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TRAJECTOS 1. ANTESDEsocRATIS -INTRODUGHO AD HSTUDO DA FILOSOFIAGREGA ponent joe sumrotALocos reer Roast tone 1. Gabon to rooms es AMUCACONS 19, owAscapero BE UMA NOVA HCA = ea SORRE A REVOLUGAO NA EURO ue se fos no an rong oncanan cen rane E. H. GOMBRICH PARA UMA HISTORIA CULTURAL gradiva “Titulo original inglés: Seach of Cue History © 1009, by Oxford University rst ‘Traduglo: Maria Carvalho Revisio do texto: Js Soares de Atmei/Maria do Rosso ‘Perera Capac Armando Lapes Fotocomposigho: Gradiva Impressio e acabamentor Mingrafca, C RL Reservados on direitos a Gradioa= Pablicgse, Lo ‘Rua Almeida e Sour, 2, +/e, esq.—‘Telefs 897 4067/8 1800 Lisboa 1 edigio: Fever ce 1994 Deptt legal 7408/04 Pee Indice Prefido 0 termo e a coisa ( sistema hegeliano © hregetisniamo de Burckiarst Hegelaniemo sem meufbica Sintomas e sindromas Movimentos e periodos ‘Tépleos ¢ tend. Asudes académicas Bibliogralia Prefacio [A publicagéo de uma palestra coloca sempre fo autor perante um dilema tanto mais insolivel ‘quanto maior é a extensio do tema. Moldar a discussio do tema de modo a ajustéla & acr hada moldura de uma hora exige, inevitavel- mente, 0 sacrificio de multos tépicos tentadores uns quantos truques de prestidigitagio para beultar as lacunas, de que s6 0 conferencista ter perfeita consciéncia, Passada essa ocasiio, os peeados de omissio voltam a atormentar 0 autor. io hi qualquer razo para que os parigrafos que rascunhou e posteriormente abandonou em Beneficio da brevidade nfo sejam recuperados tna versio a publicar. Contudo, talvez descubra {que qualquer concessio a esses candidatos rei- Gindieativos ameaga romper o equilfbrio superfi- tial a que, finalmente, tinba chegado. O texto ‘comeca a deixar cair malhas€ tornase dificil cor- 7 rigir essa penosa situagao, O verdadeiro remédio seria escrever uum livro, mas 0 acordo nfo era esse. Ha que descobrir um compromisso que, de falgum modo, preserve 0 texto da palestra sem atentar contra a conscitncia do conferencista "AS paginas que o leitor tem perante si sio 0 resultado de um desses compromissos. O texto da palestra proferida no Lady Margaret Hall em 19 de Novembro de 1967 permanece quase intacto, mas os aditamentos feitos aumentaram ‘sua extensio para mais do dobro da inicial. Em particular, permitisme fazer mais citagbes dos futores que debati, traduzindoas eu proprio, Para compor a inevitivel perda de estrutura re- sultante do aumento de extensio introduzi subt= tulos. Além disso, acrescentei bastantes referén- cias bibliograficas, que devem permitir ao leitor seguir alguns temas em que mal pude tocar. ‘Ainclusio de uma seleccio bastante despropor- cionada das minhas obras visava, quanto poss vel, evitar ter de repetir argumentos que apre- sentara noutros locais. Gostaria de apresentar aqui os meus agradeci- mentos ao Dr. George H. Nadel, director da History and Theory, por me ter chamado a aten- Go para os recentes debates sobre a histéria da Cultura, O professor R. L. Colie, o professor Phi- lipp Fehl eo meu filho Richard leram o manus- lito © sugeriram importantes melhoramentos. 1 O termo e a coisa Fé algumas semanas, no decurso de uma corrida de taxi em Londres, a conversa com 0 motorista derivou naturalmente para 0 excesso de populagio desta metrépole. O motorista estara inclinado a responsabilizar por esse facto a falta de atractivos de muitas cidades de provin- cia, sem teatros nem salas de concerto. «Detesto ‘0 termo cultura», dizi ele num tom de voz aque '86 posto chamar muito culto, «detesto 0 termo cultura, mas (..]* Ainda bem que estava escuro de mais para que ele me visse corar. Sou respon- sével pelo insticuto que inicialmente se chamava Die Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg. © fundador, Abi Warburg!, foi aluno de Karl Lamprecht, 0 defensor da psicologia cultural que toda a vida se opés a esses historiadores 9 profissionais eujos interesses se confinaram & histéria poles: Quer Warburg, quer Lampre- cht, yeneravam a imponente figura de Jakob Burckhardt, cajo decsivo contibuto para'a Rul- surgschicue sera abundantemente referido nesta palestr. E por isto que a reicio do termo ultra por parte da cultura inglesa me causa frequentes embaragos quando me pedem para explicar a que se dedica 0 Warburg Insitute, De poico me valerd salientar que esta rejeigio € Felativamente recente* e que mesmo o termo Kalturvisenschef que, 208 owvidos dos ingleses modernos, tem uma sonoridade to requinta- damente teut6nica, possi um equivalente inglés perfeitamente respetavel. O primelro capitulo do trabalho pioneiro de Sir Edvard Burnett ‘Tylor em Primitive Culture (1871) ititala-se «The science of culture» (a ciéncia da cultura)’. Nao deixo de simpatizar com a relutanci com que 0 motorista promunciow a palavra. Para ele como para mullas outras pessoas sensives, 6 termo teria sido aduitersdo pela generosidade dle Matthew Amold, com a sua fnsia de espalhar sdogura ¢ hz» entre os ignaros’, «pela vileza da propaganda slema durante 2 Primera Guerra Mundial, que inventow o contraste entre a Kultur alema, naturslmente uma coisa boa, profunda ¢ forte, ea eivilizaco ocidental, uma coisa ma, umn simpiese vulgsr apego a bugigangss © 20 mate- Halismo!. N&o me preponho perder tempo com 10 qualquer destas pretensas distingées™®, mas cum preme chamar a atencio para uma mudanca subtil nas conotagdes do termo que pode, @ breve trecho, tornar, até certo ponto, obsoleta a atitude do motorista. Tendo comecado pelo cemprego que dele fizeram os antropélogos, de que Burnett Tylor € exemplo, o termo estendeu- “se as ciéncias sociais, especialmente do lado de Vi do Atlintico"™, "Neste sentido depurado voltou a estar na moda em expresses como cultura da clase trabathadora ow mesmo as duas culturas de triste meméria, de C. P. Snow. Sio termos puramente descritivos que, segundo se afirma, foram claramente despojados de qual quer «juizo de valor». De acordo com esta tradigéo, cujo rasto vem, provavelmente, de Hippolyte Taine, as culturas hhumanas podem ser objecto de um estudo semelhante ao que se fiz das culturas de bbactérias, sem uma ordem de valores. ‘Nao é minha intengio acreseentar aqui ainda ais notes towards the definition of culture", pois creio que, quer gostemos do termo, quer prefira- mos outro, todos sabem o que tenta descrever. Pelo menos, quem tenha alguma vez viajado de ‘um pais para outro, ou até passado a frequentar ‘outro circulo social, sabe o que é ser confrontado com modos de vida, sistemas de referéncia ¢ cescalas de valores diferentes —numa palavra, cul turas diferentes u Sempre que os powos estabeleceram entre si contactos, amistosor ow hosts, hiode terse apercebido do fosso que separava a sa lingua 8 seus habitos dos dos outros. Naturalmente, que mais feria a stengio dos obsenvadores fem taissitiagbes era o aspecto, ol 0 costume inesperado, que ia contra x norma a que estavam habituados. Foi para diferencas como estas que Herédoto, Ticito ou Marco Folo chamaram a nossa atengio, Porém, aexperiéncia funciona nos dois setidos, A variedade de mover exstente no ‘mundo também proporcionava um tpico bem “indo 20 moralitea que quitesse por 0 préprio povo diante do espelho, e, de facto, 0 contraste {Eas eulturas tornase um instramentoeficar para os satricos, de Thomas More a Swift, das etre persanes de Montexquiew 3 Sentimental Journey de Sterne. £ elaro que por essa altura 0s que viaja- vam por pases estrangeirosétinham havia muito 2 companhia dos que vajavam no tempo, 05 his- toriadores. Que rardes teriam para se preocupa- rem com as circunstincas culturas passadas, ¢ Info com o que estava a passare? As pretensées 08 confrontos entre os poderosos, que punham © historiador As volas com antgos diplomas ¢ ronicas, alimentavam principalmente a torrente dia historia politica e constitaional, mas, quando 0s prvilégiostradicionais eas antigas lis entra- am em cena, no era possivel dstingvirnitida- Imente o poder dos costumes. A pesquisa feta 12 nos arquivos documentais suscitava o interesse plas coisas antigas, particularmente em Ingla- terra, tal como a interpretacio de antigas leis atrafa as atengSes sobre a alteragio das condi- ‘G5es sociais. Ndo era por acaso que os pioneiros dda hist6ria cultural, enquanto distinta da historia politica, como, por exemplo, Bodin, Vico e Mon- tesquiew, tinham formagio jurfdica. Além disso, hhavia os estudliosos interessadios nos textos literé ris, que necessitavam cada ver mais de glosas ex- plicativas, do conhecimento da cultura material (realia) cultivada pelos filblogos clissicos e que condiuria a0 estudo sistemitico das. eantiguida des», Por tltimo, embora nio menos impor- tante, havia os antepassados do meu proprio tema, os primeiros historiadores de arte, que, como Vasari, desprezavam a concep¢io do sim: ples cronista e se preocupavam com as condigdes que favoreciam o progresso das aptidées. A ques- tio em si no era nova. Havia sido debatida nas antigas escolas de retérica, onde tanto Longino como Tacito referiram a existéncia de debates sobre a questo de saber sea oratéria poderia so- breviver as condigdes de liberdade democratica {que a criaram, Por seu turmo, 08 artistas prefe- iam chamar a atengio para os efeitos da gene- rosidade dos principes e sonhavam com as idades de ouro do mecenato!. Mas Vasari, por exer plo, no deixava de ver a importincia da vida ‘e descrevewa graficamente em Vida de Perugino. 18 Contudo, poder-seia dizer que esse interesse pela variedade de cireanstincias culuarais nto podia, s6 por si, ter conduzido ao aparecimento a historia cultural sem um elemento novo, a ‘renga no progresso, que era suficiente para uni- ficar a historia da humanidade. (s termos cultura ¢ civilizacdo foram efectiva- mente valorizados na altura em que surgiram ¢ se espalharam (século XV), destinandose a ser usados por contraposicio a barbarisma, sevajaria ‘ou primitivismo™ , A histéria da eivilizagio, ou dda cultura, era a histéria da ascensio do homem, de um estidio quase animal A sociedade edu- cada, a0 cultivo das artes, & adopgio de valores Civilizados ¢ 20 livre exercicio da razio. Por isso, ‘a cultura podia progredir, mas podia também declinar e perderse, ¢ a histéria estava legitima- mente envolvida em qualquer destes processos. Fora assim que Vico, na Scenzia nova, e Voltaire, no seu Essai sur les moeurs, tinham visto 0 problema, conquanio nenbum tenha usado 0 termo cultura, ou culture”. Na Inglaterra foi esta visio optimista do progresso, a que o professor Butterfield chamou twhig conception of history, que conduziu aos primeiros ensaios deste género, designadamente A obra de William Roscoe, Life of Lorenzo di ‘Medici (V795), que, na verdade, é uma hist6ria cultural da Florenga dos Médici nos primérdios do Renascimento. A mesma tradicio foi seguida u pelo grande Macaulay, cujo famoso capitulo em "The History of England sobre o estado do pafs em 1685 procura deliberadamente mostrar a0 leitor de 1849 a extensio dos progressos entretanto levados a cabo. ‘Todavia, num certo sentido, foi esta interpre- tagio optimista que levou 2 necessidade de distinguir «civiliaagio» de «cultura», Seria real mente verdade que todos os aspectos da vida civilizada progrediam em conjunto? Manterse fam as artes, a ciéncias, as boas maneiras © a bondade a par do processo de civilizagio? Ha dhividas impcitas em Vico ¢ explicitas em Rous- seau, A prépria preocupagio do século XVIII com 6 iluiminismo, a eriagio de condigSes favoraveis & cultura, também conduzia a um crescente interesse pelas circunstincias culturais do pas- sado. O elogio de Winckelmann as artes na Gré cia seguia a par com a convicedo de que 0 con junto da civilizagio grega contribufa para o seu florescimento, 0 que tomnava a civilizagio antiga inexcedivel, um modelo a que todas as outras deveriam aspirar. Contudo, era muito fécil pagar na mesma moeda a estes exilados cul turais, fazendo-thes ver que, pelo seu préprio raciocinio, tais condicées nao voltariam a veri- ficarse. Se a arte est inscrita na cultura, entio temos de aceitar que culturas diferentes pro- ‘duzem artes diferentes, O clima do Norte e a religido crista concorriam para tornarem pouco 6 apropriada a construcio de templos, mas depois tr novas condigGes contribulram | para. que hascesse uma nova flor ~a catedral gotica. £ evi dente que foi Herder quem, mais do que todos 08 outros, argumentou desta forma e, por conse- Gquéncia rejeton a idea de uma excala de exce- Tencia pela qual pudesse medirse a cultura Porém, no era completamente relatvista, Ainda aderia'&ideia de um plano civino que conduzia 4 fnumanidade & Fhumanit mas, uma ver que a historia relecte tao. grandioso.designio, seria arrogincia desprezar os primeiros estidions na terdade, como poderfainos nés fazblo quando Deus se manifestou entre os pastores hebrevs> Estes sentimentos, dispersos pelos exritos de Herder, protixose ehicios de humanidade, foram transpostos para um sistema metafisico que reivindiea a necessiria verdade da logics, da autoria de Georg Friedsich Hegel Noras ® sAby Warburg-mum Gedenken in Jarbuch der Ham bg Kensemmigen, i, 1966. Karl J. Weintraub, Visions of Culture, Chicago Londres, 1866, "Raymond Londres, 1958, “Mion Singer, «Culture (concept) in Intemational Bydopedia of the Socal Seles, Nova Torque, 1968, PV nota 3. iam, Culture and Sociey 1780-1950, 16 © Thomas Mann, Frisdich and die groBe Koalton Berlin 1915 ” Hay Levin, «Semantics of cultures, i Sciect and Cuturg Daedalus, 1965. "GM. Pflatm, Guchici des Wore -Zivilzatons die sertasio, Universidade de Munique, 1961 (eépia no War burg Insc) ACL, Krocber © Clyde Kluckhohn, Culture ¢ Cried Review of Conepts and Defiions, Nova Torque, 1963. Vs not 4 "TS Elliot, Nour towards the Definition of Culture Lond, 1948. "L Fox (ed), English Mistrzal Scholar in the 16th and 17th Century, Oxford, 1956, "8 Ammaldo Momiglano, «Ancient history and the anti- squarians, in Journal ofthe Warburg and Courtauld Intute, 2 (3950), pp- 985-815, ' Renalwsance and gollen age (1955), in Norm and Fors, Londses, 1966. ve nota 6. % , Raul, versa. Jé no nos encontramos vineulados & ne- | cessidade hegeliana de encontrarmos, em todos ) (08 aspectos do Renascimento, um prentincio do/ mundo moderne. 2:4ve: ‘Nao quer isto dizer que devamos censurar. struido a sua imagem da a Oacero init de documentos e mona teoria que traga ord como um iman dé wma configuragio & limalha de ferro inerte. ‘0 segredo da forca de Burckhardt reside em -ter construido a sua obrapprima a partir de uma ‘oria. Se assim nao tivesse procedido, 0 livro fo se teria mantido durante um século no Centro do debate sobre o Renascimento™= 4, E dificil encontrar um aspeeto do seu retrato da Epoca que um ott outro autor nio tivessem dese- Jado rever (com boas razSes para isso), mas, ‘mesmo entre os seus eriticos, poucos se deram conta da importantssima circunstancia de 0 qua- dro ser demasiado coerente para permitir altera- 51 Bes fragmentirias. Se 0 quadro nio resiste a Juma nova leitura dos factos, ndo podemos tentar adulterélo aqui ou ali; temos de examinar a estrutura metodolégica em torno da qual foi feito, Tal estrutura é 0 edificio hegeliano da his- ‘t6ria cultural, como seu corolério, o «métode de cexegeses. Tendo posuulado a unidade de todas as manifestagdes de uma civilizagio, 0 método consiste em tomar diversos elementos da cultura, como, por exemplo, a arquitectura grega ea filo- sofia grega, e perguntar como poder demons- arse que so expresses do mesmo espirito™. No fim de uma tal interpretacio deve haver sempre um triunfante QED euclidiano, pois foi essa mesma a tarefa que Hegel atribuiu a histé- ria: descobrir em cada pormenor factual o prin- efpio geral que lhe subjaz. Noras + Brig, volstindige Ausgabe, ed. Max Burckhardt, Basile, 1949 e segs. alla Grisdiche Kultrgeschihte dt In Secondo contmbuto alls ria. git PP. 289-998 (com um impor tante apéndice bibliogréfca sobre Burckhardt até 1959), “Joachim Wah, Das Vextolen, Tubingen, 1926-1933, SVinow 1 « Jacob Burckhardt, Geamiaugaty, Berlim e Leipzig, 1936 52 * pie *Venota 1. * Wemer Kacgi, Jacob Burckhandy, 1, Basilio Esta garda, 1956 WW. K. Fergusson, The Realsance in Hird ‘Thought, Cambridge, Mass, 1948, °K, Léwith, Jacob Burcthand, der Mensch inmiten der Guschicit, Lucena, 1986. V, nota 10. Leona Gabel etal, «The Rensiance reconsidered (simpénic) in Smith Collge Studie in Hitory XV, 1964, Northampton, Mass, % Tinsley Helton (ed), The Renaissance, « Recosidera- tion of the Theres an Interpretations ofthe Age, Madisom, 1961, Felix Gilbert, «Cultural history and its problemse, in Comité interational des sciences historigues, -Rapporise, 1960, vo. pp. 4058, 33 4 Hegelianismo sem metafisica Deste modo, hé bastante consisténcia na cir- cunstineia deo sucessor de Burckhardt em Basileia, o grande historiador de arte Heinrich \Walflin, ter escrito no seu primeiro livro, Renais- ssance and baroque (1888): Explicar um estilo nio deve significar outra coisa seniio adequar o seu cardcter expressivo histéria geral do perfodo, provar que as suas formas nada dizem na sua linguagem que nio seja igualmente dito pelos outros érgios da época’ [p. 58). Wolfflin nunca esteve inteiramente & vontade com esta fSrmula’. Porém, ela dominou a sua 55 ‘obra ea de outros, nio tanto por a metafisica hhegeliana ser aceite, em todas as suas ramifi- ‘cages abstrusas, por qualquer destes historia dores mais do que o foi por Burckhardt, mas antes por todos eles sentirem, consciente ou inconscientemente, que, se abandonassem {man que gerou 0 pacirio, os étomos das culturas passadas voltariam a cair, formando montinhos de pé a0 acaso. Neste caso, © historiador da cultura estava muito pior do que qualquer outro historiador. Os seus colegas que se dedicassem & histéria politica ou econdmica tinham, pelo menos, um. critério de relevincia no seu tema restrito. Podiam seguir a histéria da reforma do parla- riento, ou a das relagées anglo‘irlandesas, sem ‘uma referéncia expressa a uma filosofia da histé- ria que tudo abarcasse. Contudo, a hist6ria cultural enquanto tal, a historia de todos os aspectos da vida tal como era vivida no passado, munca poderia ser levada a ‘cabo sem alguma espécie de prinefpio director, tum centro a partir do qual 2 realidade circun- dante pudesse ser contemplada, um eixo que servisse de roda do diagrama de Hegel. Talvez a melhor forma de interpretar a subsequente historia da historiografia da cultura seja consi- derila como uma sucessio de tentativas para salvar o postulado de Hegel sem accitar a sua metafisca. Era precisamente 0 que 0 marxismo 56 disia estar a fazer. © diagrama hegeliano era mais ou menos mantido, mas 0 seu centro era oeupado, néo pelo espirito, mas peas alteragSes das condigdes de produgio. O que vemos na periferia do diagrama representa a superstrutura em que as condigSes materials se manifestam. Desse modo, a tarefa dos historiadores da cul cura continua a ser em grande parte a mesma. Precisam de conseguir revelar como cada porme. not de una époea reflecte as suas caractersticas econémicas essenciais ‘Lamprecht, que jéreferi como sendo um dos rmestres de Warburg, tomoua senda oposta. Nao procurava a esséncia nas condiedes. materiais, ‘mas na mentalidade de uma época’. Por outras palavras, tentou tradusir Grist dé Hegel em termos psicol6gicos. A psicologia em que se ins- pirava, © associacionismo de Herbarth, faz com que a sua tentatva pareca hoje particularmente antiquada, mas, enquanto esforgo para recupe- rar ou racionalizaraintuigio hegeliana, o seu sis tema conserva um certo interesse. Idéntico re: curso a psicologia foi defendido por Wilhelm Dilthey, que também foi bidgrafo eertico sofist caclissimo de Hegel, mas que, segundo ereio, per rmancceu sob a sta influéncia na forma de abor- dar o problema daquilo a que chama «a unidade estrutural da culturas, especialmente nos seus derradciros trechos, em que postula, como +o mais importante principio metodoldgicos, que a 37 cultura deve ser sempre abordada pelo historia- dor «no seu apogew»: ‘Nesta altura desenvolveu-se um estado de consciéneia em que a rela¢lo dos elementos dda cultura encontrou uma expressio definida ha sua estrutura, nos seus valores, significacios sentido da vida [...] que se exprime nas [.] configuragdes da poesia, da religiio e da filo- sofia [..] As proprias limitagdes inerentes a qualquer cultura, mesmo no seu apogeu, pos tulam um futuro® [VIL, p. 269] Dilthey o pai de toda a corrente da historio- ‘grafia alema a que significativamente se chamou Goistgeschiclta, a escola que se propds observat & mesma luz a arte, a literatura, a estrutura social e-a Weltanschauungl* No meu campo, que é a hisi6ria da arte, foi Alois Riegl quem, na viragem do século, com- seguiu fazer uma traducio propria do sistema hegeliano em termos psicol6gicos’. Tal como Hegel, via a evolugio das artes simultancamente ‘como um processo dialéctico auténomo ¢ como odas que giravam no interior da roda maior das sucessivas visSes do mundos. No que toca 3 arte, o processo era uma dupla espiral: de um modo téctil de apreensio da matéria sélida até lum moda «épticor, comecando pelos objectos isolados, para passar & sua disposi¢lo espacial. 58 ‘Tal como em Hegel, também este proceso, com ‘08 seus inevitivels estédios, p5e a ideia de «de- linio» fora de questio. Pelos padres clissicos de clareza téetil, a escultura do arco de Cons- tantino pode representar um declinio, mas sem tal processo de dissolugio nem Rafael nem Rembrandt poderiam ter surgido, ‘Além disso, este incessante desenvolvimento correa par das mudangas nas wisbes do mundo» que @ humanidade tem. Como Hegel, Riegl pensaiva que a arte e a Wellanschauung egipcias fe situavam ambas no pélo oposto 20 do sespiri- tualismoe. Postula para 0 Egipto um «monismo materialista», que apenas vé na alma matéria refinada. O pensamento ¢ a arte da Grécia sio ambos dualistas, a0 passo que nos finais da anti- guidade se regressa ao monismo, mas desta vez hho extremo oposto da escala, onde (previsivel mente) o corpo éencarado como uma alma mais grosseira: Quem via uum declinio no interesse reve: Jado nos finais da antiguidade pelo irracional e pelas superstighes migicas arrogase o di- reito de dizer a0 espirito humano que cami- nnho deveria ter seguido para concretizar a twansigio das concepgées antigas para as mo- dernas” [p. 404}. Na verdade, Riegl estava convencido de que esta crenca dos finais da antiguidade nos espiri- 59 tos e na magia era um estidio necessirio, sem 0 dual a mentalidade do homem nunca teria com- preendido a electricidade'.F, para sua prépria satisfagio (e de muitos outros), demonstrou que este processo significativo se manifestava to claramente na ornamentagio das tiltimas fbulae romanas como na filesofia de Plotino. Foi seguramente este propésito de ler os ssinais da épocas e de penetrar nos segredos do processo histérico que dew novo impulso aos estudos de histéria da ate. Max DvoFSk, nos seus “ltimos anos, represeniava esa conrente de iodo tio perfeito que os editores das suas obras completas fizeram bem em escolher para ttlo Runstgeschichte als Geisieschichte® (A Hlistéria da ‘Ante como Histéria do Espirit), formulagio que susciton um remoque 4 Max J. Friedlander: «Segundo parece, limitamo-noss estudar a hist6- Fla da carne.» (Wir beteiben offenbar nur Korper geshiche,) Tal como Dilthey, 0 grande Erwin Panofsky apresenta uma sequéncia mais critica e sofisicada deste programa, mas quem estudow as suas obras sabe que também ele nunca renun- ciou ao desejo de demonstrar a unidade onganica de todos os aspectos de uma época®. A sua obra Gothic Architecture and Scholasticiom™ mostrao tentar «salvar» a wadicional ligagao entre extes dois aspectos da cultura medieval, postulando um shabito mental» adquirido nas instituigées esco- listicas etransportado para a pritica da arquitee. 60 tura, No seu Renaissance and Renascences in Wes- tern Art (p. 8) defendeu explicitamente a ideia de que as culturas tém uma esséncia, contra as criticas de George Boas. Porém, € provivel que a tentativa de salva- ‘mento mais original do género tenha sido feita pelo maior historiador cultural depois de Burck- hardt, 0 seu admirador, criticoe sucessor, J. Hui- "Fenhamos presente que Burckhardt cna aconselhado 0 seu amigo a interrogarse «como € que o espirito do século XV se exprime na pintura?s! (11) Em geral, os historiadores de arte da Geistes geschichte comecariam pela impressio que 08 qua dros de Van Eyck thes causavam, seleccionando em seguida outros testemunkos do tempo que parecessem concordar com ea. O que é fasci- nante em Huizinga éele ter adoptado 0 caminho inverso. Sabia demasiados factos sobre a época de Van Eyck para poder com facilidade ajustar a impressio que tinha dos seus quadros a0 ddadios documentais. Conciuin que o melhor seria reinterpretar o estilo do pintor de modo a fazé- Jo corresponder 2o que sabia sobre a cultura. Fé- 4o no cativante livro The Waning of the Middle ‘Ages®, letra O Outono da Idade Média, hegeliano até no que o titulo deixa pressuposto, ou seja, que a cultura medieval havia atingido na altura © termo do seu outono—complexa, sofisticada e 6 madura para a ceifa. Assim, o realismo de Van Eyck }4 nio podia ser tomado como arauto de ‘uma nova era, pois a sua riqueza, digna de uma Jj6ia, © a sua acumulagio de pormenores eram ‘mais uma expressio do mesmo espirito dos finais do gético, que também se exprimia de forma ‘menos atraente nos prolixos escritos da época, que ja ninguém Ie, a nio ser os especialistas. ‘A roda tinha feito uma rotaglo completa. A interpretagio do realismo artistico como ex: pressio de um espirito novo, que devia ser en- contrada em Hegel e se tornara um ponto de partida da interpretagio que Burckhardt fez do Renascimento, foi eficazmente posta em causa por Huizinga, que seguidamente dedicou um dos seus ensaios mais perspicazes a esta equagio. tradicional do Renascimento e do realismo®. ‘Mas, pelo que sei, Huizinga p6s mais em causa festa’ interpretacio especifica do que 0 pres- suposto metodolégico, segundo o qual a arte de uma época deve exprimir o mesmo espirito que a sua literatura e a sua vida. Critico em relagio a todas as tentativas de estabelecer leis da hist6ria, terminou ainda assim The Task of Cultural History, 0 seu maravilhoso artigo sobre a tarefa da histéria cultural, com a exigéncia de uma «morfologia da cultura» que implicava, se bem entendo, uma abordagem hholistica em termos de alteragio dos estilos ceulturais. @ Ora, nfo nego por um sé instante que um grande historiador, como Huizinga, pode ensi har muito aos estudiosos da evolugéo artstica sobre as condigSes em que um estilo particular, como o de Van Eyck, ganhou forma. f Sbvio que Ini qualquer coisa na intuicko hegeliana, segundo 2 qual nada na vida est isolado, de que qualquer fevento qualquer criagio de uma dada época estdo ligados por mil fos & cultura em que se inserem. Sendo assim, quem no teria curios dade em adquirir conhecimentos sobre a vida ddos patronos que encomendaram as pinturas de Van Eyck, sobre as finalidades que tais pinturas serviram, sobre o simbolismo dos seus quadros Feligiosos, ou sobre o contexto original dos seus qquatros laicos, que hoje 36 conhecemos através, de c6pias e relatos? claro que nem a Adoragio do Cordeiro nem mesmo a Cara @ Lontra (hoje perdida), podem ser entendidas isoladamente, sem referéncias as tradigdes religiosas, no primero caso, ¢ 208 pas satempos da corte, no segundo. Equivaleré 0 reconhecimento dessa ligagio a admitir que aabordagem hegeliana 6, afinal, cor recta? Nao ereio, Uma coisa € vera interconexio das coisas, outra seré postular que todos 08 aspec- tos de uma cultura podem ser reconduzidos a luma causa nodal, de que slo manifestagSes", ‘Se todos os patronos de Van Eyck tivessem sido budistas, ele nao teria pintado a Adoragdo do 68 Cordeiro nem, por razées idénticas, a Caga & Lon- 47a, mas, embora a circunstancia de o ter feito ‘estefa por isso vulgarmente ligada & civilizago no seio da qual trabalhou, nio é preciso colocar ‘essas obras na periferia da roda de Hegel nem procurara causa dominante que explica, quer as ‘cacadas & lontra, quer a religiosidade, na forma ‘espeeifica que revestiram nas primeiras décadas do século XV ¢ que também se exprimiram na nova técnica propria de Van Eyck Se hé factos na histéria da arte que nio con- sidere muito surpreendentes, esses serio, com certeza, © éxito e a popularidade desse novo cetilo, 0 que terd seguramente menos a ver com 1a Weltanschauung da época do que com a beleza eo brilho das pinturas de Van Eyck, Creio que uma das indesejiveis consequéncias do habito hegeliano da exegese ¢ tal reparo pare- cer ingénuo e até mesmo paradoxal, por imposi- ‘glo do costume de cada coisa ser tratada no apenas como ligada a tudo o mais, mas ainda ‘como sintoma de outra coisa qualquer. Tal como “Hegel tratou a invengao da pélvora como expres ‘sio necessiria do desenvolvimento do espirito, também o historiador sofisticado deveria tratar ‘a invengio da tinta de leo (ou daquilo que assim ‘era denominado) como um prodigio da respec- tiva época. Ora, por que niio havemos de encom tar uma explicagio mais simples no facto de os aque possuiam a pélvora serem capazes de derro- 64 tar os que hutavam com arcoseflechas, ou de os aque adoptaram a técnica de Van Eyck serem mais capazes de tradusir em pintura a hiz e 0 britho do que os que empregavam a tempera= E claro que uma tal resposta nanca € definiiva, pois poderd sempre perguntarse por que terao fquerido as pessoas derrotar 0s Ses inimigos, , Embora a questao possa em tempos ter parecido ingénua, hoje sabese que podem oporse fortes influéncias & adopeao de uma arma mais pode- rosa, Também se sabe que nem sempre poder terse como certo que o objectivo da pintura seja 4 obtengio da ilusto de reaidade. Tal objecivo {oi recusado pel judaismo, pel iso, pela igre bizantina e pela nossa propria culizagho, por ra- es diferentes em cada um dos casos. De facto, rio que foi sempre compensador, do panto de sista metodoldgico, procurar as razSes que fze- ram com que uma cultura ov uma sociedade rejeitassem uma ferramenta ou wm invento que pareciam oferecer vantagens palpiveis num sen- {ido particular, Sera ao tentarmos responder a sta pergunta que descobriremos 1 realidade desc tecido de tram apertadaa que chamamos scultaran, Nao vejo, porém, rizio para que 0 estudo dees lgaper on Inve de novo atm postulalon hnegeianos do Zaigeit ¢ do Voligeist Pelo con trario, sempre acreditei que é ohabito mental da cexegere, 20 condurira exes crtocireuitos, que , 65 impede que se coloque proprio problema que ‘9 hegelianismo se propds resolver*®. NOTAS “HL Wellin, Renatcance and Bark, Munique, 1588. 1 hr and Hsien, Nova Torque e Londres, 1960 SEH. Gombrich «The socal history of art (1958), in Meditations on 2 Hobby Horse Londres, 1968. “Sle, in Inderatonal Encylopedia of the Social Seen ces, Nova Torque, 1968 kar J, Weintraub, Visions of Cut, Chicago ¢ Lon res, 1968, wWitnein Dilthey, Der Ayia der gchichtichen Wel in ddr Gristeuiseschaft (Plan und Poraceung Gesarnmelte Sehsiften. tt Leipsig e Berm, 1927, ‘Hanajoschim Schoeps, Was it und nas wl die Geir tespechichi? Ober die Theorie und Proxis der Ze gestfcohung, CBtingen, 1959. “ eaigar Wind, «rit der Gestsgeschihte, Das Sym ‘bol ala Gegenstand Kultursiszenschatlicher Forschung in Kaleoisenchaftiche Bibliographic zum Nachlebn der Antie,Eleitang, e@, Bibliothek Warburg, 1, Leipzig © Berlin, 1984. "Alois Riegl, Die Sparémische Kunstinduirie (1901), Viena, 1927. sod. ire 8 Max. Dro Munique, 1924 ME Panolily, Ayéater su Grundfingen der Kurtis ‘perm, 1964, Guchie Architecture and Sehaasticim, Latrobe, Pa, 1981, Kunuteschihte ale Gestsgechicht 66 © Renaissance and Renasences in Waters Ar Eston colmo, 1960. RL, Colle, John Hilsinga and the tsk of cultura history in American Hisoncal Revie, xix (1964), pp. 607580, PV, nota 5. ° Bri vollstindige Ausgabe, ed, Max Burckhardt, Basia, 1949 © sep, V. nots 8, J. Hulzings, The Waning ofthe Middle Ages (1919), Londres, 1924. "Renaissance and realism (1926), in Men and dens, Nova Torque, 1959, TS eThe tsk of cultural history» (1929), in Men and eas, Nova Torque, 1958. " Morse Pecks, Man's Rush fr Chaos, Nova Torque, 1966. *'V, nota 8 YV, nota 1 From the revival of eters tothe reform of thea: Niccold Niccoli and Flippo Brunelschis, in Bscy in the latory of Are Paced to Rudlf Withouer (ed. DA. Frater al Londres, 1957 Tne logie of vanity fe alternatives to historic {nthe study of fashions, gle and tats, in The Philosophy (of KR. Popper (The Library of Living Philosophers, ed. P ‘A. Schlpp PaArt and scholarships (1957), in Meditations on a Holy Horse, Londtes, 1963. y, nota 2 67 amicbe phon A com patent eta a toennatin £n, (reek Paden hh oe SI gaged fa vote de ee Derr dives genter EO ne oN, plea yie na wi hiia ote ede) ew prshea inert go Verde gh o yrrtimete o Wetie wile gw @ corre en ote aBlede Acted de ume apte a wee Wn Ta cada, age St Brn ya ete Rin» ow brads Jode 6 | ule you ame I eyes + Oe seyelndane shen anole 6 cnednese were Mme 8 pe ae nde An be gubatsbe O prsttinn gt die pe Rye ee en eote ea (perme) A Jefe o nenyee & aoe cela 2 woh tte a ek palin he as hewn 5 Sintomas e sindromas Podemos interessar-nos pelas miltiplas in- teracgSes entre as diversas esferas de uma cul tura e, ainda assim, rejeitar aquilo a que chamei © emétodo exegético», ou seja, 0 método que baseia as suas interpretagées na deteccio do tipo de «semelhanca» que conduz o intérpreie ddas Escrituras a ligar a travessia.do mar Verme-. duzir os vérios aspectos de uma cultura a uma férmula!. Na convincente morfologia de Huizinga, a arte de Van Eyck mo deve ser apenas relacionada com a teologia ¢ a literatura da Epoca, visto que importa também mostrar que compartiha de algumas das suas caracteristicas fundamentais, Criticar esta concepeio nio é rnegar 0 muito engenho ¢ estudo postos por alguns historiadores da cultura na busca de escrigdes metaféricas sugestivas e memordveis. Nem com isso se nega poder vir a descobrir-se aque tals semelhangas estruturais entre diversos aspectos de uma época tém interesse, como A. ©. Lovejoy tentou demonstrar a propésito do defsmo e do dlassicismo do século XVII. Mas aqui, como sempre, qualquer postulacio a priori dessa semelhanga s6 pode estragar o interesse da pesquisa. Nao s6 nio existe qualquer lei inflexi- Yel para tal isomorfismo, como, inclusivamente, duvido de que colhamos quaisquer frutos se subs- tituirmos este tipo de determinismo por uma abordagem probabilistica, como W. T. Jones pro- ‘pds no set livro sobre o movimento romantico, ‘The Romantic Movemen®. O subtitulo deste inte- ressante livro atrai a atengio ao prometer «um ‘método novo na antropologia cultural ena hist6- tia das idelas», Esse método consiste em estabe- lecer oposig6es, como, por exemplo, entre est tico e dinamico ou entre ordem e desordem, € em examinar certos perfodos A luz da sua 0 tendéncia para um ou outro extremo das escalas assim constitufdas, esperando que tal inclinagio se revele estatisticamente na periferia da roda de Hegel, na arte, na ciéncia e no pensamento poli- tico, embora algumas dessas esferas pudessem ser mais adversas a exprimirse do que outras. Na oposigao entre eesbatidor ¢ «nitidos, o roman tismo teria, em seu entender, propensao para o primeiro na metafisica, nas imagens poéticas © nna pintura, inclinagées essas que deveriam ser consideradas caracteristicas da_mentalidade romantica "Nao ha divida de que tais suposigbes se casam. ‘bem com a psicologia do senso comum, mas, de facto, nio precisamos de estaisticas para mos- trarmos, neste caso, que 0 que parece plausfvel neste método para recuperar Hegel continua a centrar em conflito com factos historicos. Sucede, assim, ter sido o romantismo a descobrir o gosto pelos chamados «primitivos» na pintura, que na altura representavam o estilo nitido e penetrante de Van Eyck ou dos primeirositalianos. Se os pri- meiros pintores rominticos alemaes tinham alguma verdadeira aversio, era ao brilhantismo cesbatido dos seus predecessores barrocos. Quais: quer que tenham sido os scus pendores em metafisica, viam no contorno esbatido um sin- toma de desonestidade artstica e de corrupga0 moral. A sindroma — para reter este ttil voc bbulo— para a qual tendiam baseava-se em alter n ativan muito diferentes, craters dos blemas da pintura, Paradonalmente, ter ene tfcasem 9 ride eingenuo com o sobrenaturl to avi, © natualitne eabatido era som tio da perda do ertado de grag, é difamos encontrado eta tendéncia nas aiicusies dos historiadores euturls sobre 0 talorsintomdtce dos esos de pintre, Podera to ter sesumido tananha importnca se no fowe um asanio to actual ne propre tempo ¢ ambiente em que Hegel e 0 Jorem Burek Tard viverum, Fol, € dare, ten em que © trauma da Revolugio Frances asco eft cer tos cealos uma nostalgia pelos paraacs pera div da enltue mdiewe. Gv pintoresalemet gue eram ater conhecidos pot -Nazarenoe nr Siram o red o- eamtnkdade como dol pecudosinepardeelebusearam um esto linear fom a fragrinda de Fra Angelico © dos seus ongéneres do Norte. Foran para Roma, onde 4 talorin se converteu a0. catocsme, issvam Cabelo compro. boins de vend, que, em se fntender,teriam qualquer coisa de alldeuach Ora, neste ato, o ste destespintorese 38 Wotanstawing etavam clara estetamente relacionados, dado que a sua forma de pintar, Zssin como 0 te emmn verdadtramente ox fmblema, um manieno da sua disocagto do ‘Sed ik, Be cocmutrierare um ete Gente creo, quase poderiamos infer do eu rR vestuirio o que dizia e 0 que pintava, excepto, © dbvio, se 0 fazia bem ou mal legitimo que o historiador cultural pergunte como surgin uma sindroma capaz de marcar aguilo a que chamamos um movimento. £ pos- fivel escrever a histéria desse movimento, specular sobre os seus primérdios eas razdes do ‘seu éxito ou fracasso. £ igualmente necessario, perguntar entio com que firmeza permanece- Tam ligados o estilo e a fidelidade que comegou exprimir. Por exemplo, durante quanto Tempo foi o modo antireaist de pintar emble- indtico do catolicismo romano? Em Inglaterra a ligagio entre ocatolcismo eum certo amor pelo sgotico€ forte em Pugin, mas foi cindida por Rus- fin, embora a irmandade prérafaelita chegasse até a procurar um certo reaismo ingénuo € penetrance. ‘Todavia, mesmo aqui, o estilo exprimia uma certafideidade 4 dade da f@. A julgar por uma passagem do primeiro romance de Bernard Shavs, fstasindroma tinha-se desfeito na altura em que foi escrito, em 1879, Em Jnnaturity Shaw des- creve com ironia a decoracio interior de uma villa pertencente a um patrono das artes, um talio'com paredes de eamaico azutpaldo rodapés «com pinturas representando procisses de donzelas palidas, desfolhando flores, lendo livros, olhando para cima em éxtase, olhando contemplativamente para baixo, tocando malo- 3 igradas guitarras com uma expressiva curvatura do pescogo ¢ dos dedos [... tude num fundo de couro velho» (pp. 102-108). «As pessoas que reprovavam os chapéus de feltro, 0 tuzed ¢ as Fou pas aveludadas, 0 cabelo comprido, a miisica a0 domingo, a figuragio do nu, as mulheres iteratas eas confissdes de agnosticismo disfarcavam ou io iam Id» Se Shaw tinha razio, a sindroma deixava de ser o medievalismo para passar a ser 0 esteticismo, ¢ um nicconformismo generali- zado. BurneJones passara a ser o emblema de fidelidade a um credo progressista Espero que este pequeno exemplo possa tomar mais ficil a formulagio das minhas eriticas A posigio hegeliana de Huizinga em face do realismo de Van Eyck. Podemos agora pergum tarnos com maior justeza se o estilo de Van Eyck era tido, na Borgonha do seu tempo, como pettencente a uma sindroma deste tpo ou se, por outras palavras, ao entrar no salao de um poderoso, af descobrindo um quadro do mestre, recémadquirido, poderiam esperarse outras ati- tudes da parte do anfitriio ou dos seus convida dos. Duvido. No entanto, se tal parecer anacré- nico, arriscar-meia a sugerir que quem entrasse ‘numa sala com um quadro de Vénus em estilo all'antica apenas um pouco mais tarde teria raz6es para esperar que o proprietirio quisesse {que o filho aprendesse bom latim e talvez, de um. ‘modo geral, encontrasse pessoas desejosas de se ” desfazerem das tradigées do passado © de as ‘anscenderem*, Novas ' Morse Peckham, Mans Rash or Chaay, Nowa Torque, 1966, "AO. Lovejoy, «The parallel besween deism and clas sicigms, in Exo the History of Idas, Baltimore, 1948. SW. T. Jones, The Romantic Syrdvme Hala 1961. 4 From the revival of letters to the reform of the ats: iceold Niceol and Filippo Branelschi, in Essays im the History of Art Prvnted to Rudolf Withower (ed, D. A. Fraser f@ al), Londres, 1967 8 6 Moyimentos e perfodos A distinggo que aqui procuro fazer & entre movimentos e periodos. Para Hegel todos os perfodos eram movimentos, pois constitufam en- camagées do espitito em marcha. Este espirito manifestavase, segundo os ensinamentos de Hegel, em colectivos, entidades supreindividuais constitufdas por nagées ou por perfodos. Uma vez {que, na sua concepGio, o individual s6 podia ser tencarado como parte de um desses colectivos, os hhegelianos eram bastante coerentes quando partiam do principio de que o shomem passou por transformagdes profundas ao longo da histé- ria. Ninguém foi to longe nesta conviceao como. (Oswald Spengler, que atribuia psiques diferentes aos seus divertos ciclos culturais. Acreditar que essas diferentes espécies de homens pudessem n sequer entenderse era uma iluséo devida aos sertimentalistas humanitrios £ claro que nas teorias das filosofias totaits- vias que brotaram de Hegel para criarem um ‘thomem novo, fosse cle sovietico ou nacional SSocialista, se reflectia idéntico extremismo. Mesmo historiadores de arte com inclinagSes menos comprometidas adoptaram expresses Como shomem goticor ou «psicologia Darroca», aecitando que se dé uma mudanga radical de tsquemas mientais quando as empresas de cons- trugio civil se desfazem de um compéndio em Beneticio de outro. De facto, oextudo dos extlos fez progredir tanto a crenga na psicologiacolec: tiva que me recordo de um debate que tre, pouco depots da guerra com estudantes alemies fue pareciam acreditar que at catedras gicas aviam brotado espontaneamente por toda 2 Europa, sem qualquer contacto entre o8 esta: leiros de construgio. - esta crenca num espirito colectivo indepen- dente e suprivindividual que-me parece ter blo- {queado oaparccimento de na verdadeirahis6- fa cultual. Recordome de alguns avangos] Tecentes na histria natural que podem servir de ‘exemplo. O comportamento das colénias de in-| Secios aparentavaa tal ponto ser governado pelas necessidades do colectivo que era grande 2 ten- | faglo de postular a exndntia de un superoére bro. De que outra forma argumentava Maras no | |e iro The Sof Whit An’ podrian os“ |individuos da colmeta reagir de imediato & morte| da rainha? A mensagem deste evento devia che- garlhes através de uma espécie de processo tele- pitico, Agora sabemos que nio € asim. A mensa- fem € quimica: a substancia recolhida do corpo | Ga rainha circula na colmeia, porque os seus membros se lambem uns aos outros, © nfo atra- ‘és de um misterioso fuido mentaP. Outras des- Cobertas sobre a comunicagio dos insectos me-, thoraram o nosio conhecimento da relagio entre 0 individuo ¢ @ colmeia. Fizemos progresios. Espero e acredito que a hist6ria cultural fart | progressos se também fixar a sua atengio no ser Romano individual. Diferentemente do que) sucede com o$ periods, 0s movimentos so ini 3 por pessoas,/Alguns morrem & mascenca, uteos vingam, Cada movimento tem 0 seu hicleo de entusiastas e uma multidéo de opor tunistas, para nio falar de uma franja de lunsti- cos, Hi uma gama completa de atitudes e graus de conversio. Mesmo entre os indivfduos pode haaver diversos graus de conviegdo, vias futua Bes de lealdade, conscientes ow inconscientes GS que num comicio ou num encontro revivalist, patecia aceltivel pode parecer bastante loco no Eaminho de regresso acasa. Porém, os movimen- tos nio seriam movimentos se no tivessem os Seus emblemat, of seus siais exteriores, 0 set estilo de comportamento, de discurso e de indu- 9 mentiria. Quem sabe ao certo os motivos que impelem os individuos a adoplar alguns e quem se atreveria em cada caso a pronunciarse sobre 1 profundidade da conversio que a sua adopcio pode representar? Conhecedor destas limitagdes, © historiador cultural serd prudente quanto As afirmagées da psicologia cultural, nio negara que 0 éxito de certos estilos pode ser sintomatico de uma mudanga de atitudes, mas resistira & ten- tagio de utilizar a mudanga de estilos e de modas, como indicador de profundas transformagées paicolégicas. O facto de nio podermos ter por adquiridas essas conexées automiticas torna mais interessante procurar saber se e quando podem ter existido, Por exemplo, o Renascimento teve certa- ‘mente todasas caracteristicas de um movimento. Foi captando aos poucos os sectores mais distin- tos da sociedade ¢ influenciou a sua atitude de formas variadas, mais ou menos intensas. O gé- tico tardio ou o maneirismo nao foram, segundo Jjulgo saber, sinal de um movimento, mas é claro {que nesses periodos existiram movimentos que podem ter estado ou nio relacionados com estilos ou modas noutras reas culturais. As grandes questes da época, nomeadamente os ‘movimentos religiosos, nio se encontram neces- sariamente reflectidas em estlos caracteristicos. Assim, tem-se dito que o maneirismo € 0 barroco Ho a expressio do espirito da ContraReforma, 80 embora nenhuma das afirmagées seja ficil de ‘consubstanciar. Mesmo a existincia de um estilo ccaracteristicamente jesuita com intengdes prop gandisticas foi desmentida pela andlise mais pormenorizada de Francis Haskell. Precisamos de mais anilises deste género, baseadas em paciente investiga¢o documental, ‘mas arrisco-me a sugerir que o historiador cultu- ral querer complementar a analise das origens cstilisticas com uma andlise das associag@es € res. ‘postas estilisticas. Seja qual foro significado que Certos dispositivos barrocos possam ter tide para (8 seus criadores, evocavam associagSes papistas no espirito dos viajantes protestantes. Onde ¢ {quando se tomaram conscientes tais associagbes? [Até que panto a moda e o desejo de elegincia dos Franceses poderiam sobreporse a essas cor sideragées numa comunidade protestante? Sei ‘que nem sempre é ficil responder a estas per- jguntas, embora tenha a forte conviegio de que Geeste tipo de inquirigio pormenorizada que deve substituir as generalizagGes da Geistgeschichte. Noras * Eugene Marais, The Sul ofthe White Ant (1984), Lore ees, 1987 * Colin G. Butler, The World of de Honajber, Londres, 054 * Francis Haskell, Patons and Panter, Londres 196. ‘ 81 7 Tépicos e técnicas O historiador no precisa que Ihe digam que ‘0s movimentos oferecem tpicos de investigagio promissores. A ascensio do cristianismo, do puritanismo, do ihuminismo ou do fascismo nio faltaram por certo cronistas no passado nem faltario no futuro. O préprio facto de estes mo- vimentos se terem destacado da cultura em que tiveram origem oferece um principio selectivo. “Todavia, é possivel airmar que esta vantagem se adquire a custa de oferecer um panorama de conjunto da civlizagio, como os que Burckhardt Huizinga tentaram apresentar. As critics feitas a0 determinismo e a0 colectvismo hegelianos acabam, pois, por acentuar uma das rafzes da his X6ria cultural, apesar de haver outrasrazdes para ‘0 malestar do historiador cultural. 83 © editor vitoriano das Cartas @ Atica, de Ci- cero, nio precisava de aderir a postulados hege- lianos para esbocar, na sua introducio ¢ notas, aquilo a que por vezes se chamou o «pano de fundo culturals. Apesar de ndo ter consciéncia disso, possuia esse sentido de continuidade com © passado que lhe permitia saber o que precisava de explicagio e 0 que parecia Sbvio para os seus Ieitores, Hoje em dia 0 estudioso das cartas de Giceto perdeu essa confianga. Que seré para ele ano de fundo e boca de cena num documento desse tipo? Porém, embora haja uma perda nesta incer- tera de perspectiva, também hi um ganho. Teré ‘mais comiciéncia da pergunta que quer fazer do que 0 seu antecessor. Pode buscar provas lin. guisticas, econémicas, politicas ou psicologicas has cartas, pode estar interessado na atitude de Cicero para com 0 seus escravos ou nas referén- cias que faz as suas villas. Os académicos clissi- cos nunca foram impedidos de fazerem esse tipo de perguntas, mas mesmo cles estio agora ameacados por essa fragmentagio que de hi muito se apoderou do estudo das eras passadas. ‘A. mesma fragmentagio ameaga também climinar outra forma tradicional de hist6ria cul- tural, a antiquada biografia do tipo «vida e car- tase, que costumava apresentar 0 retratado no contexto vivo do seu tempo. Se se fizesse um balanco, receio que viesse a descobrinse que os 84 livros deste género sio hoje escritos com mais frequéncia por amadores do que por historia- dores profissionais, O académico médio nio tem a ousadia de se haver com um homem do pas- sado que nio tenha sido também um especia- lista. Todavia, 2 sua relutincia ndo & desonrosa. ‘Temos conhecimento da nossa ignorancia sobre ‘os seres humanos e de quio pouco as provas que temos satisfariam um psicélogo que se interes sasse pelo caricter € pelas motivagdes dese homem, A consciéncia crescente da nossa igno- incia sobre as motivagSes humanas levou a uma crise de autoconfianca Depois de criticar um Hegel, um Burckharct ou um Lamprecht por excesso de autoconfianca na tentativa de decifracio dos enigmas das cultu- ras passadas, terei de admitir que sem confianca (08 nossos esforgos morreriam de inanigio, Um académico como Warburg néo teria fundado a stua biblioteca sem uma fé ardente nas potenciali- dades da Kulturwissenschaft. A psicologia evolu- cionista que inspirou a sua fé jt deixou de ser a rhossa, mas as questes por ele levantadas reve- laramse frutuosas para a hist6ria cultural. Ao propor como principal tema do seu instituto das Nachleben der Antike ~ letra, «a vida pOstuma da chilizagio antiga» —, assegurou, no minimo, que o historiador de arte, de literatura ou de cigncia descobrisse a necessidade de novas técnicas para (cinpéno), tm Sih Cole Sider Hut, {964 Nertampron, Mae Gane, Fels sColaral history and it probleme, én Conil rrnctional dat cme hatrgon, Bapporin 1860, vol pp 1038 [ Garo Da A. Waburg aE. H. Gombrich (note ‘ut un problema di metodo)e, in Studi meal 1 17,1966. Gowsncr, E. H., «The sosal history of ar (1953), in x 1 Meditations on a Hably Hone Londres, 1968 “Renaissance and golden ages (1955), in Norm and Ear, x Londres, 196. Arc and scholarships (1957), in Meditations on a Hobby ‘Horse, Londres, 1983. X mand iusion Nova lorgue e Londres, 1960. ‘The tradition of general Knowledges (1961), in M. Bunge (ed), The Criteal Approach to Science and Philsoph, Nora lorque, 1964 Aby Warburg 2um Gedentens, in Jahrbuch der Bamburger ‘Runstsammlangen, Xi, 1866 “Brom the revival of letters to the reform of the arts ‘Niccold Nicci and Filippo Brunelleschi, in Euays fn the History of Art Presented to Rudlf Withower (ed. B.A, Fraser ef al) Londres, 1967, Stjen, in ternational Encyclopedia ofthe Soil Since, ‘Nova Torque, 1968, Nox “The logic of vanity fair, alternatives to hstoricism in the study of fashions, style and este, in 104 The Philosphy of ER Pater The Library of Living Pisopens, ed PA. Schilpp). Hast, Francis, Pattons ond Panton, Londres, 1968. Hou, Georg Wilhelm Friedrich, «Vorlesungen aber dic Philosophie der Religion i, Simdlhe, Werk >. Vom gBtlichen Dreiecks in Dokimente2u Hepes Bick fing ed. Hoffmeste, Extugards, 1986, pp. 803-806.

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