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duzir os vérios aspectos de uma cultura a uma
férmula!. Na convincente morfologia de
Huizinga, a arte de Van Eyck mo deve ser apenas
relacionada com a teologia ¢ a literatura da
Epoca, visto que importa também mostrar que
compartiha de algumas das suas caracteristicas
fundamentais, Criticar esta concepeio nio é
rnegar 0 muito engenho ¢ estudo postos por
alguns historiadores da cultura na busca de
escrigdes metaféricas sugestivas e memordveis.
Nem com isso se nega poder vir a descobrir-se
aque tals semelhangas estruturais entre diversos
aspectos de uma época tém interesse, como A.
©. Lovejoy tentou demonstrar a propésito do
defsmo e do dlassicismo do século XVII. Mas
aqui, como sempre, qualquer postulacio a priori
dessa semelhanga s6 pode estragar o interesse da
pesquisa. Nao s6 nio existe qualquer lei inflexi-
Yel para tal isomorfismo, como, inclusivamente,
duvido de que colhamos quaisquer frutos se subs-
tituirmos este tipo de determinismo por uma
abordagem probabilistica, como W. T. Jones pro-
‘pds no set livro sobre o movimento romantico,
‘The Romantic Movemen®. O subtitulo deste inte-
ressante livro atrai a atengio ao prometer «um
‘método novo na antropologia cultural ena hist6-
tia das idelas», Esse método consiste em estabe-
lecer oposig6es, como, por exemplo, entre est
tico e dinamico ou entre ordem e desordem, €
em examinar certos perfodos A luz da sua
0
tendéncia para um ou outro extremo das escalas
assim constitufdas, esperando que tal inclinagio
se revele estatisticamente na periferia da roda de
Hegel, na arte, na ciéncia e no pensamento poli-
tico, embora algumas dessas esferas pudessem
ser mais adversas a exprimirse do que outras. Na
oposigao entre eesbatidor ¢ «nitidos, o roman
tismo teria, em seu entender, propensao para o
primeiro na metafisica, nas imagens poéticas ©
nna pintura, inclinagées essas que deveriam ser
consideradas caracteristicas da_mentalidade
romantica
"Nao ha divida de que tais suposigbes se casam.
‘bem com a psicologia do senso comum, mas, de
facto, nio precisamos de estaisticas para mos-
trarmos, neste caso, que 0 que parece plausfvel
neste método para recuperar Hegel continua a
centrar em conflito com factos historicos. Sucede,
assim, ter sido o romantismo a descobrir o gosto
pelos chamados «primitivos» na pintura, que na
altura representavam o estilo nitido e penetrante
de Van Eyck ou dos primeirositalianos. Se os pri-
meiros pintores rominticos alemaes tinham
alguma verdadeira aversio, era ao brilhantismo
cesbatido dos seus predecessores barrocos. Quais:
quer que tenham sido os scus pendores em
metafisica, viam no contorno esbatido um sin-
toma de desonestidade artstica e de corrupga0
moral. A sindroma — para reter este ttil voc
bbulo— para a qual tendiam baseava-se em alter
nativan muito diferentes, craters dos
blemas da pintura, Paradonalmente, ter ene
tfcasem 9 ride eingenuo com o sobrenaturl
to avi, © natualitne eabatido era som
tio da perda do ertado de grag,
é difamos encontrado eta tendéncia nas
aiicusies dos historiadores euturls sobre 0
talorsintomdtce dos esos de pintre, Podera
to ter sesumido tananha importnca se no
fowe um asanio to actual ne propre tempo
¢ ambiente em que Hegel e 0 Jorem Burek
Tard viverum, Fol, € dare, ten em que ©
trauma da Revolugio Frances asco eft cer
tos cealos uma nostalgia pelos paraacs pera
div da enltue mdiewe. Gv pintoresalemet
gue eram ater conhecidos pot -Nazarenoe nr
Siram o red o- eamtnkdade como dol
pecudosinepardeelebusearam um esto linear
fom a fragrinda de Fra Angelico © dos seus
ongéneres do Norte. Foran para Roma, onde 4
talorin se converteu a0. catocsme, issvam
Cabelo compro. boins de vend, que, em se
fntender,teriam qualquer coisa de alldeuach
Ora, neste ato, o ste destespintorese 38
Wotanstawing etavam clara estetamente
relacionados, dado que a sua forma de pintar,
Zssin como 0 te emmn verdadtramente ox
fmblema, um manieno da sua disocagto do
‘Sed ik, Be cocmutrierare um ete
Gente creo, quase poderiamos infer do eu
rR
vestuirio o que dizia e 0 que pintava, excepto,
© dbvio, se 0 fazia bem ou mal
legitimo que o historiador cultural pergunte
como surgin uma sindroma capaz de marcar
aguilo a que chamamos um movimento. £ pos-
fivel escrever a histéria desse movimento,
specular sobre os seus primérdios eas razdes do
‘seu éxito ou fracasso. £ igualmente necessario,
perguntar entio com que firmeza permanece-
Tam ligados o estilo e a fidelidade que comegou
exprimir. Por exemplo, durante quanto
Tempo foi o modo antireaist de pintar emble-
indtico do catolicismo romano? Em Inglaterra a
ligagio entre ocatolcismo eum certo amor pelo
sgotico€ forte em Pugin, mas foi cindida por Rus-
fin, embora a irmandade prérafaelita chegasse
até a procurar um certo reaismo ingénuo €
penetrance.
‘Todavia, mesmo aqui, o estilo exprimia uma
certafideidade 4 dade da f@. A julgar por uma
passagem do primeiro romance de Bernard Shavs,
fstasindroma tinha-se desfeito na altura em que
foi escrito, em 1879, Em Jnnaturity Shaw des-
creve com ironia a decoracio interior de uma
villa pertencente a um patrono das artes, um
talio'com paredes de eamaico azutpaldo
rodapés «com pinturas representando procisses
de donzelas palidas, desfolhando flores, lendo
livros, olhando para cima em éxtase, olhando
contemplativamente para baixo, tocando malo-
3igradas guitarras com uma expressiva curvatura
do pescogo ¢ dos dedos [... tude num fundo de
couro velho» (pp. 102-108). «As pessoas que
reprovavam os chapéus de feltro, 0 tuzed ¢ as Fou
pas aveludadas, 0 cabelo comprido, a miisica a0
domingo, a figuragio do nu, as mulheres iteratas
eas confissdes de agnosticismo disfarcavam ou
io iam Id» Se Shaw tinha razio, a sindroma
deixava de ser o medievalismo para passar a ser
0 esteticismo, ¢ um nicconformismo generali-
zado. BurneJones passara a ser o emblema de
fidelidade a um credo progressista
Espero que este pequeno exemplo possa
tomar mais ficil a formulagio das minhas eriticas
A posigio hegeliana de Huizinga em face do
realismo de Van Eyck. Podemos agora pergum
tarnos com maior justeza se o estilo de Van Eyck
era tido, na Borgonha do seu tempo, como
pettencente a uma sindroma deste tpo ou se,
por outras palavras, ao entrar no salao de um
poderoso, af descobrindo um quadro do mestre,
recémadquirido, poderiam esperarse outras ati-
tudes da parte do anfitriio ou dos seus convida
dos. Duvido. No entanto, se tal parecer anacré-
nico, arriscar-meia a sugerir que quem entrasse
‘numa sala com um quadro de Vénus em estilo
all'antica apenas um pouco mais tarde teria
raz6es para esperar que o proprietirio quisesse
{que o filho aprendesse bom latim e talvez, de um.
‘modo geral, encontrasse pessoas desejosas de se
”
desfazerem das tradigées do passado © de as
‘anscenderem*,
Novas
' Morse Peckham, Mans Rash or Chaay, Nowa Torque,
1966,
"AO. Lovejoy, «The parallel besween deism and clas
sicigms, in Exo the History of Idas, Baltimore, 1948.
SW. T. Jones, The Romantic Syrdvme Hala 1961.
4 From the revival of letters to the reform of the ats:
iceold Niceol and Filippo Branelschi, in Essays im the
History of Art Prvnted to Rudolf Withower (ed, D. A. Fraser
f@ al), Londres, 1967
86
Moyimentos e perfodos
A distinggo que aqui procuro fazer & entre
movimentos e periodos. Para Hegel todos os
perfodos eram movimentos, pois constitufam en-
camagées do espitito em marcha. Este espirito
manifestavase, segundo os ensinamentos de
Hegel, em colectivos, entidades supreindividuais
constitufdas por nagées ou por perfodos. Uma vez
{que, na sua concepGio, o individual s6 podia ser
tencarado como parte de um desses colectivos, os
hhegelianos eram bastante coerentes quando
partiam do principio de que o shomem passou
por transformagdes profundas ao longo da histé-
ria. Ninguém foi to longe nesta conviceao como.
(Oswald Spengler, que atribuia psiques diferentes
aos seus divertos ciclos culturais. Acreditar que
essas diferentes espécies de homens pudessem
nsequer entenderse era uma iluséo devida aos
sertimentalistas humanitrios
£ claro que nas teorias das filosofias totaits-
vias que brotaram de Hegel para criarem um
‘thomem novo, fosse cle sovietico ou nacional
SSocialista, se reflectia idéntico extremismo.
Mesmo historiadores de arte com inclinagSes
menos comprometidas adoptaram expresses
Como shomem goticor ou «psicologia Darroca»,
aecitando que se dé uma mudanga radical de
tsquemas mientais quando as empresas de cons-
trugio civil se desfazem de um compéndio em
Beneticio de outro. De facto, oextudo dos extlos
fez progredir tanto a crenga na psicologiacolec:
tiva que me recordo de um debate que tre,
pouco depots da guerra com estudantes alemies
fue pareciam acreditar que at catedras gicas
aviam brotado espontaneamente por toda 2
Europa, sem qualquer contacto entre o8 esta:
leiros de construgio. -
esta crenca num espirito colectivo indepen-
dente e suprivindividual que-me parece ter blo-
{queado oaparccimento de na verdadeirahis6-
fa cultual. Recordome de alguns avangos]
Tecentes na histria natural que podem servir de
‘exemplo. O comportamento das colénias de in-|
Secios aparentavaa tal ponto ser governado pelas
necessidades do colectivo que era grande 2 ten- |
faglo de postular a exndntia de un superoére
bro. De que outra forma argumentava Maras no |
|e iro The Sof Whit An’ podrian os“
|individuos da colmeta reagir de imediato & morte|
da rainha? A mensagem deste evento devia che-
garlhes através de uma espécie de processo tele-
pitico, Agora sabemos que nio € asim. A mensa-
fem € quimica: a substancia recolhida do corpo |
Ga rainha circula na colmeia, porque os seus
membros se lambem uns aos outros, © nfo atra-
‘és de um misterioso fuido mentaP. Outras des-
Cobertas sobre a comunicagio dos insectos me-,
thoraram o nosio conhecimento da relagio entre
0 individuo ¢ @ colmeia. Fizemos progresios.
Espero e acredito que a hist6ria cultural fart
| progressos se também fixar a sua atengio no ser
Romano individual. Diferentemente do que)
sucede com o$ periods, 0s movimentos so ini
3 por pessoas,/Alguns morrem & mascenca,
uteos vingam, Cada movimento tem 0 seu
hicleo de entusiastas e uma multidéo de opor
tunistas, para nio falar de uma franja de lunsti-
cos, Hi uma gama completa de atitudes e graus
de conversio. Mesmo entre os indivfduos pode
haaver diversos graus de conviegdo, vias futua
Bes de lealdade, conscientes ow inconscientes
GS que num comicio ou num encontro revivalist,
patecia aceltivel pode parecer bastante loco no
Eaminho de regresso acasa. Porém, os movimen-
tos nio seriam movimentos se no tivessem os
Seus emblemat, of seus siais exteriores, 0 set
estilo de comportamento, de discurso e de indu-
9mentiria. Quem sabe ao certo os motivos que
impelem os individuos a adoplar alguns e quem
se atreveria em cada caso a pronunciarse sobre
1 profundidade da conversio que a sua adopcio
pode representar? Conhecedor destas limitagdes,
© historiador cultural serd prudente quanto As
afirmagées da psicologia cultural, nio negara
que 0 éxito de certos estilos pode ser sintomatico
de uma mudanga de atitudes, mas resistira & ten-
tagio de utilizar a mudanga de estilos e de modas,
como indicador de profundas transformagées
paicolégicas. O facto de nio podermos ter por
adquiridas essas conexées automiticas torna
mais interessante procurar saber se e quando
podem ter existido,
Por exemplo, o Renascimento teve certa-
‘mente todasas caracteristicas de um movimento.
Foi captando aos poucos os sectores mais distin-
tos da sociedade ¢ influenciou a sua atitude de
formas variadas, mais ou menos intensas. O gé-
tico tardio ou o maneirismo nao foram, segundo
Jjulgo saber, sinal de um movimento, mas é claro
{que nesses periodos existiram movimentos que
podem ter estado ou nio relacionados com
estilos ou modas noutras reas culturais. As
grandes questes da época, nomeadamente os
‘movimentos religiosos, nio se encontram neces-
sariamente reflectidas em estlos caracteristicos.
Assim, tem-se dito que o maneirismo € 0 barroco
Ho a expressio do espirito da ContraReforma,
80
embora nenhuma das afirmagées seja ficil de
‘consubstanciar. Mesmo a existincia de um estilo
ccaracteristicamente jesuita com intengdes prop
gandisticas foi desmentida pela andlise mais
pormenorizada de Francis Haskell.
Precisamos de mais anilises deste género,
baseadas em paciente investiga¢o documental,
‘mas arrisco-me a sugerir que o historiador cultu-
ral querer complementar a analise das origens
cstilisticas com uma andlise das associag@es € res.
‘postas estilisticas. Seja qual foro significado que
Certos dispositivos barrocos possam ter tide para
(8 seus criadores, evocavam associagSes papistas
no espirito dos viajantes protestantes. Onde ¢
{quando se tomaram conscientes tais associagbes?
[Até que panto a moda e o desejo de elegincia
dos Franceses poderiam sobreporse a essas cor
sideragées numa comunidade protestante? Sei
‘que nem sempre é ficil responder a estas per-
jguntas, embora tenha a forte conviegio de que
Geeste tipo de inquirigio pormenorizada que deve
substituir as generalizagGes da Geistgeschichte.
Noras
* Eugene Marais, The Sul ofthe White Ant (1984), Lore
ees, 1987
* Colin G. Butler, The World of de Honajber, Londres,
054
* Francis Haskell, Patons and Panter, Londres 196.
‘ 817
Tépicos e técnicas
O historiador no precisa que Ihe digam que
‘0s movimentos oferecem tpicos de investigagio
promissores. A ascensio do cristianismo, do
puritanismo, do ihuminismo ou do fascismo nio
faltaram por certo cronistas no passado nem
faltario no futuro. O préprio facto de estes mo-
vimentos se terem destacado da cultura em que
tiveram origem oferece um principio selectivo.
“Todavia, é possivel airmar que esta vantagem se
adquire a custa de oferecer um panorama de
conjunto da civlizagio, como os que Burckhardt
Huizinga tentaram apresentar. As critics feitas
a0 determinismo e a0 colectvismo hegelianos
acabam, pois, por acentuar uma das rafzes da his
X6ria cultural, apesar de haver outrasrazdes para
‘0 malestar do historiador cultural.
83© editor vitoriano das Cartas @ Atica, de Ci-
cero, nio precisava de aderir a postulados hege-
lianos para esbocar, na sua introducio ¢ notas,
aquilo a que por vezes se chamou o «pano de
fundo culturals. Apesar de ndo ter consciéncia
disso, possuia esse sentido de continuidade com
© passado que lhe permitia saber o que precisava
de explicagio e 0 que parecia Sbvio para os seus
Ieitores, Hoje em dia 0 estudioso das cartas de
Giceto perdeu essa confianga. Que seré para ele
ano de fundo e boca de cena num documento
desse tipo?
Porém, embora haja uma perda nesta incer-
tera de perspectiva, também hi um ganho. Teré
‘mais comiciéncia da pergunta que quer fazer do
que 0 seu antecessor. Pode buscar provas lin.
guisticas, econémicas, politicas ou psicologicas
has cartas, pode estar interessado na atitude de
Cicero para com 0 seus escravos ou nas referén-
cias que faz as suas villas. Os académicos clissi-
cos nunca foram impedidos de fazerem esse tipo
de perguntas, mas mesmo cles estio agora
ameacados por essa fragmentagio que de hi
muito se apoderou do estudo das eras passadas.
‘A. mesma fragmentagio ameaga também
climinar outra forma tradicional de hist6ria cul-
tural, a antiquada biografia do tipo «vida e car-
tase, que costumava apresentar 0 retratado no
contexto vivo do seu tempo. Se se fizesse um
balanco, receio que viesse a descobrinse que os
84
livros deste género sio hoje escritos com mais
frequéncia por amadores do que por historia-
dores profissionais, O académico médio nio tem
a ousadia de se haver com um homem do pas-
sado que nio tenha sido também um especia-
lista. Todavia, 2 sua relutincia ndo & desonrosa.
‘Temos conhecimento da nossa ignorancia sobre
‘os seres humanos e de quio pouco as provas que
temos satisfariam um psicélogo que se interes
sasse pelo caricter € pelas motivagdes dese
homem, A consciéncia crescente da nossa igno-
incia sobre as motivagSes humanas levou a uma
crise de autoconfianca
Depois de criticar um Hegel, um Burckharct
ou um Lamprecht por excesso de autoconfianca
na tentativa de decifracio dos enigmas das cultu-
ras passadas, terei de admitir que sem confianca
(08 nossos esforgos morreriam de inanigio, Um
académico como Warburg néo teria fundado a
stua biblioteca sem uma fé ardente nas potenciali-
dades da Kulturwissenschaft. A psicologia evolu-
cionista que inspirou a sua fé jt deixou de ser a
rhossa, mas as questes por ele levantadas reve-
laramse frutuosas para a hist6ria cultural. Ao
propor como principal tema do seu instituto das
Nachleben der Antike ~ letra, «a vida pOstuma da
chilizagio antiga» —, assegurou, no minimo, que
o historiador de arte, de literatura ou de cigncia
descobrisse a necessidade de novas técnicas para
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