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ANTROPOLOG PORTUGUESA Neste mimero Priticas Artisticas na Modernidade peered Antropologia das Artes Vol. 11 1993 DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA. TUN Pa AGO NUE Antropol. Port., 11, 1993: 59-65 SOBRE A CONSTRUCAO DE UMA CASA* Filomena Silvano Tereza Coelho Resumo: Os emigrantes respondem A ameaga de desarticulagao dos seus sistemas de representagao através da criagtio de um novo espaco; uma utopia que se inscreve no lugar de partida, TE acasa ausente, uma realidade que se constrGi ao ritmo das idas € das vindas. Estas casas siio o exemplo de uma operacionalidade que produz universos signiticantes a partir de fragmentos: citam os espacos ausentes (os telhados inclinados, as torres e as ameias) ou desdobram-se nas respostas dadas a uma mesma necessidade, de forma a preservar varios saberes e vérios hébitos (duplas cozinhas duplas casas de banho). Ao construirem as suas casas os emigrantes fazem exercicios de recomposigao de cédigos, criam novas formas de organizagio do habitat e, consequentemente, instauram novas formas de sociabi- lidade. Palayras-chave: Casa do emigrante, utopia, habitat, identidade, modos de vida. * Fotografias gentilmente cedidas por Rui Gageiro 60 Filomena Silvano € Tereza Coelho Alvaro Barbosa voltou a Portugal no Verio de 1974, Diz que esperou por uma lei que dizia que os emigrantes podiam vir sem terem de fazer 0 servigo militar. Instalou uma oficina, que mais tarde se tornou uma fAbrica de sistemas de aquecimento e produgio de caldeiras, segundo uma patente registada no LNEC. Depois construiu uma discoteca, para as noites da Caranguejeira, aldeia onde vive. A seguir construiu uma casa. Uma casa diferente de todas as outras, porque niio gosta de casas todas iguais, se as casas fossem todas iguais néo era preciso andar a ver 0 pats, chegava-se a frontira e jd se tinha visto tudo, os turistas da Alemanha ou da Holanda on da Bélgica ou da América chegavam & entrada de Portugal endo valia a pena percorrerem nada, 0 melhor era terem ‘ficado em casa. Gostei sempre muito do trabalho artistico. Gosto de inovar, de gradea- mentos artisticos, daqueles que déem gosto. Ignais Aquele que eu fiz ndo se véem mais, e se se virem dois ou tres é porque foram copiados. Quando hé um desenhador, 0 que ele quer € 0 dinheiro. Jé tem marcado no papel vegetal uma casa e com o mesmo desenho faz uma e outra, sdo todas iguais. Eu conhego bastante bem o pais e claro que nem em todas as zonas foi permitido fazer uma casa com determinados requintes. E hd sitios em que nem sequer hd materiais para isso. Mas a pessoa quando tem gosto numa coisa vai ¢ faz. Foi 0 que Alvaro Barbosa fez: ew tenho ali aquela fachada revestida com uma pedra que néio hd aqui na zona ~ fii buscd-la para cima de Viseu. E pedra de Sobre a Construgdo de wma Casa mica, uma pedra com que se faz um vidro que resiste ao calor. Eu vi uma linha uns doze anos, e levei muito tempo a saber de onde é que ela era. Gastei muito dinheiro a procurd-la. Tinha uma pedra pequenina de mica, que guardou sempre com ele. Agora h4-de ser guar- dada na torre da casa, com as outras recordages, € para isso que serve a torre: para guardar a meméria. As pedras e outras coisas. Desde o primeiro reldgio que eu tenho desde os catorze anos, antes de andar a dar serventia de pedreiro, enquanto ainda gnardava ovelhas. Tinha uma caixinha enterrada no chio e ia ld pondo o dinheiro que conseguia juntar. O relégio guardei-o sempre, comprei outros depois...e a torre estd reservada para isso. A casa em frente também tem uma torre. E a casa de uma pessoa amiga, que veio viver para cd e queria uma torre igual a minha, é diferente porque igual ndo tinha graga nenhuma, estar- mos a fazer as mesmas unia em frente da outra, “Desenhou, e a torre do outro ficou exactamente como no desenho. Como a casa dele, que nio vendia nem por quarenta mil contos, que j4 Ihe ofereceram; simplesmente porque € a casa onde ele quer viver, ¢ wna pessoa tem de viver numa casa de que gosta. Eu queria dar una certa dimensdo a casa, sem irmos muito para 0 moderno. S6 fiquei com pena por causa dos alu- minios. Devia ser uma casa com madeiras. Mas realnente na altura ndo linha posses para isso. Ndo é nada que ndo se possa modificar, tem & que ser uma madeira feita, nado é uma madeira qualquer... uma que dé contornos ao 61 62 Filomena Silvano e Tereza Coetho estilo antigo — quer dizer, isto ndo é bem antigo ~ € uma fase intermédia. A casa tem dois andares — porque ele tem dois filhos. Quando tinha a casa ja com o primeira andar pensei que depois podia ja nao ter dinheiro para fazer a casa para 0 outro. Depois imaginei uma passagem obrigatéria pela torre para quem habitasse o primeiro ou o segundo andar, como imaginei 0 quarto da torre para as coisas que juntei. Fiz os desenhos todos e a Camara aprovou. Parece que jd tém posto entraves, mas eu continuo na minha, a pessoa deve habitar uma casa de que goste. Onde se sinta bem, porque mora dentro dela. AS CASAS INCONGRUENTES Normalmente as pessoas nao gostam destas casas. Sio demasiado diferentes das outras, porque supd6em uma orga- nizagio muito espccifica da realidade, como uma pessoa que se lembra de por a cama na sala e tem de enfrentar os olhares dos que vém de visita. Os emi- grantes organizaram, segundo os seus préprios critérios, 0 seu espaco, a sua meméria, a sua identidade. Realizaram uma utopia. De um sonho que tinham desde antes do dia em que se foram embora. Comegaram por viver noutro o pats, com a ideia de uma casa, para depois. Uma casa ausente: uma realidade que iam construindo ao ritmo dos regressos. Viviam materialmente num quarto pequeno, numa barraca ou num HLM em Paris ou noutra cidade qualquer, e vi- viam mentalmente na casa que queriam Sobre a Construgdo de uma Casa consttuir. Viviam rodeados de objectos ausentes: todo o “recheio” dessa casa, que compravam e ni tinha sitio, no sitio onde realmente viviam. Depois foram comprando, sempre mais, por todos os sitios por onde passaram. A casa de Por- tugal era construfda segundo planos que correspondiam a fragmentos de sonhos, como num exercicio de colagens, uma casa feita dos retalhos de que cram feitos 0s sonhos. Para se dizer num registo sério pode-se falar em recomposi¢ao de cédigos A heterogencidade de uma vida feita de fragmentos de vida, as casas cons- truidas faziam corresponder a heteroge- neidade dos espagos. Quando partiram, os emigrantes foram transplantados dos espagos domésticos de origem para es- pagos reduzidos, onde a familia tentava proteger-se de uma organizacao publica que no dominavam, nem socialmente, nem culturalmente. Nunca quiseram, nem puderam, investir 0 espaco exterior onde eram obrigados a viver — ninguém investe um espaco imposto € provisdrio. Em contrapartida, o lugar de onde tinham vindo — uma aldeia portuguesa, na generalidade dos casos — permitia a inscrigdo de uma utopia: a utopia de uma casa, um espaco que Ihes pennitia con- linuar a viver, virtualmente, na aldeia, Anos depois, a casa estava pronta e voltaram, E, depois de todos os anos passados a viver mentalmente numa casa que no estava onde viviam, comegaram a viver numa casa que cles queriam que fosse diferente de todas as outras. E, nesse sentido, continuaram sempre a viver noutro espaco: aquelas casas néo 63 Filomena Silvano ¢ Tereza Coetho faziam parte da aldeia. Como. eles também nfo faziam. As hist6rias das vidas dos emigrantes sto como as epopeias: um heréi que abandona um lugar € que se confronta com provas diversas, que culminam na obtengZo de objectos de valor que progtidem no tempo, seguindo uma escala hierdrquica que tem dois termos essenciais — um carro e depois uma casa, acima de tudo. Uma casa onde a organizagio do espago privado também ilusira como se constroi uma nova identidade. No inte- rior dois mundos opostos compatibili- zam-se, e coexistem: uma cozinha mo- derna duplicada por uma cozinha tradi- cional, que continua a ser o lugar de convivio. Aquecimentos duplicados por lareiras, salas que ninguém usa. A no ser para receber visitas de longe, mais Jonge do que a aldeia, Uma nova orga- nizagio da vida doméstica. Mas niio € apenas no espaco interior da casa que se manifesta 0 “efeito de composi¢iio": as fachadas sio especta- culares © congregam referéncias vindas de muitos lugares. Nenhum emigrante faz construir uma casa sem uma fachada que, no seu excesso de presenga e de visibilidade, expe, sem hipdtese de ddivida, a impossibilidade de se apa- garem as diferencas. Também teivindica esse direito, As fachada das casas im- poem a heterogeneidade cultural de quem as concebeu, manifestam uma vontade de agir que se orienta para o espago piiblico. Estas casas, na sua ulilizagdo popular da linguagem da ar- quitectura, produzem um sentido préprio que mais nenhumas saberiam produzir. Sobre a Construgao de uma Casa 65 Disse-se que eram um fenémeno, Como todos os fendmenos, teve uma época. Alguns emigrantes nfo voltaram e nunca chegaram a viver naquelas casas, As geragdes succderam-se, ¢ depois os emigrantes desistiram de voltar, Para memiria, ficaram casas incongruentes. So muitas. Nao € preciso ouvir histérias para saber que as vidas das pessoas foram incongruentes, na mesma exacta medida.

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