falsificaréo de sorte que o dito Dezembargador Santa Martha Ihe mostroi hum caderno de papel de Letza, ¢ signal to bem fingido, que elle declarante no conhecer a falsidade delle pela matéria, que tratava, a reconheceria por sua” (53) ANTT, Desembargo do Paco (Extremadura, Corte ¢ Ilhas), mago 1590, no, 1. (54) Ibidem. Emesto Ennes publicou algumas passagens deste documento em Dois paulistas insignes, S80 Paulo, Companhia Editora Nacional, 1952, volume Il, p. 201 a 209, (55) BNL, Reservados, cddice 480, "Noticias aanuaes. Do ano de 1740 athe o anno de 1749, Trazidas a esta collegdo com a possivel diligéncia, por Luiz José de Figueredo", fl 109v. Sobre a morte trigica dos inquisidores, tratava-se de uma crenga bastante disseminada entre os cristios-novos, a exemplo do fanqueiro Gongalo Mendes, que dizia que eles "morrem de mortes siibitas, e outros cheos de lepra, e outros os levao os diabos" ~ ANTT, Inquisigdo de Lisboa, cademos do promotor, livro 202 (1610- 1624), fl, 249 (56) Uma descrigéo pormenorizada da biblioteca particular de Santa Marta encontra-se no “Inventario da Livraria que ficou por falecimento do Sr. Dez. Joaquim Roiz Santa Martha Soares” - ANTT, Inventério Orfanolégico, mago J 265, cuja indicagao devo, mais uma vez, 4 generosidade de Tiago Reis Miranda, (57) ANTT, Conselho de Guerra, mago 260, 1a. caixa 67 (58) Idem, Tratam-se do parecer escrito por Gongalo José da Silva Preto a Diogo de Mendonca Corte Real e do deferimento posterior, datados ambos de 1755. A esta altura, © filo de Santa Marta fizera-se familiar do Santo Oficio, sucedendo o pai também na carreira de magistrado - ANTT, Conselho Geral do Santo Oficio, maco 63, doc. 973, habilitagao de Jozé Igndcio Roiz’ Santa Marta Soares. (59) Idem, grifos meus, (60) Ordenagées Filipinas , op. cit.,liveo quinto, titulo TX, p. 1159. (G1) CF nota de Castelo Branco Chaves em O Portugal de D. Jodo V visto por trés forasteiros, op. cit, p. 235, (62) Charles Frédéric de Merveilleux, "Memérias Instrutivas sobre Portugal: 1723-1726" in O Portugat de D. Joao V visto por trés forasteiros, op. cit. p. 141. E inegavel o tom irdnico e galhofeiro das observagdes de Merveilleux, sobretudo quando acrescenta que “o rei de Portugal, embora distraido nestas diversdes, nunca deixou de manter as mesmas. atengdes com a rainha, pelo que a familia real ficou muito numerosa...” (63) Para um panorama geral da historiografia sobre 0 periodo joanino, na perspectiva de revisio dos mitos que a dominaram, consultar - Rui Bebiano, D. Jofio V: poder e espeticulo, Aveiro, Livraria Estante, 1987, pp. 19-28 (64) BNL, Colegio Pombalina, cédice 686, "Memérias politicas, histéricas, ¢ criticas do Reynado do Senhor Rey D. Jodo So.", fl. 182v ess. (65) E dificil submeter os fatos descritos pelo autor das Memérias a um rigoroso exame quanto a sua veracidade, pois versam, em geral, sobre temas relativos a intimidade de D. Joao V. Nos aspectos mais gerais, o autor dé mostras de conhecer a fundo alguns acontecimentos relacionados ao Brasil, especialmente as circunstancias que motivaram a invasfo francesa comandada por Duguay-Trouen: diz ele que os franceses cobravam satisfagao pelo enforeamento de um cirurgido e um piloto. Em carta ao governador do Rio de Janeiro, © corsério francés atribuia esta segunda incursio ao fato de “avoir fait massacrés les chirurgiens auxquels vous aviez permis de descendre a terre..." » Duguay- Trouen, Meméires, Amsterdam, Pierre Mortier, 1730, p. 252. (66) Alberto Pimentel, As amantes de D. Joao V, Lisboa, Livraria Ferin & Cia, 1892, p 156, (67) Emesto Ennes publicou algumas passagens deste documento em Dois paulistas Insignes, op. cit., volume Hl, p. 98. (68) "Nao temos elementos sérios nem seguros que permitam confirmar esta simples persuaso, mas havemos de convir que, de certo modo, os indicios, as coincidéncias so 68 singulares ¢ se conjuram para confirmar a noticia do andnimo autor do Mss. da Biblioteca Nacional" - Ernesto Ennes, "Uma conspiragao malograda em Minas Gerais para aclamar Rei do Brasil o infante D, Manuel (1741-1744)", Congresso do Mundo Portugués, Lisboa, VII Congresso Luso-Brasileiro de Histéria, vol. Il, 1940, p. 21 (69) Idem, p. 18. (70) Ernesto Ennes, Dois paulistas Insignes, op. cit., vol. 1, pp. 98-108. Cumpre notar que Ennes, interessado na biografia de Matias Aires, aventa ai a hipstese de este, dado 0 relacionamento préximo ao Infante, ter tido conhecimento da conspiragao. sie do Paraiso: os motivos edénicos no |, 5a, edicdo, Sao Paulo, Brasiliense, 1992, p. (71) Sérgio Buarque de Holanda, descobrimento e colonizagao do Bra: XXL (72) Plinio J. Freire Gomes, Um herege vai ao paraiso: 0 Brasil e a cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisicho (1680- 1744), dissertagio de mestrado apresentacla a9 Departamento de Historie da Universidade de Sdo Paulo, 1994, p. 8. O mesmo autor ainda dedicou dois arigos a0 proceso inquisitorial de Henequim: "Tabuleiro intelectual’ 0 pensamento de um herege setecentista perseguido pela Inquisigio", in Revista USP, no. 23, set-nov’ 1994, pp. 115-121; e "A Metropole ¢ a colonizagao do Eden: o antigo sistema colonial sob a dtica do sagrado", apresentado no Congreso da ANPUH, em 1993. (73) Mare Bloch, Apologie pour I' histoire ou métier d' historien, Paris, Colin, 1949, pp. 29-30 (74) Natalie Zemon Davis, O retorno de Martin Guerre, trad. Denise Bottmann, Paz Tetra, Rio de Janeiro, 1987, p. 21 (75) Carlo Ginzburg, A micro-histéria: € outros ensaios, trad. de Anténio Narino, Lisboa, DIFEL, 1991, p. 183. (76) No enssio "Provas e possibilidades & margem de I! ritorno de Martin Guerre, de Natalie Zemon Davis", Ginzburg retoma também as implicagdes teéricas daquilo que ele considera "a embaragosa contiguidade profissional" entre historiadores e antropologos contemporaneos ¢ os juizes_¢ inquisidores do passado - op. cit, p. 181 (77) Para uma anélise da fiiagdo de Natalie Z. Davis & Antropologia, particularmente aos pressupostos da "descrigao densa" de Clifford Geertz, ver Aletta Biersack, "Saber local, histéria local: Geertz e além’ in Lynn Hunt (org), A nova histéria cultural, trad,, Sé0 Paulo, Martins Fontes, 1992, pp. 97-130. (78) Lucien Febvre, Amour Sacré, amour profane, autour de I’ Heptaméron, Paris, Gallimard, 1971, p. 10. (79) Georges Duby, "0 historiador, hoje" in LE GOFF, ARIES, LADURIE, Historia e nova histéria, trad, Carlos da Veiga Ferreira, Teorema, Lisboa, 1986, pp. 12-13. (80) Georges Duby, Le dimanche a Bouvines, Paris, Gallimard, 1985, p. 14 (81) Le Goff et alii, “A historia - uma paixio nova" in - A nova histéria, trad. Ana Maria Bessa, Lisboa, EdigSes 70, 1984, p. 34. (82) Georges Duby, "A historia, um divertimento, um meio de evasio, um meio de formacao” in LE GOFF, Jacques et alii, A nova histéria, op. cit., p. 42. CAPITULO 2 UM INFANTE PARA O BRASIL "era ume excelente pessoa perdiério incapaz de adninistrar os sexs bens, ¢ um fantusista Do embaixador francés Saint-Priest, sabre 0 Infante D. Manel” Apud Emesto Soares. © Infante D. Manuel (1697-1766): subsidies para a sua biografia, Separata do TL ‘volume do Arquivo Histérico de Portugal, Lisboa, 1937. p. 40. 7 O QUINTO IMPERIO BRASILICO A respeito do documento, Le Goff escreveu que ele & sempre 0 “resultado de uma montagem", & medida que constréi um universo de relagdes ¢ pertinéncias, constituindo em conjunto uma imagem que é, ao final das contas, a imagem da sociedade que o produziu (1) As piginas que compdem o proceso movido pela Inquisigao contra Pedro de Rates Henequim ilustram 0 quanto esta “montager" pode ser insidiosa ¢ consciente, ¢ 0 quanto ela intervém para orientar uma certa apreensio de seu objeto, ora ocultando 0 conspirador, ora definindo o heresiarca, Mas nfo nos devemos iludir: ainda que discorressem longamente sobre a ago politica do réu, deciftando-a em todos seus detalhes, ainda assim continuariam a ser uma montagem Para além das consideragdes sobre o documento em geral, os registros inguisitoriais desencadearam um amplo debate sobre as potencialidades ¢ os limites de uma fonte em que as vozes dos réus nos chegam através de miltiplos intermediirios Muito se escreveu sobre aquilo que parecia ser um problema teérico inescanavel: a ambigtidade entre representatividade estatistica e representatividade historica; @ Gesigualdade de poder entre inquisidores ¢ réus; a organizagiio dos depoimentos em ‘ica € suas implicagdes quanto & grelhas de heresias previamente dadas, a estrutura dialo imposigao de esterestipos definidos a objetos difusos — enfim, os arquivos da Inquisigéo propuseram e continuam 2 propor problemas metodolégicos bastante complexos (2) de regra, a grande maioria dos estudiosos envolvidos na reflexio sobre a legitimidade desses fundos arquivisticos esto empenhados em reconstituir, a partir deles, tragos e indicios de mentalidades, estratos culturais profundos representagdes coletivas, de modo a examiné-los através de uma perspectiva em que o fato ja nfo ¢ a base essencial da historia. A excegao de uns poucos crédulos, ninguém mais se interroga sobre a yeracidade dos véos notumos das feiticciras ou sobre a eficécia de seus ungientos magicos. Em vez do "acontecimento" no sentido classico do termo, os historiadores fixam sua atengao no “fundo a partir do qual eles parece surgir ¢ que 3” (3). repercutem, ou seja, fixam-se em conjuntos vagos que aio tém limites pre n ‘Numa historiografia que se interessa menos pelos fatos que pelas relagdes, os padrdes da critica documental, aperfeigoada pelos positivistas no século XIX, tendem a ser substituidos por uma investigagiio que obtém sua forca na capacidade de "captar, para lé Ga superficie aveludada do texto, a interacgo sutil de ameagas © medos, de ataques recuos" (4). Ao contrario dos procedimentos dos positivistas que, segundo a expressiio feliz de Evaldo Cabral de Mello, "pegavam o passado pelos chifres", a investigagio tende 2 verticalizar @ problematica, estabelecendo novos niveis de diélogo com 0 documento ‘que no se restringem aquela superiicie cristalina (5). Evidentemente, 0 refinamento dos padiSes de interpretagdo documental no exclui os velhos postulados da critica positivista sobre a importincia tanto da critica externa — 0 exame de autenticidade — quanto da critica interna — os processos de manipulagao e falsificagio — da matéria- prima do historiador As dificuldades colocadas pelo processo de Henequim so, 20 menos num primeiro momento, de outra natureza e se resumem na seguinte indagagéo : se o processo constitui a fonte mais rica de que dispomos sobre o universo em que se movia rrossa personagem, como interroga-lo a respeito de um episédio — a conspiraczo — sobre o qual se cala? Talvez a Unica pista ao nosso aleance, antes que futuras prospecgdes fagam vir a luz novas evidéncias, & de uma obviedade desconcertante: perscrutar, na densa cosmologia de Henequim, os tragos e indicios que permitem supor como corolario politico a legitimidade de uma conspiragdo destinada a inaugurar ume América independente. Obviedade enganadora, pois, afinal, que pressupostos nos autorizam a postular uma logica necessaria entre crenga religiosa e ago politica ? Longe de um parti pris tedrico, a justificagao de tal abordagem nos é sugerida pelo proprio Henequim, para quem 2 especulagdo teolégica nao se dissociava da experiéncia cotidiana, que, enriquecida com o viver em Colénia ¢ com o estudo biblico, proporcionaram-Ihe um nove conhecimento das Escrituras, legitimando, a seus olhos, a condigo de “eleito de Deus". Sua autoridade decorria assim da capacidade de contemplar 0 texto biblico a partir de um olhar experimentado nas coisas do mundo, ¢ 20 B mesmo tempo, da capacidade de contemplar as coisas do mundo a partir de um olhar experimentado no texto biblico, Na origem desta convicgao esta a valorizago do conhecimento como sistema que engloba os miiltiplos niveis da existéncia humana, de modo a formar um todo perfeitamente estruturado e coerente, composto de partes indivisiveis. Para Henequim, no havia pontos de ruptura entre priticas aparentemente tio desconectadas, como a abstengao de vinko e a atividade mineradora, porque ambas as coisas se integravam num plano mais vasto de eperfeigoamento intelectual (6). Para entendermos como, onde e por que se articulam o conspirador preso no Rato e o heresiarca queimado no Campo da La, € preciso primeiramente distinguir as conjungdes rompidas pelo discurso inquisitorial, encontrar as juntas-mestras que se perderam naquela (des)montagem e vislumbrar nelas seus encadeamentos possiveis, para ento, num segundo momento, refazer, em sentido inverso, a trilha percorrida por Henequim desde as Minas Gerais até o Infante D. Manuel, ¢ encontrar assim, em algum luger, na intersecgio entre especulagao teoldgica e experiéncia cotidiana, os contornos fugidios do conspirador. © Brasil é na cosmologia de Henequim, 0 alfi © o Omega de toda a historia humana, Nele, em algum lugar situado em meio as serranias, 0 visiondrio descobriu a localizagio do Paraiso terrestre — decifrando assim 0 que julgava ser "a questdo universal da Escritura” (7). Ali estavam os quatro rios, a arvore da vida e a arvore da cién: ali foram criadlos Adio e os anjos Mas o Paraiso tervestre, paleo da criagao da humanidade, também deveria encerrar, segundo Henequim, o mistério da Restauragio, Naquelas serranias distantes, perdidas no centro do Brasil, haveria de levantar um Quinto'Império, o limiar de uma nova era — a apoteose de uma sofisticada concepgdo escatologica, profiundamente influenciada pela cabala crista e pelas formulagéies milenaristas do padre Antonio Vieira As teses sobre o Brasil deveriam ocupar todo o terceiro dos livros que compunham tratado planejado por ele. Sob o titulo Paraiso Restaurado, Lenho da vida descoberto, discorreria sobre a localizagao do Paraiso terrestre e da arvore da fruta nw proibida. Defenderia a opinigo de que o Brasil nfo fora atingido pelo dilivio; de que Adio deixara seus pés gravados em pedra quando se passara a Jerusalém; de que o Trono Celestial se situava perpendicularmente ao Paraiso; de que ali estavam Henoc, Elias e Dimas; etc. (8) Tao profundas foram as impresses deixadas pela experiéncia americana — responsaveis certamente pelos rumos proféticos de suas reflexSes — que Henequim jamais pode se apartar detas, De todos os pontos de que viria a se retratar, somente os relativos a0 Brasil manteria até o fim, como testemunhou frei Crispim de Oliveire, quando alegou que ele parecia estar convencido do erro des proposigdes, retratando-se de todas, a excegiio daquelas "que respeitam 4 América" (9). Visto que a especulagdo sobre 0 Quinto Império nao se dissociava daquela sobre as origens do universo, © que esta ultima fora suscitada pela observagio da especificidede geogrifica do Brasil, parece plausivel afirmar que Henequim tenha langado os fundamentos de sua teoria milenarista ainda nas Minas Gerais. Tanto quanto sabemos, 2 primeira alusto ao tema ocorre em 1732, por ocasiio denincia feita por Simio de Oliveira e Sousa, e aparece relacionada 4 defesa da tolerdncia aos judeus € & crenca de que “brevemente, ¢ antes de dois anos se renovard © mundo, e no seu governo haverd Unus Pastor, et unum Ovile ¢ que os dez tribus se verdo congregados pois estes andam espathados por toda a América, ¢ assim renascidas as suas primeiras memérias* (10) A cigncia cabalistica de Henequim anunciava, portanto, grandes mudangas entre 08 anos de 1733 e 1734. Uma grande renovagdo resgataria o velho sonho da humanidade unida em torno de uma s6 f& © um sé pastor, concretizando a promessa divina do Evangelho de sto Joo, Nada escaparia ao cataclisma que, instalado num futuro proximo, faria retroceder o relégio do tempo aos primérdios da histéria, ¢, como re ering, volveria ao Paraiso 0 seu epicentro. Entretanto, nada disso aconteceu a0 cabo daqueles dois anos. E 0 fracasso de sues previsbes nfo 0 demoveu nem do sonho de uma Quinta Monarquia, nem da certeza de que era ele 0 escolhido de Deus para anunciar maravithas desconhecidas pelos homens. Quase dez anos depois, é novamente acusado de evocar as antigas crengas de 5 que “havia de haver no mundo um Quinto Império, o qual havia de ser s6 de portugueses, e que estes todos so, e haviam de ficar Judeus, porque os dez Tribos desterrados de Babildnia se espalharam todos por este Reino, ¢ pelo estado do Brasil onde atualmente se acham, e deles se ha de vir a formar 0 Quinto Império". No rol das acusagdes, figurava ainda a crenga de que "a lingua portuguesa correta, e pura como ele a ensina, ¢ fala hd de ser a que se ha de falar no Quinto Impétio dos portugueses, que esta proximo, ha de ser nos Brasis no lugar do Paraiso Terreal, e que ha de ser de Judeus” (11). Assim, se ele havia fracassado na previsio feita a Simido, nem por isso abandonou a conviegdo de que a renovacdo do mundo n&o tardaria a vir. A momumentalidade do seu Quinto Império — a cimalha que coroa triunfantemente 0 complexe edificio teoldgico construido a partir de uma cosmogonia peculiar —~ contrasta, no entanto, com as parcas linhes que lhe sio dedicadas no conjunto do proceso. Raras sio as referéncias a ele — € quando ocostem, provéem ou dos denunciantes ou dos qualificadores, jamais do proprio Henequim, Evidentemente, isto no quer dizer que se tratassem de proposigdes arbitrariamente infligidas ao réu, como pretenderia 0 autor das Memérins em 1808, posto que um testemunho tio desinteressado como o do padre Miguel de Almeida, seu derradeiro confessor, no permite diividas quanto importincia do Brasil na sua cosmologia, e, se nfo bastasse isto, depois de sua morte, o alcaide dos carceres secretos anotaria cuidadosamente, no livro de registro dos presos, a crenga do "Paraiso no Brasil" como uma das responsaveis, pela sua condenagdo (12). Como explicar entio que temas centrais como a localizagio do Paraiso terrestre 0 advento do Quinto Império permanecessem estranhamente intocados no decurso de quase trés anos de sessGes continuas ? A pergunta remete-nos a uma importante constatagdo sobre © ritmo mesmo dos interrogatérios: apenas uma pequena parte das cento © uma proposigles heterodoxas defendidas por Henequimn foi objeto de inquirigdo. Met6dico, ele comesou por explanar os topicos relativos & natureza divina e 4 criagaio — 08 alicerces de sua cosmologia — e, como um circulo vicioso, voltou a eles repetidas vveres, fosse para pormenorizi-los, fosse para replicar as admoestagdes que the eram feitas. 76 Na realidade, a condugo dos interrogatérios competia ao inquisidor, a quem no faltavam mecanismos para orienté-los habilmente numa ou noutra dirego, sobretudo em se tratando de um réu como Henequim, que se comprazia em explicagdes prolixas. Aquele bastava langar-lhe uma questo abordada na sesso anterior para que este repetisse & exaustio as mesmas idéias, aprisionando-se no niicleo basico concernente aos miltiplos aspectos da criago, para além dos quais pouco péde avangar E nesse ponto voltamos a indagago anterior: por que razio teria o inquisidor propositadamente evitado que o réu discorresse sobre o tema do Quinto Império ? A resposta é simples se levarmos em consideragio as motivagdes sigilistas da Inquisigao. dada a ligasio entre © Quinto Império e 0 Infante D, Manuel, Henequim nao poderia abordar 0 problema do Quinto Império sem enveredar por uma exposigio sobre 0 homem destinado a ocupar o trono temporal dele, E para evitar esta indiscrigfo, 0 inguisidor passou ao largo do assunto — aliés, ndo foi outra a sua atitude diante da conspiragao -, seguindo & risca 0 “inviolavel segredo" ordenado por El-rei A iuz desta conclusio, uma série de pontos obscuros da investigagao se esclarecem, E a conspiragdo mostra-se uma chave pare decifrar aspectos aparentemente desconcertantes do problema, como, por exemplo, o siléncio sobre 0 Quinto Império, as irregularidades no andamento do processo, o tom repetitive das sessbes € as invectivas de Henequim contra as arbitrariedades de que se sentia vitima, A comegar pela omissAo injustificada de temas fundamentais. Com eftito, néo foram poucas as vezes em que ele se queixou de nao poder esclarecer todas as culpas gue the eram atribuidas e que, por esta razfio, nflo estava em condigSes de sustenta-las ou refutd-las nas sucessivas tentativas de retratagdo ensaiadas na fase final do proceso. Chamou, por exemplo, o Libelo do Promotor, pega findamental da acusagio, de "um chuveiro de testemunhos falsos", porque muitos dos pontos "se nfio acham nas suas sessdes". E o proprio inquisidor, ao justificar tal procedimento, nto omitiu o fato de que ruitas das heresias imputadas a Henequim no haviam sido objeto das sessdes, porque foram extraidas de "seus amanuenses ou borradores" (13). Preocupado em se retvatar somente das matérias sobre as quais havia discorrido na Mesa do Tribunal — 0 procedimento aparentemente mais l6gico para a situagao — , 7 Henequim deixou de lado todas as proposigdes relativas a localizagio do Paraiso terrestre € a0 Quinto Império. E, significativamente, foram estas omissdes que the valeram o epiteto “diminuto” -- 0 estratagema legal que justificou a condenagao & pene méxima (14) ‘Na realidade, 0 processo é uma pega repleta de pequenos e quase imperceptiveis attificios insidiosos do ponto de vista do Regimento da Inquisigo portuguesa. Contra les, Henequim se insurgiu nfio poucas vezes, denunciando o tratamento excepcional e injusto que the era dispensado, ¢ associando-o & determinagao, por parte de seus adversirios, de condené-lo a todo custo (15). Assim, se 4 primeira vista a indignacto exaltada de Henequim nas iiltimas sessies, com seus rompantes tresloucados, parece set apenas uma reagBo comum e previsivel dos processados pelo Sento Oficio, um exame menos superficial confirma a procedéncia das razbes para tanto desvario. Um ‘outro dado corrobora 0 ponto de vista defendido aqui: em 1732, Henequim jactava-se de conhecer os mecanismos necessarios para se livrar do Santo Oficio, aludindo ao exemplo do padre Anténio Vieira, que conseguire escapar através de um artificio bastante simples € que consistia "em dizer o que ndo sente, € ficar mentindo" (16). No principio do processo, excessivamente confiante na acolhida de suas inovagdes teologicas, Henequim deu livee vazio as sinuosidades da raflexdo religiosa, ousando um estito empertigado imponente. Quando pressentiu 5 teias inguisitoriais a embaragarem-no cada vez mais, numa progressio vertiginosa e irreversivel, mudou 0 tom e acolheu a estratégia de Vieira. Tentou entdo uma retratagdo apés a outra — algumas bem-sucedidas, outras nem tanto. Todas elas, porém, esbarraram naquilo que chamou de “pretexto colorado para o condenarem". As retratagbes tornaram-se verdadeiras batalhas psicolégicas, comandadas com maestria pelo inquisidor Trigoso, aquela altura um eximio conhecedor do temperamento apaixonado e explosivo de Henequim. Espicagando-o ¢ humithando-o com tenacidade, 0 inquisidor testava os limites de sua contricgao, aguardando o momento em que ele, ferido na sua imensa vaidade intelectual, recobresse 0 animo de profeta iluminado, Bem depressa, apercebou-se ele de que a pega do libelo acusatirio nao correspondia totalmente ao que dizia em Mesa; protestou ento que "muitos dos pontos B deles se nfo acham nas suas sessdes, nem tais cousas teve nunca no seu entendimento”. Suspeitando do que acontecia nos bastidores, requereu a0 Santo Oficio uma cépia do libelo € um secretario para que “conferindo-o ambos com as sessbes, se assinalem os pontos que se acharem viciados para serem riscados no libelo original, pois ndo ¢ justo que ele se defenda de culpas que nfo cometen” (17). Paulatinamente, todas as oportunidades de defesa foram se fechando & sua volta ‘A mais importante delas, estabelecida pelo Regimento da Inquisigio, como 0 era a audigncia das testemunhas arroladas pelo réu para corroborar suas contraditas, foi negada sob a alegacdo de que assesses comprovavam suficientemente os delitos do réu (18), Alem disso, ainda na fase inicia! do processo, quando os irmaos Santa Marta formalizam suas deniincias, percebe-se a tentativa de incrimini-lo por judaismo: 0 padre ‘Teodisio conta que o desembargador Ihe havia dito que o prisioneiro cantava os Salmos de David suprimindo as palavras “et Filio, e Spiritu Sancto". Na realidade, a denincia niio procedia, e nem Henequim, nem seus juizes jamais fizeram mengao a tal prétice; nem mesmo na sentenca condenatéria, onde eram apresentados os erros do réu, constaria a adaptagdo judaica dos versos de David No que respeita as sessdes, existem também icregularidades. Algumas datas, especialmente o ano, aparecem estranhamente rasuradas, 0 que poderia ser atribuido, num primeiro momento, a. um simples erro do esorivdo, Mas, considerando-se 0 fato de que sua fungo consistia em registrar diariamente virias sessdes, parece pouco provvel que ele pudesse cometer um equivoco tio banal, Ademais, nem tudo 0 que se passou entre ele © o inquisidor Trigoso em sessio foi devidamente anotado pelo escrivéo. Ha, pelo menos, uma circunstincia omitida nos autos: em abril de 1743, quando o alcaide dos carceres da Inquisigo Maximiliano Gomes da Silva introduz um novo sistema de fornecimento de viveres aos presos, Henequim reage duramente & modificagio, desentendendo-se com o alcaide © com o guarda, No calor da discussio, 0 guarda ameaga-o dizendo que “aquele atrevimento se satisfazie despicando-o com um vergalho" Ao saber do ocorrido, o inquisidor Manoel Varejio de Tavora chama 0 preso & Mesa, & ‘em sessto repreende-o asperamente (19) » A suspeita de que o destino de Henequim havia sido previamente decidido nio escapou ao padre Miguel de Almeida, que sintetizou com singular argiicia 0 animo de seu padecente depois de ser informado de que seria relaxado a justiga secular. Instruido pelo padre "no que devia fazer, palavras certas, e ditas com muita humildade, e mostras de verdadeiro arrependimento", ele tentaria ainda duas retratagdes. Porém, 0 que nos interessa aqui é a maneira um tanto quanto realista que o padre escancara os bastidores do julgamento de Henequim ao comentar a sentenga do proceso : "porque o epiteto, que teva de dimineto, crivel se me fez, e fazia ao tribunal, seria esquecimento, sendo tantos em niimero os erros heréticos em que caiu (...) morreu finalmente 0 que entendi arrependido..." (20) Evidentemente, tudo isto nao significa que 0 conjunto do processo fosse, do comego ao firn, uma farsa montada a partir dos "despropésitos ditados pelos tedlogos da Santa Casa" , como quis 0 autor do manuscrito mencionado anteriormente . Mas nos leva a concluir que se Pedro de Rates Henequim mereceu um tratamento arbitrario do ponto de vista da mecanica processuai do Santo Oficio, isto se deve ao fato de que ele no era um réu como os outros. Os intimeros atropetos juridices e os bastidores politicos da prisdo indicam a necessidade de cautela diante dos autos do processo, parcialmente adulterados pelo Tribunal com o objetivo de exagerar a suposta conotagio herética das proposigdes de Henequim, E bem possivel que os qualificadores tivessem habilmente radicalizado ou, a0 menos destacado, os pontos mais obscuros, passiveis de uma leitura ambigua Chegamos assim ao amago do problema: diminuto, condenou-o o siléncio sobre © Quinto Império — aquele mesmo Quinto Império sobre o qual os inguisidores ndo o deixaram discorrer. Aquele Quinto Império cuja mensagem Henequim queria indefinidamente repercutida através da obra grandiose que burilou durante tanto tempo. E 6 deste siléncio, rompido eventualmente aqui e ali, que devemos extorquir os fragmentos, discernir os pontos de articulagao entre cosmologia, teologia e aspiragdes politicas, juntar as pegas esparsas da construgdo. Como associar 0 comportamento politico de Henequim ao sistema simbdlico que Ihe ditou a conduta e a justificou a seus olhos 2 80, O LEGADO VIEIRIANO Renovagao, restauragio, renascimento de memérias primordiais, retorno a0 Paraiso, converséo 20 judaismo -—- se Henequim instala no tempo futuro o advento do Quinto Império, seus olhos esto postos sobre um passado bem distante. Ele aspirava a0 retomo a Igreja primitiva, depurada das exctesc@ncias que as exegeses sucessivas dos Padres haviam Ihe imposto, E bem esse o sentido que aplica a palavra "judaismo", ou seja, 0 de uma Igreja judaica em oposigao ao gentilismo entendido como distorgao do texto biblico. Afinal, é impossivel explicar as teorias de Henequim — a “divinizagio” da Virgem e a Redengio por Cristo, por exemplo — através apenas de uma suposta matriz Judaica. Se ele acabou por se avizinhar perigosamente de algumas tradigdes hebréias, seu propésito deliberado sempre foi o de permanecer no interior do catolicismo, ainda que do catolicismo iluminado © aperfeigoado pelas suas descobertas teoldgicas, as quais pretendia comunicar ao Papa em Roma, para assegurar a extirpagao das heresias € 0 esplendor da Igreja (21) Nao € dificil identificar as fontes em que ele sorveu as concepgdes que constituiram 0 seu sistema teolégico, sobretudo aquelas relacionadas 20 advento do Quinto Império. Elas inseriam- se no vasto repertério de crengas profético-messinicas que, muito antes das trovas do sapateiro Bandarra ou do desaparecimento do rei D. Sebastiéo em Alcécer-Quibir, impregnavam amplos setores da cultura portuguesa, a ponto de um embaixador indagar, no século XVIII, "que se pode esperar de uma nagio em que metade anda & procura do Messias e a outra metade a espera de D. Sebastiao, morto ha quase dois séoulos (22) ?” Exagero & parte, a verdade é que um estudioso do assunto como Raymond Cantel observou que “a importancia do fendmeno messianic no mundo portugués é surpreendente. Lim estudo semelhante que tomasse por objeto a Inglaterra, a Espanha, a Pranga ou a Itdlia seria marginal, até anedético” (23). A teoria do Quinto Império mutria-se das miltiplas correntes messianico- milenaristas que profetizavam a vinda de um salvador, 0 Encoberto, identificado diferentemente, conforme as injungées da conjuntura politica ou dos grupos culturais em al questdo. Os judeus viam nele o Messias prometido aos povos de Israel; alguns, ¢ nao foram poucos 0s havidos em Portugal, aurto-proclamavam-se © proprio Encoberto das trovas do Bandarra ou da tradigao biblica profética (24), E muitos acreditavam se tratar do rei D. Sebastiéo, desaparecido em Alcécer-Quibir, alimentando e renovando a vertente sebastianista que vaticinava a ressurreigo do rei morto (25). © conceito de sebastianismo usado para englobar todos estas manifestagdes de cardter messifnico, desde as trovas do Bandarra até as formulagdes da cultura popular, pessando pelas concepgdes do padre Anténio Vieira, nfo resiste a uma anélise mais atenta. Afinal, esto em jogo elementos tao dispares que a tentativa de abarcé-los sob um conceito demasiadamente rigido nada acrescenta 20 seu estudo, antes produz uma concepgdo generalizante ¢ atemporal. Se & necessario buscar definigbes mais amplas e elasticas — como a de milenatismo messianico -, uma tal empresa somente tera sentido dentro de uma analise bastante particularizada, submetendo-as 20 refinamento de uma abordagem que privilegie as especificidades de cada fendmeno, Para se compreender 0 significado do Quinto Império de Henequim no € preciso desbastar a densa vegetagio essidnica portuguesa, 4 procura de uma matriz instalada numa ramificagiio popular ou ‘um tronco marrano, Porque, se existe um autor ott obra que tenha exercido uma influéncia evassaladora sobre ele, este autor € 0 padre AntSnio Vieira e a obra, a Histéria do Futuro, publicada em Portugal em 1718 (26) Explorar as similaridades entre o pensamento de um ¢ outro nada tem a ver com © método arqueolégico baseado na procura incessante das origens, muitas vezes mero pretexto para um exercicio de erudig#o pouco elucidativo, O propésito & bem outro e compara-se 20 do restaurador: trata-se de preencher as lacunas das fontes através de uma abordagem das semelhangas em busca da verossimilhanga. Evidentemente, a op;ao por uma investigacao baseada na complementariedade das fontes implica a aceitacéo do cardter conjectural dos resultados assim obtidos (27). Feitas essas consideragSes, o primeiro passo consiste em demonstrar a extensiio de, influgneia de Vieira no pensamento de Henequim. E isto ndo é dificil, posto que as afinidades entre eles ultrapassam algumas vezes 0 campo das idéias, para se revelarem sob a forma de uma transcric&o quase literal. E 0 caso, por exemplo, da percepgao que 2 tinham a respeito da elucidacao do significado do texto biblico. Henequim afirmava que por mais que os Santos Padres tivessem se esforgado para "acharem o lugar do Paraiso, ele o achara as primeiras enxadadas” (28). Vi a diz, na Histéria do Futuro, que “os que estudamos © trabalhamos na inteligéncia da Sagrada Escritura, mais ou menos todos cavamos, e pode suceder que os que vém na tiltima hora, por felicidade da mesma hora, acabem e descubram com poucas enxadas 0 que muitos em muito tempo e com muito trabalho, cavando muito mais, nfo descobriram” (29) © que esta em discussio em ambos os casos é, na verdade, 0 método de interpretagdo das Escrituras, ou seja, o fundamento com que legitimam e justificam suas concepgées. E a este respeito, os dois tém posigées idénticas. A comegar pela tese de que © comentador deve ultrapassar os limites da exegese tradicional, recorrendo a modalidades de interpretagao pouco comuns Evidentemente, Vieira nunca chegou e professar uma "cigncia cabalistica” como Henequimm — para quem era possivel encontrar no alfabeto "todos os argumentos do credo notando o feitio de cada uma deles, 08 aagulos, riscos, pontos ¢ lugares que tem, € outras circunstincias" (30), Porém, nfo distanciave muito dele ao considerar 0 texto biblico inspirado por Deus nko apenas no seu contetido ideoldgico mas ainda na forma até mesmo no detalhe das palavras — “uma das maiores exceléncias das Escrituras Divinas é nao haver nelas palavra, nem silaba, nem ainda uma s6 letra, que seja supérftua, ou carega de mistério” (31). Ademais, a importincia que dedicava aos algarismos dos textos proféticas, vistos como portadores de uma mensagem a ser decifrada, ¢ que o levaria a constantes exercicios de interpretago, retomados incessantemente ao longo da vida, guardava muita semelhanga com a cabala dos ntimeros praticada nos circulos cristaos difundidos na peninsula Ibérica (32). O principio do mistério oculto em cada letra levaria-os a buscar as variantes do texto biblico nas suas antigas verses. No caso de Vieira, ele julgava-as importantes porque the revelavam certos aspectos da inexaurivel Palavra de Deus, como se as tradugdes, longe de serem conflitantes ou concorrentes, fossem elementos ‘enriquecedores da Verdade revelada (33); para Henequim, o hebraico — o idioma dos 83. profetas de Israel — devolviaclhe o sentido original que a Vulgata de sfo JerGnimo havia conspurcado, ainda que louvasse a lingua portuguesa como a lingua falada por Deus & pelos homens até a confiisio de Babel E noutro ponto, mais decisivo, que os dois comentadores coincidem. Seguindo a tradigo, ambos reconhecem os quatros principios de interpretago das Escrituras, estabelecido por so Boaventura no século XIII, a saber: literal, moral, alegérico & anagégico. Mas a estes, ajuntam um quinto, que consiste numa exegese em busca do "sentido historico", entendido como a interpretagio possivel num dado momento historico. Vieira aludia, em tom de critica, a0 fato de que os Padres antigos, preocupados em buscar o mistério da Encarnagdo, seguiam apenas o sentido alegérico, “insistindo menos nos literais (...) tocando muitas vezes sO leve € superficialmente 2 letra..." Defendia, em conteapartida, uma interpretagdo mais literal, voltada para "o sentido genuino e radical” dos livros (34) Nao € outro o método praticado por Henequim em reiagZo aquilo que se the afigurava a questio universal des Escrituras — ou seja, a localizacio do Paraiso terrestre. A descoberta do Novo Mundo expunha, segundo ele, uma ignordncia crucial dos expositores antigos ¢ a impossibilidade de alcangarem o sentido de passagens obscuras do texto biblico diretamente relacionadas ao tema do Paraiso terrestre. No limite, tanto um quanto outro advogavam a tese de que os Santos Padres nao sebiam tudo simplesmente porque nao podiam saber tudo. E se para defender 0 progresso do conhecimento biblico, Vieira comparava as idades da Tgreja as do homem, observanda que "seria nio so contra a ordem da natureza, sendo contra a decéncia da mesma idade, que nao fosse mais sabia a Igreja nos maiores anos, do que o tinha sido nos menores" (35), Henequim fazia-o do mesmo modo para corroborar tese idéntica: "nos primeiros séculos da Igreja ainda que houveram homens ¢ santos grandemente ilustrados ... a todos estes se comunicou muito menos Luz do que a ele porquanto tinham vindo ao mundo em tempo, em que nfo podiam receber luzes maiores, por entio estar a Tgreja na sua primeira infincia de que ja hoje tinha saido” (36). Por outro lado, a defesa da literalidade em Vieira reaparece nas interpretagdes propostas por Henequim e estaria ai, segundo seus qualificadores, a origem de todas as Bt suas concepgGes heréticas — as quais, na opiniio do jesuita Miguel de Almeida, “nasciam de ser muito mau tedlogo, entendendo os textos da Escritura muito materialmente", O inguisidor, por sua vez, advertiu-o de que "nem todos os passos dela se podem tomar no sentido literal pelos inconvenientes, ¢ absurdos que disto resultaria en". No ceme das opinides controvertidas defendidas por um ¢ outro estava 0 fato de que contato com as realidades americanas conduzira-os a uma reflexio mais profinda sobre as implicagdes teoldgicas do desconhecimento do Novo Mundo por parte dos expositores ¢ comentadores das Escrituras. Buscavam inscrever este universo novo naquilo que julgavam ser a fonte de toda a verdade e, ao mesmo tempo, estabelecer as bases de uma critica da exegese tradicional, de modo a filtrar 0 Verbo através do conhecimento daquelas realidades. Em que passagens biblicas eles véem cintilar 0 Novo Mundo ? Em todas aquelas que discorrem sobre regides situadas nos extremos da terra, os Antipodas, cuja existéncia havie sido veementemente negada pla Tgreja, e que profetizavam, para Vieira, as grandes descobertas portuguesas (38). Nas palavras do profeta Abdias — ".. © 0 cativeiro de Jerusalém, que est no Bésforo, possuira as cidades do meio dia” -, Vieira e ‘Henequim encontraram a aluséo aos portugueses € suas possessdes no hemisfério sul . No livro dos Cantares, Henequim desenterrou todas as profecias relativas a0 Brasil, seguindo uma trilha muito proxima a de Vieira, que acreditava estar Salomio a profetizar a propagacdo da fé catdlica no Oriente e no Ocidente através dos portugueses G9). Como observou Van Den Bessefaar, o projeto central da Histéria do Futuro é a compreensio mais profunda do processo histérico pela investigagiio do "sentido genuino € radical" dos livros proféticos, ¢ que Vieira sintetizou na seguinte frase: "o tempo é 0 melhor comentador das profecias" (40). Noutras palavras, 0 verdadeiro sentido dos textos proféticos pode ser alcangado somente no momento de se ir cumprindo a profecia, ou pouco antes. Esta é a chave que permite a Vieira encontrar nas Escrituras as profecias, relacionadas & histéria de Portugal, sobretudo os Descobrimentos e a evangelizagio de novos continentes. Se os acontecimentos elucidaram as profecias até enti obscuras, a 85 proximidade do Quinto Império autorizava Vieira a localizar ¢ a interpretar os vaticinios relatives A sua realizagéo. Esta € a origem do projeto da Clavis prophetarum. Coit idéncia ou nfo, a verdade € que Henequim também pretendia discorrer sobre 0 tema na obra que, como Vieira, nunca chegou a concluir (41). A consumagio do Quinto Império esteve sempre atrelada ao surgimento de um salvador, fosse © messias sobrenatural ou o principe humano que iria preparar as condigdes necessirias # um novo tempo: conversio de todos a uma s6 f, a extirpagao de heresia e a reunio das tribos perdides. Em Portugal, o salvador tendeu a se confundir com a figura do Encoberto: um principe portugués, de sangue real, que ressuscitaria ou que estava por nascer. © Imperador dos dltimos dias ocupava, no imaginirio portugués, uma posigdo central, ainda mais importante do que as promessas que se realizariam sob 0 seu governo e por isso mesmo, as discussdes tendiam a se restringir a0 problema da identidade do Encoberto (42) © Impirio de Cristo, no seu estado mais perfeito e completo, deveria ser precedido por um principe temporal, aquele que seria o Vigario de Cristo na terra e em cujas maos estaria a realizagao da etapa mais importante para a consumagdo milenarista 4 conversto universal dos povos ao cristianismo (43). Ela abrangia a conversio dos gentios, turcos, hereges € judeus, ¢ a extirpagdo da idolatria, da seita de Mafoma, das heresias e do judaismo. No quadro cronolégico tragado por Vieira no plano geral da inacabada Historia do Futuro, a éltima etapa da conversdo universal e, portanto, 0 comego da consumagio do Império de Cristo, coincidiria com a extinglo do Império sturco (44) © Imperador dos tiltimos dias assim descrito por Vieira reunia os principals atributos com os quais a tradig#o profético-messidnica havia Ihe retratado: © brago armado, a fidelidade a Igreja e a grandiosidade dos gestos. Em resumo, tratava-se de mais uma versio daquela grande matriz ideologica do "soldado de Cristo", da qual o rei D. Sebastido havia sido una das encarnagSes mais oelébres (45), Ainda nas trovas, Bandarra fazia alusdo ao rei que deveria governar toda a terra © sob cujo reino os homens adorariam um Gnico Deus: “Este frei] tem tanta nobreza ‘mais que nunca virdo Rei, Este guarda bem a Lei Da justica e da grandeza. () Todos terfo um amor, Gentios como pagios, Os Judeus serdo cristdos, sem jé mais haver error. Servirio um s6 Senhor Tesus Cristo, que nomeio, todos crerdo que ja veio © Ungido Salvador" (46), Com o desaparecimento de D. Sebastiio, 0 Encoberto dos prognésticos do sapateiro de Trancoso assume freqilentemente a identidade dele, favorecendo-se do fato de que 0 cadaver do rei munca foi encontrado. Porém, nem foi D. Sebastifio o unico emprestar a feigio ao individuo misterioso anunciado nas profecias, nem foi Bandarra 0 linico a descrever-Ihe os caracteres. Com efeito, a peninsula Ibérica conheceu, no século XVI, um amplo processo de disseminagao de trovas e vaticinios, atribuidas a Santo Isidoro de Sevilha, a frei Joao de Rocacelsa e ao proprio Nostradamus. E do interior desta vasta cultura profético-messiénica, agregando o popular ¢ 0 erudito, que Bandarra seus discipulos recolheram os temas de seus pressigios (47). Para Vieira, "aquele oficial de Trancoso" era um verdadeiro profeta, pertencente 4 linhagem dos autores inspirados, e sua obra consistiu em fornecer a base teoligica as trovas, ordenando-as no conjunto dos textos de Frei Gil, Manuel Bocatro, entre outros Retomando o milagre do Ourique como a_alianga estabelecida entre Deus e 0 povo portugués, Vieira associa o Imperador temporal do Quinto Império a dinastia dos reis portugueses. E na pessoa de D. Jo&o IV que ele primeiramente identifica 0 verdadeiro Encoberto prometido pelas trovas e anunciado por Cristo a D. Afonso Henriques no campo do Ourique. A Restauragfo, obra da Providéncia, inaugura a redengio de Portugal e o império de Cristo consumado sobre a terra, A morte do rei em 1656 no lhe altera a convicgdo e num sermao das exéquias reais anuncia a sua ressurreigdo proxima, 87 Desiludido de esperar a ressurreigdo do rei, Vieira volta-se para D. Afonso VI, e nele reconhece o futuro Imperador, pois se aproxima 0 ano de 1666, aguardado ansiosamente por cristdos milenaristas, cristos-novos e judeus como 0 ano decisivo para © qual so previstos grandes acontecimentos, O fracasso das previsdes em torno do sinistro ano de 1666 leva Vieira a novas especulagdes aritméticas, e ele conclui que se enganou nos céloulos anteriores € que a data correta ¢ 0 ano de 1675. E assim 0 soberano que viria a se tomar o imperador do mundo no é outro sendo D. Pedro, o irmao de D. Afonso VI. As meditagdes de Vieira sobre o momento decisivo so sucessivamente alteradas ¢ ele perscruta os textos proféticos em busca de uma mensagem velada sob a forma de niimeros. Para ele, a figura do imperador temporal ndo é mais importante que o ano io das circunstancias. prognosticado pelos textos: aquele é apenas um benefic Em 1688, quando nasce 0 tao esperado filho de D. Pedro Il, Vieira promete-the a dominacao do mundo no sermao de acdo de gragas pelo seu nascimento. Retomando a promessa feita por Cristo a D. Afonso Henriques, as vésperas da batalha do Ourique, Vieira reconkece no principe D. Joto 0 verdadeito herdeiro das dezesseis geragdes de reis: "digo que este Principe fatal, tantos séculos antes profetizado, e em nossos dias nascido, nao s ha de ser Rei, senéo Imperador". A noticia da morte do principe encontra-o na Bahia e novamente, Vieira no se desespera, Interpreta-a como 0 sinal de que fora chamado por Deus para tomar posse de seu império no céu, 20 passo que 0 irmfo que nasceria em breve seria entio seu herdeiro e exerceria em seu nome a soberania sobre a terra, O Império do Mundo pertenceria a ambos: um no céu, outro na. terra. E Vieira permanece fiel a esta crenga até a sua morte, em 1697 (48). A teoria do Quinto Império de Vieira insere-se no clima de nacionalismo exacerbado que dominou largos setores da sociedade portuguesa durante a unigo das Coroas de Castela e Portugal e que extraia a sua forga da célebre lenda do Ourique, segundo a qual Cristo, aparecendo a D. Afonso Henriques, tinha fundado em pessoa reino de Portugal as vésperas da batatha do Ourique © tema do milagre de Ourique, um dos pilares daquilo que se convencionou chamar de sebastianismo, permanece aparentemente exterior ao pensamento de 83 Henequim, apesar de partilhar da crenga de que os portugueses — que acreditava descenderem de Luso, rei da tribo de Judi — fossem os escolhidos por Deus para edificar © Quinto Império. A f€ na Escritura como fonte de toda a verdade, levada ao extremo, talvez o impedisse de aceitar a validade das profecias ndo-candnicas, preferindo aquelas passagens biblicas que pudessem ser passiveis de uma interpretagio id@ntica A inovagdo mais importante proposta por Henequim as correntes milenaristas portuguesas é, sem divide, a substitui¢fio da redengao de Portugal pela redengdo dos portugueses que vivem na América. Ao propé-la, ele estabelece uma distingdio entre os portugueses do Reino ¢ os da América ¢ recusa a versao corrente que atribui a Lisboa 0 centro do novo governo temporal, para eleger a América — principio e fim — o paleo do Quinto Império, Para ele, 0 Quinto Império pertenceria aos portugueses da América, mas dele no estavam excluidos os descendentes de Adio, deixados por este no Paraiso quando se passara a pé para Jerusalém, Vermelhos, os descendentes de Adio eram individuos que tinham aprendido a lingua portuguesa perfeite (49) Eram os portugueses que viviam no Brasil os verdadeiros depositirios da promessa milenarista — prova-o a sua tentativa de implantar nas Minas Gerais o ominio espanhol, propagando nelas a lingua castelhana em sua mais alta perfeigdo. Na origem da traiggo, estavam a fiustragZo ¢ 0 sentimento de injustiga, assim como 2 percepcio de que a Coroa portuguesa no sabia recompensar devidamente os seus siiditos, ignorando os feitos deles no ultramar. Assim, era contra o dominio portugués que Henequim investia e no contra 0 colonialismo, uma vez que parecia convencido de ‘ue 08 reis catélicos sabiam premiar com liberalidade os servigos de seus vassalos. Esta fora de diivida que, em seus oferecimentos & Espanha, ele nada mais fez do que traduzir suas crengas © conviegSes para o castelhano, adaptando-as aos interesses imediatos. Prova-o a primeira dentincia feita por Simido de Oliveira ¢ Souza, onde ji aparece a idgia de um Quinto Impétio para os portugueses do Brasil. Explorando habilmente as hostilidades entre as duas nagdes, ele vislumbrou certamente a ocasido de dar vazo 20 rancor que nutria por Portugal, mesmo que isto exigisse dele a tradugio de 890 todo um sistema de pensamento centrado nas exceléncias da lingua portuguesa. Assim, 05 oficios dirigidos ao cénsul espanhol flagram Henequim no ato de mentir e evidenciam ‘© quanto a sua estratégia politica sabia se adaptar as necessidades do momento, de acordo com as possibilidades que se the apresentavam (50). Depois do malogro das negociagdes com a Espanha, Henequim tratou certamente de examinar as chances & sue disposigfo. Tao certa julgava a instauragao futura de um Quinto Império no Brasil que os meios para alcaneé-lo pouce importavam, E, por varias razées, o Infante D, Manuel pareceu-lhe um alvo promissor, capaz de se interessar por aquilo que tinka a oferecer. Ao propor o trono do Millenium a um descendente de Casa de Braganga, aproximava-se do pensamento de Vieira. Mas, ele altera tudo. E inova ainda mais e num ponto decisive. Ao contrario de Vieira, que sempre se mostrou disposto a adaptar suas esperangas a0 monarca entio reinante — porque o rei nao morte jamais —- (51), o ex-mineiro alargou ao maximo o seu espectro de opcSes, mais interessado na concretizagiio do Quinto Império que na pessoa que vitia a ocupar seu trono, Assim, sensivel & influéncia de obra de Vieira, Henequim consegue alterar-Ihe num ponto — e ao fazé-1o, subverte o sentido politico dela. L' ENFANT TERRIBLE Se D. Joo V elegeu o rei Luis XIV como paradigma estético do brilho ¢ fausto barrocos que celebrizaram a corte portuguesa na primeira metade do século XVILL, 0 Infante D. Manuel, terceiro filho legitimo de D. Pedro II, encarnou, aos olhos do mundo, © antigo ideal do cavaleiro herdico, amante da aventura, campeo da fé ¢ protetor dos pobres A imitago do cavaleiro medieval, perseguiu honras e gloria; bateu-se nas guerras contra 05 tureos; combinou devogio religiosa e ardor bélico; perseguiu exemplo das grandes personagens dos anais da histdria; e, como Carlos, 0 Temerario, fez da guerra o pretexto para conquistar a gloria, e com ela gravou seu nome na galeria dos herbis de todos os tempos, 90 A esta cultura cavalheitesca, impregnada pelo forte espitito cruzadista, o Infante soube agregar as exigéncias da refinada vida cortesi do Antigo Regime, voltad2 para 0 prazer das festas, o luxo da moda € a fiui¢do da sociedade de corte, Com efeito, dominava com a mesma desenvoltura as artes marciais e as ertes de saldo; exibia-se com © mesmo brilho nos campos de batalhas e nos palicios mais suntuosos da Europa: lade da vida militar e aos prazeres do submetia-se com a mesma disposigio & aust fausto mundano Eis as cores com que toda uma literatura panegirica pintou a imagem do Infante D. Manuel, construindo ao seu redor uma legenda t8o herdica quanto persistente, medida que, avangando por todo o século XVIII, conseguiu se impor no imaginério Portugués ¢, ndo raro, extravasou as fronteiras nacionais. Sob a pena dos autores setecentistas, emerge a biografia do perfeito principe, a descrigdo alambicada e exaltada, bem ao gosto barroco, dos feitos militares quase prodigiosos, nos quais a vida aparece como um espetaculo de tons hiperbélicos e grandiloquentes. E precisamente por tais caracteristicas que 0 género laudatorio presta-se bem aos propdsitos de nossa investigaglo: antes de tudo, ele tenta impor uma imagem aos olhos do mundo, muttiplicando-a e cristalizando-a, Grande parte do que se sabe sobre o Infante deve-se ao género laudatdrio que o consagrou como um dos temas mais influentes por volta de 1720, quando os sucessos da guerra contra os turcos © projetaram na cena européia. Impressionada pela extensdo de sua fama, 2 historiografia portuguesa dedicouthe esporadicamente alguma atencio, resultando, no mais das vezes, numa combinagao desigual entre esforgo biogrifico idual — esta Ultima dando o tom as monografias. Com saras e notaveis cexaltagdo in excegdes — como é 0 caso do estudioso Antdnio Coimbra Martins, autor dos methores ensaios sobre 0 assumto - , 2 abordagem restringe-se a0 levantamento de informagoes, biogrificas, pouco acrescentando aos relatos da época, e ressente-se da dificuldade de problematizar 0 assunto, em proveito de uma visio menos apaixonada de aspectos relevantes, como por exemplo, a verdadeira dimensio da celebridade referida pelos contemporaneos, 91 Evidentemente, um estudo exaustivo sobre a vida do Infante em muito beneficiaria a nossa investigagdo sobre Henequim ¢, mais adiante, ensaiaremos algumas tentativas de superar as lacunas neste dominio. Antes, porém, € necessério reconsttuir as linhas gerais daquela imagem difundida pelos seus contempordneos. Porque foi esta a imagem que 0 convenceu de que o Infante se mostraria sensivel 4s suas palavras. Ou seja, antes mesmo de travar relagdes com ele, o que quer que Henequim soubesse a seu respeito, teria necessatiamente de provir destas fontes. E ela que nos levar, como um fio condutor, do sistema de representagées construido ao redor do principe ao seu reverso. Como bem define Peter Burke, 0 conceito de "fabricagtio" adequa-se bem ao proceso de produgio, circulagdo e recepg’o das formas simbdlicas vigentes na sociedade de corte do Antigo Regime: ele poe em evidéncia a imagem que se oferece aos colhos dos espectadores num ambiente marcado pela idgia de teatro (52). Eis como artistas, pintores e poetas, tanto quanto os ministros reais, criaram a biografia do principe, administrando um conjunto de representagdes numa perspectiva dramatiirgica, num esforgo de modelar os fatos mais prosaicos da vida cotidiana através de uma narrativa semelhante a epopéi Contam cles que o seu grand début aconteceu no ano de 1715, quando, mal compietados os 18 anos, ele sai das sombras para 0 “teatro do mundo", numa fuga cheia de peripécias ¢ lances asriscados. A escapada noturna, a comitiva modesta, 0 mar turbulento, a perseguigZo por um corsirio argelino so os elementos que fezem da primeira aventura uma espécie de ritual de passagem, passagem que consiste em renunciar ao écio da vida palaciana para se langat ao mundo como soldado comum. Seus bidgrafos destacam-lhe o talento de combinar as virtudes intrinsecas 4 nobreza do sangue real ao mérito pessoal, manifestado varias vezes por meio da camuflagem deliberada da condigao de Infante. E em torno dessa tensio — entre o principe e o individuo — que se organizam as narrativas encomidsticas: mais admiravel se faz a gléria quanto mais conquistada por meios simples (53). ‘A corte ¢ seus panegiristas justificam a fuga como sendo motivada pelo zelo religioso, posto que o Infante, compadecido ante as derrotas inflingidas & cristandade pelos turcos, ansiava por lutar sob a bandeira da fé catélica. E, last but no least, pela 92 vontade de elevar seu nome aos pincaros da gléria, encontrando na guerra um instrumento adequado ao seu objetivo — pois nfo tinha outra ambigao sendo a de brilhar no teatro do mundo (54) Depois de ter padecido os perigos da viagem, chegou finalmente @ Holanda, onde foi recebido pelo Conde de Tarouca, embaixador plenipotenciério em Haia (55). Durante a permanéncia ali, 2 embaixada portuguesa tomou-se palco de uma sucesso de festas memoraveis, cuidadosamente preparadas para refletir a grandeza e o fausto de Coroa portuguesa, Esta era, alids, uma das regras de ouro da diplomacia portuguesa nos tempos joaninos, descrita assim por um contempordneo — "[El-rei] desejava sustentar reputagdo da Coroa com 0s Ministros que mandava as cortes estrangeiras" (56). Por ‘outro lado, cumpria dispensar ao Infante 0 tratamento adequado a condigdo principesca, € 03 embaixadores € diplomatas portugueses mostraram-se extremamente ciosos em seguir a risca as regras do labirintico cerimonial barroco, ¢ alguns, como 0 proprio Conde de Tarouca, orgulhavam-se de ter estabelecido para o Infante cerimonial idéntico 20 do Principe de Gales. Afinal, na sociedade do Antigo Regime, permeada pele idéia de representago, tanto as pessoas régias quanto os embaixadores tinham a fungio de representar El-rei, evocando no espetaculo do mundo o poder de sua gloria Na corte de Haia, 0 Serenissimo desempenhou com brilho 0 papel do joven principe, herdeiro de uma das nagGes mais invejadas na Europa, causando grande impacto entre os contempordneos, Jovern galante, "o mais charmoso Principe do mundo” nas palaveas da embevecida Madame du Noyer, impressionou a todos com as suas qualidades de eximio dangarino, dono de uma invejavel resisténcia fisica, conquistada em herdicas manobras militares. A embaixada portuguesa transformou-se literalmente em palco para a variedade de papéis desempenhados pelo Infante: homenageado com as “festas as mais soberbas do mundo", brilhou tanto nos bailes de miscaras quanto nas curiosas festas a moda militar, os quais, pela extravagincia e liberalidade, tornariam memorével aquela temporada em Hiaia (57) fascinio pelas coisas da Franga, to marcante na corte joanina, a ponto de importar dela 0 cerimonial monarquico, 05 modelos de etiqueta € toda a sorte de modismos (perucas, vestuario, mobilia, quadros, prataria, etc.), tal fascinio arrastou 0 3 jovem Infante & deslumbrante Paris de Luis XV. Hospedado na embaixada portuguesa, sob 0s cuidados do Conde da Ribeira, que o recebeu "com a veneragao € alvorogo, que pedia o ver aquele principe", participou dos festejos comemorativos do nascimento do Infante D. Carlos, filho de D. Joao V, dos quais faziam parte "diversas invengdes de fogo 10 Rio Sena". Depois de visitar 0 Louvre, as Tulherias, o Colégio da Companhia de Jesus e o Palacio de Versailles, passou-se & Hungria, contrariando assim as expectativas do Conde, que acreditava no seu retorno iminente a Portugal (58). Cortia entéo o ano de 1716 ¢ 0 imperador Carlos VI da Austria preparava uma grande expedigo militar contra os turcos, cujo comando caberia a0 famoso principe Francisco Eugénio de Sabdia E a ele que o Infante se apresenta na condi¢go de soldado voluntirio do exército imperial destinado a deter 0 avango do chefe turco Ali-Kamutdy. ‘Nao tardaram as noticias do seu excelente desempenho em campo inimig Bateu-se com bravura nas batathas decisivas de Peterwardein, Temeswar ¢ Belgrado: na primeira, atropelado pelos soldados em debandada, perdeu o cavalo ouma trincheira ¢ ficou a mercé das forgas inimigas, sendo, porém, rapidamente socorrido. Na segunda, feriu-se gravemente quando “uma bala de canhlo Ihe assombrou levemente a perna direita’, na altima delas, conseguiu persuadir um turco @ abragar a religiao crista, € renegando a seita de Mafamede, recebeu "o Sagrado Batismo,fe] tomou o Nome de Manoel em obséquio do seu Protetor” — tinico, aliés, 2 fazé-lo entre as cinquenta e cinco mil pessoas vencidas em Belgrado (59). A guerra trouxeshe a notoriedade almejada. Dizia-se que, de todos os principes que se encontravam no exército imperial, "fora ele que mais se distinguica” (60). Em Viena, cingido pelos louros da gléria, e nomeado Marechal de Campo dos Bxércitos Imperiais, obteve 0 comando de um regimento de couracciros. Logo depois, em 1721, seria condecorado com as insignias do Tosto de Ouro, uma das mais antigas ¢ prestigiosas ordens de cavalaria da Europa, inspirada na expedigfio de Jasio e seus companheiros em busca da pele sagrada do caneiro da Célquida (61) Depois das primeiras reffegas em Peterwardein, comegaram a se multiplicar os panegiricos, em prosa e verso, louvando-Ihe a coragem e a bravura, Um destes autores, Barbosa Machado, notou que "seus triunfos excederam aos de Alexandre, igualaram aos of de César" (62), Doravante, a figura do Infante andaria sempre associada a0 do novo Marte Lusitano e para isso concorreriam nao apenas a verborragia apologetica, mas ainda a ressondncia daqueles feitos militares no universo literdrio europeu: o padre Prévost transformou-o, numa das novelas da celébre Hist6ria do Cavaleiro des Grieux, na enigmatica personagem “prince D.M.", protagonista de um conturbado drama amoroso; na edigio corrigida e aumentada das Lettres Historiques et Galantes, publicada no ano de 1720 em Amsterdam, a francesa Madame du Noyer comparou-Ihe a bravura a0 do "Deus Marte" (63). A torrente laudatdria reverbera pelas principais cortes européias, desde Lisboa a Roma, onde vem a luz, em 1716, um longo soneto dedicado "all'Altezza Reale del Serenissimo Principe D, Emanuele, infante di Portogallo, accennato sotto ta Metaphora del Sole net Suo viaggio. Attioni Eroiche, ¢ promettendosene maggiori" (64), Usuftuindo da fama, o Infante inicia um longo periode de perambulagio pela Europa, retornando intimeras vezes a Viena, onde continua a exercer 0 comando do exército dos couraceiros, Envolto na aura do principe herdico e valente, regressa a Lisboa em 1734, encerrando assim uma auséncia de dezoito anos, ¢ ai se instala na Quinta dos Condes de Pombeiro, na Vila de Belas, a poucos quilémetros da corte. A partir de enti, o género laudatorio enriquece-se com a adjungio des qualidades inerentes a0 cavaleiro ideal, O espirito devoto € piedoso é louvado, entre outros, pelos capuchinhos italianos, que Ihe dedicam varios sonetos, apresentando-o como modelo do bom-cristdo ¢ campedo da fé catdlica, Seus admiradores contam que ele costume cear com 0s frades do Convento de S, José do Ribamar, infringindo sempre as rigidas normas do cerimonial. A devogiio também o leva a doar a Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso um imenso crucifixo — de oito palmos — esculpido pelo frei napolitano Lourengo Grimaldo (65), Os contempordneos aludem aos modos simples com que se pSe a mesa, deixando acompanhar-se dos criados, e 0 apresentam como homem extremamente frugal, avesso pompa, acessivel aos plebeus, com quem gosta de manter longas conversas, A tudo isto elogia 0 fiei Claudio da Conceigao, observando que, “deposta a soberania de Principe, aos pios edifica esta Ihaneza, outros seguindo as politicas do mundo Iha estranham" (66) 95 Pouco duraria a estada em terras portuguesas e dois anos depois, em 1736, empreende uma segunda fuga, primeiro & corte espanhola e depois A francesa, sonhendo com um casamento, fosse com a filha do duque de Medina Sidonia ou com mademoiselle Dumaine, respectivamente O VISIONARIO E O INFANTE Em 1722, Henequim desembarcava em Lisboa depois de uma auséncia de quase vinte anos, Partira ainda jovem, misturado as grandes levas humanas que, atraidas pelas descobertas auriferas no Brasil, ameacaram despovoar o Reino. Da Colénia, trazia muito dinheiro — ele avaliaria, em 1743, em mais de cento e sessenta mil cruzados 0 montante de seu cabedal (67) — e um vasto conhecimento das Escrituras, alcangado mediante 0 estudo continuo e, principalmente, a perscrutagio atenta das novas realidades que se ofereciam a seus olhos. "Navegando mares, andando terras, tratando com gentes, observando-the os costumes; examinando érvores, ¢ os seus frutos ." — dizia ele — descobrire mistérios e maravilhas até entao insondaveis. Contava seus quarenta anos e voltava chelo de projetos. Instalou-se na rua do vigério, na freguesia de Santo Estevao, is portas da Cruz, e, animado pela idéia de tomar as ordens sacras, daria inicio, em abril de 1724, ao processo de habifitagio in genere na Camara Patviercal de Lisboa, Nas inquirigdes sobre a limpeza de sangue, feites ne freguesia de Nossa Senhora dos Martires, aparecem como testemunhas 0 cozinheiro-mor de Elrei eo cénsul dos holandeses que, junto as demais, confirmaram nao ter o habilitando "defeito algum de judev, mouro, mulato ou cristao-nove, nem de outra infecta nagao" (68) Cinco anos mais tarde, 0 proceso seria interrompido. Henequim, preso no Limoeiro, manda um procurador cobrar o dinheiro depositado na Patriarcal, por ocasiéo das diligéncias in genere, dando por encerrada a ambigdo de se ordenar. Na realidade, a prisio era mais uma etapa de uma longa turbulenta disputa judicial que havia comegado ainda em 1723, quando conheceu Joana Maria da Encarnagdo, ¢ que culminaria numa ceriménia de casamento, realizada diante dos carcereiros do Limociro, Moradora da rua %6 do vigério, e menina de catorze anos atraiu-Ihe o interesse, nfio o bastante, porém, para aceité-la como esposa, depois de té-Ia engravidado. Sua recusa intransigente somente se comparou ao firme propésito da futura sogra de levar o caso a justica e, decidida a remediar a situacdo da filha, arrastou-o repetidas vezes a cadeia (69) Foram tumultuados os anos vividos em Lisboa: sucessivas prises, casamento contraido a forga, freqiientes mudangas de endereco, dois filhos e duas denincias no Santo Oficio. Mesmo assim, Henequim prosseguia no intento de redigir a obra teotigica em que gravaria em definitivo os “sentimentos e novas doutrinas" que Deus the havia revelado, Nao sabemos quando a figura do Infante D. Manuel se insinuow no cenario daquele Quinto Império e transportou-se para o trono instalado nas serranias do Brasil, ‘Teria sido ainda nas Minas Gerais, quando minerava ¢ estudava as Escrituras ? Tal hipdtese nfo deve ser descartada, posto que 2 noticia dos feitos hélicos do imo mais mogo de El-rei cruzera o Atlantico e se espalhara pelo Brasil através dos exemplares da Gazeta de Lisboa, assim referida por Nuno Marques Pereira, no celébre Peregrino da América e ainda agora se tem visto o quanto as Armas Imperiais venceram a0 Turco, como se pode ver, ¢ ler nas gazetas daquele invicto Principe Euggnio..." (70) © autor referia-se as edigdes da Gazeta de Lisboa do ano de 1717, que descrevem fartamente aqueles episédios. Por outro lado, ha de se destacar o fato de que as “gazetas" portuguesas, bastante apreciadas por aqui, percorriam, com relativa freqiéncia, 0 caminho entre a Metropole e a Coldnia (71). Ademais, segundo a versio apresentada pelas Memérias andnimas, mencionadas no capitulo anterior, foi através de “uma Relagio historica, escrita pelo célebre, ¢ elogtiente José Freire de Montorroio Mascarenhas, gazeteiro de Lisboa, que girou por toda a América, publicando os progressos militares, que © Senhor Infante D, Manuel obrou (..)" que a idéia de se furtar ‘0 Infante de Lisboa é fazé-lo rei na América teria surgido entre os colonos, 7 De qualquer modo, ele voltava a Lisboa precisamente quando o Infante, recém- agraciado com as insignias do Tosfio de Ouro, chegava a Paris para assistir & coroagao do rei D. Lufs XV, 0 que, evidentemente, impossibilitava uma aproximago entre ambos. Na realidade, esta s6 poderia ocorrer entre 0 dia 22 de outubro de 1734, quando o Infante chega finalmente a Lisboa, e 14 de setembro de 1736, data em que foge pela segunda vez, em diregao a Castela. Teria Henequim tentado abordé-lo nesse intervalo de dois anos ? Pouco ou quase nada sabemos sobre as atividades de Henequim neste periodo. Uma das testemunhas arroladas no processo inquisitorial, José Macedénio, afirmou to conhecido por volta de 1735, quando ambos estavam presos no Limoeiro. Outra testemunha, 0 ex-tabelido de notas Estevao de Mello acrescentou ainda que, em 1739, 20 ser preso, também o encontrara na cedeia. Teria Henequim permanecido na prisio entre 1735 € 1739 ? Nio, pois 0 carcereito ent pessoa, chamado a testemunhar, observou que "o encontrara muitas vezes nesta cidade e com ele falava, e por algumas vezes tornou a ser preso no Limoeiro por crimes, porque era mau homem, ¢ de perversos costumes." E acrescentou: "... de quatro anos a esta parte que é 0 tempo, pouco mais ou menos, em que foi sotto da ‘tltima prisio 0 nfo tornou a encontrar..." (72). Isto quer dizer que ele foi preso em 1735, solto, novamente preso et 1739 libertado no mesmo ano. Infelizmente, a documentagio que poderia nos dar alguma pista sobre os motivos dessas prises foi em grande parte destruida pelo terremoto de 1755, e do que dela pude consular, nada encontrei Esgotam-se ai as informagdes que dispomos sobre Henequim entre os anos de 1734 a 1739. De qualquer forma, a inica — ¢ infrutifera — conclusdo a que chegamos ¢ a de que ele estava em condigdes de estabelecer um primeiro contato com o Infante. Quanto a este, as pistas se perdem a partir de 1734, e reaparecerem somente em 1737. E. mais um daqueles periodos totalmente obscuros, sobre os quais seus bidgrafos nada escrevem, Tentemos entZio examinar as pistas posteriores a segunda fuga de Portugal ‘Vamos encontré-lo em Bayonne, na Franga, em julho de 1737, acompanhado pelo frei arrébide Pedro do Nascimento. A julgar pelo teor quese impenetravel da 98 correspondéncia de D. Luis da Cunha, o embaixador portugués em Paris, “aquele diabélico frade" exer uma influéncia nefasta sobre o Infante, revelando-se "tio ma companhia e tio péssimo conselheiro”. Para impedir que o principe se pusesse a seguir 0 frade, o embaixador recorre autoridade do Cardeal de Fleury, obtendo a sua prisio em Lyon, mas, munido de passaporte, ole consegue a liberdade. Ao final, contudo, no s6 é proibido de voltar a Bayonne, mas também expulso sumariamente do territério francés (73). Todo © episddio, referido em termos bastante vagos, parece indicar que a segunda fuga do Infante, em 1736, tenha sido motivada por um projeto de casamento — mais um entre os inimeros perseguidos ao longo da vida. E bem possivel portanto que 2 coroa da América nfo tivesse, aquela época, a realidade tangivel com que Henequim, mais tarde, Ihe apresentaria De acordo com as fontes, portento, as ligacdes perigosas entre o Infante & Henequim poderiam ter como terminus post quem agosto de 1738, quando o Infante regressa definitivamente a Lisboa e como terminus ante quem, novembro de 1740, data da fatidica noite em que fora preso no largo do Rato. A julgar, no entanto, pelas negociagdes de Henequim com o cénsul espanhol, a partir de junho de 1740 ¢ prolongando-se até o final do més segninte, é mais plausivel a hipdtese de que o contato com o Infante tenha sido feito posteriarmente, isto 6, em algum momento entre inicio de agosto ¢ novembro de 1740. Afinal, nio parece razoavel que ele tivesse feito duas tentativas simulténeas ¢, dado que o motive de sua prisio deveu-se a aproximagao do Infante, esta so ocorreu depois do fracasso das negociagées com a Espanha. O AVESSO DA MEMORIA Bluteau define conspiragio como a “uniao de varias pessoas para a morte de un Principe, ou para a ruina de um Estado”. Nos exemplos que apresenta — tanto para a conspiragio quanto para a conjurago, seu sindnimo -, enfatiza a associagdo de mais de uma vontade, dando a entender que uma tinica pessoa no basta para caracterizar uma conspiragao (74),

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