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Marcelo'Puppi :,- 367 A Arquitetura Académica no Rio de Janeiro (1890-1930): uma Revisio Historiogréfica Dissertagio de Mestrado apresentada a0 Departamento de Histéria do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Us versidade Estadual de Campinas, sob Este exemplar corresponde & redagio final da dissertagdo defendida e apro- vada pela comissio juulgadora em 14 de dezembro de 1994, Novembro de 1994 A meus pais, que nunca mediram esforgos para que este trabalho fosse um dia possivel. Agradecimentos Meu primeiro agradecimento vai, naturalmente, para meu orientador, professor Jorge Coli. Seu grande interesse pelo trabalho, sua disposigao constante em discuti-lo, ¢ seu apoio € incentivo sie os maiotes responsiveis por eu t-lo realizado, Agradeco-Ihe em especial a leitura cuidadosa, passo a passo, de todo o lexto, € suas preciosas criticas e suigesties, que em muitos pontos foram decisivas para minha compreensio do tema a que me propus estudar (embora eu nao tenha sido capaz de aproveité-las em todas as suas dimensdes), Em Londrina, agradego ao Thomson, 4 Regina, & Breflia ¢ a0 Jonas, da Uni- versidade Estadual de Londrina, cujo apoio administrativo foi fundamental para que esta issertagao pudesse chegar a seu fim. No Rio de Janeiro, agradego ao professor Donato Mello Jtinior, por sua simpitica atengio e pelas titeis informagdes sobre a arquitetura carigca; ao professor Jorge Czajko- wiski, coordenador do Niicteo de Pesquisa e Documentagao (NPD) da FAU-UFRI, que gentilmente permitiu o acesso & documentago iconografica do Nucleo; ¢ aos amigos ¢ pesquisadores Roberto Conduru e Claudia Ricci, do mesmo NPD, pela também gentil atengdo em facilitar a pesquisa desse material € pelas varias informagbes a seu respeito, bem como pelas discussdes sobre o assunto, Na Unicamp, agradeco aos professores do Programa de Pés-Graduagio em Histéria da Arte, pelo muito que aprendi durante os cursos; aos colegas, pelas proveitosas conver sas sobre nossos estudos; e, claro, a atenciosa eficiéncia do pessoal da Secretaria de Pés- Graduagao do IFCH, sempre disposto a resolver nosso infindével vai-e-vem burocritico. Agradego especialmente as valiosas sugestbes das professoras Otilia Arantes e Leila Mezan por ocasido do exame de qualificagdo, as quais, na medida das minhas possibili- dades, dentro do tempo dispontvel, procure’ incorporar ao texto. Por fim, mas no menos importante, agradego & Sue pela compreensio e paciéncia a0 longo dos anos do mestrado, pelas nossas acaloradas disputas sobre arquitetura e ainda pelo inestimavel auxilio na digitaglo, na revisio do texto, e no preparo da edigao final. Fa todos aqueles que, de uma forma ou de outra, diteta ou indiretamente, contri- butram para a realizagdo deste trabalho, e que seria diffcil enumerar sem o risco de omis- sio, dirijo um agradecimento coletivo. indice vi 0 al 4s 48 59 89 1 99. 125 128 129 130 42 143 145 158 160 162 119 181 190 Introdugio I, Liicio Costa © modelo da historiografia da arquitetura académica no Brasil L. A hist6ria, 0 moderno e o nacional em Litcio Costa 2. A arquitetura académica segundo Liicio Costa 3. Conchusio II. Paulo Santos Os impasses metodol6gicos da pesquisa histérica 1. A identidade nacional na obra de Paulo Santos 2. As décadas académicas no Quatro Séculos de Arquitetura 3. Conclustio THT. Yves Bruand A validagdo historiogrAfica do programa tedrico do modernismo brasileiro: 1, A “contribuigdo tedrica” de Liicio Costa segundo Yves Bruand 2. Os “Estilos Histéricos” no Arquitewra Contempordnea no Brasil 3. Concluséo TV. A posteridade do modelo nas décadas de 70 ¢ 80 1, Carlos Lemos © "ecletismo” como estilo importado 1.1. O “ecletismo" no Arguitetura Brasileira 1.2, Conclusio 2, Mario Barata O “ecletismo” entre a “falta de gosto" e 0 progresso 2.1, A “transigao" do século XIX a0 XX em Mario Barata 2.2. Conclusio 3. Giovanna del Brenna © “ecletismo" como perda do significado arquitetOnico 3.1, O "Rio Eclético" segundo Giovanna del Brenna 3.2. Conclusio Conclusio Por uma histéria da arquitetura académica no Brasil Fontes e Bibliografia Introdugio A arquitetura académica foi, e ainda é, muito pouco estudada no Brasil, No que faltem publicagdes a respeito; apesar de em nimero muito pequeno, elas existem. Exis- tem mas no constituem propriamente um meio de se conhecé-la, pois os estudos a res- peito mais obscurecem que esclarecem esse passada, Vale portanto a pena investigarmos as razdes pelas quais todo um perfodo da hist6ria arquitetOnica nacional ficou relegado a ‘uma espécie de esquecimento propositado, ¢ mais ainda, as razdes pelas quais criow-se dele uma imagem completamente distorcida. No panorama nacional, a arquitetura académica carioca tem uma participagio de relevo, tanto numérica quanto qualitativamente, ¢ tornou-se uma espécie de simbolo «las realizagdes da época. 86 isto bastaria para justificar o interesse de se conhecé-la melhor. Actesce que, no Rio de Janeiro, por uma série de motives, o pensamento académico de um modo ou de outro esté relacionado com a formago da arquitetura moderna brasileira isto 6, da vertente que se tornard em seguida hegemdnica), e justo através do seu princi- pal mentor intelectual, Lticio Costa. Este foi, na década de 20, um arquiteto académico de talento e de projegdo, ¢ na década de 30 adere a0 movimento moderno, tornando-se um de seus principais divulgadores no pais. Se a conversio modernista implicou de inicio a batalha contra um pasado tido como infrutffero, © préprio arquiteto indiretamente reconhecerd mais tarde alguns débitos da nova arquitetura para com ele: o estudo desse passado envolve assim a discussdo mesma do destino de nossa arquitetura moderna. Ao interesse do conhecimento hist6rico soma-se portanto a grande atualidade do tema. Inrodugio vit A fortuna historiogréfica da arquitetura académica do Rio de Janeiro € contudo in- versamente proporcional 4 sua releviincia histérica, Ou melhor, deve-se falar, com mais propriedade, dos indfcios dessa relevancia, pois de fato ela nao foi devidamente estuda- da, e sequer sabe-se concretamente quais variedades arquiteténicas abrigam-se sob esse nome. Os textos até agora publicados de maneira geral retratam o pensamento académi como um conjunto de regras — um reveitudrio — muito estreito e, em sua época, abso- Iutamente desatualizado, passadista e retrégrado. Em outras palavras, 0 retratam como uma forma de projetar (¢ construir) inadequada ao progresso © & modernidade material, 0 qual fatalmente € com razo devia opor-se uma nova arquitetura, esta sim alinhada 208 novos tempos e capaz de expressi-lo culturalmente, Além dessa explicagio depen- dente em boa parte de um clima anti-académico internacional, no Brasil acrescenta-se um cardter estrangeirizante a essa arquitetura, quando menos porque ela é quase sempre ana- lisada em fungio simplesmente dos estilos hist6ricos (curopeus) que a materializam e sdo sua face mais A vista e evidente, Isto tornou-se um Tugar comum nos estudos de hist6ria da arquitetura brasileira. Visto que predominam os trabalhos de s{ntese, de cunho introdutério, destinados ou a um piiblico no especializado ou, principalmente, a professores ¢ cstudantes, a imagem dis- torcida desse pasado continua a ser reproduzida incessantemente no meio profissional e, © que € mais grave, no meio especializado, Criou-se um efrculo vicioso, onde 0 juizo desfavordvel inibe ou compromete a pesquisa histérica, e a auséncia de pesquisa histérica favorece € facilita a circulagao desse mesmo jutzo. E se naturalmente 0 rompimento des- se circulo depende da realizagdo de pesquisas aprofundadas e bem orientadas, isto passa também, e talvez. neste momento como uma tarefa basica, por uma revisiio radical do tra- tamento dado por nossa historiografia & arquitetura académica. Bis 0 objetivo do presente trabalho, no que se refere ao caso emblemitico do Rio de Janeiro — que sob vétios aspectos dé a medida da situago geral —, seja retomando os textos espectficos sobre a arquitetura da cidade, seja os textos em que ela aparece dentro do cenario nacional. Inrodugio vat Segundo os estudos em quest4o, com uma ou outra nuanga, como se verd, a mo- dernidade material e cultural s6 chega 20 pafs com a arquitetura’ moderna. Apenas esta, fruto de uma nova técnica construtiva, 0 concreto armado (ou, no melhor dos casas, fru- to de uma sensibilidade estética prépria da era da méquina), teria sido capaz de produzir edificios ao mesmo tempo funcionais € com vator artistico, isto , edificios que expres- sam material e culturalmente a sociedade moderna. Uma tal perspectiva invalida por completo a cuttura precedente, pelo exato motivo que ela (aparentemente) no soube responder aos requisitos do progresso, consumindo-se em exercicios decorativos de valor limitado, ou seja, em exerefcios "académicas". © termo portanto € utilizado em seu sen- tido mais trivial e inespécifico: “académicos" so os arquitelos avessos as imposigdes t6c- nicas € estéticas da produgio industrial em série, e “académica” é a arquitetura que nao tem relagio alguma com os tempos modernos, pura expressfio antiquada de um pasado artesanal j4 superado (e por isto devia ser combatida, dando lugar & nova arquitetura). Ccorre que a palavra remete necessariamente & hist6ria das academias, e como se sabe estas tiveram em sua origem um papel progressista, para néo dizer efetivamente modernizante. Seré com as vanguardas da virada do século que ela se tornard sindnimo e atraso na arte, fendmeno em paralelo, e talvez mesmo posterior, ao declinio da influ- éncia das segbes cientificas das academias. Daf uma possivel ambigiiidade na adjetivacao, pois no século XVIII e em parte do XIX a producZo académica pode significar, na arqui- tetura, experiéncias formais de ponta ou pelo menos relevantes, a0 passo que em relagio 20 final do século XIX e inicio do XX convencionou-se identified-te & sobrevivencia pu- ramente formal dessa tradigéo, como um corpo sem alma, No Brasil, ¢ sobretudo no contexto do Rio de Janeiro, a situagdo 6 um pouco simi- lar. No inicio do século XIX, a corte portuguesa transfere-se para a entdo sede da co- Tonia e instala ali uma Academia de Belas Artes, precisamente com a funglo de moderni- zar nossas artes ¢ oficios. O curso de arquitetura fica a cargo de Grandjean de Montigny, Inerodugdo. 1 ex-aluno de Percier e Fontaine na Belas Artes de Paris; 0 neoclassicismo do arquiteto, apesar de herdeiro apenas indireto do neoclassicismo histérico do século XVII, era uma espécie de fio de Tigagdo do pais com o programa racional da arquitetura do iluminismo. ‘Com ele nos atualizévamos, acompanhando pelo menos em parte o processo de raciona- lizagdo arquiteténica em curso na Europa, A atuagdo de Grandjean era assim sob certos aspectos um fator de progresso, embora talvez sem muitas consequéncias priticas (este é um outro t6pico ainda por estudar em nossa histéria). De modo geral, e inclusive acentu- ando-o (mas provavelmente ultrapassando a dimensio real do fato), os autores reconhe- cem este papel ao académico francés. Isto principalmente quanto & primeira metade do século XIX. A maioria dos estu- dos inclusive prolonga a influéncia do neoclassicismo de Grandjean até o final do século, ou pelo menos até seu terceiro quartel. De qualquer modo, em todos os textos o século XX abre-se sob o signo de uma outra arquitetura, esta agora académica na acepgao pejo- rativa. A diferenga da inércia colonial do século XIX, terreno em que a arte neoclissica fazia figura esclarecida, os tempos desta vez eram de acumulagdo burguesa do capital ¢ de industrializagao incipiente, Neste novo contexto a arquitetura parecia ter involuido, trocando a simplicidade (racional) de outrora pelo excesso decorative do "ecletismo" Quer dizer, nesta altura a arquitetura era académica porque estaria na contramao da his- t6ria, exatamente 0 contrério da agéo também académica de Grandjean de Montigny. Desse modo, todo o arco histérico compreendido entre a vinda da Missdo Francesa 0 advento da arquitetura moderna no Rio de Janeiro foi dividido entre uma boa ¢ uma mé tradigéio académica: de um lado fica a pureza neoclissica de Grandjean, moderni- zante; de outro, 0 "mau gosto” eclético, obsoleto ¢ retrégrado. A primeira, nada “acadé- mica” (no mau sentide da palavra), teria vigorado da instalagao da Academia de Belas Artes a aproximadamente 1890; a segunda, a verdadeira arquitetura académica, entre mais ou menos 1890 e 1930. No maximo a boa tradigéo prolonga-se parcialmente até 0 Jimiar do modernismo, produzindo o fendmeno especial do “bom gosto" académico (o da Academia) em pleno interior do “ecletismo". Introdugio x Sempre segundo nossos autores, quando © “bom gosto" manifesta-se no inicio do século XX, ele (implicita ou explicitamente) esté sempre ligado & Escola Nacional de Belas Artes, sucessora da antiga Academia. A Escola representava no Rio de Janeiro a tradigiio Beaux-Aris da passagem do século, isto 6, 0 método académico na época ensina- do na Ecole des Beaux-Arts de Paris, ¢ nesta tradigio formou um nimero cada vez maior de arquitetos, até bem depois do surgimento do modernismo (¢ dela justamente safram os principais representantes da nova arquitetura carioca). Qu melhor, @ "bom gosto” acadé- mico devia-se a apenas alguns poucos arquitetos, que sabiam valer-se com habilidade do passado arquitetnico. A Escola, ou parte dela, num certo sentido teria guardado a boa ladigdo acad8mica francesa inaugurada no Brasil por Grandjean de Montigny. A arquitetura académica propriamente dita, ou 0 “ecletismo", constitui portant a grande maioria das contrugdes dos anos 1890-1930, quando nio constitui simplesmente sua (olalidade, Bla se definiria pela variedade estilfstica e profissional, englobando arqui: tetos, engenheitos, mestres-de-obras e profissionais estrangeiros também os mais varia- dos. Este conjunto em suma no era mais académico no sentido original do vinculo a uma instituigao definida e definivel do ponto de vista formal, ¢ sim to somente pelo fato de perpetuar férmulas gastas e anacronicas, € além do mais sem gosto. O exemplo mé- ximo do “ecletismo" carioca, em todos os estucos, & a avenida Central (atual Rio Bran- co), aberta na gestio de Pereira Passos, prefeito da cidade entre 1902 ¢ 1906. A avenida foi inspirada nos bulevares haussmannianos de Paris, e exigiu grandes demotigdes, reno- vando todo centro do Rio de Janeiro (abriu-se também vias complementares a esta principal). Confiou-se as novas edificagies aos mais diversos profissionais, e sem dtivida © conjunto resultou bastante hetrogéneo, agrupando-se lado a tado, e a0 mesmo tempo, ‘obras de boa qualidade ¢ empreendimentos puramente comerciais. Além disso, a prefei- tura patrocinara um concurso de fachadas para a nova avenida, como meio de divulgacao da idéia; isto bastou para que todo o acontecimento entrasse definitivamente na histéria como “arquitetura de fachada" Num caso como no outro (0 "bom gosto" académico ¢ o "ccletismo"), trata-se em Ieteodugio xi realidade de um vinico processo de modemizagao, 0 qual se traduz no aparelhamento técnico ¢ funcional da cidade brasileira. No final do século XIX ¢ inicio do XX (talvez em relagio direta com o advento da Repiblica), 0 Rio de Janeiro passava por pelo menos dois tipos de transformagdes, do ponto de vista arquitetOnico: de um lado dotava-se a en- to capital federal de equipamentos urbanos pablicos, em boa parte imprescindiveis A cir- culagio dos bens de consumo ¢ & efetivagao da moderna sociedade administrada (mer- cados, escolas, hospitais, etc.); ¢, de outro, os edificios, pablicos ou privados, incorpo- ravam cada vez mais os avangos técnicos que ampliavam o campo de ago do arquiteto na solugdo do programa e do arcabougo construtivo. Tal aparelhamento funcional e tée- nico no se restringia decerto a uma simples questo de bom ou mau dominio dos estilos histéricos (que todavia nfo é secundéria), mas ao contrério dependia de instrumentos téoricos € préticos menos superficiais € relativamente complexos. Isto é, dependia do conhecimento que se pode sem nenhurn demérito denominar académico, O problema da arquitetura académica tem, portanto, dimensio bem mais ampla que a pretendida nos textos sobre o assunto. Os pontos para os quais se dirige a atengio, seja (0 “bom gosto” Beaux-Arts, seja 0 "cendrio" da av, Central, apesar de significativos, es- lio longe de retratar 0 conjunto arquitetdnico da época, que é ao mesmo tempo mais va riado e mais uniforme. Mais variado porque esse conjunte compreende também uma sé tie de edificagées de cardter predominantemente funcional, como é 0 caso de certos equi- pamentos piblicos de servico e algumas construgdes particulares (cujos autores as vezes sio os mesmos do "ecletismo” sem gosto), Mais uniforme porque, por tras da diversida- de estilistica, hd uma grande unidade de concepcao, que em altima instancia diz. respeito a0s requisitos modernizantes do seu tempo, ou seja, diz respeito & funcionalidade arqui- tetdnica (a liberdade no uso dos estilos do passado decorre precisamente da necessidade de atender As novas exigéncias funcionais, e é um dos tragos essenciais do historicismo arquiteténico do século XIX e, no Brasil, do inicio do XX). Esta unidade subjacente & multiplicidade formal da arquitetura do século XIX tem sido sublinhado pelos historiadores europeus do perfodo. Verifica-se assim, na Europa, a Intradugio xml existéncia de uma matriz projetual comum tanto & velha guarda neocldssica do inicio do século passado (matriz. num certo sentido origindria do préprio neoclassicismo do século XVIII), quanto ao “ecletismo” da segunda metade do XIX, Pode-se portanto sustentar a hipstese que, no Brasil, guardadas as devidas diferengas, h4 igualmente muito em co- mum entre Grandjean e a arquitetura académica. Ou, em outros termos, estas duas tradi- ges académicas so mais unitérias que antitéticas (mas de qualquer modo com relativa independéncia), filiando-se a um mesmo discurso arq (nico modernizante. Discurso modemizante entremeado com estilos do passado: de fato nenhum dos nomes a disposicéo, arquitetura académica, historicismo e “ecletismo" , define com pre~ cisdo tal arquitetura, mostrando sua acolhida pouco favorvel, até hé pouco tempo, por parte da critica (nacional e internacional). “Ecletismo", utilizado por quase todos os auto- res do pafs, tem a grande desvantagem de, no Brasil, significar apenas “arquitetura de fachada", isto 6, de limitar-se a uma descrigio arquitctonica superficial e, principalmen- te, depreciativa (daf o termo vir sempre acompanhiado de aspas, marcando nosso estra- nhamento em relagdo a seu sentido fortemente pejorative), Arquitetura acadénica ¢ historicismo (ou arquitetura historicista, ou arquitetura dos estilos hist6ricos) so preferiveis, em parte também porque so os termos de emprego mais frequente para designar estas décadas finais da tradigio académica. Historicismo, que de modo imediato quer dizer simplesmente a util izacdo dos estilos histéricos do pas- sado, fato comum a toda arquitetura européia do iluminismo até as vésperas do moder- nismo (e, se se quiser, desde 0 renascimento), apresenta a vantagem de inserir nosso perfodo especffico num programa arquiteténico que vai além de seus limites, ¢ que numa palavra pode ser caracterizado como um programa modernizador (mas talvez pot 80 néo € aqui muito comum), Arquiterura académica, por fim, parece ser o mais apropria- do, pois, embora seu uso corrente tenha quase sempre valor negativo, ele remete de modo ainda mais direto a uma tradigao arquitetdnica de longa data, e da qual a fase mais recente & uma expressio entre outras, de igual relevancia histérica. De qualquer forma, 08 termos so utilizados aqui como sinénimos, conservando-se porém quanto a "ecletis- Tetrodugto xin mo” o sentido a ele atribufdo pelos proprios autores. Isso posto, deve-se observar que 0 objetivo ndo é reescrever esta histéria; no esti- gio atual da pesquisa isto nem seria possivel. Por ora nio & possfvel tampouco redefinir suas fronteiras cronolégicas, ¢ menos ainda aprofundar a discussio sobre seu real peso histérico. Nossa releitura da historiografia parte necessariamente do horizonte factual cronolégico delimitado por ela mesma. Em consequéncia (mas de modo provis6rio) toda a discussio da arquitetura académica do Rio de Janeiro esté circunserita aqui ao perfodo 1890-1930. Deste ponto em diante s6 se pode avangar por hipéteses, ¢ nilo hé como ve~ rificd-las coneretamente no momento. ‘Todavia, as pesquisas realizadas no decorrer do trabalho revelaram alguns novos dados, © com isso num ou noutro t6pico a tentagio de reescrevé-la foi grande. Se aqui e ali ela é mais forte, no geral pretendeu-se apenas, com as informagdes dispontveis, dis- cutir a confiabilidade factual e interpretativa dos textos. Os seis autores examinados nao formam um conjunto historiogréfico homogéneo. Nem todos podem ser classificados como estudos de histéria, e de todos eles apenas um & dedicado exclusivamente 20 tema (¢ mesmo assim & breve); os demais o analisam em estudos panordmicos da arquitetura carioca ou nacional, de forma as vezes mais As vezes menos cuidadosa. Nao hé, enfim, uma historiografia espectfica da arquitetura académica do Rio de Janeiro. Por que, entio, reunir textos desiguais ¢ pouco volumosos, dando-Ihes um estatuto que em realidade nao tém (0 de historiografia dessa arquitetura)? Primeiro, evidente- mente, porque sio as tinicas paginas dispontveis sobre o assunto, constituem leitura obri- gat6ria para o interessado, e bem ou mal informam o leitor a respeito. Segundo, e prin- cipalmente, porque apesar de quase sempre superficiais ¢ lacOnicos, eles passam por es- tudos histéricos fundamentados ¢ suficientes, tomam o lugar destes assim obstaculizam uma produgiio historiografica de peso. E preciso assim retomé-los, cm seu conjunto, pelo Prdprio fato de nao constituirem uma verdadeira hist6ria da arquitetura dos estilos histé- Tecrodusto, xv ricos, quer dizer, para verificar-se as razdes pelas quais isso no se realizou, O 6 crucial de todo 0 problema est4 em que a primeira contribuigao ao tema, de Liicio Costa, base de todas as seguintes, nio é a rigor um estudo de histéria. Os textos do arquiteto visam sempre e sobretudo, por um lado, divulgar os prineipios do movi- mento moderno no pais e, por outro, fundar uma vertente local do movimento, bem como justificar e valorizar sua existéncia, Dito de outro modo, seu objetivo & formular 0 Programa teérico (nao sem idas e vindas, como veremos) da arquitctura moderna brasi- leira. Acontece que, nos manifestos do autor, © modernismo apresenta-se como ponto culminante de toda a histéria da arquitetura, seja no plano internacional, seja nacional, e, vice-versa, esta histéria € recontada como um processo evolutivo cujo fim iltimo & 0 surgimenta do modemismo. O te6rico reveste-se do papel de historiador, e dé a seu pro- grama de ago a forma de estudo hist6rico. De Lticio Costa em diante, salvo engano, ninguém historiou a arquitetura brasileira sem, de um modo ou de outro, com maior ou menor intensidade, tomé-lo como modelo de andlise. A revisio de toda nossa historiografia arquitetOnica das tiltimas décadas passa obrigatoriamente por ele, nisso inclufdo, talvez mais do que qualquer outro periodo, os estudos sobre a arquitetura académica, Daf a necessidade de relé-lo também como histo- riador, ou melhor, como mentor de um projeto historiogréfico que vingou plenamente no pais. Esta perspectiva sem diivida néo dé conta de toda a extensio de seu pensamento, mesmo restringe-se aqui ao essencial para a compreensio do problema em foco (nosso objetivo € enfim considerd-1o apenas do Angulo de seu influxo nos estudos de historia da arquitetura). Nio obstante nio 0 seja, Lilcio Costa se faz de historiador, e nos obriga a examind- Jo como tal (& custa de perdermos parte da riqueza de seus textos). Esta a primeira singu- laridade do protagonista central de nossa historiografia. A segunda, decorrente da pri- meira, estd em que, para ele, a histéria € antes um instrumento para a demonstragdo de seus argumentos que objeto de conhecimento; € a reconstrugo puramente mental do pas- sado segundo os interesses do presente; € um passado, ao fim e a0 cabo, que pode ad- furoduio xv quirir os mais diferentes significados, independente de qualquer verificagao concreta dos fatos, Os autores subsequentes partem justo deste pressuposto muito pouco favoravel 20 aprofundamento da pesquisa histérica, Por mais que daf em diante se acumulasse infor- mages, a histéria estaria sempre disponivel aos mais diversos propdsitos. Isto nao s6 de- sobrigava o historiador de interrogé-la ponto por ponto em suas razdes, mas o desobri- gava também de deter-se suficientemente em sua andlise (sob esse aspecto, 0 caso da ar quitetura académica é emblemético na historiografia nacional; mas em menor grau isto vale também para os demais perfodos). Por isso, além de quase nunca ser objeto de aten- io especifica, @ mesmo quando o é, 0 “ecletismo" tem sido via de regra examinado em poucas paginas, em meio a estudos panorimicos ou coletfneas, como se bastasse ilustrar seu "mau gosto" com alguns poucos edificios. O estudo de Licio Costa tem a forma de um depoimento sobre a arquitetura ca- rioca da primeira metade deste século. Seu propésito & recontar os fatos que levaram 3 eclosio do movimento modero na cidade (¢ portanto no pats), € um dos principais seria exatamente a inadequagdo do "ecletismo” aos novos tempos, Para demonstré-lo, ele sele- ciona um pequeno niimero de episédios “ecléticos” de maior evidéncia (0 "cendrio” urba- no das fachadas), e resume todo o perfodo a eles. Em algumas poucas pAginas, com al- Buns poucos ¢ estratégicos fatos, Lticio Costa constr6i de forma admiravel uma imagem a arquitetura académica que ficaré em definitivo na historiografia; € ainda hoje é a mais conhecida e divulgada, © depoimento aparentemente desinteressado do protagonista dos acontecimentos traz, no fim das contas, uma interpretaggo muito bem calculada da histé- tia, ¢ rouba-The o lugar. Paulo Santos, contemporaneo ¢ colega de Liicio Costa na Escola de Bolas Artes, fica a meio termo entre o tom memorialista nada ingénuo deste e a descrigao cuidadosa da historia, Seu estudo sobre o perfodo é parte de um texio maior, onde faz uma sintese da arquitetura do Rio de Janeiro da colénia ao presente, De uma parte, ele se preocupou em reunir um grande niimero de dados ¢ em apresenté-los ao leitor; de outra, ele no Ineodugio xv sistematizou 0 resultado de suas pesquisas, confiando na meméria, e submeteu-os & ex- plicagdo evolucionista herdada de Liicio Costa (dando-he porém um sentido diferente). Mesmo sem valer-se do método de trabalho do historiador (0 controle de dados e dos critérios de andlise), as péginas de Paulo Santos dedicadas ao assunto ja so a primeira tentativa de historid-lo, e permanecem, de longe, as mais informativas (embora suas afirmagées nem sempre sejam confidveis), Entre nossos autores, o francés Yves Briand tem um lugar de destaque, pois foi quem se propés a realizar um verdadeiro estudo da histéria da arquitewura contempordnca do pafs, Ele interessa aqui porque, tendo o inicio do século como ponto de partida, anali- sa também o contexto brasileiro nas décadas anteriores ao surgimento do modernismo, isto €, 0 historicismo. Todavia, se no seu texto o Rio de Janeiro recebe algum destaque, ‘ocupando boa parte das paginas sobre o tema, 0 tratamento é muito rapido, e nem chega a fazer jus & importincia numérica da produgio arquiteténica do perfodo. Portanto, em- bora o trabalho de Bruand tenha método, e nisto se distinga dos demais, no que se refere a arquitetura académica ele nao vai muito além de seus precursores, Liicio Costa e Paulo Santos (¢ com efeito acaba dando estatuto de histéria ao preconcéito anti-académico dos arquitetos modernos). Ao conferir autoridade historiogrifica as interpretagdes pouco rigorosas dos dois pioneiros, Yves Bruand indiretamente facilita © caminho dos autores seguintes. Estes ‘um certo sentido ficavam livres para reproduzi-fas sem explicagdes, ou mesmo criar su- as préprias (como o fizera parcialmente Bruand). [5 este 0 caso principalmente, a nosso ver, de Carlos Lemos. Ele refere-se ao “ecletismo” num estudo panorimico da arquite- tura brasileira; nesta condigao por certo o espago dedicado a ele no poderia ser grande. Mas ao contrario de todos os outros periodos, em relago aos quais Carlos Lemos reine informagGes as mais diversas, quanto a0 “ecletismo" no se encontra em seu texto sequer os nomes dos principais arquitetos da época, € ha mencdo a apenas dois ou trés edificios; ele limita-se a tecer consideracdes genéricas sobre a falta de gosto dos “ecléticos". Tem- se assim em Carlos Lemos 0 curioso fato que, num estudo de histéria, a propria histéria Introdugio xvi (a da arquitetura académica) no seja objeto de atencao direta, sendo substituida por uma simples interpretagdo dela (nisto nota-se a influéncia de Liicio Costa), E como 0 Rio de Janeiro aparece aqui apenas de passagem, o autor contribui em grande medida para seu ostracismo historiogréfico. Embora nos dois tiltimos estudos examinados, de Mario Barata e Giovanna del Brenna, 0 Rio de Janeiro volte a ter um lugar proprio na histéria, os pardmetros de and- lise mantém-se nos estreitos limites consagrados por Bruand ¢ Lemos. Mario Barata inte- ressou-se de modo particular pelo neoctassicismo e pelo “eclelismo", e sempre os estu- dou em conjunto, em Ambito nacional mas com especial atencio aos acontecimentos ca- rivcas. Se isto traz inimeras vantagens do ponto de vista teérico, algumas aproveitadas por ele, nfo o impediv de considerar 0 “ecletismo* como "falta de consciéncia estética segura". Sua andlise, pontuada por algumas boas observagdes ¢ descrigies de edlificios, & _igualmente breve (foram publicadas em jornal ou coletdineas); quanto a0 conjunto ele restringe-se a um apanhado generalizante, ¢ uma vez mais nfo se realiza um estudo ver- dadeiramente histérico. © texto mais recente sobre 0 "ecletismo" carioca, de Giovanna del Brenna, é 0 Unico a abordé-lo de modo especifico, com relativo rigor histérico e, além do mais, € bem documentado. Por um iado, entio, como Bruand, a autora empreende um estudo de caréter propriamente histérico, inclusive efetuando varias pesquisas sobre © perfodo; por outro, porém, ela segue muito de perto as interpretagdes dos dois pioneiros, Lticio Costa ¢ Paulo Santos, tomando mesmo este Gltimo como uma fonte in uutivel, Ao mesmo tempo em que amplia seu horizonte de observaco, remontando @ hist6ria do “eeletismo” a0 inicio do século XIX, concentra seu esforgo de pesquisa e andlise em alguns poucos Pontos tidos por exemplares, o principal deles a av. Central. Ou seja, reeditando as an- tigas interpretagdes (confirmando-as com novos argumentos), ela se detém nos mesmos episédios ja conhecidos (resolvendo-os também em poucas paginas), e dese modo deixa ‘escapar a oportunidade de historiar de fato © periodo. © conjunto, em suma, 6 heterogéneo, incluindo historiadores © nao-historiadores, Introdugior xvIIL cujos trabalhos sfio desiguais, com resultados também muito desiguais, ¢ no saldo final no chega a formar, individuatmente e no todo, uma histéria da arquitetura académica. Mas & esta ndo-histéria, afinal, nosso objeto de estudo, e nisso est a unidade do grupo. A ordem da exposicao, autor por autor, deriva desta caracteristica, isto é, deriva do propésito de examinar cada um em sua singularidade historiogréfica e de mostrar, re- constituindo esse caminho, como todos eles sio de certo modo refratérios A agio do tempo, permanecendo fiel ao modelo inicial. Disto decorre © outro aspecto da exposigio, mais dbvio, a sequéncia cronolégica. Utilizou-se para tanto 0 critério da data de publica- Gio do texto mais importante do autor sobre o tema, quando hii mais de um. Num tnico caso 0 critério mostrou-se um pouco arbitrério, o de Mario Barata, mas isto niio parece invalidé-Jo, Inieiando sua atividade de historiador nos anos 50, Barata esté cronologica- mente mais préximo de Liicio Costa; no entanto, seu texto mais elaborado, ¢ mais divul- gado, data da década de 80. Daf ter sido preferivel agrupé-lo entre os autores desta ulti- ma década, Resta ainda observar que, em consequéncia de um dos pontos centrais do trabalho ser demonstrar a continuidade no tempo de um modelo interpretative avesso & pesquisa hist6rica, deu-se prioridade & andlise de sua sobrevivéncia em cada autor. Com isso, quase sempre deixou-se de lado as relagdes destes com 0 contexto da época, a no ser quando isto é absolutamente necessério para a compreensio de nosso problema. ‘Uma adverténcia técnica. No texto hé refertncias a varios capftulos de livros, que deve vir entre aspas, e a certos tipos de publicagdes, como artigos ¢ textos reunidos em coletinea, cujos tftulos normalmente também vém entre aspas. Para facilitar a distingdo entre eles, e dar maior visibilidade aos artigos e textos de coletinea, optou-se por grafar Inrodueao XK ‘estes iiltimos em itdlico, e manter os primeiros entre aspas (partiu-se do pressuposto que titulos de livros, também em itilico, so mais conhecidos e facilmente identificdveis). Nas notas segue-se o padrio bibliogrdfico normal (aspas para artigos ¢ itélico para li- vros), de maneira que se pode controlar a situago sem problemas (de qualquer modo, procurou-se sempre deixar claro no texto a que tipo de publicacdo se estd referindo).. Capitulo primeiro Liicio Costa’ O modelo da historiografia da arquitetura académica no Brasil Os primeiros pasos para a eriagio de uma arquitetura moderna de “carter local” sho creditados, nds publicagdes recentes, a Lticio Costa, No entanto, a despeito de seus esctitos serem tZo influentes quanto suas obras, e de ele ser repetidamente louvada como 6 tedrico do movimento e mesmo como pioneiro em alguns setores da pesquisa do patri- mOnio artistico nacional, ninguém até agora reconheceu, de nosso conhecimento, que boa parte dos estudos da arquitetura brasileira deriva do modelo de andlise hist por ele elaborado. No por acaso siio estes estudos que insistem na sua importéncia para a criagdo de uma arquitetura moderna “autenticamente” nacional. Para constatf-lo, basta ler os textos com atengio; as filiagies so quase evidentes. Sempre citado, as vezes profusamente, outras discretamente, néo obstante em nenhum caso € reconhecido como 0 modelo historiografico seguido. Suas principais idéias esto 1d, reeditadas, sem a atribuigdo precisa da origem; elas como que tomam vida propria ¢ passam a representar os fatos hist6ricos em si, substituindo-os. Neste circuito fechado, cada novo autor continuamente reinventa a histdria, pretendendo abordé-la de modo ori- ginal, © continuamente a repete, porque sempre a repde nos mesmios termos. A primeira explicagao para isso esta no proprio Liicio Costa: como veremos, ele ' Fitho de pais brasileisos, Liicio Costa nasoou em Toulon (Frangs) em 1902. Em 1916 of pais voltam a0, Brasil, e ele é matriculado na Escola Nacional de Beles Artes: "Meu pai imayinava que eu fosse eseother pintura ou escultura, mas eu me seduai pelt acquitetura por cuusa da bibfioteca estupenda sobre arquitetura ‘que eu encontrei na sala dos fundos da Escola” (entrovista publicada na Fotha de Sao Paulo, 15/08/1995, ceademo Mais!, p. 6). Na mesma entrevista afiema que se formou arquiteto em 1922, Captule primeira Lefo Costa programou conscientemente a posteridade de seu modelo hist6rico, Partidério confesso da arquitetura moderna — e inimigo declarado da arquitetura académica — estava sem- pre muito mais interessado na defesa de sua causa que no estudo efetivo da histéria da arquitetura. Esta the valia menos como objeto de conhecimento que como meio para a demonstragio de suas idéias. A forma de estudo histérico reveste de autoridade 0 pro- grama da arquitetura moderna: Liicio Costa projeta-o na hist6ria, reinterpretando-a e reescrevendo-a tinica ¢ exclusivamente para comprovar a universalidade do programa de partida — na condigao de forga motriz da arquitetura em todos os tempos, de seus pri- mérdios aos dias atuais. Tal estratégia revela-se eficaz, ¢ 0 arquiteto militante fara larga fortuna como historiador. Negligenciando a pesquisa concreta, Lticio Costa constrdi um modelo histérico evolutivo ¢ totalizante: cada pega encaixa-se perfeitamente em seu lugar, ou precedendo ou sucedendo outras, de modo progressive, numa sequéncia que culmina na arte mo- derna. © modelo é apresentado a0 leitor pronto ¢ acabado, isto é, absolutamente comple- to; ele pode, em todo caso, ser ampliado € complementado com informag&es adicionais. Justifica-se mais pelo conjunto que pelos detathes, mais pelo que demonstra que pelo que dé a conhecer, e deve ser aceito integralmente. Sua vantagem estd justamente em ofere- cer uma interpretagio global da arquitetura — por isso mesmo pretendendo equivaler-se A propria historia, ou antes, a toda hist6ria da disciplina —, desobrigando os arquitetos do esforgo de analisar e compreender o passado e, em consequéncia, liberando-os para as préticas de intervengio presentes. Instrumento de agio antes que de conhecimento, e ape- sar de seu teor de simplificagio ¢ de suas deficiéncias, 0 modelo histérico de Liicio Costa no obstante seré tomado na conta de método historiogréfico no s6 pelos contempora- neos mas também (de maneira menos compreensivel) por estudiosos que jé viviam em um contexto histérico muito diferente’. © lugar da arquitetura académica no interior do modelo é completamente desfavo- 2 Pensamos eapecificamente em Yves Bruand e Carlos Lemos, dois de sous seguidores mais préximos. Bles escreviar, respectivamente, no final dos anos 60 & 70, quando as expectativas da modernizagio associada {k afirmagio da cultura nacional jé faziam muito pouco sentido. Na conclusio voltamos a0 assuato. Captalo primeio Licio Costa 3 ravel. Vejamos, inicialmente, em que ele consiste, antes de examinarmos o histérico ar- quiteténico das trés primeiras décadas do século esbocado pelo autor. 1. A hist6ria, o moderno e o nacional em Liicio Costa ‘Apesar do alcance totalizante, a formulagio de Licio Costa nao esta concentrada em uma tinica grande obra, ¢ sim esparsa em varios textos. Os primeiros so relativa- mente bem ralos quanto & tematizagao da hist6ria, ¢ parecem inclusive temer o risco que isto representaria aos arquitetos modernos. Num segundo momento, a situagao reverte-se ea hist6ria (ndo toda ela, porém) praticamente passa a ser o centro das atengdes do au- tor. © leitor desavisado veria nisso a evolugdo natural de um pensamento, no que nao estaria de todo enganado. Apesar de rala, a hist6ria jé era objeto de interesse nos primei- ros escritos; além disso, a maneira de abordé-la nfo se altera significativamente com 0 tempo. No entanto, ao invés de tomar a forma de um desenvolvimento temético criterio- 80, © pensamento organiza-se em compartimentos, complementares mas estanques. Hé uma série de entrecruzamentos de motivos; estes, porém, no vio muito além do terreno das alusies e sugestées. De um lado ficam os escritos dedicados & arquitetura brasileira e, de outro, os que tratam da hist6ria universal da arte, Nestes titimos, a arte nacional aparece apenas de passagem; a avaliago de conjunto desta em termos mundiais limita-se a uma breve indicagio, sem que o {ema seja satisfatoriamente desenvolvido. B vice- versa, nas paginas sobre a arquitetura brasileira, as reflexes de Ambito internacional comparecem apenas indiretamente, ¢ as conexdes entre uma ¢ outra, que seriam de se esperar, nao acontecem. Os planos universal e particular apenas se sobrepéem, deixando em aberto suas interligagies. A auséncia de sistematizagdo é antes uma vantagem que defeito: permite ao autor fazer correlagbes somente quando necessdrio, ¢ também aco- modar todas as pegas de seu tabuleiro, mesmo quando, ou melhor, principalmente quan- do conflitam entre si, Esse modelo histérico sem sistematizagio convém denominar modelo virtual. Capitule pri Lifcio Costa 4 A totalidade virtual do modelo est na retengfo simultanea de varios textos isola- dos, © exige grande imaginagio do leitor. Se acrescentarmos que, a0 longo do tempo, Liicio Costa altera ou até inverte opinides (2 reserva com que tratou inicialmente o Alei- jadinho reverte-se na sua posterior elevago a um dos génios da arte nacional), a confu- sfo no € pequena. De modo pouco surpreendente, as interpretagdes do autor podem servir aos mais diferentes propésitos, segundo se tome por base esta ou aquela passagem, esta ou aquela publicagéo. A andlise da obra escrita de Liicio Costa ultrapassa os limites deste trabalho, No entanto, € possivel caracterizé-la, em suas linhas gerais, a partir de trés de seus textos, de histéria e escopo bem diferentes. O primeiro a ser considerado, O Aleijadinko € a ‘Arquitetura Tradicional, foi publicado em 192°, ainda em plena vigéneia do movimento neocolonial (de que até entdo o autor Faria parte); 0 segundo, Documentagao Necesséria, foi publicado no primeiro nimero da revista do enti Servico do Patriménio Histérico e Artistico Nacional, em 19374, em meio As polémicas originadas pelos primeiros edificios modernos construidos no Rio de Janeiro; o terceiro, Consideragdes sobre Arte Contem- pordnea, & de 1952°; isto é, é posterior & divulgagSo internacional da arquitetura mo- derna brasileira, em especial através do Ministério da Educagio (1936, Laicio Costa ¢ equipe), do Pavilhdo do Brasil na Feira Mundial de Nova Yorque (1939, Luicio Costa € Niemeyer) da Pamputha (1942-43, Niemeyer). Em 0 Aleijadinho ¢ a Arquitetura Tradicional, Liicio Costa afirma que o lendério artista minciro ndo era arquiteto, ¢ que o interesse da arquitetura colonial, a0 contrério. do que se pensava, nada devia a ele. Sua obra, muito pessoal, ndo partilharia do "ver dadeiro espirito geral de nossa arquitetura", pois "ele tinha espirito de decorador, nio de Lilcio Costa, Lifefo Costa: Sabre Arquiterura (orgenizado por Alberto Xavier), Porto Alegre, Centro dos Estudantes Universitérios de Arquitctura, 1962, pp. 12-16. Nesta coletinea dos eseritos de Lifcio Costa, *0 Aleijadinho ea arquitetura tradicional” € dado como de 1929; em nota (p. 12), 0 organizador informa ‘completa da Na colotinca, que segue a ordem eronol6gica de publicacio, ele €6 primeiro a aparecer; nfo ha nenhuma indicagio, porém, s© é efetivamente a primeira publicagio do autor. * Posteriormente publiceda em Lifcio Costa: Sobre Arguitetura, cit., pp. 86-94 * Liicio Costa: Sobre Arquitetura, cit., pp. 202-229. Foi inicialmente publicado nx colegio Os Cadernas de Cultura, do Ministécio da Educacdo © Sade, Cepiulo primeiro Licio Costa 3 arquiteto” (p. 14)*, Ou melhor, o artista e 0 “espfrito geral* se opunham: "A nossa arqui- tetura é robusta, forte, macica, e tudo o que ele fez foi magro, delicado, fino, quase meda- ha. A nossa arquitetura 6 de linhas ealmas, trangiitas, e tudo que ele deixou é torturado e nervoso" (pp. 14-15). E conclui: "O essencial [na arquitetura colonial] é a outra parte, essa parte alheia & sua obra” (p. 15). ‘As afirmagies eram polémicas em seu context. O movimento neocolonial havia revalorizado a arte ¢ a arquitetura coloniais, reservando ao Aleijadinho um lugar de des- taque. A decoragio de origem barroca € rocooé era a mais concorrida, no meio da qual a do artista mineiro sobressafa-se. Contrapor, a esta altura, 0 "espfrito de decorador” do ‘Aleijadinho ao "verdadeiro espirito geral de nossa arquitetura" equivalia tanto a uma cri- tica do movimento quanto a uma apreciago completamente nova da arquitetura colonial. A novidade consistia em considerar representativas nfo as formas de excegio, mas sim a arquitetura dos "mestres andnimos”, responsdveis pela homogeneidade funcional, técnica ¢ formal do grosso das construgdes do periodo colonial, Este conjunto arquiteténico ele intitula “nossa arquitetura tradicional’. A inverséo dos valores atribuidos a cada uma das partes (que figuram como pélos opostos) no é — isto é, ndo pretende ser — arbitréria. A desqualificagao do Aleijadinho arquiteto no significa a desqualificagao do artista; deriva simplesmente de uma questio de método: “olhar os seus trabathos sob 0 ponto de vista puramente da arquitetura" (p. 13). Trata-se, & primeira vista, da observancia das regras da profisso: “O arquiteto vé 0 conjunte, subordina o detathe a0 todo, ¢ ele 36 vin o detathe, que as vezes @ obrigava a solu- ges imprevistas, forgadas, desagraddvels... Ele pouco se preacupaya com o fundo, 0 ‘volume das torres, a massa dos fronties. Ia fazendo" (p. 14), Mas, como vimos, a atencio dirige-se em seguida a uma questio de outra ordem, que ultrapassa 2 autonomia do fazer profissional: "Os poucos arquitetus que tém estudado de verdade a nossa arquitetura do tempo colonial sabem 0 quanto € dificil, por forgada, a adaptagiio dos motives por ele criados. E isso porque o Aleijadinho nunca esteve de acordo com o verdadeiro espirito geral © As indicagdes de paginas entre partntoses reforom-se sempre a Liicio Costa: Sobre Arquitetura, ci Capitulo primeiro Liteio Cosa 6 Ja nossa arquitetura" (p, 14). O miétodo no est4, portanto, no que & dito, mas no que fica subentendid : a necessidade da correspondéncia funcional entre forma ¢ sociedade. Em outras palavras, para o autor, @ constitui¢go de um estilo na arquitetura s6 ocorre. quando esta expressa as imposigées hist6ricas ¢ sociais sob a qual é produzida. O *verdadeiro” estilo da arquitetura colonial brasileira esté na grande massa da arquitetura, anénima que atende as imposicdes do meio, e nio no Aleijadinho, que the & excecdo. Concluindo, a exclusdo do Aleijadinho do domfnio da arquitetura colonial néo € ditada por preferéncias, mas é consequéncia légica de um prinefpio aceito como universal € irrepreensfvel: a funcionalidade hist6rica dos estilos — tio universal que dispensa a enunciacao”. ‘Aposar da andlise ainda bastante rudimentar, no texto jd esté esbocada a base sobre a qual Liicio Costa erguerd 0 seu modelo histérico, Nos escritos posteriores, ele trata de atenuar a aplicagio excessivamente mecdnica do princ(pio aqui identificado; este, entre- tanto, em nenhum lugar seré posto em discussio, permanecendo como o grande fio con- Gutor de toda a sua incursao na histéria da arquitetura. O tema da funcionalidade por cer- to era corrente nas décadas de 20 € 30, mas o mesmo nao vale para 0 conceito de estilo, visto que na arquitetura moderna a funcionalidade, programaticamente, & a propria supe- ago do estilo (¢ do historicismo). Voltando-se ao passado, Laicio Costa socorria-se nos autores do século XIX (precisamente, nos autores utilizados no ensino das academias), de onde retirou o principio da funcionatidade hist6rica dos estilos. Pensamos especificamen- te no Histoire de l’Architecture, de Auguste Choisy, um dos livros de referéncia dos es- 7A brusca virada foncionalisia de Liicio Costa (estamos em 1929), 6 ainda uma histSria por ser contada, ‘Um ano antes (ems 1928), em entrevista, ele “reeonheceu publicamente ter dividus w respelto desse movie ‘mento [0 moderuismo}... pos podia ser uma moda passageira, capa. de parecer mats tarde '120 ridicula, ex- travagante, intolerdvel como 0 arf wouveat: de 1900" (Yves Bruand, Arquitetura Contemporanea no Brasil, Si Paulo, Perspectiva, 1981, p. 71; 0 trecho citado por Bruand 6 da entrevista de Liicio Costa). # jus- tamente nos anos 1928-30 — nesse intervalo, para Laicio Costa, de transigio do academismo ao modor- ‘de Andeade publica, om So Paulo, seus artigos sobre arquitetura, tragando um paralelo entre o funcionalismo modemo ¢ a *simplicidade ldgica” da arquitetura colonial do Brasil. Toda 2 intespretagio dos primeiros textos de Liicio Costa, veremos, fundamenta-se nesse paralelo. AS reservas deste em relagio A arquitetura modema, expressas em 1928, nio fazia prever, no contexto carioea, a virada funcionaliste: esta parece estar no impacto das idéias do escritor paulista sobre o arquiteto carioca, ou pelo menos em uma proximidade muito grands entre eles nesses anos. ‘Capaulo primero Litcio Conta 2 tudantes de arquitetura nas primeiras décadas do século', também largamente utilizado por Le Corbusier — e como a nogio de funcionalidade dos modernos deve muito ao sé- culo XTX, 0 passo atrés dado por Liicio Costa no era de todo incompativel com a causa defendida. De qualquer maneira, a palavra estilo adquirira uma tal carga pojorativa que ele terminard por substitut-la, como veremos. Se em 1929 0 principio estava presente, mas a palavra nao, no Docwmentacao Ne- cessdria, de 1937, ela finalmente aparece. Nao em primeiro plano; apenas na penditima pagina do texto, quase por acaso. Todavia, 0 tema est Ié, desenvolvido, desde 0 inicio. A publicagio do artigo no primeiro niimero da Revista do Servigo do Patriménio Histérico ¢ Artistico Nacional tem papel simbilico: pretende determinar 0 caminho cor reto para a pesquisa histérica em arquitetura e, consequentemente, a politica correta de preservagdo do patriménio artistico nacional. © campo de agéo é, ja de saida, estreitado a0 Ambito do estudo da casa colonial; centranco-se neste tépico, propde-se a: 1. desfazer 08 equivocos que cercam esse tipo de estudo; 2, estabelecer uma espécie de programa basico de pesquisa. © equivoco principal, impedimento maior a essa pesquisa, estava na consideracéo apenas da arquitetura “erudita", e no consequente desprezo da arquitetura "popular™*, Por um processo anélogo ao que examinamos acima, as arquiteturas “erudita” ¢ "popu- lar" portuguesas tém seus valores invertidos, em favor da maior importéncia da “popu- lar" (permitindo-Ihe, de quebra, contornar facilmente as criticas a falta de qualidade da arquitetura “erudita" em Portugal, um lugar comum na época, segundo dé a entender). A © *Sinn at 1968, 8 famoso Recueil di tavole di ediici del medesiio tipo comparati alle stessa seala figard sempre in buowa posizione ia tutte le bibiotehe di studio tra gi Blements di Gunde, PHistoire oi Choisy e le fopere di Gromort. A ognuno ti questi libri era assegnata una funzione pedagnzica ben precisa e definita nella formazione del giovane studioso dParchitetuira {oa Ecole des Beaus-Ara}... Heontenuta de libri di Guadet e di Cholsy rappresentava Vesseaziale della cultura teorica e storca richiesta per passare le prove orall del conearso” (Berard Huet, "Le tre fortune di Durand’, preficio a: Weener Szambien, J.-N. L, Durand. 1 metodo ¢ la norma nell” arckitettura, Vencza, Marsilio, 1986, p. 7). Com as reservas de praxe, e com outras datas, podemos imaginar que o ensino da Escola de Bolas Artes do Rio de Janeiro guardava alguma relagéo com a situago descrita acima; Choisy, Gnadet e Durand fuziam parte do acervo da biblioteca da Escola, (0s termas erudito © popular so ulilizados por Lécio Costa segundo um esquemna simplista (tanto quanto vago): enudito refere-se 4 “expressio usada, na falta de outra, por Mério de Andrade, para distinguir da arte do pove a 'sabida'” (p. 86). Popular, por oposigao, é tudo que no diz respeito a erudito. ‘Caphulo primeiro Liicio Costa 8 arquitetura portuguesa na col6nia, por sua vez, passa a representante fiel das condigSes do meio, "cujo ar despretensioso e puro” (p. 86) € ainda mais acentuado pelas “difieulda- des materials de toda ordem" (p. 87): a falta de mao-de-obra, as cnormes distincias ¢ a grande demanda por construgdes, Dessa maneira, 0 estudo da arquitctura brasileira pre cisa ser recuado até os vestigios do século XVII, ao invés de limitar-se "A casa de aparéa- cia amavel da primeira metade do séeulo XIX" (p. 88), € estender-se as pequenas ha- bitagdes, ao invés de "fixar somente as casas grandes de fazenda ou os sobradées de cidade" (pp. 88-89). O método garantia a toda a arquitetura “tradicional” a inclusio na categoria de esti- lo, eliminando as querelas sobre o valor artfstico desse ou daquele monumento. Destarte, © caminho ficava livre para a pesquisa, item por item, na casa colonial, dos condicionan- tes histéricos do meio, bem como da tradigéo e costumes que abrigava: as diferentes téc- nicas construtivas, as variagdes das plantas ("procurando-se, em cada caso, determinar os motivos — de programa, de ordem (éenica e outros — porque se fez desta ou daquela ma- neira" [p. 90)), 0s telhados, a forragio do teto, as esquadrias € o mobiliério. A “tradigio", isto &, as continuidades estruturais supra-histéricas (¢ portanto abstra- 12s), substitui a histéria palp4vel dos exemplares arquitet6nicos em suas vicissitudes con- eretas, A abordagem, enfim, pretende instaurar uma antropologia da arquitetura; esta no por acaso tora desnecessario o conhecimento efetivo da prépria histéria disciptinar: a “historia” antropoldgica elimina a histéria “hist6riea". A procura do tradicional — vale dizer, 0 retorno As rafzes culturais da nagdo — equivale A busca da nossa arquitetura pri- mitiva, E na impossibilidade de incorporar ao discurso arquiteténico moderno o primiti- -vismo das civilizagdes pré-européias do futuro territ6rio brasileiro, a "tradi ‘Wo-somente ao periodo colonial. Nacionalizada (melhor: “primitivizada") pelas "dificul- dades materiais", a arquitetura portuguesa na colnia — como se despojada de todo 0 ex- cesso artificial da razio européia moderna — no inicio do século XX € tomada como an- tidoto ao artificialismo académico: 0 reforno @ ela faz. as vezes de instrumento de depura- cao da arquitetura, passo necessdrio a0 novo (¢ superior) patamar cultural. Primitivismo Captsle primeira Lesio Costa 9 ¢ estética da méquina encontram-se, a exemplo de Le Corbusier, para produzir a nova arquitetura — com a vantagem de aqui 0 primitivismo ter a marca nacional, constituindo a "nossa tradigao"™, © programa de trabalho proposto no Docwnenragtio Necesséria era vaste, Puncio- ndrio do Servigo do Patriménio Histérico desde sua fundagéo, Licio Costa deve ter sido também um dos principais responsaveis, se no o principal, pela sua criago. Conside- rando-se a provavel influéncia exercida pelo arquiteto dentro do orgio, néio surpreende que, na pratica, 0 estudo proposto se tornasse o programa oficial do Servigo. (Ainda ho- je, quase inalterado, 6 0 modelo de boa parte dos orgios estaduais e municipais de patri- mnio hist6rico, e do préprio federal). Ao contrério do alcance, a formulagio era breve: tudo esté contido em um tinico pardgrafo, e nao ha uma linha a justificar a necessidade da pesquisa para cada um dos itens que compdem a “tradigo” arquitet6nica nacional; estes impunham-se como que naturalmente, Uma tnica justificativa, feita em termos ge- néticos no infeio do texto, di sustentagio ao programa proposto: “Haveria, portanto, in- teresse em conhecé-la melhor [a casa colonial]... também para que nés outras, arquitetos modernos, possamos aproveltar a ligio de sua experigncia de mais de trezentos anos, de ou- tro modo que nfo esse de the estarmos a repraduzir o aspecto j4 morto” (p. 88). A natu- ralidade da origem do programa diz respeito aos requisitos funcionais demandados pela arquitetura moderna; esta, em Ultima andlise, determina os temas e dispensa justificativas particulares, por sua suposta obviedade. Invertendo os termos, cle faz com que seja a funcionalidade (improvisamente des- coberta) da “arquitetura tradicional" que venha justificar a necessidade da adogio da ar- quitetura moderna no Brasil: do estudo "menos apressado" da arquitetura colonial resul- tariam “observagtes curiosas... em apoio das experiéncias da moderna arquitetura, mos- Agradego a meu oriontador, professor Jorge Coli, a sugestio das idéias eentrais desse pardgrafo: 0 em- ‘préstimo do conceito de tradicional da antropalogia e a relagio deste com o primitivismo arquitet8nico do ppensamento de vanguarda. Estes questées abrem um importante veio de pesquisa na reconsideragio da historiografia nacional, que aqui no podernos abordar serio em suas linhas gerais. Em todo caso, 6 pre- cis pelo menos observar que essa historiografia, desde Liicio Costa (€ muito provavelmente também sob © influxo de Mério de Andrade) tem sido, e & ainda, muito mais "antropoldgica™ que historica. CCaphuto primeiro Lileto Costa 10 trando, mesmo, como ela também Se enquadra dentro da evalugio que se estava normal mente processando” (p. 91). Dé como exemplo, entre outros, 2 relagio dos vos com as paredes. Do século XVI ao infcio do XX, a partir da predominancia, nos primeizos tempos da colonizagéo, dos cheios sobre os vazios, a tendéncia da arquitetura era, “a medida, porém, que a vida se tornava mais ficil ¢ poli ‘ada... para abrir sempre e cada vez mais" (p, 92), em fungdo das caracteristicas do clima brasileiro. © "bom caminho" era ainda seguido, por volta de 1910, pelos mestres-de-obras: "Figis & boa tradigio portuguesa de nilo mentir, eles vinham aplicando, naturalmente, as suas eonsteugdes meio fel » todas as novas possibilidades das téenicas modernas, como, além das fachadas quase completamente abertas, as colunas finis- simas de ferro" (p. 92). A arquitetura moderna nfo faria sendo dar continuidade, anos mais tarde, a este caminho. O encontro (nem um pouco casual) do estudo da arquitetura “tradicional” com as experiéncias modernas confere legitimidade a ambas as partes, € vi- abiliza todo 0 programa de trabalho proposto por Lticio Costa. Entre 0 "velho ‘portugu' de 1910", que “guardou, sozinho, a boa tradigio" (p. 94), ¢ a arquitetura moderna dos anos 30, h4 um hiato que, por assim dizer, fica fora da histé- ria. A causa principal: “o imprevisto desenvolvimento do mau ensino de arquitetura — dando-se aos futuros arquitetos toda uma confusa bagugem 'téenieo-decorativa', sem qual- ‘quer ligago com a vida, e nfo se lhes explicando direito 0 porgué de cada elemento, nem as razies profundas que condicionaram, em exda época, 0 aparecimento de caracteristicas co- ‘muns, ou seja, de um estilo" (p. 93). ‘A arquitetura de todos os estilos nZo tinha, enfim, nenhum estilo. 5, portanto, ne- nhum lugar na histéria. Mero expediente decorativo de feigo erudita, a arquitetura das trés primeiras décadas do século ignorava todas as "imposighes da neva téenica", que os mestres-de-obras "vinham atendendo sem qualquer constrangimento" (p. 93). O movi- mento modemo, ao voltar-se contra © historicismo, devolvia a arquitetura & histéria de seu tempo — ¢ simultaneamente reatava o fio da funcionalidade que havia conduzido a arquitetura brasileira até a interrupedo académica das primeiras décadas do século. Caputo primeico Lifeio Costa un O mesmo raciocinio aplicads & pritica profissional, Liicio Costa transpunha &s tare~ fas da pesquisa hist6riea e da preservagio do patriménio. Ao lado da contribuigao ime- diata do estudo da “arquitetura tradicional" & arquitetura moderna, julgava imperativo que a pesquisa e a preservacio acompanhassem os mesmos princfpios da nova arquite- tura. Isto 6, julgava imperativo estas dedicarem-se exclusivamente & produgdo artistica que expressara as imposigdes de seu meio e lugar, ou ainda, que tenha originado um esti- lo. Na pritica, o método conduzia & supervalorizagio da arquitetura do periodo colonial ¢ a0 desprezo pouco disfarcado pela arquitetura dos estilos histéricos. ‘Sob um ponto de vista de todo parcial, estavam preparadas as condigdes para que, de ora em diante, a historiografia construfsse seu objeto segundo uma sequéncia evolu- tiva de estégios preparatérios & plena manifestagio da arquitetura modema — excluindo da hist6ria toda arquitetura nao enquadravel na categoria funcional de estilo. Em relagio ao texto de 1929, a novidade deste, ao lado do cardter programatico, esté na extensio da arquitetura “tradicional” além das fronteiras do perfodo colonial, fa- zendo-a chegar até a primeira década do século XX, pela mo dos mestres-de-obras por- tugueses. Mas jé no primeiro pardgrafo ha outra novidade, menos gritante: comentando a preferéncia pelo estudo, na arquitetura colonial, das igrejas e conventos, destaca a aten- Gio dedicada ao Aleijadinho, “euja personalidade tem atraido, a justo titulo, as primeiras atengies" (p. 86). A enfatica exclusio do artista mineiro, anos antes, do rol dos arquite- tos, dé lugar a uma discreta aprovagio. © profissional do patriménio histérico € mais condescendente que 0 arquiteto de 1929; ao menos para o Aleijadinho nao havia como nfo abrir excegdo no critério parcial imposto & historiografia. © problema seria encontrar um lugar adequado para ele, No Consideracdes Sobre Arte Contemporinea, de 1952, 0s critérios surgem suficientemente alargados para absorvé-lo, em meio a uma série de ou- tras reformulacdes ditadas pelos acontecimentos do final da década de 30 ¢ da década de 40, que rapidamente tornam obsoletas as primeiras formulagdes te6ricas de Lticio Costa, Isto ndo significa que ele as abandona; conservande seu principio basico — a funcionali- dade histdrica dos estilos — trata de ampliar-Ihes a abrangéncia, Capitulo primeine Liteio Costa 2 O titulo nao da uma justa idéia do conteido do artigo, Para fundamentar suas andli- ses da arte contemporanea, Liicio Costa reconstréi, em sentido evolutivo, praticamente toda a trajet6ria histérica das formas. As Consideragdes sio, com efeito, uma teoria completa, com inicio, meio e fim, da hist6ria da arte. Por que ir tio longe? O objetivo é exortar ao reconhecimento da “legitimidade da intengio plistica” na arquitetura, naquele momento “a tarefa urgente que se impée aos arquitetos € a0 ensino profissional" (p. 202). Se em aparéncia a atitude é oposta a anterior, a impressio € logo desfeita por sua defini- do da arquitetura: cla “construgiio concebida com a intenclio de ordenar plasticamente espago, em fungio de uma determinada époea, de um determinado meio, de uma determi- nada técnica e de um determinado programa” (p, 204). A expresso “intengio plastica’ percebe-se facilmente, est4 substituindo, com a mesma fungio, a palavra estilo, carre- gada de conotages académicas. A substituigdo, se tem o propésito de estabelecer distancia com 0 pensamento aca~ démico, nao esté também a salvo de mal-entendidos, como o da énfase exclusiva nos aspectos estéticos, em detrimento dos priticos. Ele mesmo encarrega-se de logo afastar essa possibilidade: "Por outro lado, a arquitetura depende, ainda, necessariamente, da épo- ca da sua ocorréncia, do meio fisico e social a que pertence, da féenica decoreente dos mate is empregados e, finalmente, dos objetivos visides e dos recursos financelros disponiveis para a realizago da obra, ou seja, do programa propasto” (p. 204). De sorte que a defini- ‘fo dada A arquitetura (situada no pardgrafo seguinte a este acima transcrito) engloba dois problemas distintos: os determinantes da época, meio, técnica ¢ programa, histori- camente inelutéveis, ¢ a “intencdo plistica", subordinada aqueles, mas arbitrada peto ar- quiteto, com relativa dose de subjetividade. ela a responsdvel pela manifestagao do “génio nacional” na arquitetura brasileira, descoberto pelo autor por volta desses anos, A par desse novo elemento, a sucesso histérica anteriormente montada é revista; ‘Licio Costa recorre agora a toda hist6ria da arte ocidental — methor: a uma esquemati- zacdo dessa histéria —, ampliando igualmente sua margem de ago. O processo evolu- tivo toma a forma de duas correntes simulténeas, opostas e contraditérias, que avangam Capito Liicio Costa B paralelamente. A simultaneidade origina um sem nimero de trocas, predominando ora uma ofa outra corrente, ou ora ainda equilibrando-se; no ponto final da evolugdo, reali- zando a sintese dos contrérios, esté, evidentemente, a arte moderna. Essa nova aborda- gem tedrica cai-lhe com perfeigio & necessidade de acomodar, num modelo sinico, tanto 68 antigos problemas (0 Aleijadinho e 0 barroco colonial) quanto os tltimos aconteci- mentos contemporaneos. Reconhecida a "legitimidade da pléstica", justifica-se “a classificagio tradicional [da arquitetura) na eategoria das belas-artes" (p. 204). Este passo fundamental conduz 0 arqui- tcto-tedrico aos primérdios de sua arte: *Constata-se desde logo a existéncia de dois concei- tos distintos e de aparéncia contraditéria a orienté-lo [o arquitelo]: 0 conceite orgéuico-fun- ional... € 0 conceito plastico-ideat... No primeira caso a beleza desabrocha, como numa flor, e 0 seu modelo histérico mais significative é a arquitetura dita 'gética'; ao passo que no segundo ela se domina e contém, como num cristal, ¢ a arquitetura chamada 'eldssica’ ainda 6, no caso, a mais eredenciada” (pp. 204-205). ‘Mas 0 recurso & histéria ndo pretende atr © arquiteto aos estilos do passado; a Tetomada da evolucdo cronolégica das formas-conceitos contraditérios visa tio-somente demonstrar que a arquitetura moderna opera justamente conci 40 dos contrérios, Fla E na fusiio desses dois con- seria, simultaneamente, ambos os conceitos e sua superag ceitos, quando o jogo das formas livremente delineadas ou geometricamente definidas se rocessa espontiineo ou intencional — ora derramadas, ora contidas —, que se escondem a seduglio e as possthilidades virtuais ilimitadas da arquitetura moderna" (p. 205). A causa da fuséo nao foi nem mais nem menos que a técnica construtiva contempo- tinea — mais exatamente 0 concreto armado, O esqueleto estrutural engendra tanto a liberdade de organizacao interna, permitindo o "eardter ‘funcional-fisioldgico' da planta, quanto a autonomia da fachada, que resulta "de natureza 'plistico-ideal” (p. 205). A re~ feréncia constante a Le Corbusier, por parte de Laicio Costa, comprova a origem, bastan- te clara, da idéia de arquitetura moderna em mente. A explicagio da sintese das formas através da técnica construtiva, apesar da desi- Capitulo primeiro Litcio Costa 4 gualdade dos termos, néo € de todo inesperada. Nos dois textos anteriores, A técnica era igualmente atribuido um papel central. Agora, porém, ela & algada A responsével tinica pela fusio de toda a historia da arquitetura. Ou ainda: condensada em dois conceitos es- senciais e opostos, 0 passado arquiteténico encontrava-se A espeia do concreto armado para, nos tempos modernos, efetuar sua resolugdo dialética, A substituigao de um evolucionismo linear por um evolucionismo dialético tem ind- meras vantagens. O nove modelo garante um lugar honroso ao gético, e, trazendo-o até arquitetura moderna, torna-a infinitamente mais flextvel que o permitide na definigio funcional anterior, muito mecfnica. Na arquitetura brasileira, resolve magistralmente a posig&o do barroco na coldnia, fazendo-o parte da evolugio dual da histéria. Melhor: exigindo mesmo sua presenga, para que, posto em oposigao a forma “pléstico-ideal” — seja das construgdes "tradicionais", seja também do maneirismo de “estito sébrio e de for- mas geométricas definidas", de “caracteristicas aristoerdticas", dos Jesuitas' — possibilite & arquitetura moderna do pafs produzir sua prépria sintese local. A explicagio desse passo exige que avancemos mais no texto. A dualidade arquiteténica prends-se, segundo Liicio Costa, “a uma dualidade for- mal mais profunda, que se manifesta igualmente nos demais setores das belas-artes" (p. 206), a saber, a "concepedo estética da forma” ¢ a “concepgéo formal dinmica"; a “estética” tipica da arte mediterrdinea, e a "dinamica” caracteristica do norte da Europa. Estes tipos ideais, porém, nem sempre se manifestam de forma pura: "A eada uma destas concepges formais, tanto a estatica quanto as diferentes modalidades da dinimica, corres- ponde portanto, originariamente, um habitat natural, muito embora as trocas culturals ¢ as vicissitudes préprias do desenvolvimento histérico as hajam seguidamente confundido a Ponto de se apagarem muitas veres os tragos de ligagio a esses fecos de origem" (pp. 206- 207). Para ficar s6 nos exemplos de nosso interesse direto, 0 “Renascimento significa o " Léoio Costa, "A Arquitetura dos Jesuftas no Brasil", in: Arquitctura Religiasa. Textos escothidos da Revista do iphan, Séo Paulo, MEC-Iphan/Fauusp, 1978, p, 43 (0 artigo foi originalmente publicado em 1941, no v. 5 da entio Revista do Sphan). A arquitetura dos Jesuftas, revalorizada por Liicio Costa uma década antes do *Consideragdes" (de 1952), funciona A maneira de um pélo “erudito” da forma “plistico- deel" na colGnia, de qual a arquitetura “tradicional” seria a expressio "popular". Capitulo primeira Lileio Costa 1s restabelecimento da concepgiio estitica da forma nos seus préprios dominios. E, portanto, a reagio contra os extravasamentos da concepgio dindmica ogival além do leito natural do seu curso” (p. 210); 0 barroco, segundo dé a entender o autor, resulta da contaminagao da arte renascentista pela concepco dindmica: “A viruléneia do slustramento da reagi bar- roca na Alemanha, na Tehecosloviquia, na Hungria etc., deveu-se 4 circunstincia de haver sido a corrente formal dindmica, latente nesses paises, muito bruscamente abafada pelo for- malismo estitico renascentista" (p. 212). Na linha de chegada, a arte moderna representa, como esperado, a sintese dessas concepgdes opostas. Voltemos ao Brasil "Quanto a arquitetura colonial da América espanhola e portu- guesa, cabe reconhecer que participa da corrente formal estética devido 2 tradicio mediter- riinea de suas culturas de origem, mas depende fundamentalmente da corrente formal dind- mica, j4 que seu desenvolvimento principal se enquadra em cheio no ciclo barroco dos sé culos XVII e XVIII" (p. 212). Sio as tinicas palavras sobre a arquitetura do periodo da colénia; nenhuma referéncia ao Aleijadinho, Mas & luz da teoria exposta pouco antes, a alusio é relativamente clara. A relacéio deixada em suspenso por Liicio Costa poderia ser desenvolvida da seguinte maneira: 1, nossa tradigo mediterranea de origem filia-nos & “concepgio estética", presente tanto na arquitetura "tradicional" quanto no (*erudito”) maneirismo dos Jesuftas; 2. paralelamente, a "concepgio dinamica” nao deixa de estar presente, pela sua introdugdo via barroco; 3. acontece que © barroco, na fonte, nao é a propria “concepgio dindmica", ¢ sim a influéncia dela sobre a estética; 4, no Brasil, 0 barroco defronta-se com a “forma estética” nacional (numericamente superior), que 0 acolhe pelo parentesco da procedéncia comum e se encarrega de corrigir-Ihe os excessos, ‘enquanto se deixa influenciar por ele (sem, no entanto, sait do horizonte da arte mediter- ranea — 0 que daria numa espécie de barroco funcional); 5. 0 encontro, ele mesmo um ensaio precoce de sintese histérica, é fecundo e dé no Aleijadinho, que assim retoma sem. restrigdes a primitiva posigfo de honra, que o autor de 1929 usurpara; € 6. 0s arquitetos modemos, voltando-se a seu passado, tinham, portanto, a thes guiar 0 caminho, versdes nacionais tanto da "forma estética” (a arquitetura "tradicional" e o maneirismo jesuftico), Captulo primeira Lifcio Costa 16 quanto da "forma dindmica* (0 barroco), de cuja sintese emergiu 2 arquitetura moderna de "espitito nacional”. Nada, no texto, torna evidente essa conjectura. Somos obrigados a vagar de publi- cago em publicagdo para montar 0 quebra-cabegas. Num artigo de 1948, escrito em res- posta a uma querela levantada pelo critico paulistano Geraldo Ferraz”, Liicio Costa com- para diretamente Oscar Niemeyer ao Aleijadinho, pondo o acento na marca nacional que ‘08 une: "No mais, foi o nosso préprio génio nacional que se expressou através da personali- dade eleita desse artista [Niemeyer], da mesma forma coma jf se expressara no séeulo XVII, em circunstincias, ulifs, muito semelhantes, através da personalidade de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho... hi muito mais afinidades entre a obra de Oscar, tal como se apresenta no admirivel eonjunto da Pampulha e a obra do Aleijadinho, tal como se manifesta na sua obra prima que é a igeeja de Sido Francisco de Assis, em Ouro Preto, do que entre a obra do primeiro ea de Warchavchick — o que, a meu ver, é significative" (p. 125), Por achar ou exagerado ou desnecessério para uma publicagéo de maior félego, Liicio Costa nfo retoma essa comparagio, formulada quatro anos antes, no Conside- rages, de 1952. Ela nos parece autorizar, porém, a completar as poucas observagies que ele dirige ao estudo das concepgies “estdtica" € “dindmica" da forma em terra brasi- leita. Se, em todo caso, esse exercicio de complementagao das lacunas deixadas (de pro- posito?) pelo autor em seu modelo histérico ndo for de todo convincente, ficz a0 menos como demonstragio da existéncia virtual da totalidade que pressupde. Com isso tocamos no lado mais visivel sedutor de tal construgio tedrica: seja na sua linha evolutiva linear, seja na (mais elaborada) dualidade “forma estética"-"forma di- ndmica", a histéria € pensada como um bem regulado mecanismo totalizante, onde cada parte concorre 20 sentido maior do conjunto, e nao existe seno em relacio a ele; 0 sen- Os dois artigos, o de Geraldo Ferraz, e a resposta de Liicio Costa, estio repraduzidos em Liicio Costa: Sobre Arquitetura, cit., pp. 119-128, Geraldo Ferraz. contestava 205 cariocas a atribuiglo do pioneirismo, na criagdo da arquitetura modems, & Lucio Costa, em favor de Warchaychick e Flavio de Carvalho. A resposta de Llcio Costa, como nio poderia deixar de ser, contestava a contestaco. ‘Caphuo primero Liicio Costa ” tido, néo por acaso, esté na validagéo histérica da arquitetura moderna brasileira, Uma vex montado, 0 mecanismo dispensa justificativas; impondondo-se por sua aparentemente irrefutdvel completitude, ganha vida prépria e gira em falso, tomando o lugar da histéria. Erigido em expressio andnima e imemorial do espfrito da nado, 0 modelo faz fortuna na historiografia, ¢ sobrevive intacto até hoje, A substituigdo da linearidade hist6rica dos artigos de 1929 e 1937 pelo novo cons- tructo de 1952 6 fruto, como deve ter ficado claro, da necessidade de acompanhar os acontecimentos arquitetOnicos desse meio tempo (vindo a0 encontro da necessidade de reconsiderar a situagdo do Aleijadinho). Apesar de reivindicar uma arquitetura moderna de "cardter local” de autoria coletiva, a ateng&o do autor volta-se quase exclusivamente & Oscar Niemeyer. A ele Liicio Costa credita niio apenas a realizacao dos principais edifi- cios modernos nacionais, como também uma influéncia decisiva nos rumos da arquite- tura. Em 1951, 0 autor escreve: "Assim como Anténio Francisco Lishoa, 0 Aleijadinho, en cireunstincias muito semelhantes, nas Minas Gerais do século XVII, ele [Niemeyer] é chave do enigma que intriga a quantos se detém na admiragio dessa obra espléndida e numerosa devida a tantos arquitetos diferentes" (p. 197). A maneira de um tiltimo exer- cicio de imaginagio, nao € de todo descabido propor que o modelo dual das concepgoes opostas-complementares tenha sido projetado para cutminar na obra de Niemeyer, a quem, cleito 0 novo Aleijadinho, teria sido predestinada a tarefa de empreender a sintese moderna das tradigdes locais. 2. A arquitetura académica segundo Liicio Costa Dito isso, pouco avangamos na andlise da arquitetura das trés primeiras décadas do século, nem, em especial, da arquitetura da Escola de Belas Artes. Na revisio de seu primeiro arranjo histérico, Liicio Costa sequer abre a possibilidade de reconsideré-la di- etamente. © novo modelo, vimos, tinha outros propésitos. Dele no provinha nenhuma alteragdo significativa na interpretagio dos fatos recentes, esquematizada no artigo de Captulo primeira Liteia Costa 18 1937: 1. a continuidade da arquitetura “tradicional” pela mao dos mestres-de-obras até a primeira década deste século; 2. a arquitetura académica “erudita” que a interrompe; e 3. a arquitetura moderna que restabelece a tradigdo “popular”, e elimina a falsidade dos estilos hist6ricos estrangeiros, Quando observamos que as décadas académicas ficam fora da histéria, foi no sen- tido de que d arquitetura do perfodo 0 autor ndo poderia aplicar © conceito de estilo tal e qual dele se servia. Isto esté vinculado.a outro tema tipico do XIX: a sensagio, comum nos debates arquitet6nicos oitocentistas, da inexisténcia de um estilo préprio do século, partidério do modernismo, atualizando o problema a seu modo, toma-o como prova da attificialidade do historicismo do século pasado, e transforma este no principal inimigo a nova arquitetura, Dupla artificialidade, pois 0 historicismo europeu tinha trajes muito carregados para o clima dos trépicos. Opondo-se ao livre curso da arquitetura moderna, © academismo estrangeiro era também obstéculo & afirmagio de uma arquitetura de ratzes nacionais, A medida, porém, que refinava seus instrumentos de andlise, ampliando progressi- vamente seu horizonte, Licio Costa punha em situagdo desconfortével a pura e simples rejeigéo em bloco das décadas académicas. De um lado, porque ele mesmo formara-se dentro dessa cultura: se para atingir um novo patamar de qualidade viu-se compelido a renegé-la, ela bem ou mal fora o fio condutor da alta tradigdo arquitetGnica européia. De. outro, porque o germe da nacionalidade ja se manifestava dentro do historicismo, ainda se de forma equivoca. Apesar da posi¢io marginal, havia meios relativamente honrosos de reincorporar & histéria a arquitetura académica, E mais: esta, como yeremos, acaba por transmitir aos modernos uma genealogia de sangue nobre. © Depoimenio de um Arquitero Carioca, de 1951", artigo no qual Lticio Costa ® Lucio Costa: Sobre Arquitetura, cit., pp. 169-201. © artigo, encomendado ao autor pelo Correio da -Manha (Rio de Janeiro) em comemorazio a0 cinquentensrio do periédico (a publicagio dala de 18,06 1951), fora intitulado “Muita construgio, alguma arquitetura e um milagre"; em 1952, é republicado com 0 titulo Arguitetura Brasileira, incluindo, nas péginas internus, 0 subtitulo Depoimento de um arquiteto carioca (Rio de Janeiro, Ministério da Educagio ¢ Sade, 1952, colegio Os Cadernos de Culturay, por fim, em Lacio Casta: Sobre Arquttetura, aparece simplesmente como “Depoimento de um arquiteto carioca”, titulo sob que ficard mais conhecido (embora um autor como Bruand faca um pouco Capitulo primeiro Lécio Costa 19 refaz 0 percurso da arquitetura carioca da primeira metade deste século, oferecia-the uma ‘oportunidade para rever a avaliagéo puramente esquemdtica das décadas académicas feita nos primeiros escritos, Ou ainda, considerando que 6 contemporaneo do Consideracdes, onde o autor repassava a hist6ria da arte numa perspectiva totalizante, © Depoimento era uma oportunidade para redefinir o lugar da academia nesse grande painel evolutivo. ‘Tudo indica que o apanhado da arquitewura carioca da primeira metade do século foi-the expressamente solicitado, e podemos supor que, no fosse a encomenda, nio seria sua intengo deter-se no assunto, De qualquer maneira, aproveitou para retomar os {alos relacionados com a introdugao da arquitetura moderna no Rio de Janeiro, ¢ enfatizar o sentido revoluciondrio desta em relagdo & arquitetura que a precedeu; este sentido, segun- do Ihe parecia, estava caindo no esquecimento", Entretanto, marcha dialética das trans- formages revoluciondrias, tragada no texto de 1952, d4 a vez A exposicao de aconteci- mentos (a tradi¢o académica) situados fora deste proceso, ou. melhor, que em grande parte Ihe foram um obstéculo, Por isso o instrumental do modelo apresentado um ano de- pois nem é mencionado, a nao ser na forma de alusdes, tanto no trecho em que compara Niemeyer ao Aleijadinho (na frase pouco antes transcrita) quanto na introdugao, quando contrapde a contensio plistica do neoclassicismo de Grandjean & dindmica do barroco. A arquitetura dos estilos histéricos é reservada outra Idgica de funcionamento, denominada “contraditéria", e em principio imune a qualquer tendéncia evolutiva, Mas ela também ‘comporta, em meio As idas e vindas do artificialismo académico, um qué de evolugéo das. formas. A férmula, agora, fica por conta da introdugdo de dois niveis de transformagdes estilisticas: as transformagées evolutivas ¢ as revoluciondrias. As tiltimas, é evidente, va- lem para os perfodos de criago dos verdadeiros estilos; as primeiras, para aqueles em que essa criagio est4 ausente — como nos anos de vigéncia do academismo. As transformagées evolutivas, de sua parte, so "por veres radi is" (p. 180): eis do confusio e cite ora ura ora outra das duns times publicagses; veja-se as notas das paginas 36 © 37 do Arquitesura Contempordnea no Brasil, Sdo Paulo, Porspectiva, 1981). ™ Talvez essa observacio do autor se dirigisse & Paulo Santos. Este, nesses mesmos anos, advogava a influ- Zncia do neocolonial sobre @ arquitetura moderna, provavelmente dando a impressio de. continuidadle enlre 0 estilo académico ¢ a nova arquitetura (no préximo capitulo voltamos a0 assunto), Caputo primeito Licio Costa 20 que, se em principio a Iégica de fuiicionamento dos estilos hist6ricos & "contraditéria", a radicalidade de algumas de suas manifestagdes aponta para outra dirego. De um lado esté a arquitetura moderna, revoluciondtia, sem vinculo aparente com o passado. De outro, © historicismo, que, contrariamente & classificago anterior em um bloco unitério € homogéneo, apresenta situagdes radicais: momentos privilegiados em que a arquitetura dos "falsos estilos" (europeus) afasta-se de si rumo & revolugdo formal moderna (e brasi- leira). Esta distingGo the € absolutamente fundamental, e ele iri estabelecer uma verda- deira hicrarquia da produgéo arquiteténica das trés primeiras décadas do século, qualifi- cando as solugdes segundo 0 maior ou menor cuidade no uso dos estilos. Essa nova perspectiva reaviva o olhar critico do académico da déeada de 20"; a andlise de Lticio Costa, embora dependa dos interesses imediatos do arquiteto moderno, no elimina de todo os critérios da critica académica contempordnea. Passando em revis- tao historicismo a partir de um principio evolutivo (0 andar histérico das formas na dire- gio da modemidade), o autor inadvertidamente langa uma nova luz. (nova em relacao a suas proprias afirmagdes anteriores, de sentido oposto) sabre os pontos de contato entre a academia e a nova arquitetura, Liicio Costa abre 0 texto evocando a instalagdo da Academia de Belas Artes, na primeira metade do XIX, € © inicio do ensino de arquitetura no pais, por Grandjean de Montigny: “Integrava-se assim, oficialmente, a arquitetura do nosso pais no espirito mo- derno da época, ou seja, no movimento geral de renovagio inspirado, ainda uma vez, nos ideais de deliberada contensio plastica préprios do formalismo neoetissico, em contraposi- ‘lo, portanto, ao dinamismo barreco do ciclo anterior” (pp. 169-170). A evocagdo néo é gratuita; visava relacionar o acontecimento a outro, este ja no século XX: “Para que a divida contraida com 0 velho professor pudesse ser to fiel ¢ honrosamente saldada no De sua formatura, em 1922, até pouca antes de 1930, Lifcio Costa projetou-se como um dos principais representantes da arquitetura académica no Rio de Janeiro. Sua produgio nessa década, ainda nio estu- dada, parece ter sido abundante; em fungdo da posterior virada modemnista, prefere-se esquecé-la, a ndo sera parcela em neocolonial, evidentemente por seu teor nacionalista. Cephuto primeira Litcio Costa 2 prazo yeneido de um século — muito embora as vicissitudes decorrentes da incompreensiia e da hostilidade enfrentadas fossem porventura maiores — tornou-se, porém, necessiria a intervengdo de outro francés, mas, este, autodidata de genio: Charles Edouard Jeanneret, dito Le Corbusier" (p. 170). Apesar das hostitidades enfrentadas, ambos conseguem, no final, impor sua agéo modemizadora. Para que a histéria fosse obrigada a se repetir, algo necessariamente ocorrera no intervalo entre um e outro, criando um obstéculo ao livre curso da moderni- zagdo. A nova arquitetura, fruto da intervengdo revolucionéria de Le Corbusier, fora obrigada a combater a cultura precedente. Nada menos correto, portanto, que encarar “essa floraciio de arquitetura [moderna] como proceso natural" (p, 173). Este, em sintese, o argumento introdutsrio. Escrevendo na confortével posigao de quem presenciava a avassaladora afirmagio do movimento moderno, o critico (que se ‘empenhara em desacreditar sua prépria heranca cultural para abrir caminho ao moder- nismo) no desejava deixar no esquecimento as dificuldades ¢ resisténcias & renovagio da cultura arquitetnica, Daf a afirmagdo que o “desenvolvimento da arquitetura brasileira ‘ou, de modo mais preciso, os fatos relacionados com a arquitetura no Brasil nestes tltimos cinquenta anos, nao se apresentam concatenados num processo ligico de sentide evolutivo; ‘assinalam apenas uma sucessiio desconexa de episédios contradit6rios, justapostos ou simul- {ineos, mas sempre destitufdas de maior significagiio e, como tal, nio constituindo, de modo algum, estégios preparatérios para o que haveria de ocorrer" (p. 174). andamento da hist6ria recente é agora bem mais distinto, dentro da alta tradiglio disciplinar: I. a introdugdo do neoclassicismo modemizador, acompanhado do inicio do ensino de arquitetura, ambos por Grandjean; 2. a agio civilizadora, ao longo do século XIX, tanto do académico francés quanto, de maneira geral, da arquitetura neoclassica; 3. a interrupgio do proceso nas primeiras décadas do XX; e 4. a reposicao da Tinha mo- dernizadora pela agéo de Le Corbusier € seus disefpulos brasileiros. De Montigny a Lucio Costa (passando por Le Corbusier): eis a (nobre) linhagem histérica da arquitetura moderna no Brasil. B grande a coincidéncia com a genealogia Lio Costa 2 Capitulo pri “revoluciondria" estabelecida por Emil Kaufmann no seu De Ledoux a Le Corbusier — com a diferenca fundamental que 0 autor brasileiro reserva a si mesmo (e a seu antigo aprendiz ¢ principal colega, Niemeyer) 0 ponto culminante da revolugio arquitetOnica brasileira", A continuidade da “tradigao popular”, da colonia ao século XX, postulada nos primeiros escritos, d4 lugar as antecipagies revoluciondrias operadas no ambito de uma outra tradigio, ilustrada e de longa data (Inaugurada pela cultura arquitetOnica do humanismo): © papel intelectual de vanguarda reivindieado pelo arquiteto na organizagao fisica e social do mundo moderno. Em outros termos, a até entiio banida histéria da ar- quitetura (em favor do conceito de tradicional emprestado da antropologia) ressurge para constituir, no pats, a mais alta linhagem disciplinar — interpretada por Liicio Costa & maneira de uma histéria feita de vanguardas precursoras”, ou ainda, como uma espécie de "tradiggo do novo" a que esté eternamente condenada a arquitetura. Grandjean estivera ausente dos escritos anteriores, ¢ mais ou menos em seu lugar ilidade cencontrévamos arquitetura "tradicional", Nao h4, porém, qualquer incompatit entre ambos (para 0 autor, claro): revolucdo ¢ tradi¢éo seguem no mesmo sentido. A presenca do neoclassicismo “erudito" nao altera em nada o esquema prévio; além de sti- mo contraponto a0 “dinamismo” do barroco, sua agiio modernizadora por alto vinha ao encontro da modernizagdo "popular" dos mestres-de-obras, estabelecendo inclusive tro- cas reciprocas: “J ento [infcio da era republicana] se haviam definitivamente perdida tanto © apego As formas de feigio tradicional, quanto a fecunda experigneia neoclissiea dos nume- "© A coincidéncia foi notada por Jorge Coli, que me chamou a atengio para ela, O texto original de Kauf- ‘mann (em alemio), 6 de 1933, As tradugdes italiana e francesa datam, respectivamente, de 1973 © 1981 Nada indica que Liicio Costa 0 conhecesse quando escreveu o "Depoimento”, em 1951, Veja-se, no i indebo- entanto, 2 seyuinte passagem de Kaufinann: "Via via esso [0 principio da “suionomia arquitetinien"l fisce sempre pi; verso la fine deltOttucenlo, ritorna ad essere quasi ignorato e, dopo un nuova cehiamata ‘Sezession’ per in sua tendenza prevalentemente negativa, riesce a prendere definitivamente il sopravvento” (Da Ledoux a Le Corbusier. Origine ¢ sviluppo dell‘architertura autonoma, Milo, Gabriele Mazzotta, 1973, p. 111). A parto a teorizagio da “autonomia arquitetOnica", inexistente em Licio Costa, hé muito em comum entre os dois aufores: a untecipegto dx nova arquitetura do séeulo XX pelo neoclassicismo modemizador, representado por Ledoux ¢, no Brasil, Grandjean; o dectinio da wcio renovadora no final do século XIX (aqui prolongando-se nas txés primeiras décadas do século XX); ey finalmente, a intervengio das vanguardas contemporineas, especialmente Le Corbusier, completando a revoluglo neoclissica — no Brasil comptetad pelos disepulos locais do mestre franco-suigo. "A observatio de Jorge Coli. Caphuto primero Liicio Cost 2 roses diseipulos de Montigny e, de permeio, a modaltdide peculiar de estilo propria do casamento dessas duas tendéncias opostas” {p. 179). A pritica ditada pelo bom senso, 0 neoclassicismo, presume-se, contribufa com a ditada pela razo. Para explicar a auséncia de "maior significagao” da arquitetura nas primeiras déca- das do século, Liicio Costa recorre as transformagdes econdmicas ¢ sociais do final do Império e inicio da Repiiblica: estas tormam obsoleto o historicismo académico, O pri- meiro fator, exclusivo do pais, esté na aboligfo da escravatura; 0 segundo, de Ambito mundial, esta na revolugéo industrial. Somados, vio dar na alteragio dos programas (principalmente da habitagio) ¢ no surgimento de novas téenicas construtivas. De um lado, a auséncia dos escravos (com a decorrente necessidade de se facilitar 0 servigo do- méstico), a exigir a otimizago da casa, ¢ também o crescimento das cidades, a exigir a coletivizagio do morar; de outro, 0 concreto armado, permitindo a satisfagio dessas exi- géncias, Trata-se, enfim, das imposicdes histéricas que passavam despercebidas aos ar- quitetos académicos; estes teimavam em nao Ihes dar a devida atengio, e insistiam nos exercicios formais (*técnico-decorativos") dos “pseudo-estilos". Sua sobrevivéncia, nfo obsiante, € agora considerada também ela um fato histé- rico; é esta a novidade do texto. A nova explicagao estd, vimos, na “distingio entre trans- formaghes estilisticas de cardter evolutivo, embora por vezes radicais... e, portanta, de su- perficie”, ¢ transformagdes de “feigio nitidamente revoluciondrias, porquanto decorrentes de mudanga fundamental na técnica da produgio” (pp. 180-81). As primeiras acontecem no interior de um “mesmo ciclo econdmico-social" (p. 180), quando “o ‘gosto’, ja cansado de repetir solugdes consagradas, toma a iniciativa e guia n intengio formal no sentido da re novagae do estilo" (p. 181); nas segundas, "é a nova técnica ¢ a economia decorrente deta que impoem a alteragio e Ihe determina o rumo — 0 gosto aeompanha" (p. 181). A vincu- lacdo dircta do "gosto" & economia, com base em um determinismo econdmico de vaga extragio marxista, legitima historicamente as duas categorias formais antitéticas, evolu- ciondria e revoluciondria: se a dltima depende de transformagdes na técnica, na auséncia destas, ou nos perfodos de transicdo, a primeira nfo deixa de ter seu valor. As décadas CCupftule primeizo Liicio Costa 4 académicas, apesar de tudo, ganham razio prépria, Os anos 1900-30 no Brasil sio ainda uma fase de transi¢do para a nova técnica: 0 movimento evolutivo das formas, e princi- palmente a "radicalidade" de algumas solugGes, fazem parte da légica histérica do perio- do, explicando a persisténcia das “falsos-estilos”. Uma vez. retirado do limbo histérico — mas para melhor vatorizar a arquitetura moderna — o historicismo académico pode, enfim, expor-se nas suas mais variadas faces. A volta & histéria pela porta dos fundos nfo the garante, claro, tratamento preferencial; a ocasido, porém, & suficiente para que o Liicio Costa da década de 20 em alguns momentos volte A tona e manifeste o olhar pro- fissional, berm como as preferéncias pessoais, que norteavam © trabalho do entio arqui- teto de filiagao académica, Na “sucessiio desconexa de episédios contraditérias” (p, 174) € possivel distinguir dois niveis da atividade profissional. H4 um nfvel mediano, onde se acomoda, de ma- neira quase completamente indiferenciada, 0 grosso da produgio das trés primeiras déca- das do século, E outro superior, da diferenciagio, englobando as realizagdes qualitativa- mente memordveis, normalmente de arquitetos, ou antes, dos arquitetos de formagio Beaux-Aris. © desconexo € 0 contradit6rio das realizagSes académicas estio na auséncia de uma sequéncia linear e evolutiva claramente discernivel ao tongo do tempo. Isto nfo significa, entretanto, que o autor negue ao perfodo todo sentido evolutivo; hid uma cera, ordem, no explicitada, na cronologia. Os anos 1900-30 estilo visivelmente organizados em dois grandes blocos de acon- tecimentos. © primeiro corresponde mais ou menos as duas primeiras décadas; 0 segun- do, & terceira década do século, De modo exato, o primeiro bloco vai da abertura da ave- nida Central (1903-1906) & Heitor de Mello, morto em 1920; o segundo, da diversifica- io estilistica do pés-gucrra ao neocolonial (supostamente a tiltima manifestagao acadé- mica antes da renovagao de 1930). Nota-se, nos dois blocos, uma articulagdo muito se- melhante, que parte de um panorama geral, tanto as "galas de um auléntico espeticulo” (p. 181) da avenida Central, quanto a "feira de cenirios arquitetGniens improvisados* (p. Liscio Costa 25 Capitulo pri 185) do pés-guerra, ¢ chega a um t6pico especifico, seja o "bom gosto e ‘savoir faire” (P. 183) de Heitor de Mello, seja 0 “artificioso revivescimento formal de nosso préprio passado” (p. 185) do neocolonial. No plano do panorama geral, ha um.evidente enca- deamento entre os dois blocos, isto &, hd uma sucesso de episédios de caracteristicas semelhantes percorrendo todo 0 perfodo, que 0 autor denomina, em conjunto, "ecletismo arquitet6nico". Este constitui uma espécie de pano de fundo dominante, contra o qual essalta uma arquitetura de excecdo. No plano das realizagdes de qualidade, as relagdes entre 08 dois blocos sio menos evidentes: no primeiro figura solitariamente 0 académico Heitor de Mello, com seus estilos “europeizantes"; no segundo, 0 movimento neocolo- nial, de extragdo nacionalista (talvez este seja um exemplo do que o autor tinha em men- te quando disse referir-se a acontecimentos justapostos, desconexos, sem “sentido evolu- tivo"). A conexdo, todavia, nao est no parentesco das formas, mas no grau de interesse ¢ profundidade do conhecimento do passado arquitetdnico, europeu ou do pafs, demons- trado pelo dominio dos estilos, Heitor de Mello ¢ 0 neocolonial destacam-se, veremos os motivos, por sua relagéo aprofindada com a historia. Quanto a Heitor de Mello, ¢ a poucos outros, © autor o afirma quase diretamente; no caso do neocolonial, ele nao é nem um pouco claro, e precisamos reconstituir 0 papel que confere ao movimento para 0 percebermos. Em suma, os niveis da atividade profissional distinguem-se ou por uma relagdo su- perficial com a histéria, no nivel mediano do “ecletismo", ou por uma relagio aprofun- dada, no nfvel de excegdo. Ao pano de fundo do "cendrio arquiteténico", comum a todo © perfodo, correspondem irrupgées descontinuas de uma arquitetura fundada no respeito a sua propria hist6ria, vale dizer, & tradigao disciplinar, que a constitui enquanto tal. ‘Num caso a tradi¢ao européia, a ser paradoxalmente combatida para poder aqui frutifi- car; no outro, a tradigfo nacional, revivida de modo ainda artificioso, a ser verdadeira- mente descoberta para engendrar uma arquitetura moderna “auténtica™. "© Agracloga essa precioxa observagio a Jorge Coli. Ela &, sob muitos aspectos, decisiva para a compreensio {do pensamento de Luicio Costa, Muito de minka Ieitura, daqui em diante, dela depende diretamente. ‘Capitulo primeira bicio Costa 26 Para caracterizar a arquitetura carioca dos primeiros anos do século XX, Licio Costa recorre a um episddio de iniciativa estritamente administrativa: a abertura da ave- nida Central, na gestéo do engenheiro Francisco Perei Passos, prefeito do Rio de Janei- ro entre 1902 e 1906. Embora ndo faga mencdo a nitida desvantagem dos arquitetos na participagio dos trabalhos, ele sugere que seus colegas do passado néo se diferenciavam, quanto A qualidade arquiteténica, dos empreiteiros ¢ engenheiros envolvidos na constru- ‘do dos novos edificios da avenida — a excegdo do espanhol Morales de los Rios, forma- do pela Ecole des Beaux-Aris de Paris, a quem destaca por suas qualidades excepcionais. ‘A ordem da frase parece refletir a ordem do prestigio profissional da época (em sentido decrescente): primeiro so lembrados os “conceituados empreiteiros coustrutores, de prefe- réncia italianos, eomo os Januzzi e Rebecchi", depois os “engenheiras prestigiosos que dis- punham do servigo de arquitetos andnimos... e, Finalmente, arquitetos independentes a co- megar pelo mago Morales de los Rios, cuja versatilidade ¢ mestria nio se embaragavam ante as mais riadas exigéncias de programa, fosse a nobre severidade do préprio edificio a Escola — entdo dirigida por Bernardelli ¢ exemplarmente construfda, embora hoje, internamente desfigurada —, ou o graciose Pavilho Mouriseo de (io apurado acabamento e melancélico destino” (p. 182). Nestas condigdes, a renovagio do centro do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século, dera oportunidade “a consagragio do ecletismo arquitetOnico, de fundo académica, entio dominante" (p. 181). "Ecletismo" no tem aqui nenhum sentido preciso; mais pase- ce sugerir superficialidade e falta de rigor no trato dos estilos histéricos, trago que seria ‘comum aos diversos profissionais nele agrupados. E mesmo Morales no escapa a inclu- so nessa corrente principal: a despeito da "nobre severidade" (classica, enfim) da Escola de Belas Artes, a inspiragdo mourisca faz as vezes de contraponto exdtica e extravagante, demonstrando, podemos supor, mais a total liberdade ("‘versatilidade”) que o respeito no confronto do arquiteto com a histéria, Melhor: com os estilos dos grandes momentos da histéria da cultura curopéia, expressio fiel (funcional) dessa mesma tradigao. Capita prieeieo Liicio Costa a "Enquanto tal ocorria nas direas novas do centro da cidade... nos bairras elegantes de Botafogo e Flamengo... ja comegaya a prevatecer nova orientagio" (p, 182). A margem da tendéncia dominante, alguns profissionais empenhavam-se seja na atualizagao da técnica construtiva, seja no bom gosto e comedimento no uso dos estilos. Entre os primeiros, como nao poderia deixar de ser, estio os mestres-de-obras, antecipando “solugies de acentuado sentido moderno, tais o envidragamente dos ‘Jardins de inverno', as varandas es- beltas e as escadas externas vazadas" (p. 182); os segundos subdividiam-se em dois gru- pos, “ambos de feigio erudita: de uma parte, numerosos exemplos do mais apurado e sobrio ‘art-nouveau'.,. e, de outra parte, toda uma sequénci de edifieagdes proficientemente compostas nos mais variados estilos histérics, do gético As vérias modalidades do renascimento italiano ou francés... bem como a versio Beaux-Arts dos estilos Luis XV e XVI" (pp. 182-183). Para Laicio Costa, portanto, a maior ou menor propriedade no uso dos estilos (des- contado © papel dos mestres-de-obras, cuja ago modernizante thes garante um lugar 3 parte na hist6ria) 6 um instrumento para hierarquizar a qualidade do trabalho entre os profissionais. © "ecletismo", também ele "de fundo académico", nfo recebe a designa- Gio de “erudito"; isto, com toda probabilidade, diz respeito & maior presenga, nos traba- Ihos da avenida Central, de engenheiros e empreiteiros. De seu lado, os movimentos de feigio “erudita" so compostos quase exclusivamente por arquitetos. Estes iltimos, a0 contrétio da “série de editicagdes de vulto ¢ aparato" (p. 182) dos primeiros, produzem “toda uma sequéncia de edificagdes proficientemente compostas nos mais variados estilos historieos", vale dizer, a0 contrério dos “ecléticos", dominam o oficio, e dele se desincumbem com discernimento e propriedade, “desde o ‘rendu’ dos projetos até 0 ‘iltimo pormenor de acahamento" (p. 183). A superioridade dos arquitetos, sem ser em nenhum momento tematizada, vai aos poucos se manifestando, distinguindo-os em relagdo & produgdo mediana, de aparato, do “ecletismo... entido dominante". A distingdo, a rigor, ndo deveria ter consequéncias préticas, j4 que, como suficien- temente sublinhado, o progresso estava mesmo nas méos dos mestres-de-obras. Mas a Capitule primeiro Lisio Costa 28 lista dos estilos histéricos “eruditos" evidencia uma nova preocupacio do autor: gético, renascimento italiano e francés, ¢ os Luises XV e XVI formam uma espécie de antologia dos estilos maiores da arquitetura européia, do final da antiguidade ao século XVIII (ex- cluindo, sintomaticamente, 0 XIX) — uma pequena histéria, muito pessoal, da tradigzo arquitetonica, A eles soma-se, no limiar do século XX, a sobriedade do art nouveau, prenunciando os novos tempos, Os “ecléticos", presumimos, nem de longe sonhavam em reconhecer ¢ filiar-se a essa longa tradigiio da hist6ria disciplinar. Nio h4, agora, uma palavra a apontar a complementaridade entre a arquitetura “erudita® e a "popular", como no caso da influéneia de Grandjean. Entretanto, 0 cuidado “até 0 Ultimo pormenor de acabamento”, a correcdo estilistica, a sobriedade, © conheci- ‘mento profundo da prépria tradigio histérica, etc., tudo concorre para que aqui a arqui- tetura académica afaste-se © maximo possivel do desvio decorative & aproxime-se das necessidades priticas ¢ de verdade estilistica exigidas por sua época. Em s{ntese, apesar dos pesares — sem sair de seu horizonte cultural — os arquitetos enraizados na histéria nao eram impermedveis ao progresso e, sobressaindo-se em relago a seus colegas, timi- damente (com os meios que thes cram préprios) punham o academismo "erudito" na di- regio dos novos tempos. Se 0 raciocinio esta correto, a reviravolta introduzida por Liicio Costa é grande. De meros reprodutores de um passado superado, os arquitetos (melhor: parte deles) ganham vida e sto capazes de, & sua mancira, reagir aos acontecimentos contempordneos. E, se nao The tomam a frente, néo seria por falta de iniciativa, mas sim por falta de meios ade~ quados ou por falta de uma clara compreensfo do caminho a seguir. Faltando-thes um ¢ outro, por deficiéncia de formacio, nfo podem, portanto, ser responsabilizados, e seu profissionalismo ¢ a capacidade de reconhecer sua propria tradigao disciplinar devem ser ressaltados, uma vez que facilitam ¢ até preparam 0 caminho das geragdes posteriores. Quem sio, entio, estes arquitetos? Dos “numerosos exemplos do mais apurado e sébrio ‘art-nouveau', Liicio Costa aponta somente duas residéncias, uma das quais “ainda ostenta no cunhal o timbre do ‘Caphulo primeire Lilo Costa 2» arquiteto Silva Costa" (p. 183). Deste no temos qualquer informagio". A sequéncia da apresentacéio dos estilos hist6ricos parece refletir também uma esca~ la de aperfeigoamento cronolégico das formas. O gético € apenas anunciado, sem men- gio a nenhum exemplar em especial; das “varias modalidades do renascimento italiana ou francés", 9 autor nomeia duas residéncias, sem indicar a autoria nem comenté-las; no ponto de chegada esta a "versio Beaux-Arts dos estilos Luis XV e XVI, reveladora, desde 0 ‘rendu’ dos projetos até o wiltimo pormenor de acabamento, de uma exemplar conseiéneia profissional académica” (p. 183). O maior arquiteto dessa primeira fase arquitet6nica do século destaca-se justamente pelo uso dos estilos franceses: "Periodo este mareado princi palmente pela personalidude de Heitor de Melo, cujo hom gosto e ‘savoir faire’ tio bem se refletem no pequeno prédio Lués XV da Avenida Rio Branco, 245, ou na sede social do Jo- ckey Club, anteriormente ao acréscimo de 1925 que tanto a desfigurou, ¢ ainda, no Lufs XVI modernizado do Derby Club contiguo" (p. 183). © “tio simpstico atelier dos irmas Bernardelli* (p. 183), que Paulo Santos pretende ter sido obra do (empreiteiro?) Sylvio Rebecchi, em "linhas Morentinas"™, entra, no De- poimento, como exemplo do “renascimento italiano". Supomos que a “casa ainda exis- tente A esquina das avenidas Flamengo ¢ Liga¢io" (p. 183) entre como exemplo do "renas- cimento francés". Mesmo sem a indicacdo de qual é qual, a respectiva ordem dos exem- plos no tex: indica a correspondéncia. Esta ditima, hoje tombada pelo patriménio muni~ cipal, é de autoria de Heitor de Mello; é dificil aceitar que Liicio Costa nao © soubesse, € fica a impressio que a auséncia deste dado nio foi tanto um descuido, € sim o deliberado propésito de enfatizar a preferéncia do arquiteto pelos Lufses XV © XVI. ‘A excecdo arquitetOnica das duas primeiras décadas resume-se, na prética, a Heitor de Mello, Elevando-se solitariamente, representa o reduto do "bom gosto” desconhecido ou desprezado pelos “ecléticos", ou ainda, o ténue fio de ligagdo entre a arquitetura aca- © Quando Paulo Santos ¢ Bruand se referem a Silva Costa, o fazem a partir desse comentério de Licio Costa. As residéncias que se supSe tenham sido dele j6 foram demotidas; no sabemos de nenuma pesquisa que delas confirms tanto a autoria quanto a fiiagio art nowveau. ® Paulo F. Santos, Quatro Séoulos de Arquitetura, Rio de Janeiro, Instituto dos Arquitetos do Brasi 1981, p85. ‘Capitulo primeiro Lilcio Costa 30 démica e grande tradigdo disciplinar. Sua atuagio néo encontrou seguidores & altura, fi- cando sem continuidade imediata: “na obra posterior de seus varios colaboradores, 0 pala- dar inconfundivel se perden” (p. 183). Seu exemplo, deduz-se, s6 seria compreendide pe- las geragdes futuras, através nao s6 das obras, mas também (¢ talvez p cipalmente) do ensino, tanto na Escola de Belas Artes quanto no atelié, experiéncias afinal vividas pelo proprio Lticio Costa”. A ligéo, um tanto paradoxalmente, nfo poderia ser recebida por quem o seguisse, mas por quem se rebelasse contra ele, ou antes, contra a cultura acadé- mica, Esta, afinal de conias, era estrangeira, ¢ a criagdo da arquitetura “local” implicava na nacionalizacio da meméria disciplinar, um passo (quase) Gbvio mas complicado. Os sucessores mais perspicazes do arquiteto (entre eles 0 autor) tinham pela frente a tarefa de combater os estilos europeus, obstculos tanto ao modemo quanto ao nacional. Nao por acaso, antes da chegada do modernismo, a licdo ainda académica de Heitor de Mello precisava ser interpretada em chave nativa, para sé ento dar lugar & nova arquitetura, Buscando no passado da nagao a nossa prépria linhagem, o neocotonial pode reivindicar, por linhas tortas, a heranga da arquitetura de Heitor de Mello, Lticio Costa jamais o afir- maria com todas as letras: 0 movimento nacionalista académico, afinal, nao encontrow nossa "verdadeira" tradigdo, acessivel apenas aos moderos. Porém, a perfeita simetria entre os dois blocos em que se subdivide a arquitetura das trés primeiras décadas do sé- culo parece vincular diretamente um e outro: a volta ao passado do pafs tem 0 peso do enraizamento histérico de um Heitor de Mello, apresentando-se como alternativa & su- perficialidade do “cendrio” da década de 20. O empenho no teflorescimento da tradigio local, mesmo se artificioso (como faz questio de sublinhar o autor), era culturalmente relevante (como ele prdprio deixa subentendido). A posicio relativamente secundaria de Morales de los Rios contrasta com o desta- ” £ importante notar que Laicio Costa, além de provavelmente ter sido aluno de Heitor de Mello, trabalhou fem seu escrito, Ele conta (na citads entrevista & Folha de Sto Pauto) que comenou a trabalhar “as fr- ‘ma Rebecehi, quando ainda estava eursando 0 tereeiro ano da escola, Gabavn 300 mil is por mes. Mas 1- zo passe para o exeriério do dr. Heitor de Mello, que Fuziaprojetos construgBes e ocupava todo um andar {da 74a da Quitaads, Com a morte do dr. Iletor de Mello, seus dois s6cos, Meméria e Couchet, assuriram a firma. Meméeia Gta wis anngo, chamado Rodolfo Chambelland, que desejaa ter uaa easa eu estilo laghks ta avenida Prulo de Prontn. Essa casa seria 0 mew princiro projeto arquittinico”. Caphulo primeiro Lice Costa ” que conferido a Heitor de Mello. Se o primeiro estd listado do lado dos *ecléticas", ele tem o titulo de “mago", por sua "versatilidade e mestria’. A destreza, apesar de transpa- recer um qué de virtuosismo maneirista, poe Morales em nitida vantagem pessoal, pois seus titulos de "mago"e "mestre* so exclusivos e intransferiveis. Porém, no confronto histérico, como vimos, a posicao inverte-se, para prevalecer o profissionalismo de Heitor de Mello, Por uma inexplicével alquimia, 0 discfpulo®, mesmo nfo superando as quali- dades do mestre, vale mais que ele. Isto ¢, inexpticdvel do ponto de vista do confronto das respectivas obras, Acontece que, para Licio Costa, a raziio da histéria ¢ implacdvel e condena os que dela se afastam, enquanto sempre reserva lugar aos que a ela se alinham (mesmo se na ordem inversa das qualidades pessoais): aqui combinam-se o jufzo do aca- démico de ontem, que nao pode deixar passar despercebida a importancia de um Mora- les, © a parcialidade da interpretagio do arquiteto moderno. Se Lticio Costa erra no varejo, acerta no atacado. Os dois so os principais profes- sores da Escola de Belas Artes nas primeiras décadas do século, e estiio entre os maiores profissionais de seu tempo, no Brasil, Juntos, formaram toda uma geragio de arquitetos bem treinados no método Beawr-Aris, e, direta ou indiretamente, alguns dos futuros arquitetos modernos, No entanto, em nenhum momento ele sublinha esse trago comum a ambos, a atuacao didatica, ¢ nem mesmo toca na relago mestre-disefpulo que os une, O vineulo, entretanto, & obvio demais para que fique esquecido, Morales chega ao Brasil em 1890, ja com larga experiéncia; Heitor de Melio, mais Jovem, serd seu aluno nos titimos anos do século XIX, formando-se na Escola por volia de 1898, Em termos estifsticos, a formagao do brasileiro, se ndo se deve exclusivamente ao ex-aluno da Ecole des Beaux-Arts de Paris, deve-se em grande parte a ele. Suas prin- cipais fontes de aprendizado, 0 professor europeu ¢ os livros ¢ revistas também euro- peus, Ihe permitiam um acesso mais ou menos aprofundado, mais ou menos atualizado, & cultura arquitetonica evropéia, mais exatamente & francesa. Com a grande diferenga, po- * No Catélogo da VU Exposicio Geral de Belas Artes (Rio de Jancito, 1900), Heitor de Mello ¢ apresen- tudo como “aluno do engenhsiro-arquiteto Morales de los Rios". Captulo primeiro Lileio Coa 2 rém, que Morales formara-se in loco e o brasileiro recebia sua cultura de segunda mao, via professor ¢ livros; no ha referéncia, de nosso conhecimento, de alguma viagem de de Mello & Europa. Seu aprimoramento seré sempre livresco, com a perceptivel tendéncia a privilegiar, para 0s edificios de maior importincia, os grandes estilos france- ses, € também a restringir 0 uso dos estilos pitorescos aos casos de menor importincia; cle suprime completamente os estilos orientais, largamente utilizado pelo ex-professor”. Uma répida comparago mostra que o aluna brasileira nfo supera 0 mestre espanhol. Descontadas as deficiéncias do aprendizado de segunda méo, as quais influfam na selegio ¢ preferéncias estilfsticas, um observador menos parcial concluiria haver mais semelhan- gas que diferengas entre ambos. Pondo & vista os critérios do autor: a profundidade hist6- rica, na arquitetura académica, esté diretamente relacionada & linhagem da alta cultura arquitetdnica européia, e, em especial, aos estilos de origem francesa. No p6s-guerra (coincidindo com a morte de Heitor de Mello, em 1920), a arquite- tura “eclética", segundo Liicio Costa, reanima-se com a chegada de novas tendéncias, fa- zendo do Rio de Janeiro uma verdadeira “teira de cendrias arquitetOnicas improvisados” (p. 185). A impressio de “feira" deve-se certamente presenga de profissionais curo- peus, embora ndo fique dito que alguns deles j4 tinham se instalado na cidade desde aproximadamente 1910, Sao italianos (Ant6nio Virzi), alemaes ("a arquitetura residencial cem por centa fedesea de Riedlinger e seus arquitetos (eonstrutores do tipico Hotel Cen- tral)"), ingleses ("“arquitetos Preston & Curtiss") e austriacos ("a dupla austro-britiniea de Prentice e Floreder") (pp. 184-185). O tinico razoavelmente conhecido do grupo € Virzi. Anténio Virzi nasce em Palermo em 1882, chega a0 Brasil por volta de 1910 e morre em $30 Paulo em 1954”, Esteve em atividade no Rio pelo menos entre 1911 1930, onde foi professor da Escola de Belas Artes, por alguns meses, nos anos 1911-12. ® No proximo capitulo discutiremos com maior detalhe 0s usas estilisticos de Morales e Heitor de Mello. % A respeito de Viezi, ver: Irma Arestizfbal e Piedade E. Grinberg, *AntOnio Viezi", Arquitesura Revista, v7, 1989, pp. 4-27. Capitule primero Licio Costa a Tem varias obras na década de 10, ¢ nesta mesma década sua reputagdo j4 estava feita®. Nio €, portant, como quer Lticio Costa, um arquiteto do pés-guerra; considerando-se que Virzi the foi quase contemporaneo, a datacdo dificilmente ocorreu por engano. Re- tardar no tempo a atividade do arquiteto parece ter a fungio de ampliar a variedade de estilos do “cendrio* em que se transformara o Rio na terceira década, e, consequente- mente, de enfatizar a necessidade da “reagdo" do neocolonial™. Nas suas palavras, o *sonho do 'art-nouveau' se desvanecera, dando higar & ‘arquitetura de barro', modelada pintada por aquele prestidigitador eximio que foi Virzi, artista filiade a0 ‘modernismo' es panhol ¢ italiano de entio” (p. 183). Recuada a 1910-11 a chegada do arquiteto A cidade, muito da frase fica sem sentido; hoje tende-se a eneaixé-lo dentro do art nouveau”, ‘Terminado o pardgrafo de Virzi, ¢ antes de dar sequéncia & lista dos estilos "estran- geiros", o autor abre um parénteses: "Assinale-se igualmente, desde logo, como antideto, certa arquitetura de aspecto neutro e sGhria de Intengio, que, por isso mesmo, resistiu me- Ihor 2s mutagées do goste oseilante da época" (p. 184). O arquiteto: Gastéo Bahiana, de formagio francesa, também professor da Escola de Belas Artes, e quicd colaborador de Heitor de Mello®. © exemplo talvez até date da década de 20, mas Gastio Bahiana no representa nenhuma novidade no panorama; profissional de cetta projecdo desde pelo menos a época da avenida Central, ele poderia facilmente ter figurado entre os arquitetos a quem o autor atribuiu capacidade de discernimento estilistico no bloco anterior. Liicio Costa preferiu deixar Heitor de Mello brilhar solitariamente nos anos 1900-1920, e trans- > Bm 1916, uma residéncia de sua autoria aparece publicada entre “As casas mais belas do Rio” (Arestizabal e Grinberg, op. cit., p. 27, nota 11). A situacdo do aleméo Riedlinger é bastante purecida. Segundo Paulo Suntos, ele chegou ao Rio em 1912 (op. cit., p. 87). Licio Costa, piginas adiante nesse mesmo texto, destaca a importincia de Riedlinger nn introdugio do conereto urmado, tornando-o um personagem mais ou menos eentral da pré-histéria da arquiterura moderna carioca; ele certumente nfo ignorave que o alemio estabelecera-se na cidade no inicio da segunda década do séoulo. Quanto aos demais estrangeiros mencionados pelo autor, nio dispomoe de informagdes para checar a dataglo. Os casos de Viezi © Riedlinger bastam, parece-nos, para dar sentido & afirmagio, ® A parte isso, a filiagio de Virzi ao "'modernismo! espanhol ¢ italiano", langada sem maiores especifica- 0, tord geande fortuna, e seed repatida quase & exaustio — sem que ninguém tenha se preacupado om precisé-la ou verificd-la, % Segundo Paulo Santos, Gastio Babiana colaborou com Heitor de Metlo na casa *renascimento francés" construfda pelo arquiteto (Paulo Santos, op. ct., p. 85). Capitulo primeiro Lio Costa 34 ferir Gastio Bahiana para 0 pés-guerra, em contraponto & renovada profusio estitistica dos “ecléticos". Mas nio sio apenas os brasileiros a terem o privilégio de no sucumbir de todo aos excessos estilisticos da época. A enumeragSo dos estilos do pés-guerra conclui-se na se- guinte frase: "E, camo se do bastasse, prosseguia ainda, como anteriormente, a escola francesa, dign-se assim, do pseudo Luts XVI (arquiteto Armando Teles)... bem coma dos pseudobasco € normando da preferéncia de certas firmas iddneas, cuja clientela tinha o pen- samento voltada para Deauville e Biarritz. $6 mais tarde ocorreria a sobriedade decorativa de Sajous e Rendu" (p. 185). Paginas adiante, j4 encerrada a breve resenha dos estilos histéricos, o autor aponta, de passagem, “a alta classe do arquiteto Gire — a cuja traga se deve igualmente a bela planta do Hotel e Cassino de Copacabana, a ficulada pelos eixos de composigio, segundo 0 principio academico" (p. 190). O francés Gire (nao fosse, nesse aso, a nacionalidade estrangeira) poderia até ter figurado ao lado de Heitor de Mello na década precedente: o Lufs XVI do Copacabana Palace ¢ anterior a 1920. A escola francesa (@ qual também pertence, afinal, Gastio Bahiana), prosseguindo na terceira década, tem um lugar & parte na "feira arquitetOnica": fica claro que o maior cuidado ¢ proficiéncia no uso dos estilos ¢ um atributo quase exclusive desta escola, € que Heitor de Mello foi apenas, aos olhos de Liicio Costa, seu mais ilustre expoente. A continuidade da tradigio francesa mostra-se, tudo somado, o requisito fundamen- tal do percurso histérico de Lifcio Costa, iniciado com a chegada de Grandjean © compie- tado sob a influéncia de Le Corbusier. Durante as trés primeiras décadas do século XX, nfo obstante 0 “ecletismo* dominante, essa influéncia irrompe aqui e ali nas méos dos melhores arquitetos, funcionando como elo de transmissfo cultural — sem eles 0 quadro ficaria incompleto. O intervalo académico nao fora, portanto, completamente perdido. O “mago" Morales traz a “versatilidade e mestria" da arquitetura francesa do final do sécu- lo XIX; Heitor de Mello contribui com 2 "conscigncia profissional académica", vistvel nos estilos Luts XV ¢ XVI; Gastio Bahiana entra como ant{doto "ao gosto oscitante" de modo geral, a escola francesa ficam implicitamente reservadas as atitudes “radicais" Capitulo primeira Lileio Costa 35 no interior das “transformagdes evolutivas”. Ao refazer sua genealogia arquitetnica (francesa) Luicio Costa nfio hesita em incluir a versio académica da escola no processo evolutivo que culmina na arquitetura moderna, Dentro de seu estreito horizonte cultural, cla antecipava, apesar de tudo, 0 “bom camino” dos novos tempos. Assinale-se, olhan- do na perspectiva inversa, de frente para trés, que 0 autor involuntariamente reconhece débitos de sua modernidade com a academia. Antes: com uma tendéncia académica bem especffica, Sem raizes no pais, entretanto, os modelos da escola francesa nao poderiam consti- tuir a base de uma arquitetura nacional, Ou ainda, eles eram um obstéculo a ser vencido para atingi-la, Eis o papet hist6rico do neocolonial: levantar-se “contra” o “ecletismo dos falsos estilos europeus” (p. 185), abrindo passagem & futura modernidade de "eardter lo- cal", A propria escola, disposta agora (depois da morte de Heitor de Mello, lembre-se) no campo dos “falsos estilos", tinha que ser combatida: o tom francés precisava desapa- recer para sua ligdo frutificar. Depurando-se em solo nacional, a tradigio introduzida por Grandjean aprontava-se para a chegada de Le Corbusier. © neocolonial, todavia, j4 nascera condenado. Respondendo ao “ecletismo” com outra forma de histo ismo, incorre em duplo equivoco: a volta ao pasado, com "me nosprezo por suas {da industrializacdo} consequéncias inelutaveis" (p. 185) e uma ma apreci- agio da arquitetura tradicional, com a “eonsequente incapacidade de the saber aproveitar convenientemente aquelas solugdes e peculiaridades de algum modo adaptaveis aos progra- mas atuais" (p. 186), Isto o impedia irremediavelmente de constituir um novo estilo; é apenas mais um "pseudo estilo", Nao h4 nenhum atenuante no julgamento; com rigor maior do que o até agora dirigido ao conjunto da arquitetura académica, o autor 0 cen- sura sob todos 0s aspectos, A avaliagdo € feita em bloco, sem destaque para nenhum arquiteto; so todos nive- ados pela citago em comum: "Assim como a Avenida Central marcou 0 apogeu do ecletis- mo, também 0 pseudocolonial teve a sua festa na exposi¢do comemorativa do centendrio da Independéncin... Periodo mareado pela atividade profissional des arquitetos Meméria e Cu- Capitulo primeira Liicio Costa 36 chet — herdeiros do escritério de Heitor de Melo —, Nereu Sampaio, Angelo Bruhns, José Cortez, Armando de Oliveira, Cipriano Lemos, Santos Maia ¢ tantos outros" (p. 186). O Ieitor depara-se com a imagem de uma frente unitéria, como se 0 apelo nacionalista do estilo tivesse imediatamente conquistado a prancheta dos arquitetos, impondo-se como nica alternativa A disposi¢ao dos espfritos insatisfeitos. Nao por acaso sio lembrados apenas os profissionais mais jovens, que iniciavam a carreira na década de 20. Liicio Costa deixa de lado os exemplos anteriores 2 1920: Heitor de Mello, o insuspeito repre- sentante da alta tradi¢ao disciplinar européia, j4 utilizara 0 estilo “nacional” em residén- cias, hotéis e em um grupo escolar para Petrépolis. Da relagdo apresentada, a situagao no € menos desfavoravel. Os dois primeiros, Meméria e Couchet, continuadores do escritério de Heitor de Mello, tinham clara preferéncia pelos estilos classicos franceses; seus projetos hoje conhecidos em neocolonial resumem-se a dois. Dos demais, niio € di- ficil encontrar, a0 longo de toda a década, projetos nos estilos europeus”. Nada justifica, portanto, a impressfio do bloco unitério, como alternativa ao "ecletismo” dominante, pre- tendida no texto. Eo caso de nos perguntarmos, entdo, 0 porqué de reservar a0 movimento a posi- do — honrosa — de fecho da arquitetura académica, como alternativa radical ao “ecle- smo” dominante. Liicio Costa definira-o como “artiticioso revivescimento formal de nos- so préprio passado, donde resultou mais um pseudo-estilo, 0 neocoonial, fruto da interpre tagio errénea das sébias lighes de Aradjo Viana, ¢ que teve como precursor Ricardo Severo © por patrono José Mariano Filho... Equivaco agravada pelo desconhecimento das verda~ deiras caracteristicas da arquitetura tcadicional... do que resultou verdadeira salada de for- mas contraditérias provenientes de perfodos, técnieas, regiées e propésitas diferentes” (pp_ 185-186), Onde, entio, a posiggo de honra? O equivoco do neocolor dio estava na reconsideragio do “nosso préprio passado", mas no seu “artificioso revivescimento for- mal"; no estava na relagio estabelecida com a arquitetura colonial, mas no desconhe- cimento das suas “verdadeiras caracteristicus". A luz do argumento de fundo do autor, * No préximo capftulo examinaremos com mais vagar o uso dos estilos ma década de 20. Capitulo primeira Léisio Costa a analisado acima, as erfticas a0 movimento podem ser lidas do seguinte modo: 1. apesar da origem académica, 0 movimento neocolonial atrai a atengio dos arquitetos ao pasado Go pais, atengio até entio dirigida exclusivamente & Europa; 2. isto cria condigdes para a descoberta das to importantes "verdadeiras caracteristicas da arquitetura tradicional"; ¢, 3. finalmente, uma vez remontada nossa tradig&o estilistica, funcionalmente ligada as coridigies do meio, fica evidenciada a artificialidade de todo o academismo historicista incluindo © neocolonial), que a interrompera, € justifica-se a adogio do modernismo, que areata, O autor vé-se diante de um dilema: parte integrante da cultura académica, a0 neo- colonial, com todos os seus equivocos, nfo pode ser negada uma parcela de influéncia na criagio da arquitetura moderna de “carster local”. Essa ambiguidade — 0 artificialismo do estilo e sua contribuigo A descoberta da nacionalidade artistica (que sem ele ndo tem como explicar-se, pelo menos nao como expresso de uma necessidade cultural coletiva) — essa ambiguidade perpassa, no texto, toda essa faixa de transigo entre a arquitetura dos estilos histérieos ¢ a modema. Ela é evidente no encadeamento da exposicao: o breve histérico das tr@s primeiras décadas encerra-se abruptamente no neocolonial; em seguida, como uma outra histéria, entram as vicissitudes da introdugao do concreto armada no Brasil (técnica que, nesse raciocinio, revoluciona a arquitetura). Os primeiros edificios moderos, na ordem de exposigdo de Liicio Costa, s6 aparecem depois de examinadas as primeiras construgdes, ainda académicas, em arcabougo de concreto. Mas jd surgem, re- pentinamente, como expresso da cultura nacional, ou melhor, da modernidade nacional. isfargada: a exatamente no fim, como grande fecho, das décadas académi- Falta claramente uma pega no quebra-cabegas; cla ficara I4 atras, um pouco Aisposigio do neocolor cas, serve para dar-Ihe, sem entrar diretamente em assunto tao delicado, esse papel afinal de contas honroso de transigio histérica”. % Afirmé-lo com todas as letras equivaleria, deduz-se, a retirar da arquitetura modcma # absolula novidade pretendida, A defesa da influéncia do neocolonial sobre « arquitetura modema, feita nesses mesmos anos por Paulo Santos, parece explicar 0 excessivo rigor de Lilcio Costa com ¢ movimento. Ele, pode-se su- por, para contrabalangar a alegesio de Paulo Santos, exclu idade de qualquer influéncia direts, © tom condenatério © a brevidade da descrigio (nio hd mengio « nenhum edificio em especial) Capitulo primero Licio Costa 38 Quando menos, o neocolonial jé era, na perspectiva de Liicio Costa, um sintoma da crise do historicismo, precipitando a adogio da arquitetura moderna. O movimento naci- onalista, invocando nossas singularidades esiilfsticas, demonstra a impropriedade, em terra brasileira, dos estilos de origem estrangeira, Voltando-se contra eles, pretende su- peré-los. © neocolonial, por sua vez, nfo indo além de mero revivescimento das formas do passado, mostra-se igualmente artificial. Os estilos hist6ricos europeus ficam descar- tados mas a reagio tampouco ¢ altemnativa consistente para 0 futuro. Cria-se um impasse, cuja soluedo $6 pode estar na funcionalidade estilistica da arquitewwra moderna, Em ou- tros termos, 0 aulor faz do neocolonial, como crise do historicismo, transigao necesséria A nova arquitetura. Mas Laicio Costa vai mais longe, estabelecendo outro nivel de transigio — no plano da cultura nacional — aparentemente negado nas erfticas feilas ao movimento: a arquitetura brasileira *j4 se distingue no conjunto geral da produgio contempordnea e se identifica aos olhos do forasteiro como manifestagio de cariter local, e isto, néio somente porque renova uns tantas recursos superficiais peculiares A nossa tradigiio, mas fundamen- talmente porque é a prépria personalidade nacional que se expressa, utilizando os materiais fe as téenicas do tempo, através de determinadas individualidades do genio artistico nacional” (p. 198). O comentario estd no pardgrafo seguinte & comparagéo de Niemeyer a0 Aleijadinho, pouco acima transcrifo. O “cariter local" da nova arquitetura diz respeito, em principio, ao Aleijadinho e, de maneira geral, A arguitetura da coldnia, presentes em abstrato na “personalidade nacional". Como nao perceber, porém, a alusio a0 neocolonial nos “tantos recursos superficiais peculiares & nossa tradigio", renovados no modernismo? A experiéncia no movimento académico nacionalista, exercitando Jargamente a técnica Beaux-Arts da decomposigao e recombinagao dos estilos histéricos (nesse caso, do nosso passado colonial) foi de grande valia para os modernos- tradicionalistas, Estes, entre eles Liicio Costa, retomam tal e qual a técnica académica decorriam, tudo indica, da necessidade de afastar a tentacio decorativa do passado arquitetOnico nacional fe de sublinhar a revohigio disciplinar moderna, Uma rinica palavea de aprego poderia ser tomada eomo concessio ot saudosisi Caphulo primero Lieto Costa 9 em alguns de seus projetos”. Esse segundo nivel de transigio, menos evidente mas perfeitamente discernivel, remete em cheio ao problema da constituigdo de uma cultura auléntica, Independente do primeiro, é-Ihe completamente oposto: s¢ a transigdo para a arquitetura moderna, como crise do historicismo, implica em ruptura total com a academia, a transigéo para a mo- dernidade nacional implica no reatamento dos lags tradicionais, para 0 que @ patticipa- 0 do neocolonial foi decisiva. Todavia, imos, 0 papel a ele conferido no primeiro ni- vel da transigiio também nao era desprezivel, Sobrepondo-se os dois niveis, 0 neocolonial apresenta-se na igualdvel posigdo de transigao necesséria & criaglo de uma arquitetura a0 mesmo tempo modema e genuinamente nacional. © quadro esté completo, A escola francesa ¢ 0 neocolonial, distinguindo-se do pano de fundo "eolético", deixam-no para trés ¢ inserem-se no quadro da evolugao cro- noldgica das formas, que se completa na modernidade, Entre uma e outra hd, porém, ne- cessidade de uma revolugdo disciplinar, Enraizadas na historia passada — européia e na- clonal — essas duas vertentes da arquitetura académica precisavam ser superadas para dar lugar & hist6ria presente, a arquitetura moderna, Todavia, no obstante seu limitado horizonte cultural, preparavam os arquitetos para 0s novos tempos: tomando-as como ‘momentos privilegiados do percurso académico, Liicio Costa valoriza sua prépria forma- a0, que inclui o treinamento com Heitor de Mello ¢ a participago destacada no neoco- lonial. Ele atribui-se, dessa maneira, uma linhagem arquitetnica duplamente nobre: a alta tradigdo dos estilos histéricos europeus e a tradigao artistica do pats. Os méritos de cada uma sio desiguais, assim como cada qual contribui a seu modo para a evolugdo das formas, A escola francesa representa 0 cuidado e a proficiéncia no trato dos estilos histéricos, equivalendo ao dominio da longa tradigdo européia. Exemplo de equilibrio, sobriedade estilistica ¢ profissionalismo ao longo das décadas académicas, 1 Ver, a respeito, a descrigo do alguns empréstimos de pecas coloniais em projetos modemos, feita por Paulo Santos (op. ct, p. 94), Eles iustram a fortuna, em situagoes espectficas, de método BeausArts, Capito primero Liicio Costa 40 (segundo Liicio Costa to pouco favoraveis ao "bom gosto" e A consciéncia histérica na arquitetura), d& continuidade & linhagem inaugurada, no Brasil, por Grandjean de Mon- tigny e atualizada, no século XX, por Le Corbusier, Entretanto, s6 frutificaria ao ser re- volucionada pela ago deste dltimo; além disso, sua fase Aurea recai no primeiro bloco de acontecimentos, dominado por Heitor de Mello, manifestando-se apenas esporadicamente. na década de 1920. © neocolonial impde-se justamente nesta década, dominando 0 se- gundo bloco, Cronologicamente mais préximo da arquitetra moderna, rebela-se contra sua propria origem académica, criando o vacuo cultural que atrai as novas idéias, De ou- tra parte, aprofundando-se na hist6ria patria, cria fortes vinculos com a tradigao, retoma- dos pelo movimento moderno nacional. Neste sentido ¢ uma espécie de herdeiro naciona- lizado da escola francesa, que através dele, indiretamente, chega até o limiar da moderni- dade (note-se a procedéncia comum da maioria dos arquitetos praticantes do neocotonial, formados quase todos na Escola de Belas Artes). A escola francesa ¢ a melhor parte da arquitetura académica, mas pertence ainda inteiramente a ela; 0 neocolonial saudosista mas tem uma posigio histérica especial, de relativa independénci faz e niio faz parte do academismo, ficando a meio termo entre cle € a nova arquitetura. Como ponto de transi¢ao de um periodo a outro, tem win pé 14, outro ed, e nfo se encaixa por completo em nenhum lugar. Essa ambigitidade da posigao do neocolonial teré larga fortuna na historiografia, a despeito das palavras pouco elogiosas a ele dirigidas pelo autor. A escola francesa, a0 contrério, na maior parte das vezes muito bem vista, serd via de regra pouco valorizada; normalmente assimitada a0 "ecletismo", perde a distingdo que Ihe atributra Liicio Cos- imamente ligado A questio da autenticidade da cultura brasileira, foi facilmente transformado em fator determinante para a fransicéo a uma arquitetura % Bm Paulo Santos, por exempla, nfo encosteamos nada parecido com a escola fruncess, apesar (ou por isso mesmo) de ele vineular praticamente toda a arquitelura académice & evolugéo técnica © estlisticu que conduz & arquitetura moderna. Ficw a impressio, em todo caso, que ele pretendeu tio-somente levar is Liltimas consequaneias 0 sontide no completamente evolutivo que Licio Costa imprimira a0 period. Yves Bruand, seguindo os passos de Licio Costs, reserva um lugar especial a Heitor de Mello, mas sem as immplicagdes previstas pelo autor brasileiro (aos prximos capitules voltamos ao assunto). Capitulo primeira Lifcio Costa 41 moderna de “caréter local*, Nos autores que examinaremos nos préximos capitulos, © neocolonial invariavelmente esté a meio caminho entre o “ecletismo" das primeiras déca- das ¢ a arquitetura modern u permanecendo dentro daquele, ou j4 dentro do préprio modernismo. Carlos Lemos, por exemplo, no seu Arquitetura Brasileira, desloca 0 nco- colonial do capitulo "O neocléssico e o ecletismo" para o iiltimo, "Os tempos recentes”™, 3, Conclusiio caminho percorrido é sinuoso e, néo raras vezes, contraditério. As idéias mudam constantemente; 0s temas ora reaparecem intactos, ora com sinal contrério, e, ora ainda, simplesmente desaparecem, como se sua presenga fosse ou evidente demais ou desneces- sdria. A par de tudo, 0 objetivo € um s6: demonstrar a inevitabilidade hist6rica da arqui: tetura moderna ¢, inversamente, a funcionalidade dos estilos do pasado, de que 0 mo- dernismo seria mais fiel herdeiro (nacional e internacionalmente). ‘A aparente demonstracdo que se vai esbocando é tio-somente, portanto, a projegio, na historia da arquitetura, da explicagdo previamente desejada. Passo a passo a escolha apresenta-se fundamentada em ponderagées de ordem racional, cujo testemunho derivaria 6a histéria, Refazendo © itinerério, ponto por ponto, percebemos exatamente o oposto: toda a interpretagio parte de uma rigida opgdo anterior ¢ molda os acontecimentos em fungio do suposto teor de verdade histérica que ela traz embutida. salto do presente ao passado € o livre trinsito entre épocas diferentes sko assegu- rados pela existéncia de um denominator comum a todas as manifestagies artisticas: a forma como expresso fiel das condicdes téenicas, sociais, etc., do lugar € época. De inicio, este princ{pio unificador estava representado na palavra estilo, cujas raizes estio no determinismo historiogréfico do século XIX — sentido integralmente conservado por * Carlos A. C. Lemos, Arguitetura Brasileira, Sio Paulo, Melhoramentos, 1979 (cf. pp. 140-141). Em ‘um texto mais recente, ele o inelui no *scletismo", atiemando no entanto que “o Neocolonia! passa a ser uma expressio lbertiria.. Agort, era a movlernidade, Incongeuentemente, nodernidade expressa através da tradigto” ("Bcletiomo em Sio Paulo", in: Keletismo na Arquitetura Brasileira, Annateresa Fabris, org, Paulo, Nobel, 1987, p. 94; ef. também p. 141, onde reproduzimos a passagem completa). Capitulo primeiro Lileio Costa a Léicio Costa. Mais tarde, estilo € substitufdo pela expressio intencdo plastica, de igual teor determinista, mas com a vantagem de evitar o tom pejorative que a primeira adqui- rira aos modernos. Essa visio determinista é ao mesmo tempo o fundamento tanto do partido tomado pelo arquiteto militante quanto de sua versio dos acontecimentos, fatores indissocidveis, A hist6ria & instrumentalizada para justificar a atividade do profissional, que fica inves- tida da autoridade do passado e, mais ainda, fica concebida como ponto culminante do processo evolutivo da arte. Aos acontecimentos histGricos precedentes é destinada a fun- Gio de estagios preparalsrios A efetivagao da arquitetura moderna, Para tanto, os obstécu- los devem ser eliminados; toda ¢ qualquer forma de arte que ndo se enquadre neste cri- {ério deve ser exclufda do proceso. Ou melhor, é-lhe retirada o estatuto de estilo e, em consequéncia, seu valor como expressio da verdade hist6rica. Nao se trata, enfim, de esforgo de sintese das complexas vicissitudes hist6ricas, mas da muito mais simples elaboragiio de um constructo abstrato, que delas dispoe como quer, conferindo-Ihes motivagdes que Ihes so estranhas. O carter errético do percurso do autor no é de forma alguma derivado de dificuldades porventura provenientes do objeto em exame, mas derivam apenas das dificuldades de acomodar os dados em um modelo hist6rico pré-constituido. Além do mais, no momento mesmo em que Liicio Costa escrevia, os rumos da arquitetura moderna no Brasil estavam sendo definidos; & medida que esta adquiria novas configuracdes, 0 sistema precisava ser modificado, ou por remendos ou por explicagies novas e mais abrangentes. Isto ia acontecendo ao sabor Gas circunstancias, dando, como vimos, num emaranhado as vezes complementar & vezes desconexo de temas, termos, alusdes, etc., que foi preciso desfazer e tentar reconstituir no interior do préprio modelo — daf chamarmo-lo modelo virtual. Parte interessada nos episédios que narrava, a Liicio Costa faltavam a distancia critica © a auséncia de preconceitos. Mas, Aquela altura dos acontecimentos, 0 que menos interessava era 0 trabalho relativamente imparcial do historiador; a projeto embutido em suas paginas (ao que tudo indica compartilhado com ou inspirado pelos intelectuais com Capitulo primeira cio Costa 43 quem se relacionava, principalmente no fimbito de sua agZo no Sphan) € claramente a construgao de uma cultura nacional capaz de concitiar a modemidade com a tradigo, ou ainda, de dar conta do progresso material sem descaracterizagio cultural. No contexto da insergdo do Brasil na economia industrial internacional, olhar a histéria com as frias len- tes da cincia teria parecido aos contempordneos uma atitude excessivamente contempla- tiva. ‘Tais limites hist6ricos das reflexdes de Liicio Costa foram simplesmente ignorados por boa parte dos autores mais recentes, principalmente Yves Bruand ¢ Carlos Lemos. Debrugando-se, nas décadas de 60 © 70, sobre episédios jé concluidos, estes tinham a vantagem (no aproveitada) do distanciamento histérico para avalid-los criticamente™. Os aplausos internacionais & arquitetura moderna brasileira, que nunca foram undnimes, do lugar, depois da construgio de Brasflia, a acirradas criticas; a expectativa da moderniza- do pela via da constituigdo de uma cultura nacional auténtica e dominante desfaz-se a0 Jongo da década de 60, deixando & vista a dose de ingenuidade que pressupunha”. Desde Brasilia, a fase “herdica” da afirmacao do movimento moderno brasileiro era parte do pasado, © a industrializagio uma realidade que trazia consigo 2 homogeneizagio cultu- ral. A despeito do quadro profundamente modificada, os textos do arquiteto continuavam a ser lidos ao pé da letra — e 0 modelo que engendravam era transformado em método historiogréfico. Se no contexto de origem o autor fazia figura de esptrito esclarecido e agente da construcdo da cultura nacional, a fortuna mais recente de seus escritos deve-se ja a uma espécie de defesa conservadora das gidrias passadas. Dissipadas as razdes que the serviam de suporte, desse projeto cultural nacionalista ficou a interpretacdo de viés totalizante do passado arquitetOnico: de instrumento de agao % & obgervagio nio vale para o segundo autor de nossa incursio na historiografia nacional, Paulo Santos, que foi contemporineo de Liicio Costa. Apesar de set texto que nos interessa mais de perto, Quatro Séeulos de Arquitetura, datar de 1966, ele & frato do ctima cultural dos anos 1930-50. 5S Quanto a este argumento, ver Roberto Schwarz, "Nacional por Subtragio", in: Que Horas Sao’, Sio Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 29-48 (cf. também, no plano especffico da arquitetura, *O pro- ‘gresso antigamente”, ibidem, pp. 107-113). Capitulo primeiro Liicio Costa 44 ‘a mélodo de andlise da hist6ria, eis sua posteridade. Ou antes, funciona a0 modo de uma representagdo desta, e a substitui, como se tal enunciagio dos fatos fosse a tinica possi- vel, € Liicio Costa fosse apenas o porta-vor. de fatos desde sempre conhecidos. ‘Transfor- mado em verdade intemporal e impessoal, o modelo dispensa a atribuicao de sua autoria (circula quase anonimamente) e também as pesquisas histéricas concretas (visto que nas- ce pronto ¢ acabado). A partir da total disponibilidade da hist6ria que est4 na base do edificio tedrico de Liicio Costa, os autores que o seguem ficam livres para manipuld-lo segundo sua von- tade, e criar seus modelos particulares, derivados deste modelo inaugural. Capitulo segundo Paulo Santos’ Os impasses metodoldgicos da pesquisa histérica Paulo Santos € um contemporineo exato de Laicio Costa. Eles foram colegas, com Ciferenca de alguns anos, no curso de arquitetura da Escola Nacional de Bolas Artes, ¢ ambos bateram-se, em 1930, em favor da arquitetura moderna: Liicio Costa como diretor a Escola ¢ Paulo Santos como membro da Comissio de Reforma do curso, ¢ ainda, em 1931, como presidente em exercfcio do Instituto dos Arquitetos do Brasil’. Além de mo- demistas de primeira hora, os dois tinham em comum o interessc pela arquitetura colo- nial brasileira ¢ a defesa apaixonada do enraizamento nacional seja da nossa arquitetura da época da colonia, seja da nossa arquitetura moderna, Ao passo que Lticio Costa, sem abandonar a profissio, dedicou-se ao trabalho no entio Servigo do Patriménio Histérico € Artistico (Sphan) desde sua criagao, em 1937, Paulo Santos, embora membro do Con- selho Consultivo do Sphan, dedicou-se prioritariamente ao ensino, especialmente no cur- so de arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, setor em que Liicio Costa jamais atuou diretamente depois de sua répida passagem pela dircgao da Escola de Belas ‘Artes em 1930. Assim, um e outro encarregaram-se, em frentes complementares (a orga- * Paulo Ferreira Santos (1904-1988) nasceu no Rio de Janciro. Diplomou-se arquiteto em 1925 (ou 1926, a depender da fonte) pela Escola Nacional de Belas Artes. Foi professor, entre 1946 e 1969, da Faculdade da Arquitetura © Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeito; af criou a diseiplina “Arquitetura no Brasil”, Seus primeiros trubathos, na década de cinquenta, centravam-se especialmente ‘na arquitetura colonial © na moderna; a partir de meados da década de sessenta, sun rea de interesse passa a abranger também a arquitetura carioca do século XIX e, principalmente, das primeiras décadas do XX. (Estas observagses baseiam-se nas "Notas biogrificas” incluidas em Paulo F. Santos, Quarro ‘Séeulos de Arquiterura, Rio de Janeiro, Instituto dos Arquitetos do Brasil, 1981, pp. 119-120, e na not de fatceimento publieada em Arguiterura Revista, v. 7, 1989, p. 2)- * Cf. a referida nota de Arquiterura Revista, cit. Caputo segundo Paulo Santos 46 nizagdo do Servico do Patriménio Histérico; a pesquisa e a docéncia universitérias), de promover ¢ estimular a atencdo e o conhecimento da arquitetura brasileira, ou melhor, daquelas que consideravam auténticas representantes da arte nacional: a arquitetura da colénia e a moderna, Se A primeira vista o paralelo sugere um perfeito acordo entre ambos, quase & ma- neira de uma caloulada divisio de trabalho para um mesmo fim — a propagacdio do mo- vimento modemo e a identificagao de nossos monumentos histéricos “auténticos” — uma andlise pormenorizada indica uma situagio bem diferente, Primeiro: nfo consta que, de- pois da tentativa de reforma do ensino de arquitetura na Escola de Belas Artes, tenham trabalhado em conjunto; segundo: a obra de Paulo Santos é tardia em relagéo A de seu colega, vale dizer, ela é quase contempordnea & produgio do tiltimo Lticio Casta e, como esperamos deixar claro adiante, desenvolve-se sob 0 influxo das novas idéias deste; ¢ ter- ceiro: embora partindo de uma mesma base tedrica, as reflexdes mais originais de Paulo Santos conflitam com algumas afirmagdes do Liicio Costa da década de 50. E possivel mesmo encontrar indicios da existéncia, numa certa época, de um didlo- go implicito entre os dois autores, travado na forma de alusies. Um exemplo: em 1951, Paulo Santos faz uma conferéncia intitulada A dnfluéncia do Neocolonial na Arquitetura Moderna do Brasil *, na qual, j4 no anincio de seu objeto, ele estabelece uma ligagdo, direta e positiva, entre ¢ movimento académico nacionalista e a arquitetura moderna. No mesmo ano, no Depoimento de Um Arquiteto Carioca, vimos, Liicio Costa rejeita inc -vamente essa influéncia, condenando de todo 0 movimento, por artificioso. Nio sabemos ‘a que ponto o tema era corrente na época, mas 0 excessivo rigor do julgamento de Liicio Costa bem parece uma resposta a esta conferéncia, realizada em sesso comemorativa no iam a orgie oficial dos arquitetos'. Na primeira linha do Depoimento, censurava os que origem da arquitetura moderna no Brasil como consequéncia natural de acontecimentos > Segundo nota em Paulo F. Santos (op. cit., p. 119}, a conferéncia foi organizada pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil, em comemoragio 20 302 aniversério de insfituigio, ¢ dela teriam sido feitas e6pias fim mimeégrafo, que nfo conhecemos. + Mesmo ae a dala da conferéncia, que nio dispomos, fosse posterior & da publicasio do "Depoimento", ada exctui que Liicio Costa a conhecesse de antemio. Em todo caso, 0 exemplo é sinal, se no de um debate entre 08 dois, di ciroulagio publica do temsa por volta de 1951. Capitulo segundo lo Santos a propfcios anteriores: seu alvo, mais uma vez, parece ter sido Paulo Santos. Como quer que seja, a importincia hist6rica concedida por este & continuidade neocolonial-modernis- mmo estabelece, em potencial, um ponto de diseérdia entre ambos, No conjuinto, porém, os escrites de Paulo Santos esto muito ligados aos de Liicio Costa, ou antes, este € 0 ponto de partida para a definigéo dos problemas histéricos a se- rem enfrentados, Ocorre que alguns estudos decisivos do autor vém & luz entre 1949 1951, isto &, so preparados nesse meio tempo entre 0 inicio da revisio, por Liicio Cos- ta, de seu primeiro modelo de andlise, estreitamente funcionalista, ¢ a publicagio de suas novas idéias, nos textos da maturidade (0 Consideragies, de 1952, © 0 Depoimemo, de 1951). Bis porque, se 0 quadro tedrico de referencia é 0 mesmo, ais conclusdes sio inde- pendentes, e comportam consequéncias desiguais ou até contrérias, A énfase de La io Costa estava na ruptura da arte moderna com a histéria, garan- tindo, um tanto corbusianamente, a historicidade moderna, Paulo Santos enfatiza, dentro de um mesmo esquema dualista — 0 par cléssico-barroco ——, 08 elementos de continui- dade hist6rica. Sua questao de fundo seria mais ou menos a seguinte: se as técnicas con- tempordineas — a estrutura metélica, primeiro, e depois o concreto armado — constituem a atualidade e a universalidade da arquitetura moderna, 0 que constitui a identidade na- cional da arquitetura modema brasileira, identidade presente também na arte da colénia? Em outros termos, ele procura na histéria o denominador comum da cultura da nagio, responsével pela “autenticidade" das criagdes artisticas locais. Num primeiro momento, afirma que 0 fio condutor de nossa identidade esta no “espfrito barroco", de origem co- Jonial, mas atualizado recentemente pela arquitetura moderna, mais tarde esse “espirito” desaparece (sem explicacdes), e dé lugar as “constantes de sensibilidade nacional", que no exclui o barroco mas (sem também que isto fique dito) tem abrangéncia maior. Veja- ‘mos inicialmente essa sequéncia, para entio analisarmos seus reflexos no estudo, pelo autor, da arquitetura académica (e quando e como ela passa a ser abjeto de pesquisa). 1. A identidade nacional na obra de Paulo Santos Caphulo seguado Poule Suntos a ‘A obra de Paulo Santos pode ser dividida em duas fases principais. Na primeira, que se estende, de modo aproximado, de meados da década de 40 a meados da década de 60, os temas giram quase invariavelmente ao redor das arquiteturas colonial e moderna, dentro das mesmas motivagies de Liicio Costa. Na segunda, a partir de meados da déca- da de 60, 0 estudos da arte colonial praticamente desaparecem, € sua atengao volta-se para as "raizes” da arquitetura moderna, termo que engloba toda a produgio arquitet6ni- ca do século XIX, tanto sob o aspecto téenico (os novo materiais) quanto sob 0 aspecto formal (0 historicismo). Se 0 interesse pelos novos materiais e técnicas construtivas no & novidade, 0 interesse pela arquitetura dos estilos histéricos ¢ inteiramente novo (salvo © caso especifico do movimento neocoloni |, © surpreendente, pois no tem, dentro do es- ‘quema explicativo da fase anterior, nenhuma funcionalidade. Mas, estreitando os vincu- los téenicos entre o século XIX e XX, Paulo Santos acaba por, indiretamente, reconhecer algumas outras caracterfsticas em comum entre a arquitetura académica € a moderna, © por dar Aquela um lugar na historia — € aqui o neocolonial (elo de transmissio da nossa identidade cultural), uma vez advogada sua influéncia sobre 0 moderismo, é uma das icismo, razbes principais da redescoberta do hist Seuss primeiros estudos de histéria da arquitetura so, em ordem cronolégica: a tese A Arquitetura Religiosa em Ouro Preto’, concluida em 1949 na entao Faculdade Nacionat de Arquitetura, e publicada em 1951; O Barroco e o Jesultico na Arquitetura do Brasil *, também de 1951, apresentado como a ampliagdo de um capitulo do anterior; a jé referida conferéncia A Influéncia do Neocolonial na Arquitetura Moderna do Brasil, do mesmo ano; em seguida, entre 1955 e 57, publica uma série de artigos na revista Habitat, repro- éuzidos em livro, em 1961, com o titulo A Arquitetura da Sociedade Industrial”. © primeiro trabalho do autor, A Arquirerura Religiosa em Ouro Preto, data dos anos em que Liicio Costa reabilitava 0 Aleijadinho. Por essa época, os préprios moder- nos encarregavam-se de revitalizar os estudos do artista mineiro do barroco colonial; > Publicada com o titulo Subsidios para o Estudo da Arquitetura Religioxa em Ouro Preto, Rio de Janciro, Kosmos, 1951. * Rio de Janeiro, Kosmos, 1951. 7 Belo Horizonte, Universidade de Minas Gerais, 1961. Capitulo segundo Paulo Santos ° essa disposicéo, se coletiva, parece dever-se em grande parte agdo do ex-diretor da Belas Artes, e entdo funciondrio do Patriménio Histérico. & mais do que provavel que Liicio Costa — depois da construgdo, ¢ sucesso internacional, dos edificios da Pampulha, no inicio da década de quarenta —, jé esteja por tris dessa circulagao, em domfnio pibli- co, de problemas e preferencias historiogréficas". Paulo Santos, independente até de suas Tigaghes pessoais e te6ricas com Liicio Costa, partilhava da tendéncia; com a publicagio de sua tese, em 1951, ¢ do estudo seguinte, dela derivado, se afirmaré como um de seus principais representantes. Em O Barroco e 0 Jesuitico (1951), ele desenvolve a idéia do “espfrito barroco* nacional, Tanto quanto 0 barroco, ov melhor, Aleijadinho, a arquitetura dos Jesuitas era outro assunto caro a Liicio Costa na década de 40°, O interesse pela arquitetura da ordem vinha da posigéo especial que sua arquitetura ocupava na histéria, a meio termo entre o maneirismo € © barroco (isto é, alongando-se de uma época a outra), mas princi- paimente porque — embruthando-se com a causa anterior — sua arquitetura oferecia o exemplo necessério de grande pureza formal “erudita” na colénia (com vinculos diretos com Roma), como a provar que o despojamento de formas néo era atributo apenas dos (ineultos) mestres andnimos. Paulo Santos aproveita a deixa para tragar uma espécie de dialética barroca: de um lado 0 barroco-barroce e, de outro, 0 barroco-jesuitico, que nio énem tanto barroco, nem tanto clissico, e prova que tinhamos 4 nossa disposigao (quer dizer, prova que faziam parte de nossa hist6ria) ambas as tradigSes eruditas, a classica e a barroca, Mas & nossa moda, sob a marca do espirito nacional (melhor: constituindo-o}, que era, enfim, barroco, A argumentagio, bem mais sutil, ¢ armada de extensa biblio- grafia, tinha como chegada (ou partida, pois trata-se de um pressuposto indiscutivel) que ‘a arquitetura moderna, retomando esse espirito barroco sui generis (simultaneamente © Nie devemos descartar que Lifcio Costa exercesse, por meio da agdo pessoal, considerévelinfluéncia nos bastidores da historiogaia da arte nacional, antes mesmo da publicaglo do texto eapital a seu sistem, 0 Consideragécs sobre Arto Contemportnea", em 1952. 1. p. 14 (e nota 11 da mesma pgina). "© De mancire mais exata, o barroco-jesultco eoresponde, para Paulo Santos, a “fase de bmplantagio do burroco:‘post-rensseentita’ ou 'proto-burrocs', como a tém desigaado parque fol exatamente nessa fase (as do séeulo XVI até mendos do XVID que n ago dos jesufas mais se fer notur* (Subsidios para o Estudo da ‘Arquitetura Religiosa em Ouro Preto, cit. p. $9). Capitulo segundo Paulo Santos 50 Classico e barroco), inseria-se na nossa tradiglo hiistérica, ‘A mesma idéia de uma dualidade "forma estética” (cléssico)-"forma dindmica" (barroco), a mesma idéia de sintese nacional das tradigOes artisticas mundiais: Paulo San- os absorve quase literalmente os termos do modelo hist6rico do dltimo Liicio Costa, que Jé se anunciava antes mesmo de publicagdo do Consideracaes (a comparacao de Nieme- yer com o Aleijadinho, por exemplo, data de 1948). Com uma grande diferenga, no en- tanto: no texto de 1952, este insistiré (contra Paulo Santos?) que a tarefa de sintese das tradigdes opostas estava reservada & arquitetura ¢ & arte modemnas, Ainda que © "espirito barroco* de Paulo Santos compreendesse a sintese cldssica-barroco, o vinculo com o pas- sado que tal fio condutor estabelecia era-the excessivo, A seus olhos, podemos supor, 0 empenho daquele em reavaliar 0 passado inicialmente combatido pelos modernos (pelo menos combatido por ele préprio) ca‘a no pecado oposto: a valorizago exagerada da tra- digo, em detrimento do vator de novidade da arquitetura moderna. Sob o Angulo do au- tor de O Barroco e o Jesuitico, porém, no havia qualquer incompatibilidade: a arquite- tura moderna, tautologicamente, € moderma porque moderna (de modo preciso porque decorre das novas técnicas construtivas) e, a0 mesmo tempo, no caso brasileiro, participa do espfrito que a tradigdo artistica nacional — constituida, eis o detalhe, nos tempos de colbnia — impde a arte digna desse nome. Equacionando por conta prépria 0 problema perseguido por Liicio Costa desde a década de trinta, antes mesmo que este Ihe desse sua Tesposta definitiva, Paulo Santos simplifica-Ihe os termos — inventando a nogdo de “es- pirito barroco” — e dela tira conclusées em parte conflitantes com as do primeiro. Uma vez remontada a tradigio, ¢ estendida sua presenga até a atualidade, Paulo Santos volta-se a0 acontecimento que a seu ver medeia passado e presente: a Revolugio Industrial. este 0 objeto do 4 Arquitetura da Sociedade Industrial (1961). Neste, ele passa em revista a substituigo do trabalho artesanal pelo mecdnico, 0 inicio da produgéo industrial, etc., para entdo discorrer longamente sobre os sistemas construtivos da era industrial: primeiro o ferro e, na passagem do século XIX ao XX, 0 concreto armado, A forma como decorréncia da técnica toma o lugar das consideragdes de ordem estilfstica Capitulo segundo Pauto Santos 3 dos trabalhos precedentcs. Mas, como esperado, o percurso hist6rico conclui-se no Bra- sil: nossos arquitetos modernos apoderam-se dos prineipios da nova arquitetura, ¢ os fazem curvar-se ante o peso da tradigio nacional — nada, agora, que Laicio Costa nao aprovasse. Mas € justo af que, surgide quase do nada, se encaixa o neocolonial, explicando a continuidade entre um pasado longinquo e a modernidade: ele seria uma espécie de clo perdido na transigao entre 0 “verdadeiro* colonial, portador da tradigo, ¢ a nova arqui- tetura brasileira. Ao que tudo indica, & desde essa época (inicio da década de 50, nessa passagem dos estudos da arquitetura da coldnia aos da origem da arquitetura moderna), que Paulo Santos atribuira 4 influéncia do movimento neocolonial, ainda académico, a explicagéo das singularidades da modernidade nacional. Se ele acompanha Lticio Costa nessa polarizagao colonial-moderno da hist6ria da arquitetura brasileira, seu modo de en- caixar estas duas pegas — distantes mais de um século uma da outra — é bem diferente. Para 0 autor do Depoimento, as trocas entre as duas épocas, independente do grau de profundidade, em principio sao feitas diretamente de um tempo a outro, sem que no en- tanto ele precise como isto acontece. Em Paulo Santos, ao contrério, 0 movimento aca- démico nacionalista aparece exatamente no papel de condutor, entre pasado © presente, da nossa "verdadeira" tradigio artistica. Este elo, € justo supor, segundo ele explica de modo concreto o ressurgimento da cultura local depois de um intervalo supostamente es- trangeirizante. O tema da conferéneia de 1951 deve ter surgido, portanto, de uma espécie de imposigao ldgica ao historiador da arquitetura nacional: descrever como duas épocas tao iguais (no espirito) e tio distantes (no tempo) podem ser colocadas lado a lado (pu- lando — quase excluindo da histéria — todos os acontecimentos entre uma e outra), e, mais ainda, justificar como essa semelhanga pode estar na base de um programa coerente de pesquisa. A questo metodolégica — que talvez nem fosse, entao, a preocupagao maior, mas @ que 08 autores posteriores nao poderio escapar" — acrescente-se a participagio de "Yves Bruand, por exemplo, que também segue, em suas linhes yerais, a periodizacio de Lucio Costa, quando se depara com o problema da transigio da arquitetura académica "sem originalidade” 4 uma ar. Cupaulo segundo Paulo Santos 2 Paulo Santos nos dois lados da barricada, 0 tradicional e 0 moderno. Nada sabemos de sua obra na década de 20, mas € quase certo ter projetado em neocolonial, como a maio- ria dos colegas recém-formados na Belas Artes. Do ponto de vista de sua experiéncia particular, a passagem do estilo histérico nacional ao movimento moderno deve ter sido percebida mais como uma evolugdo natural que como ruptura: ele nfo se investiu da res- ponsabilidade de renegar o passado, como fizera Lifcio Costa. Natural, tudo leva a crer, também no sentido de que o mesmo modo de apreensfio a que a academia submetia os exemplares do perfodo colonial — a técnica Beaux-Arts da decomposicao ¢ livre recom- binagdo dos “estilos” — era reeditado, revisado, pelos modernos, em especial pelo pr6- prio Liicio Costa, A parte a oposigao estilistica entre as arquiteturas académica e moder- na, 0 tempo todo convalidada por Paulo Santos, ele nfo parece considerar problemético que 0 método Beaux-Arts seja perpetuado pelos anti-académicos. 0 problema, é claro, niio & apresentado nestes termos. Para resguardar a autonomia da arquitetura moderna, 0 elo de transigo precisa, no fim das contas, tornar-se tio abs- trato quanto em Lticio Costa. Daf que o neocolonial influa, acima de tudo, na redesco- ++ mais do que a forma o que importa a (radigio é 0 espiritos & ele que, se sobrepondo ds contingéncias efémeras de cada momento da Histéria dos povos, perpetua no tempo as constantes da sensibilidade nacional", Contudo, 0 “saldo negativo" do movimento ndo estava na sua existéncia (como dizia o sutor do Depoimento), mas na sua falta de legitimidade: a tentativa de reproduzir, tal ¢ qual (como expressiio da sensibilidade romantica da época"”), uma arquitetura que s6 se justificava em fungéo do modo de vida para 0 qual fora concebida, Mantendo 0 “culto & tradicdo"", ¢ atualizando a forma, 0 movimento moderno inverteria o sinal e transfor maria o saldo em "positivo*, A combinago da tradigao com a forma moderna nao era, entretanto, das mais sim- quitetura modema nacional, recorre precisamente & solugo dada por Paulo Santos: o papel de transigi exercida pelo neocolonial. " Paulo F. Santos, Quatro Séculos de Arguitetura, cit., p. 95 © wid. * *Culto & tradigio", sempre segundo as “Notas biogrificas”, & 0 tema de uma aula inaugural ministrads or Paulo Santos, na década de 50, na Universidade do Brasil, Capitulo seguado Paulo Santos sa ples, fem muito menos automitica. “A ajustagem perfeita entre a arquitetura dessas velhas casas [coloniais] e 0 sistema de vida que elas expressavam thes dava esse tono de ge- nuinidade brasileira que tanta yez falla as casus dos nossos dias, mesmo as melhores € que também na maior parte esteve ausente das experiéncias Neocoloniais, j4 que a pretensa ajustagem a que elas aspiravam assumia um tom de falsete, que no convencia. E é 0 que tem levado muitos dos nossos arquitetos de vanguarda, no af de quebrar a frieza das casas que projetam — frieza que ¢ uma inelutivel consequéncia da Revolugio Industrial e da pa- dronizagio geométriea de linhas imposta pela produgio em série, melhor: pela miquina —, a ir buscar para essas novas casas, dos ambientes de outrora, © contrapeso de que necessitam para restabelecer aquele calor de tradicionalidade (Jo caro & alma brasileira: méveis, prataria, porcelanas, tapetes, azulejos ¢ portas de almofadas obtidos em demoligies (uma delas usada por Alcides Rocha Miranda na capelinha da casa Almeida Braga a Rua Icati), telhdes de louga esmaltada (empregados por Licio Costa na casa da Baronesa de Saavedra em Itaipaya), ete"". A reutilizagéo de materiais originais é, por certo, mais legitima que a falsificagio (0 envethecimento aparente de materiais novos), praticada largamente no neocolonial. ‘Mas nao era desconhecida, ¢ tampouco privilégio da nova geragiio: a casa de José Mari- ano Filho no Rio de Janeiro, 0 Solar Monjope, planejada pelo proprietério para ser 0 principal manifesto do estilo, inclufa elementos decorativos coloniais auténticos. Dela, Liicio Costa teria afirmado ser "mals museu do que casa", A semelhanga de método compositivo moderno (nos exemplos mencionadas) com o neocolonial — guardadas to- das as proporgies — & por demais evidente para passar despercebida. Ainda que Paulo Santos no faca 0 confronto desses exemplos por ele mesmo lembrados, sua andlise do neocolonial enfatiza, como temos insistido, a importancia dese movimento — ¢ nao da propria arquitetura colonial — para a arquitetura moderna, Sua énfase, claro, € matizada pelo recurso a0 espfrito da tradigéo, € nem poderia ser diferente para 0 apologista dos modernos. Contudo, paralelamente a essa consideracao de ordem geral, ele no apenas "8 Paulo Santos, op. cit., p. 94. " Apud Paulo Santos, op. eit., p. 92. Caphuto segundo Paulo Santos sa no exclui do Ambito da arquitetura moderna téenicas caracterfsticas da académica, mas parece avaliz-las como desejéveis, Entre parénteses, para concluir, € necessirio dizer que a observagao de que & tradi- ‘Go mais vale 0 espirito que a forma é feita a propésito do Palicio da Alvorada, de Nie- meyer. A este, exemplo maximo do geupo dos assim chamados "criadores de formas no- vas", ndo pode ser facilmente creditada a utilizago das técnicas Beaux-Arts em seus pro- jetos, como Paulo Santos dé a entender quanto ao outro grupo, dos "tradicionalistas", en- cabecado por Lticio Costa”, Mas ndo se trata de atitudes antagénicas; antes, sio comple- mentares, ¢ 0 Paldcio da Alvorada parece entrar justamente para exemplificar que, por mais que a “mesma nostalgia" — da perda dos valores do passado colonial — seja “sen- sivel na obra de Laicio Costa", em momento algum este deixa de ser moderne. E, vice- versa, para demonstrar que as formas novas esto por sua vez imbufdas da “nostalgia” da nagéo que se pretende (re)construir: 0 perfil parabélico dos suportes do Palécio tem o ‘mesmo valor (ingenuamente?) simbdlico da espiral desenhada para as comemoragdes do IV centendrio de Sio Paulo — a representacdo da idéia de um progresso independente, de rafzes locais, bem como da decorrente independéncia cultural —, como se materiali- zando uma espécie de marxismo muito peculiar, presumidamente nacional ¢ organico”. Em 1965, em comemoragio ao quarto centendrio da cidadé do Rio de Janeiro, a ‘Universidade do Brasil organizou um ciclo de conferéncias, sob o titulo geral de “Quatro Séculos de Cultura". A Paulo Santos coube falar dos "400 anos de arquitetura"™. A ex- posigiio, seguindo a cronologia politica, foi dividida em trés periodos: colonial, imperial "Bota distingio "tralicionalistas"“inovalores", que pode ser enconteada no proprio Liicio Costa, © que, sem ser formulads explicitamente, faz parte do racioefnio de Paulo Santos, torou-se um dos grandes lugares-comuns dos estudos (¢ do senso comum dos arqutetos) sobre a arquitenura moderna no Brasil, combora enh sido de fato pouco pesquisada. Paulo Santos, op. cit, p. 95. A interessante observagio sobre a “orgunicidade" hist6rica das formas Uo Patéclo do Alvorada & de Jorge Coli, ® Segundo 0 autor, teria sido essa a denominagio de sua conferéncia, que foi publicada sob 0 titulo “Quatro Séculos de Arquitetura” (in: Quatro Séculos de Culuira, Rio de Jancieo, Universidade do Brasi, 1966, pp. 43-202). O trabalho foi republicado em 1977, pela Fundacio Rosemar Pimentel (Barra do Prat, RJ), «em 1981, pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil. Caphulo segundo Paulo Santos 55 € republicano. Em face de suas publicagdes anteriores, o tema era-lhe quase todo novo: ‘nos periodos imperial e republicano, & excegio, obviamente, da arquitetura moderna, ele tocara apenas indiretamente quando de seu comentario sobre a revolugo industrial e as novas técnicas construtivas surgidas no século XIX. A familiaridade com a arquitetura carioca do perfodo colonial € compreensivel. A surpresa estd no espaco dedicado 20 neoclassicismo ¢ a0 ecletismo, até entdo ausentes do rol de suas preocupagées histéricas (salvo, aqui, 0 neocolonial”). Das quarenta paginas do perfodo republicano, vinte ¢ cinco sio para os acontecimentos que vao da proclama- io da repiblica & revolugao de trinta, e apenas as quinze restantes para © movimento moderno. © niimero de paginas, por certo, nfo dé a ordem de importancia dos fatos: a arquitetura moderna sera sempre a fiel representante da sociedade industrial. Em todo caso, mostra como a arquitetura académica adquiria o direito de figurar na hist6ria quase sem restrigdes (a8 paginas a ela reservadas por Liicio Costa no Depoimento, apesar de significativas, so em nimero bem menor), © estudo da arquitetura dos perfodos imperial e republicano precisaria ter-se inicia- do alguns anos antes para que 0 autor pudesse, em 1965, esbocar uma sintese dos quatro- centos anos da arquitetura carioca — ainda hoje uma obra de referéncia, embora enve- Thecida. Tudo indica que este trabalho, facilitado pelo envolvimento direto do autor nos principais episddios arquitetdnicos das primeiras décadas deste século (os estilos histéri- cos europeus, a experiéncia académica nacionalista ea introdugde do modernismo), jé se iniciara com o reconhecimento da influéncia do movimento neocolonial sobre a arquitetu- ra moderna, Apesar do reconhecimento nao se estender, necessariamente, ao conjunto da arquitetura académica (esta seré sempre mantida do lado da forma tradicional), indi- retamente diminui a distincia entre ambas, ¢ estabelece pontos de contato, favorecendo uma abordagem um pouco mais objetiva da época. O estreitamento dos vinculos apli- iculdade, 4 arquitetura neoclassica de Grandjean, e, de modo geral, 20 ia sobre "O Album da Avenida Central". Nas "Notas biogré le 1908, que & evidentemente,,a data da publicagio do dl- bum, c nio da conferéncia, Como a indicagio resume-se ao nome do dlbum & data, ficemos sem saber do que se trata, Caphulo sopunde Paulo Santor 56 século XIX. A esta altura Paulo Santos quase certamente encontrava mais proximidade entre a arquitetura das primeiras décadas do século XX € a modema, que entre esta € a colonial, Paralelamente a essa timida reviravolta historiografica, desaparecem as referéncias a0 “espirito barroco” da arquitetura brasileira. As "constantes de sensibilidade", entrando mais ou menos em seu lugar, sem excluir a relagéo com o barroco, nao remetem mais nominalmente a ele. A énfase agora é outra: no Quatro Séculos, a expressio “constantes de sensibilidade” surge a propésito da relagiio neocolonial |-modernismo, representando 0 conjunto da tradigio do pasado, em "espirito", mas ndo necessariamente barroco. A mu- danga aparentemente no tinha qualquer significado especial a0 autor, posto que no vé necessidade de explicé-la; no hd, de nosso conhecimento, mengio a isto nem nos textos dessa época, nem nos posteriores. E dificil saber até que ponto existe ligacdo entre essa mudanga € a ampliagdo do horizonte histérico que se processava. Tem-se a impressio, contudo, que o nivel de exigéncia tedrica de Paulo Santos diminufa com o tempo; ¢ ain- da, ou principalmente, que este diminufa 4 medida em que acumulava informagdes pouco ‘compativeis com a periodizagio histérica emprestada de Lilcio Costa. © que 0 apanhado de quatrocentos anos da arquitetura carioca tem de esforgo de organizar e descrever a massa de dados reunida, falta no de articular teoricamente os novos problemas daf decor- rentes. E de ora em diante a pesquisa quase ndo se desenvolveu; os trabalhos que ele pu- blicou desde entdo trazem uma ou outra nova contribuigdo e longos trechos literalmente transcritos dos anteriores. © fato que, por volta de 1965, Paulo Santos praticamente encerrara seus estudos sobre a arquitetura colonial”, para concentrar-se nas "raizes" da arquitetura moderna, in- cluindo af a arquitetura do século XIX ¢ inicio do XX. Em fungZo também da data come- morativa, publica, em caderno especial do Jornal do Brasil, A arquitetura e 0 urbanismo do Rio de Janeiro republicano”. De ora em diante, segundo nosso levantamento, publica 7 Fista serd objeto apenas de algumes conferéncias e comunieagdes; & excesio de uma confersncia sobre Aleijadinho, o barroco desaparece por completo de seus trabalhos ¢ publicagdes (isto €, a confiar nas sempre mencionadas "Notas biogréficas") * O artigo nfo foi republicado. Nas palavras de Mério Barat, 0 Yexceleate Caderno inclu alguns textos tan Caphulo segundo Prulo Santos ” ‘os seguintes trabalhos (em ordem cronolégica): A Arquitetura do romantismo (1979)"; A Revolucto Industrial ¢ a mecanizagao das artes (1979)"; A arquiteuira moderna ¢ suas raizes (1981), Arquitetura e Urbanismo na Avenida Central (1982)"; Interagdo do pas- sado @ presente no processo histérico da Arquitetura e do Urbanismo (1986)*; & Cons- tantes de sensibilidade na arquitetura do Brasil (1988). A redacio dos dois vimos, po- rém, é bem anterior ao ano da publicacio: o Constantes data de 1975, ¢ 0 Interagiio do pasado e presente deve datar também de meados da década de setenta”. Destes textos acima relacionados, excluindo-se 0 A arquitetura e 0 urbanismo do Rio de Janeiro republicano, reproduzido no Quatro Séculos, nenhum merece atengio especial de nossa parte. Em A arquiretura do romantismo, no trecho em que analisa 0 suposto prolongamento do fendmeno até as primeiras décadas do século XX (no neoco- lonial, ¢, até, na arquitetura moderna, por influéncia daquele), transcreve passagens in- teiras do Quatro Séculos, sem nada acrescentar. A arquitetura moderna e suas ratzes nio vai muito além, ao que parece, de uma colagem de publicagdes anteriores, uma parte sada do A Arquitetura da Sociedade Industrial, ¢ a outra, se nfo entendemos mal, de A Revolucdo Industrial e a mecanizagdo das antes”. Deste, as poucas observagdes que nos béen sproveitudos na conferéncia do antor, Quateo steulos de arquitetia',iniialmente editada peln antiga Universidude do rast, em 1965" ("Século XIX. Transigio e infcio do séeulo XX", in: Histérta Geral da Arte no Brasil, Walter Zanini, org, Sto Paulo, Inst. Walther M, Salles, 1983, v. 1, p. 450, nota 13). tn: Séeulo XIX: 0 romantisnio. Rio de lanciro, M.N.B.A., 1979, pp. 137-152. Segundo informaggo do autor, foi publicado em O Estado vle Sdo Paulo, 30/12/1979, Nao 0 conhecemos (vide nota 31). % in: © periado modemo, Rio de Janeiro, M.N.B.A., 1981, pp. 61-92, Republicado em Arquitetura Revista, v. 5, 1987, pp. 60-79. * In: Mare Fervez, © Album da Avenida Central, Rio de Janeiro, Jodo Fortes Engenhas Libris, 1982, pp. 25-47. % Arquitetura Revista, v. 4, 22 somestre 1986, pp. 3-9. ® Arquitetura Revista, v, 6, 1988, pp. 52-10. A note do editor (Arguiretura Revisia, vis. 4 6) diz apenas que 08 dois artigos compiem um trabalho intitwlado "Ralzes histricas da Arquitetura © do Usbanismo no Brasil". Na biblioteca da FAU-USP, hi 6p de um texto de Paulo Santos com o titulo: “Conslantes de sensbilidade do brasileiro, Paralelo com as do Portugués. Comunicacdo apresentada ao 12 col6quio do Comité Nacional de Histéria da Arte, « realizarse no Musou de Arte Contemporinea Ua Universidade de So Paulo, nos dias 29 30 de agosto de 1975", Com algumas poucas modificagdes, 0 contaido & 0 mesmo da publicagao de 1988, Nas “Notas hiogeificas", encontcamos referencia a duas comunicagbas do autor entre 1975 © 1977, uma com o titulo ‘cima, outra com 0 titulo “Interacio do passado e presente mo provesso histérico da arquitetura” (as datas, nas *Notas’, devem estar trocades). Dado que este titulo & quase exatamente igual (a nio ser 0 adendo “e do urbanismo") da publicagio de 1986, trata-se, a0 que tudo indica, de um vinieo trabalho, escrito, como o primeito, na década de setenta, ¢ publicudo tacdiamente % Em nota deste artigo, Pawlo Santos afiema que exteaiu matéria, para sua primeira parte, de "A Editors Bx- Capitulo segundo Paulo Santos 38 interessam direlamente, quanto ao art-nouveau, também jé estavam no Quatro Séculos. A Arquitetura ¢ Urbanismo da Avenida Central fica um pouco & parte dos demais, porque, a rigor, € 0 tinico cuja redago nao inclui transcrigies (ou, pelo menos, transcrigdes lon- Bas) de trabalhos j& prontos. Mesmo assim, a descrigdo detalhada que faz de alguns pou- cos edificios da Avenida, ¢ a descrigao geral do fato, nfo trazem muita novidade em re- lagdo ao que j4 se sabia sobre eles. Os dois iiltimos, Inseragéo «lo passado e presente c Constantes de sensibilidade, bem anteriores & data de publicagio, dao a falsa impressio, pelos titulos, de textos conclusives das pesquisas histéricas de Paulo Santos. Sio, ainda outra vez, a retomada das consideragées anteriores, a par de transcrigGes literais do que escrevera uma ou duas décadas antes. Um detalhe, no entanto, chama a atengao, O autor define as "constantes de sensibi- Tidade" do seguinte modo: "Sua arquitetura [do brasileiro], no que tem de muis caracteris- tico, organiza-se através de volumes de uma geometria clara e simples, de sentimento (ee- tonico na origem, tipicamente Portugués, em que domina a linha reta ¢ sé excepcionalmente se intromete a curva, ainda assim, as mats das vezes, em formas geometricamente definidas, € elementares... Qualidades que embora sejam comuns a toda Arquitetura do Brasil, de mo- do geral sito mais facilmente identificaveis na Arquitetura Doméstica"™. Ou seja, exatamen- te 0 oposto do que pretendeu dizer com seu “espitito barroco", na década de cinquenta, Nao obstante, isso om nada altera suas idéias anteriores: no fim das contas, mesmo se niio fica dito, as duas nogées se complementam, aplicando-se a casos distintos, conforme se protenda enfatizar este ou aquele aspecto (as "constantes de sensibilidade" mais ade- quadas & arquitetura "popular"; 0 “espirito barroco”, A "eru "), sempre vinculados & existéncia da suposta identidade nacional, Em suma, nessa segunda fase da obra de Paulo Santos a elaboracdo tedrica néo Arquitetura da Sociedade Industrial". Quanto & segunda parte, denominada “A forms pls da Revoluglo Industrial”, 0 autor insere uma nota no proprio subsitulo, que diz o seguinte: "Mecanizacio das Aries, Comunicagio nossi 0 Comité Internacional de Historia da Arte, publicado no Suplemento Cultural de O Estado de S20 Paulo, em 30-11-1979". Donde concluimos que aplicou aqui o mesmo procedimento que afirma ter adotado para a primeirs parte, isto &, que da comunieugio extraiu matéria para seguada parte, ® *Constantes de sensbilidade na arquitetuea do Brasil", p56. Cxpfuto segundo Paula Santos 9 acompanha o alargamento do horizonte histérico ou a ampliagao do campo de estudos da arquitetura do pats, que aos poucos se impunham ao autor. Suas reflexdes permanecem, mesmo se a seu modo, dentro dos pressupostos um tanto reducionistas sobre os quais Lu- cio Costa moldou seu modelo de andlise. Se as “constantes de sensibilidade” sobrepdem- 20 "espirito barroco" quase a0 mesmo tempo em que o estilo académico nacionalista sobrepde-se 4 prépria arquitetura da coldnia, isto ndo corresponde a nenhuma alteragio significativa nas reféncias tedricas de fundo, embora a mudanga de terminologia demons- tre as dificuldades de compatibilizar os estudos da primeira fase com os da segunda. As publicacées posteriores ao Quatro Séculos, longe de resolverem os naves problemas de método que a propria revalorizagao do neocolonial e, por tabela, de toda a arquitetura académica, punha em questio, limitaram-se no mais das vezes a reproduzir, € raramente desenvolvendo-as, algumas passagens deste trabalho de sintese, De Paulo Santos, ficam, destarte, a caracterizagdo do movimento neocolonial como © necessério elo transmissor, entre passado e presente, da identidade artistica nacional, e, mais importante, 0 Quatro Séculos de Arquitetura, © ponto alto de sua contribuigéo no que se refere ao periodo aqui em estudo. 2. As décadas académicas no Quatro Séculos de Arquitetura O capitulo "O Periodo Republicano” do Quatro Séculos de Arquiterura esti dividi- do em trés seqdes: 1. "Da proclamagio da repiiblica 4 revolugio de trinta"; 2, "Da revo- Ingo de trinta & eclosio do movimento moderno"; e 3. "RealizagSes dos arquitetos ca- riocas fora do Rio de Janeiro", Dessas, nos interessa a primeira, compreendendo 0s anos 1889-1930. Desde as linhas iniciais, € visivel a influéncia do Depoimento de Um Arquiteto Ca- rigca no tratamento dado por Paulo Santos a esse periodo, Ou melhor, principalmente no preimbulo, quando 0 autor enuncia os fatores sobre os quais se assentam as transforma- ges analisadas a0 longo de todo 0 capitulo. Todavia, nfo registra os créditos do métoda 20 autor de direit nisso inaugura a tradigfo historiogrdfica a que chamamos atengio no Capitulo segundo Peulo Santos © capitulo anterior. Se, como veremos em seguida, as explicagies hist6ricas gerais derivam o texto acima, o desenvolvimento ponto por ponto do tema toma caminho proprio ¢ dé origem, em grande parte, a uma versio diferente para estes acontecimentos. Veja-se 0 papel conferido ao neocolonial. As diferengas, no entanto, nao se esgotam af. Como no estudo da arquitetura barroca, Paulo Santos parte de Liicio Costa para construir uma in- terpretagdo que, tudo somado, choca-se com a dele. De qualquer maneira, as interpreta- des convivem lado a Jado, sem problemas (sem o perceber?): em alguns casos saem retamente do Depoimento e, em outros, sfo contrérias ds deste. Mais exatamente: quanto a primeira década do século, os textos so quase coincidentes; quanto & segunda, hé uma coincidéncia parcial; e, quanto & terceira, coincidem em um tinico ponto (a suposta hege- monia do neocolonial) e se contradizem em todo o resto. Se a forma de conceber a histéria os une, a forma de organizar a sequéncia dos acontecimentos os afasta. A exposigio, no Quatro Séculos, 6 rigorosamente cronolégica: segue de década em década, a cada uma correspondendo situagSes distintas, articuladas segundo um processo de evolucio estilistica. No Depoimento, vimos, © critétio cronolé- gico dita a ordem da exposigo mas ndo é predominante, ¢ nao tem a fungdo de caracteri- zar nenhuma evolugao estilistica: as décadas anteriores a0 surgimento da arquitetura mo- derna sfo, afinal, marcadas por "acontecimentos contraditérios”, Isto ndo 0 impedia, po- rém, de reconhecer um pequeno grat de continuidade entre ambas. No Quatro Séculos, a0 contrério, hd uma inequivoca linha de continuidade, comegando na primeira década ¢ culminando na nova arquitetura — linha que vai no sentido da "maior coerénein estilistica e apuro formal” (p. 85)”. Para Paulo Santos hé tés fatores na base das transformagdes do Rio de Janeiro na passagem do século (nessa ordem): a aboligho, a repiblica e a industrializago. Destes, 0 primeiro ¢ 0 tiltimo jé nos so conhecidos: foi o ponto de partida da andlise de Liicio Costa das primeiras décadas do século. A abolico exigia a racionalidade dos espagos doméstico ¢ produtivo, ¢ a industrializacdo fornecia os instrumentos materiais ¢ técnicos ® As indicagdes de paginas entre parénteses referem-se sempre, daqui em diante, a Quatro Séculos de Arquitetura, Rio de Janeiro, tnstituto dos Arquitetos do Brasil, 1981, Capitulo segundo Paulo Samos 6 A essa demanda racionalizante. A repiblica vem completar o quadro das mudangas ini- ciadas com a aboligio, Sindnimo de democratizagdo, d4 suporte ao paulatino progresso que conduz da grande propriedade & habitagdo coletiva: inicialmente, aquela divide-se em pequenos lotes individuais; em seguida, as casas individuais, de um tnico proprietério, tornam-se coletivas; adiante, substitui-se a casas por edificios de habitagao coletiva, com um proprietério por andar; finalmente, estes fragmentam-se em miltiplas unidades por andar, pertencentes a vérios proprietérios. A parte a singularidade do motivo, a "de- mocratizagio" dos espagos estava contemplada no Depoimenio. Disso tudo, entretanto, 0 autor tira urna conclusio que ngo figurava neste texto: a época era “de compromisso entre duas culturas distintas, e que na arquitetura e na construgdo se fez acompanhar de rmiltiplos conffitos, causas principais da desorientagio de arquitetos ¢ construtores” (p. 76). Sao eles (0s conflitos): de classes, de programas, de técnicas, de materiais, ete. A idéia da "€poca de compromisso" jé estava latente em Lticio Costa; o fato de Paulo Santos a cla referir-se com todas as letras tem, a nosso ver, o papel no s6 de enfatizar o caréter “de transigio” dessa arquitetura, mas também, e principalmente, de estreitar os vinculos (técnicos, mas também estilisticos) com a arquitetura moderna. Sem a énfase, o enfoque era familiar a0 primeiro; Laicio Costa, porém, reservara o estreitamento dos vinculos as transformagées “radicais" da cultura académica, enquanto Paulo Santos estende-o a todas as manifestagdes do perfodo. Apesar das divergéncias, cujo desenvolvimento, em iiltima andlise, os pe em cam- pos quase opostos, fica a impressiio que Paulo Santos pretendia tfo somente, de forma coerente, submeter todo o perfodo a uma Idgica puramente evolutiva. Afinal, o determi- nismo progressista da hist6ria € a grande lig&o recebida, pelo autor, de Liicio Costa — ‘mas voltando-a contra ele. Embora, & parte o determinismo, essa amarracio da experi- éncia académica & arquitetura moderna dé o que pensar, nao € este o principal valor do Quatro Séculos. O autor pasticipara pessoalmente dos acontecimentos da terceira década do século ¢, além disso, a arquitetura das duas primeiras décadas, em boa medida de au- toria de seus préprios professores, formara a cultura arquitetdnica de sua geragao, Tiran- Capfulo segundo Poule Santos a do partido da familiaridade com o assunto, dele quis dar um testemunho relativamente minucioso, enxertando no plano principal da obra diversos detalhes que the pareciam es- clarecedores. Nesta descrigio de fatos, nomes, ediffcios, etc, reside a contribuigo maior do trabalho ao estudo do periodo. Os detalhes, como veremos, em algumas ocasides con- tradizem ou desmentem a interpretagdo geral. Entretanto, 0 autor ndo teve preocupacio nenhuma em documentar ou dar as fontes dos dados, notas, atribuigdes, ete, que se avo- lumam no texto, talvez confiando apenas em sua meméria, mas com isso deixando 0 pes- quisador de hoje em apuros para controlar seus comentirios, em fungdo da dificuldade de locatizagdo e do desaparecimento de documentos. Em certos casos, todavia, assinalados adiante, nossas pesquisas no confirmaram uma ou outra proposigao do autor, levantando Gtividas quanto A total confiabilidade da obra, via de regra utilizada justamente como fonte indiscutivel de informagdes sobre a arquitetura dos anos 1900-30. No Quatro Séculos, a avenida Central introduz a arquitetura da era republicana: “De todas os fatos que a Laram a passagem do Império para a Repablica, nenhum exce- deu em importincia para o Rio de Janeiro, & remodelagie da cidade, empreendida no Go- verno Rodrigues Alves (1902-1906)" (p. 77). Acompanhando a opgio de Liicio Costa, que no Depoimento abria o hist6rico arquitetOnico da primeira metade do século XX com este episédio administrative de impacto, Paulo Santos pula uma década da arquitetura republi- cana (os anos 1889-1900), a suprime da histéria. Bis porque, tanto em um quanto no outro, a *variedade de estilos" da avenida Central aparega quase de surpresa. O autor por certo nao ignora a tiltima década do século XIX (mesmo porque o capitulo precedente fo- ra dedicado ao século pasado), mas dela timita-se a observar que a Escola Nacional de Belas Artes diplomou tio somente trés arquitetos (entre eles Heitor de Mello), acrescen- tando serem estes em mimero reduzido quando dos trabalhos de abertura da avenida. Preteridas as construgdes menos vistosas (mas provavelmente ndo menos impor- tantes) da década anterior, ou contempordneas & abertura avenida Central, a énfase recai na “variedade” estilfstica: "Além das premiados no concurso [de fachadas}, praticamente to- Capito segunda Paulo Santos 6 dos os principais arquitetos, engenheiros e construtores di époea realizaram projetos de pré- dios para a nova avenida, 0s quais ainda que rotulados sob os mais diversos estitos, na maioria nio 0 possufam, resultando cada qual frequentemente da associagio de formas oriundas de estilos di intos. A preocupagio maior era a variedade, seguindo-se 11 inspiragio vinda de fora, inclusive para os prédios mals qualificados" (pp. 79-80). © autor destaca (nessa ordem) 0 edificio da Fscola de Belas Artes e 0 Teatro Municipal. Da obra de Morales de los Rios, diz que a fachada principal vem do Louvre, da ala de Lefuel Visconti; as laterais, do renascimento italiano; ¢ que a posterior é composigio livre. Essa descrigéo das fachadas da Escola om trés estilos diferentes nao de autoria de Paulo San- tos: ele toma de empréstimo a hierarquizagdo entre fachada principal, taterais e posterior, como também a comparagio com o Louvre, que 0 filho do arquiteto fizera na biografia escrita em homenagem ao pai, ¢ acrescenta apenas a derivagdo do renascimento as facha- cas laterais™. E através dele, porém, que a referéncia, em especial a relagdo com o ediff- cio de Lefuel e Visconti, torna-se um lugar comum, frequentando todas as paginas de pu- blicagées especializadas”, Ele no hesitou, modificando-a a seu favor, em adoté-la como sua: serve magnificamente ao propésito de mostrar a "variedade” e a “inspiracdo vinda de fora” da arquitetura da avenida Central ("Misturavam-se assim os estilos no mesmo edi- fico..." [p. 80]). © paralelo com a caracterizagdo da avenida por Licio Costa & inevitavel. De um Jado, a “variedade de estilos", substituindo a expressio “consagracao do ecletismo arqui- tetOnico": a maioria dos ediffcios da avenida tem "gosto duvidoso". De outro, edificios ™ Adolfo Morales de Los Rios Fitho diz. que o projeto da Bscols foi “hascado no monumental frances do sé culo XVHL, que Leveul {sie} Viseoati impr 40 Paldcia do Lauvee, de Paris". As fuchadas lntoras tix ‘nham “que ser menos suatuasss"; a posterior, "tendo de ser diferente das outeas... ne permiiu fazer de uma parede exga uma obra de arte" (Adolfo Morales de Los Rios. Figura, Vida e Obra, Rio de Janeiro, Editor Borsoi, 1959, pp. 185-6). > Em ordem eronoldgica, eis a fortuna do comentirio: 1. Giovanna R. Del Brenna, "Rio Felético", in: Rio. Guia para uma Historia Urbana, Giovanna R. del Brenna ¢ Tema Atestizabal, org., Rio de Janciro, Fundagio Rio, 1981; 2. Mario Barata, *Séeulo XIX. Trensigfo ¢ inicio do séeulo XX*, cit. p. 4395 3. Giovanna R. Del Brenna, "Eeletismo no Rio de Janeiro (aée. XTK- XX)", in: Eeletismo na Arquitetura Brasileira, cit. p. 57: neste trabalho, # autora cita Paulo Santos exatamente pars validae a comparagio ‘entre a Escola de Belas Artes e o Louvre de Lefuel © Visconti; ¢ 4. Guia do Paurintonio Culrurat Carioca. Bens Tombados, Rio do Tancivo, Dpto. Geral do Patrimnénio Cultural da Prefeitura da Cidade, 1990, p. 26. Capitulo segundo Paulo Santos “4 qualificados — a Escola ¢ 0 Teatro — que, embora igualmente compésitos, sobressaem- se em relago ao conjunto, A incluso do Teatro, ausente no Depoimento, fica por coma da filiagdo & Opera de Paris, de Charles Garnier. Apesar do paralelo até aqui visivel, os critérios de atribuigdo da qualidade arquiteténica no coincidem. Para o primeiro, a Bs- cola distingue-se, vimos, pelo excepcional talento — a "versatilidade e mestriaY — do autor. Paulo Santos discrimina a Escola ¢ 0 Teatro tanto pela fonte de inspiragao (a Paris, do Segundo Império € o renascimento italiano) quanto pela funcionalidade das instala- ‘Ges. Enquanto um nega qualidades 2o teatro, nfo 0 nomeando, o outro o iguala & Esco- Ja, Mais importante, Liicio Costa abre excegio para mencionar em destaque, nos traba- Thos de abertura da avenida, apenas 0 edificio de seu antigo professor Morales, 0 "mago" do historicismo Beaux-Arts. Aquele provavelmente nfo percebeu este detalhe; de qual- quer modo, seus critérios, neste caso, eram menos exclusivistas. A execugio do Teatro, para os padrées nacionais da época, foi primorosa; todos os detalhes téenicos ¢ funcio- nais foram bem calculados e, no acabamento, utilizou-se quase sempre material de qua- fidade, A arquitetura "de compromisso" tem nele um de seus principais representantes”. Mas nio era o tipo de compromisso que buscava Léicio Costa; sua preocupagio sempre esteve, acima de tudo, nos aspectos compositivos. Daf que para este a avenida Central fosse um fato ja perdido no tempo, a ser evocado tio somente para o necessério contraste qualitativo, enquanto seu ex-colega de Belas Artes ainda voltard ao assunto, confirmando © imenso destaque a ele conferido desde 0 Quatro Séculos. Contudo, o interesse de Paulo Santos pelo episédio € circunscrito, ¢ no influi em nada no andamento de sua sequéncia histérica. A medida que avanga no tempo, sua atencHo concentra-se cada vez mais nos arquitetos saidos da Escola. © neogético, os estilos orientais € 0 art-nouveau completam, no texto, 0 repertério dos estilos da primeira década, Os exemplos do ncogético, ou, numa outra denominagio % Quando refoma o tema, em 1982, em "Arquitetura e Urbanismo na Avenida Central’, cit., Paulo Santos comega a descrigio dos principais edificios da avenida justamente pelo Teatro, invertendo a order de 1965. Seus critérios so agora sinda mais abrangentes, como se a avenida fosse a expresso acabuda da arquitetura “de compromiss0", Inclui, entre os "bem qualficados", além do Teatro e da Escola, a Biblio teca Nacional, © Palicio Monsoe, a Caixa de Amortizagio, s Companhia Doca de Santos, o Clube de Engenharia, ¢ os Jomais do Brasil, do Comercio e O Pals. Capitulo segundo Paulo Santos 6 do autor, do “neoromanicogético", so poucos: uma casa, na praia do Russel, de autoria de Thomas Driend! (de quem nio nos dé informagGes), e duas igrejas, N. S. da Paz, em Ipanema, e Senhor do Bonfim, em Copacabana, “ambas de autoria do professor Gastiia Bahiana que nelas fez praga dos seus conhecimentos de estereotomia, imitando na argamassa do revestimento as juntas de pedraria da arquitetura medieval, de que se mostrava autoridade nas suas ligies na ENBA" (p. 82). Segundo nossas pesquisas, as duas igrejas de Gastio Bahiana mencionadas datam provavelmente da década de 20”, e nfo de 10, como quer Paulo Santos. Ele poderia, no entanto, ter acrescentado, as igrejas, as fachadas também "neoromanicogéticas* (neste caso, espécie de neoroménico mesclado com um ou outro arco ogival) projetadas por Bahiana para a avenida Central, estas sim a primeira década do século. Mas Gastio Bahiana, fato descurado pelo autor, destacava- se também como representante da escola clissica francesa. Isto é, a0 contrério do que, como veremos em seguida, Paulo Santos pretende, o fendmeno nao & espectfico da primeira década nem muito menos é insepardvel do historicismo classicizante: os estilos medievais, assim como 0s pitorescos, sio a outra face da nova liberdade técnica e formal conquistada pelos arquitetos desde a segunda metade do século XVIII — onde a face principal € a prépria liberdade frente 20 principio da “beleza absoluta" atribufda pelos “antigos" ao repertério cldssico das ordens arquiteténicas” —, e s6 desaparecerao quando > No Nifeleo de Pesquisa e Documentacio (NPD) da FAU-UFRS hé duas plantas de igreja de autoria de Gastdo Bahina, que pertenceram a Paulo Santos. Uma doles é visivelmente da mencionada N. S. da Paz, ‘om Ipanema, pois confere com 0 edificio, sinda existente, O desenho esté assinado e datado: 30.03.1922. © outro também estd assinado e datado (8. 1929), mas no 0 identificamos; podd se tratar da igreja de Copacabana, nfo localizada (deve ter side demolida). Agradego aos pesquisadores do NPD a gentil permissio da consulta aos originais de Gastio Bahiana, bem como as informagées sobre os desenhos. Cf. a propésito, esta passagem fundamental de Georges Teyssot: “La signification du Sublime est énoncée lairement. Refus des regles et de I*imitacion", exigence de “tiberte® subjective, ne sont pas seulement 1k pour concevoir le nouvel "art®, Ia nouvelle nature — celle de la ville ct du terrioire —, et, moins encore, our annoncer une tre “pré-romantique* ou un "elassicisme romuntique”, mais pour préparer les conditions ‘matérieles d'une rationalisation formelle. La Miberté" doit permettre de dominer mieux ks processus de réalisation de lt forme... Abandonner les régles (celles de larchitecture “classique! sigatie, pour Narchitecte et ingéaieur du XVII sitee, accéer & une liberté qui ne doit pas etre seulement enten penser Ia réalité, mais surtout d'éditer de "nouvelles réglest, qui, tenant comple d'un données ct d'informations, ont une possibile majeure de douination sur le réel. La i pour Wa technique™ (Georges Teyssol, "Klassizismus et ‘Architecture révolutionaire'*, preficio a: Emil Kaufmann, Trois Architectes Révolutionnaires. Boullée, Ledoux, Lequeu, Paris, Editions de la SADG, 1978, pp. 12-31; « passagem citada esté& pagina 28), » Refiro-me, evidentemente, 4 conhécida quercla dos antigos e modemos travada nx Franga na segunda ‘melade do século XVII, quando Perrault opunha ao principio da “beleza absoluta” dos antigos a "belez Captulo seguad Paulo Santos 66 desaparecerem os estilos classicizantes, com a chegada, na década de 30, do movi modemo. A riépida caracterizagio dos estilos orientais também visa pér em evidéncia apenas © lado exético do episédio, para melhor ilustrar a “variedade de estilos" com que se inau- gurava a arquitetura do perfodo republicano, H4 quatro exemplos: o Instituto Oswaldo Cruz, “obra do arquiteto Morais Jardim"® (p. 82), 0 Café Mourisco ¢ o Restaurante As- sirio, ambos atribuidos a Morales de Los Rios, ¢ ainda o Pavilho Mourisco, sem autoria, A Morais Jardim (ou Lufs Moraes), Paulo Santos atribui também, sem apontar 0 estilo, dois outros edificios, a Beneficéncia Portuguesa ¢ a Igreja da Penha, dos quais néo temos qualquer noticia, O chamado Café Mourisco, de Morales, j4 aparecera um pouco antes, classificado em estilo “ardbico-persa™", para ilustrar a justaposigdo e a diversidade estilistica da avenida Central — e sempre que reaparecer, de ora em diante, seré nesse posto, em fim de contas, muito pouco honroso™. A atribuigdo a Morales do Restaurante Assfrio, situado no pavimento térreo do Teatro Municipal, € duvidosa: nao consta a origem da informagao, e seria preciso explicar como uma decoragéo do Morales foi parar no Teatro, projetado por uma equipe da prefeitura da capital, O Pavilhio Mourisco, "s toado no fim da Prain do Botafogo, no qual predominavam os dourados ¢ azuis de vistaso efeito” (p. 82), atribufdo a Morales por Lticio Costa, ficou sem autoria. Neste caso Paulo Santos foi mais prudente, e sua dtivida (ou desinteresse) se justifiea”. aubitrdrin”, Esta baseava-se mis mesinas ordens arquitetOnicas herdadas dos traladistas, mas seria agora deferminada pele costume ¢ pelo especialista, endo mais pela suposta superioridade ideal das regres eldssicas. Em outros termos, 2 nova "beleza", antecipads por Perrault, & de ordem puramente ‘convencional ¢ cabe a Academia a necessiria tarefn de arbitré-la, sem © que a confusio linguistica seria ivel: mas « prépria descoberta da convencionalidade da linguagem urquitet@nica abre © caminho i total libesdade criativa, ito deste, esereve Mério Barata: "Um arquiteto portuguds, Luis Moraes Jinior, projetava no comego © Instituto Oswaldo Cruz, et Mangwiahes, numa reerigio de estilo muculmano, com ce e cromatismo* (op. cit., p. 439). “Na biografia de seu pai pai, A’ Morales de Los Rios Filho conta que o café era *erradamente contecido ‘como Editicio Mouriseo quando devia ser ehamado Persa” (0p. cit., p. 182), por ser no estilo persa, e nio rmouriseo, Paulo Santos parece ter aproveitado a retificegio para somar 0 nome corrcto do estilo a0 nome pelo qual obra era poptlarmente conhecids, chegando a um estilo compésito, de sua invengio. * Yves Broand, por exemplo, como veremos no préximo capitulo, destaca 0 anacronismio pitoresco" do estilo persa de Morales, justamente para enquadrélo, de modo implicito, no mau-gosto (eontrapondo-o 20 "bom gosto" das realizagBes de qualidade). © A pesquisudora Claudia Ricci, do NPD/FAU-UFRJ, que estuda a obra de Morales jf hi alguns anos — a ‘quem agradeco pelas inumeriveis informagdes sobre o arquiteto — nos confirmou pessoalmente que o Capitulo segunda Paulo Santos oa E € quase também 2 maneira de um exotismo passageiro que ele apresenta 0 art nouveau. A comegar que inclui sob essa denominagio a arquitetura de Virzi, a quem, no entanto, reserva um lugar & parte no movimento, Para completar, no tem como apontar uma tinica grande realizagio, no Rio de Janeiro, que se encaixe completamente dentro dos padres da nova arte. O mencionado projeto de Dubugras para © teatro: municipal ficou no papel; além disso, 0 arquiteto estaya estabelecido em S40 Paulo. Da capital pau- lista era também Carlos Eckman, que projetou, com um sécio, os edificios Hasenclever e Herm Stoltz, na avenida Central, Estes, segundo o autor, eram muito simplificados, mal ‘comparando-se com a Vila Penteado, construfda por Eckman em Sio Paulo, Antes ainda de listar estas tentativas de pouco efeito, fizera referéneia as duas casas consideradas art nouveau por Liicio Costa; entio demolidas, o autor no as conhecera, e as inclui baseado apenas no comentario deste, © tinico carioca conhecido a representar 0 estilo é Heitor de Mello, que “na pri- ‘meira fase de sua earreira (1898-1905), hesitava entre o historicismo e a ruptura com 0 pase sado tendo realizado trés trabathos no estilo i ugurado por Joseph Olbrich na galeria da. Seression de Viena (1898) e logo depois faria mais um projeto nesse estilo” (p. 84). Paulo Santos, tudo indica, também no conhecera estes projetos, e provavelmente os relacionou 4 Secession vienense porque foram classificados pelos contempordneos em “estilo Seces- so", do qual nem ele, supomos, sabia do que se tratava, pois deste ndo nos ¢4 qualquer indicago precisa. Heitor de Mello transitava pelos mais diversos estilos, © & até provavel que conhecesse razoavelmente 0 art-nouveau; mas aproveitar alguns recursos decoratives derivados do movimento no é © mesmo que tomar-the o partido, ainda mais consideran- do a forte origem académica da tendéncia vienense. Em todo 0 caso, a relagdo do art- nouveau com a arquitetura académica carioca 6 um capitulo dessa hist6ria ainda por ser estudado. A essa série de empreendimentos frustrados ou desconhecidos, ele acreseenta uma espécie de art nouveau difuso: *Muitos prédios ainda existentes, sem que possam a rigor Restaurante Assirio e 0 Pavilhiio Mourisco nfo so de sua autoria, Capitulo segundo Paulo Santos e ser considerados Art-Nouveau incuem elementos nesse estilo: grades, lambris, mol lustres, ete... Raro, alids, 6 0 prédio do centro da cidade construido por volta de 1910 cu grades nao sejam Art-Nouveau” (p. 83). Resta, enfim, a obra de i, que todavia foge A classificagio proposta: “Lugar & parte na arquifetura do Rio de principio do século deve ser conferido 2 arte pessoal do arquiteto Antonio (p. 84), Aqui autor retoma diretamente comentétio de Licio Costa: "embora sem a nitides de fitiago, [as casas de Virzi] se aproximam mais do Modernismo Cataliio de Gaudf em Barcelona ou de Riera em Madri do que dos méltiplas ‘outros movimentos paralelos da Bélgica, Franga, Atstria, Inglaterra, Alemanha e [tilia, que Benevolo (1961) ¢ Schmultzler (1964) enfeixam na chave Art-Nouveau" (p. 84), A par do esforgo para incluf-lo no art nouveau definido como tal pela historiografia*, ele também € obrigado a forgar a cronologia. Licio Costa deixara Vir2i completamente fora do movimento, atrasando sua atividade para o pés-guerra, Paulo Santos a recua, para po- der fazé-lo participar dos acontecimentos dos primeiros anos do século, mas nfo esclare- ce que 0 arquiteto se estabelece no Rio por volta de 1910-11, e que, portanto, sua atua- ao na cidade data da segunda década. Independente até das fitiagdes que se d& a Virzi, aqui parece estar em jogo a necessidade de situ-lo na esteira de um estado de espirito — © gosto pela variedade, pela fantasia, além da sugestio de exotismo — circunscrito Primeira década do século, ¢, como veremos em seguida, a necessidade de deixar os anos 1910-20 livres para a emergéncia de um modo de operar que dele difere frontalmente, No limiar dos anos 1910, outro evento de iniciativa piblica encerra, no texto, a primeira etapa arquitetOnica do século, A maneira de um grande final anticlimético dos anos precedentes: "A desenvoltura que caracterizou as projetos arquitetinicos da Avenida. Central degenerou em ticenca na Exposigiio de 1908 na praia vermelha.., em que a mi imi- tagio das formas que se haviam dado A Exposigho de Paris de 1900 conduziu a solugies de uma hibridez ¢ descomedimento que sé podem ter sido intencionalmente procurados,.. Nem Em Benevolo, por exomplo, omos: “A marge da art-nowvemn, mas por cela conectido con 0 epito inovador que percorre toda a Europa, teabalha nu Espanka Antonio Gaul (1852-1926)" (Historia la Arqui tetura Moderna, Sio Paulo, Perspectiva, 1976, p. 322). Caphule sepund Paulo Santos o por hibrida e descomedida na sua arquitetura, deixou a Exposigo de ser deserita na rey Kosmos como ‘uma cidade de eneantamento..."" (p. 85). “A passagem da primeira para a segunda década do séeulo — continua Paulo Santos — foi mareada por projetos que revelavam maior coeréncia estilistica ¢ apuro formal devie dos entre outros a Rafael Rebecchi, Morales de Los Ries (pai), Armando da Silva Teles © Heitor de Melo" (p. 85). Se adiantarmos que a transigio da segunda A terceira, "depois da apuragio de formas da década anterior", segue na direcdo de uma “espécie de triagem, em que iriam disputar a preferdneia dois estilos, Luiz XVI... ¢ 0 Neocoloni * (p. 87-88), a intengZo do autor se esclarece, Segundo a sequéncia descrita, depois da profusdo estilistica do perfodo 1900-1910, a arquitetura 44 uma guinada e inicia um movimento progressivo de depuragio das for- mas. A reviravolta jé € patente nos anos 1910 e se acentua nos anos 1920, quando 0 neo- colonial entra na histéria, € pée-se como alternativa aos estilos europeus. Neste proceso, 08 arquitetos de formagio Beaux-Arts desempentam um papel absolutamente central —~ mas isto no fica dito. Acompanhando a sequéncia da evolugio estilistica, a outra grande novidade da segunda década esté na introdugio da técnica do concreto armada, que dé entéo seus primeiros pasos, e por volta de 1920 jé é empregada na construgio de arra- nha-céus. No conjunto dos anos 1910-1930, hi, portanto, trés nfveis de transigo arquite- tOnica: 1, a racionalizagdo (simplificagio) das formas no domfnio dos estilos histéricos importados; 2, a racionalizagdo das técnicas construtivas, ¢ sua consequente insergio na produgdo industrial (note-se: © autor transforma uma técnica ent, € ainda hoje, predo- minantemente artesanal, como o conereto armado, em um indice da industrializagio da construgdo) — a racionalizacao técnica e a estilistica, em alguns casos, andando lado a lado; ¢ 3. a volta a0 pasado nacional, em sentido oposto ao do progresso formal ¢ tée- nico: 0 neocolonial, apesar de no desprezar as novas téenicas, é obrigado a fingir, em aparéncia, a feigio de um passado tecnicamente nidimentar (na habitagtio, por exemplo), ou a retomar estilos, 0 barroco € 0 rocoes, também em aparéneia pouco condizentes com

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