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Peirce, Charles Sanders (2008) Iustragdes da Légica da Ciéncia. Aparecida: Idéias e Letras. n Poucas pessoas se preocupam em estudar légica, porque todos con- cebem a si mesmos como jé sendo suficientemente versados na arte de raciocinar. Mas eu observo que tal satisfagio limita-se a suas préprias raciocinagOes € nao se estende aquelas de outros homens. A plena posse de nosso poder de fazer inferéncias é a ultima das fa- culdades que adquirimos, pois nao se trata de um dom natural, mas de uma longa e dificil arte. A histéria de sua pratica forneceria um esplén- dido assunto para um livro. Os escoldsticos medievais, seguindo os ro- manos, faziam da légica o primeiro dos estudos de um rapaz, logo apés a gramatica, entendendo-a como sendo bem facil. Assim era como eles a entendiam. Seu principio fundamental, segundo eles, era que todo o co- nhecimento repousa ou na autoridade ou na raz4o; mas o que quer que fosse deduzido pela razdo dependia em ultima instancia de uma premissa derivada da autoridade. Desse modo, tio logo um rapaz fosse eximio no procedimento silogistico, seu conjunto de ferramentas intelectuais era considerado completo. Para Roger Bacon, esse notavel intelecto que em meados do sé- culo XIII era quase um homem de ciéncia, a concepgio escoldstica de raciocinio aparecia apenas como um obstéculo 4 verdade. Ele viu que a experiéncia sozinha é capaz de ensinar qualquer coisa — uma proposi¢a0 que para nés parece facil de entender, porque uma nitida concep¢io de experiéncia nos foi legada por geracées anteriores; concep¢ao que tam- bém parecia perfeitamente clara para ele, porque suas dificuldades ainda 36 ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA nio se haviam revelado. De todos os tipos de experiéncia, a melhor, ele pensava, era a ilumina¢io interior, que nos ensina muitas coisas sobre a Natureza, coisas que os sentidos externos nunca poderiam descobrir, tal como a transubstanciacao do pao. Quatro séculos depois, o Bacon mais célebre,! no primeiro livro do seu Novum Organum, forneceu uma clara descrigdo da experiéncia como algo que deve estar aberto a verificag3o € ao reexame. Mas, por mais superior que seja a concep¢ao de Lorde Bacon em relago as nogdes anteriores, um Icitor moderno, que nio se impressiona com sua grandilogiiéncia, choca- se principalmente com a inadequacio da visio de Bacon do procedimento cientifico. Que tenhamos apenas de fazer alguns experimentos grosseiros para registrar resumos dos resultados em certos formulrios, por via de regra, descartando tudo aquilo que é refutado ¢ pondo por escrito as al- ternativas; € que assim, em poucos anos, a ciéncia fisica ficaria terminada — que idéia! Em verdade, “Ele escreveu sobre ciéncia tal como um Lorde Chanceler”, como dissera Harvey,” um legitimo homem de ciéncia. Os primeiros citntistas, Copérnico, Tycho Brahe, Kepler, Galileu ¢ Gilbert,’ tinham métodos mais parecidos com os de seus confrades modernos. Kepler empreendeu tracar uma curva através das posicdes de Marte;* e seu maior servigo A ciéncia foi imprimir na mente dos homens .T.+ Peirce refere-se aqui a Francis Bacon (1561-1626). 7 N.T.: William Harvey (1578-1657), célebre médico inglés, contemporaneo de Francis Bacon. Peirce no cita uma fonte bibliogréfica; deve ter ouvido o comentirio, zatando-se de algum tipo de “piada de bastidores”. > N.T: Neste interim Peirce cita nomes de cientistas famosos dos séculos XVI ¢ XVII. Nicolau Copémico (1473-1543) ficou célebre por apresentar a hipétese heliocéntrica na sstronomia. Tycho Brahe (1546-1601) ¢ Johannes Kepler (1571-1630) sio reconhecida- ‘pente duas das mais importantes figuras na hist6ria da astronomia, juntamente com Galilew Saiilei (1564-1642), cujos trabalhos cientificos, nas mais diversas reas, so obras de referén- ia William Gilbert (1544-1603) foi médico particular da Rainha Elizabeth I; curiosamente jcou mais conhecido por seu trabalho em magnetismo, “De Magnete, Magneticisque Corpo- -ilus ct de Magno Magnete Tellure ~ Physiolagia Nova”, publicado em 1600. “Nao exatamente assim, mas bem préximo disso, o quanto pode ser dito em poucas vabvras. A fixagio da crenga 37 que isso era a coisa a ser feita, caso desejassem melhorar a astronomia; que nio se contentassem em inquirir se um sistema de epiciclos era me- lhor que outro, mas que colocassem as figuras de tal modo a descobrir qual era a curva de fato. Ele realizou isso com sua incomparavel energia ¢ coragem, tropecando, da maneira mais inconcebivel (para nds), em uma hip6tese irracional a outra, até que, depois de tentar vinte ¢ duas dessas hipoteses, caiu, pela mera exaustdo de sua invengao, sobre a érbita que uma mente bem suprida com as armas da Iégica moderna teria tentado quase de infcio. Nesse sentido, todo o trabalho de ciéncia, importante o suficiente para ser recordado por umas poucas geragGes, fornece alguma ilustragdo do estado defeituoso da arte de raciocinar da época em que foi escrito; € cada passo importante na ciéncia tem sido uma li¢ao de légica. Foi assim quando Lavoisier® e os seus contempordneos empreenderam o estudo da quimica. A velha m4xima dos quimicos era “Lege, lege, lege, labora, ora, et relege”.© O método de Lavoisier nao era ler e rezar, nem sonhar que algum longo ¢ complicado processo quimico pudesse ter certo efeito, ento colocd-lo em prdtica com monétona paciéncia ¢, depois de scu inevitavel fracasso, sonhar que com alguma modificagio 0 resultado seria outro, ¢ acabar publicando o tltimo sonho como um fato: sua maneira era levar a mente para o laboratério ¢ fazer dos alambiques ¢ cuctrbitas instrumentos de pensamento, oferecendo uma nova concepgio de racio- cinio, como algo que deveria ser feito de olhos abertos, pela manipula- 40 de coisas reais ao invés de palavras e fantasias. A ccontrovérsia darwiniana é, em larga medida, uma questao de légi- ca. O Sr. Darwin’ propés a aplicagio do método estatistico 4 biologia. A 5 N.T: Antoine Lavoisier (1743-1794), conhecido como o fandador da quimica como ciéncia. © NIT: “Leia, leia, leia, trabalhe, reze e releia” cra uma méxima de antigos textos alquimistas. 7 N.T:: Charles Darwin (1809-1882), célebre naturalista inglés, proponente da teoria da evolucio das espécies por selegio natural. 38 ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA mesma coisa foi feita num ramo muito diferente da ciéncia, a teoria dos gases. Embora incapazes de dizer quais seriam os movimentos de algu- ma molécula particular de gds, tendo por base certa hipétese acerca da constituicgao dessa classe de corpos, Clausius e Maxwell® eram, contudo, capazes de predizer, pela aplicacio da doutrina das probabilidades, que, no longo prazo, tal ¢ tal propor¢ao de moléculas, sob dadas circunstan- ias, iriam adquirir tais ¢ tais velocidades; e que a cada segundo haveria determinado namero de colisdes etc.; ¢ a partir dessas proposicdes eles foram capazes de deduzir certas propriedades dos gases, especialmen- te no que diz respeito a suas relagdes térmicas. De maneira parecida, Darwin, embora incapaz de dizer quais serio as operagdes de variacdo e selecao natural para cada caso individual, tem demonstrado que, no longo prazo, essas operacdes adaptarao os animais a suas circunstancias. Se as formas animais existentes sio ou nao sdo devidas.a essa ago, ou que posicao a teoria deve entao tomar, tudo isso enseja o assunto de uma discussio na qual questdes de fato ¢ questdes de légica encontram-se curiosamente entrelagadas.? *N.T.; Rudolf Clausius (1822-188), fisico alemio que primeiro estabeleceu a equiva- nia entre calor ¢ trabalho. Juntamente com James Clerk Maxwell (1831-1879), lan- suas bases da teoria cinética dos gases. Maxwell, ademais, teve papel importantfssimo >terreno do eletromagnetismo. °N.T.: Nos dias de hoje consolidou-se uma aproximagio da mecanica estatistica com cvolucio darwiniana. Hi toda uma linha de pesquisa denominada Teoria de Sistemas indmicos Adaptativos que recorrem & mecanica estatistica como forma de modelar 0 ‘mportamento de sistemas que apresentem adaptaco a seu meio ambiente. Ver, por emplo, Freeman (1999), How brains make up their minds, Phoenix-Orion Books. I] O objetivo do raciocinio é descobrir, a partir da consideragio da- quilo que j4 sabemos, alguma outra coisa que desconhecemos. Conse- qiientemente, 0 raciocinio é bom se for tal que fornega uma conclusio verdadeira a partir de premissas verdadeiras, e no de outra maneira. Assim, a questdo de sua validade é puramente uma questo de fato e nao do ato de pensar. Sendo A a premissa e B a conclusio, a questio é se esses fatos estdo relacionados de tal forma que se A é, entio B é. Se assim for, a inferéncia é valida; se nao, ent3o nao. De maneira alguma se trata da questo de saber se, quando as premissas so accitas pela mente, sentimos um impulso para aceitar tamb geralmente raciocinamos corretamente por natureza. Mas isso € um aci- dente; a conclusio verdadeira permaneceria verdadeira se nao tivéssemos esse impulso para aceité-la; e a falsa permaneceria falsa, mesmo que nao pudéssemos resistir 4 tendéncia para acreditar nela. Sem diivida, somos principalmente animais Iégicos, mas nio o so- mos perfeitamente. A maioria de nés, por exemplo, é naturalmente mais Otimista e esperancosa do que a légica justificaria. Parecemos ser consti- tuidos de maneira que, na auséncia de quaisquer fatos que o demandem, estamos felizes ¢ auto-satisfeitos; de modo que o efeito da experiéncia € continuamente encolher nossas €sperangas ¢ aspiragGes. Todavia, uma vida inteira de aplicacao deste corretivo nao erradica usualmente nossa disposicao otimista. Onde a esperanca nao é confrontada por nenhuma im a conclusao. E verdade que experiéncia, provavelmente nosso otimismo é extravagante. Logicidade. 40 ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA com respeito a assuntos praticos, é a qualidade mais «itil que um animal pode possuir ¢, conseqiientemente, poderia resultar da acdo da selegao natural; mas, afora isso, provavelmente é mais vantajoso para o animal ter sua mente preenchida por vis6es agradaveis ¢ encorajadoras, indepen- dentemente da verdade delas; ¢, assim, sobre assuntos nao praticos, a se- lecao natural poderia ocasionar uma tendéncia falaciosa de pensamento. Aquilo que nos determina a retirar uma inferéncia ao invés de outra, a partir de premissas dadas, é algum habito da mente, quer seja constitu- tivo ou adquirido. O habito é bom, ou nao, na medida em que produz conclusées verdadeiras a partir de premissas verdadeiras, ou no; ¢ uma inferéncia € considerada como valida ou nao, sem referéncia a verdade ou falsidade de sua conclusio em especial, mas de acordo com.o habito que a determina de modo que produza conclusdes verdadeiras em geral, ou nao. O habito especifico da mente, que governa esta ou aquela infe- réncia, pode ser formulado numa proposi¢io cuja verdade depende da validade das inferéncias que o hdbito determina; ¢ tal férmula € chamada de um principioguia da inferéncia. Suponhamos, por exemplo, que ob- servamos que um disco giratério de cobre fica rapidamente em repouso quando colocado entre os pdlos de um imi, ¢ daf inferimos que isso acontecer4 com todos os discos de cobre. O principio-guia ¢ que aquilo que é verdadeiro para uma pega de cobre é verdadeiro para uma outra. Esse princfpio-guia, a respeito do cobre, seria muito mais seguro do que Para muitas outras substdncias — lato, por exemplo. Poder-se-ia escrever um livro para assinalar todos os mais importan- tes principios-guias do raciocinio. Provavelmente seria, temos de con- fessi-lo, de nenhuma utilidade para uma pessoa cujo pensamento est4 dirigido completamente para assuntos priticos ¢ cuja atividade caminha por trilhas j4 muito bem conhecidas. Os problemas que se apresentam aum tal intelecto sio assuntos de rotina, os quais ele aprendeu a lidar, de uma vez por todas, na aprendizagem de sua ocupacdo. Mas deixe um homem aventurar-se num campo pouco familiar ou onde seus resultados nio sdo continuamente confrontados com a experiéncia, ¢ toda a histéria mostra que o mais robusto intelecto ird por vezes perder sua orientacio A fixagio da crenga 41 ¢ desperdigar esforcos em diregSes que nao conduzem a seu objetivo, ou mesmo o afastam inteiramente dele. & como um navio em mar aberto, sem ninguém a bordo que entenda das regras de navegacao. E, nesse caso, um estudo geral dos princfpios-guias do raciocinio seguramente teria sua utilidade. O assunto dificilmente poderia ser tratado, entretanto, sem ser pri- meiramente delimitado, uma vez que quase qualquer fato pode servir como um principio-guia. Mas acontece que existe uma divisdo entre os fatos, tal que numa classe se encontram aqueles fatos que sao absoluta- mente essenciais como princfpios-guias, enquanto na outra se encon- tram todos os que possuem quaisquer outros interesses como objetos de pesquisa. Esta divisio é entre aqueles que sao necessariamente tomados por garantidos quando se questiona se certa conclusdo segue de certas premissas, ¢ aqueles que nao esto implicados nessa questao. Um mo- mento de reflexdo mostrar4 que uma variedade de fatos j4 se encontra assumida quando a questo légica ¢ in}cialmente colocada. Esté implica do, por exemplo, que existem estadog da mente como crenga e diivida — que a passagem de um a outro é possivel, permanecendo idéntico o objeto do pensamento, e que esta transi¢ao est4 sujeita a certas regras que limitam igualmente todas as mentes. Como estes sio fatos que jé temos de saber antes de podermos at qualquer concep¢io clara do ra- ciocinio em geral, nao h4 como suport ser maior o interesse de questio- nar sua verdade ou falsidade. Por outto lado, é facil acreditar que essas regras de raciocinio, que sio deduzidas da prépria idéia do processo, sio as mais essenciais; ¢ que, na verdade, na medida em que se conformam com aquelas, nao irdo, pelo menos, levar a conclusdes falsas partindo de premissas verdadeiras. De fato, a importincia daquilo que pode ser de- duzido das suposigdes envolvidas na questo légica acaba por tornar-se maior do que poderia ser suposto, isto por razGes dificeis de mostrar de partida. A tinica razdo que vou aqui mencionar é que concep¢es que so realmente produto de reflexdo légica, sem que se veja prontamente que assim o so, misturam-se com nossos pensamentos ordinarios, ¢ sao freqiientemente causa de grande confusiao. Este é 0 caso, por exemplo, 42 ILUSTRACOES DA LOGICA DA CIENCIA da concepcao de qualidade. Uma qualidade, enquanto tal, nunca é um objeto de observacio. Podemos ver que uma coisa é azul ou verde, mas a qualidade de ser azul ou a qualidade de ser verde nao sao coisas que vemos; sao produtos de reflexdes Idgicas. A verdade € que 0 senso co- mum ou 0 pensamento, tal como inicialmente emerge acima do nivel do estritamente pratico, esté profundamente imbuido com aquela mé légica da qualidade, 4 qual 0 epiteto metafisico € comumente aplicado; ¢ nada pode clarific4-la sendo um severo curso de légica. Il Geralmente, sabemos quando desejamos fazer uma pergunta ¢ quando desejamos emitir um juizo, pois ha uma dessemelhanga entre a sensacao de duvidar e a de acreditar. Mas isso nao é tudo o que distingue a diivida da crenga. Ha uma diferenga pratica. Nossas crengas guiam nossos desejos ¢ moldam nossas agées. Os Assassinos, ou Seguidores do Velho da Montanha, costuma- vam precipitar-se para a morte a seu minimo comando, porque acredita- vam que obedecé-lo asseguraria a felicidade eterna.) Tivessem duvidado disso, nao teriam agido como agiram. Assim acontece com toda crenga, de acordo com seu grau. O sentimento de acreditar é mais ou menos uma indicaco certa de se haver estabelecido em nossa natureza algum. hdbito que determinard nossas ages. A divida nunca possui tal efeito. Nao devemos também desprezar uma terceira diferenga. A diivida é um estado de desconforto ¢ insatisfacao do qual lutamos para nos liber- tar ¢ para passar ao estado de crenga; enquanto este Ultimo é um estado calmo e satisfatério que nao desejamos evitar ou mudar para uma cren¢a em outra coisa qualquer." Pelo contrario, nao nos agarramos com tena- © N-T: O Velho Homem da Montanha foi o Xeique sirio Al-Jebal, que liderou a or- dem religiosa e militar dos Assassinos, por volta do século XII, durante as Cruzadas. 1 Nao falo dos efeitos secundérios ocasionalmente produzidos pela interferéncia de outros impulsos. ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA cidade 4 crenga meramente, mas sim ao estado de acreditar justamente naquilo em que acreditamos. Assim, ambas, diivida e crenga, tém efeitos positivos sobre nds, em- bora muito diferentes. A crenca nao nos faz agir de imediato, mas nos coloca em condi¢ao para nos comportarmos de certa maneira quando surgir a ocasido. J4 a diivida de maneira nenhuma tem um efeito desse tipo, mas nos estimula a agir até que o estado de divida seja destruido. Isso nos lembra a irrita¢ao de um nervo ¢ a aco reflexa por ela pro- duzida; enquanto que para o andlogo da crenga, no sistema nervoso, devemos atentar para as chamadas associacdes nervosas — por exemplo, para aquele habito dos nervos em conseqiiéncia do qual o cheiro de um péssego produziré 4gua na boca. i ie es aa el IV A irritagio da divida causa um grande esforco no sentido de se alcangar um estado de crenga. Chamarei a esse esforco de investigacao, embora se deva admitir que esta por vezes nao seja a designacao mais apropriada. A irritacao da divida € 0 tinico motivo imediato para o esforco de alcangar a crenga. Para nés, certamente € melhor que nossas cren¢as sejam tais que possam verdadeiramente guiar nossas agdes de modo a satisfazer nossos desejos; ¢ essa reflexdo nos fard rejeitar toda crenga que nao pareca ter sido formada para assegurar tal resultado. Mas so- mente o fard criando uma ‘divida no lugar daquela crenga. Portanto, © esforgo se inicia com a divida ¢ termina com o cessar dela. Des- tarte, o tinico objetivo da investigagao é o estabelecimento da opi- nido. Podemos ter a impressio de que isso nao é suficiente para nés ¢ de que procuramos nao meramente uma opiniZo, mas uma opinijo verdadeira. Mas coloque-se essa impressio 4 prova, ¢ ela se revelara infundada; pois tao logo uma crenga € firmemente alcangada, ficamos inteiramente satisfeitos, quer a crenga seja verdadeira ou falsa. E écla- ro que nada fora da esfera de nosso conhecimento pode ser objeto de investigacio, pois nada que nao afete a mente podera ser motivo de um esforco mental. O maximo que se pode sustentar € que buscamos uma crenga que pensamos ser verdadeira. Mas pensamos que cada uma de nossas crengas é verdadeira ¢, realmente, é uma mera tautologia dizer tal coisa. 46 ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA Que 0 estabelecimento da opiniao é 0 tinico fim da investigagio é uma proposi¢o muito importante. Ela elimina, de uma vez, varias con- cepgGes vagas ¢ erréneas de prova. Umas poucas delas podem ser aqui levantadas. 1. Alguns filésofos tm imaginado que para dar inicio a uma inves- tigacao fosse apenas necessério formular uma questo ou escrevé-la num Papel, e nos recomendaram até mesmo a iniciar nossos estudos questio- nando tudo! Mas o mero ato de colocar uma proposicio na forma inter- rogativa nao estimula a mente a qualquer esforco posterior. Deve haver uma diivida real ¢ viva, e sem ela toda a discussio € va. 2. E muito comum a idéia de que uma demonstrac¢ao deva repou- sar sobre proposicdes tltimas e absolutamente indubitaveis. Essas pro- Posigdes, de acordo com uma escola, sio principios primeiros de uma natureza geral; segundo outra escola, sio sensacdes primeiras. Mas, de fato, uma investigacio, para ter esse resultado completamente satisfaté- rio chamado demonstracio, tem apenas de comegar com proposi¢des perfeitamente livres de toda a divida real [actual]. Se as premissas de fato no so postas em diivida, elas n3o tém como ser mais satisfatérias do que o sao. - 3. Algumas pessoas parecem adorar discutir um ponto depois de todo o mundo estar plenamente convencido dele. Mas nenhum avango adicional pode ser feito. Quando a diivida cessa, a aco mental sobre © assunto chega a termo; e, se continuasse, nao teria qualquer propési- to. Se o estabelecimento da opiniao é 0 unico objetivo da investigacao, ¢ se a crenga tem a natureza de um habito, por que nao atingirfamos o fim desejado tomando qualquer resposta a uma questéo que possamos imaginar, reiterando-a constantemente, acomodando-nos a tudo o que possa conduzir a essa crenca e aprendendo a olhar com desprezo ¢ ddio tudo o que possa perturb4-la? Este método simples ¢ direto é realmente seguido por muitos homens. Lembro-me de uma vez me terem supli- cado que no lesse certo jornal, pois isso poderia mudar minha opiniao sobre o livre comércio. “Para que qu nao pudesse ser ludibriado por suas falacias ¢ equivocos”, foi o modo de dizer. “Vocé nao é”, disse meu amigo, “um estudante excepcional de economia politica. Poder4, por conseguinte, ser facilmente enganado por argumentos falaciosos sobre o assunto. Se ler esse jornal, vocé pode ser levado a acreditar no protecio- nismo. Mas vocé admite que o livre comércio é a doutrina verdadeira; € vocé nao deseja acreditar no que nao é verdadeiro”. Tenho freqiien- temente visto esse sistema ser adotado deliberadamente. E ainda mais freqiientemente, o desgosto instintivo de um estado mental indeciso, exagerado num vago receio de divida, faz os homens agarrarem-se es- pasmodicamente as posicdes que eles j4 tomaram. O homem sente que, se ele apenas mantiver sua crenga sem vacilar, isso j4 ser inteiramente satisfatério. Tampouco se pode negar que uma fé firme ¢ inabalavel pro- duz grande paz de espirito. Na verdade, isso pode dar origem a incon- veniéncias, como se um homem devesse continuar a acreditar resoluta- 48 ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA mente que 0 fogo nao o queimaria, ou que seria eternamente desgraca- do se recebesse sua refei¢#o de outra forma senio através do estémago. Mas, entio, o homem que adota esse método nao consentir4 que tais inconvenientes sejam maiores que suas vantagens. Ele dir4 “agarro-me resolutamente a verdade, e a verdade € sempre saud4vel”. E em muitos casos pode bem ser que © prazer que 0 homem recebe de sua calma fé venha a contrabalangar qualquer inconveniéncia resultante do carater enganador dela. Assim, se for verdade que a morte é aniquilacao, entéo o homem que acredita que ira direto para o céu quando morrer, posto que ele tenha cumprido certas observancias simples nesta vida, possui um prazer simples que nao sera seguido pelo minimo desapontamento. Para muitas pessoas uma consideragdo semelhante parece ter scu peso no tocante a topicos religiosos, pois ouvimos freqiientemente ser dito: “Oh, eu nao poderia acreditar nisto ou naquilo porque deveria ser um desventurado se 0 fizesse”. Quando uma avestruz enterra sua cabeca na areia ao aproximar-se © perigo, muito provavelmente toma a rota mais feliz. Ela esconde o perigo, e entdo calmamente diz que nao ha perigo algum; ¢ se sente de maneira perfeitamente segura de que nao hé perigo, por que haveria de levantar a cabega para ver? Um homem pode passar a vida mantendo sistematicamente fora de vista tudo o que poderia causar uma mudanga em suas opinides, ¢ se conseguir apenas isso — baseando seu método, como o faz, em duas leis psicolégicas fundamentais —, nao vejo 0 que possa ser dito contra seu modo de agir. Seria uma imperti- néncia egoista objetar que seu procedimento é irracional, pois isso se resume a dizer que seu método de estabelecer uma crenga nao € 0 nosso. Ele nao se propée a ser racional, ¢ na verdade falar4, freqiientemente com desdém, da fraca ¢ iluséria razo humana. Assim, deixem-no pensar como queira. Mas este método de fixar crengas, que pode ser chamado de método da tenacidade, ser4 incapaz de, na pratica, manter seu fundamento. O impulso social est4 contra ele. O homem que adotar esse método desco- briré que outros homens pensam de forma diferente, e pode ocorrer-lhe, em algum momento de maior lucidez, que as opinides deles sejam tao A fixagio da crenga 49 boas quanto a suas, ¢ isso abalar4 sua confianga em sua propria crenga. Essa concepgao, de que o sentimento ou o pensamento de outro homem possa ser equivalente a seus préprios, € um passo distintivamente novo, ¢ altamente importante. Surge de um impulso forte demais para ser supri- mido sem que haja o perigo de destruir a espécie humana. A menos que nos tornemos eremitas, temos de necessariamente influenciar as opinides uns dos outros, de modo que o problema vem a ser como fixar a cren¢a, nao meramente no individuo, mas na comunidade. Permita-se a ago da vontade do Estado, entio, em vez da do indivi- duo; que se crie uma instituicao que tenha por finalidade manter perante a aten¢ao do povo certas doutrinas corretas, reiterando-as perpetuamen- te, ensinando-as aos jovens; possuindo, ao mesmo tempo, forga para evitar que doutrinas contrarias sejam ensinadas, defendidas ou expressas. Permita-se que todas as possiveis causas de mudanga intelectual sejam retiradas do alcance dos homens. Que se mantenham ignorantes, para que no aprendam alguma razao para pensar de forma distinta da que pensam. Que suas paixGes sejam listadas, de maneira que possam encarar opinides privadas e pouco habituais com édio e horror. Entao, que todos os homens que rejeitam a crenga estabelecida sejam aterrorizados até o siléncio. Deixe-se as pessoas expulsarem e cobrirem com alcatrao ¢ penas tais homens, ou que sejam feitas inquisigées acerca do modo de pensar de pessoas suspeitas e, quando se descobrir que sio culpados de cren- gas proibidas, que fiquem sujeitos a algum castigo exemplar. Quando o acordo total nao puder ser alcangado de outra forma, um massacre geral de todos os que nao pensam de determinado modo tem-se provado ser um meio muito eficiente de estabelecer uma opiniao num pafs. Se nio houver poder suficiente para tanto, entdo que seja esbogada uma lista de opinides, 4 qual nenhum homem com um minimo de independéncia de pensar tenha como concordar, e deixe-se que os fiis sejam instados a aceitar todas essas proposices, de forma a segrega-los tao radicalmente quanto possfvel da influéncia do resto do mundo. Esse método tem sido, desde os tempos mais remotos, um dos prin- cipais meios de manter doutrinas teoldgicas ¢ politicas corretas, € de pre- ae aR eae Nene Ne RN tN orc 50 ILUSTRACOES DA LOGICA DA CIENCIA servar seu carater universal ou catélico. Em Roma, especialmente, tem sido praticado desde os dias de Numa Pompilio aos de Pio IX.!? Este é 0 exemplo mais perfeito na histéria; onde quer que haja irmandade de sacerdotes — ¢ nunca houve religiio que nio Possuisse uma — esse mé- todo tem sido mais ou menos utilizado. Onde quer que haja uma aristo- cracia ou uma corporagio, ou qualquer associaco de uma classe de ho- mens cujos interesses dependam, ou supostamente dependam, de certas ProposigGes, inevitavelmente se encontraré alguns tracos desse produto natural do sentimento social. Crueldades sempre acompanham esse sis- tema; € quando o sistema é consistentemente levado a cabo, tornam-se atrocidades do tipo mais horrivel aos olhos de qualquer homem racional. A ocorréncia disso sequer deveria surpreender, pois o funcionério de uma tal sociedade nio se sente justificado em renunciar aos interesses da sociedade pela causa da misericérdia, como poderia fazer no caso de seus interesses pessoais. E natural, portanto, que simpatia e companheirismo devessem assim produzir o mais impiedoso poder. Ao julgar esse método de fixacio da crenga, que pode ser chamado de método da autoridade, temos de, em primeiro lugar, conceder-lhe imensurdvel superioridade mental e moral em relagio ao método da te- nacidade. Seu sucesso é proporcionalmente maior; ¢, de fato, repetida- mente produziu os mais majestosos resultados. As meras estruturas de pedra construfdas por sua causa — no Sido, por exemplo, no Egito e na Europa — possuem muitas delas uma nobreza ‘apenas rivalizada pelas maiores obras da Natureza. E, com excegao das eras geoldgicas, nao existem periodos de tempo tio vastos como Os que sao medidos por alguns desses tipos de f€ assim organizados. Se investigarmos o assunto de perto, descobriremos que nio houve um nico de seus credos que tenha permanecido sempre o mesmo; contudo, a mudanga é tao lenta 2 'N.T: Numa Pompilio foi o lendétio segundo rei de Roma, que reinou entre 715- 672 aC. Jé Pio IX foi Papa entre 1846-1878 d.C. Isso significa que o método da autor. dade dirigiu Roma desde os tempos mais remotos e durante toda a era crsta, pois Peirce redigiu esse texto em 1877, A fixagito da crenga 51 a ponto de ficar imperceptivel durante a vida de uma pessoa, de modo que a cren¢a individual permanece sensivelmente fixada. Para a massa da humanidade, entao, talvez nao haja melhor método do que esse. Se seu impulso mais elevado é 0 de serem escravos intelectuais, entao escravos deveriam permanccer. Mas nenhuma instituic3o pode pretender regular as opinides sobre todos os assuntos. S6 os mais importantes podem ser cuidados ¢, no restante, as mentes dos homens devem ser deixadas 4 a¢io de causas na- turais. Esta imperfei¢ao nio seré fonte de fraqueza enquanto os homens permanecerem nesse estado de cultura no qual uma opiniao nao influen- cia outra — isto é, enquanto nio possam somar dois mais dois. Mas na maioria dos estados sacerdotais encontrar-se-do alguns individuos acima dessa condi¢do. Tais homens possuem um tipo de sentimento social mais amplo; eles vem que homens de outros paises ¢ de outras épocas sus- tentaram doutrinas muito diferentes das que foram levados a acreditar; € eles no podem evitar a percepg3o do mero acidente de terem sido ensinados como o foram ¢ de terem sido envolvidos pelas maneiras e associagdes que possuem, us quais os levaram a acreditar naquilo que acreditam, ¢ nao em outras coisas muito diferentes. E a sinceridade deles nao pode resistir a reflexdo de que nao hé qualquer razao para avaliar que suas crengas possuam um valor mais elevado do que as de outras nacdes € outros séculos; ¢ isso levanta dividas em suas mentes. Eles perceberao, ademais, que dtividas como essas devem existir em suas mentes com respeito a toda crenga que tenha a aparéncia de ser determinada por capricho, quer deles préprios ou daqueles homens que originaram as opinides populares. A adesio voluntéria a uma crenga e © arbitrio de impé-la aos outros devem ser ambos abandonados, ¢ um novo método de estabelecer opinides tem de ser adotado, o qual nao de- vera apenas produzir um impulso para se acreditar, mas também ter4 de decidir qual proposi¢ao deve vir a ser acreditada. Permita-se entio que a acao das preferéncias naturais fique desimpedida, ¢ sob a influéncia dela, deixem os homens, conversando juntos ¢ considerando os problemas sob diferentes angulos, desenvolverem gradualmente crengas em harmo- 52 ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA nia com as causas naturais. Esse método Parece aquele pelo qual as con- cepgGes de arte foram trazidas A maturidade. O exemplo mais perfeito disso encontra-se na histéria da filosofia metafisica. Sistemas desse tipo usualmente nao repousam sobre quaisquer fatos observados, pelo me- nos nao em grau elevado. Foram adotados Principalmente porque suas Proposi¢Ges fundamentais Pareciam “agradaveis a razio”. Esta é uma expressdo apropriada; nao significa que concordem com a experiéncia, mas com aquilo que nos encontramos inclinados a acreditar. Platio, por exemplo, achava agradével 4 razao que as distancias entre as distintas es- feras celestes fossem proporcionais aos diferentes comprimentos de cor- das que produzem acordes harménicos." Muitos filésofos foram levados a suas principais conclusdes mediante consideracdes desse tipo; mas esta é a mais baixa e menos desenvolvida forma que o método pode assumir, pois € claro que um outro homem Poderia achar que a teoria de Kepler, segundo a qual as esferas celestes sio Proporcionais as esferas inscritas € circunscritas de diferentes sélidos regulares, é mais agradavel a sua razao. Mas 0 choque de opinides logo levard os homens a se posicionarem so- bre preferéncias de natureza bem mais universal. Tome-se, por exemplo, a doutrina de que o homem age apenas egoisticamente — isto é, a Partir da consideracao de que agir de certa maneira Proporcionar4 mais prazer do que agir de uma outra. Essa teoria no se baseia em nenhum fato do mundo, mas tem havido uma ampla accitagdo dela como sendo a tnica razodvel. Do ponto de vista da Tazdo, esse método € bem mais intelectual ¢ respeitavel do que os outros dois sobre os quais discorremos. Mas suas falhas tém sido as mais manifestas. Faz da investigacio algo similar ao desenvolvimento do gosto; mas o gosto, infelizmente, é sempre mais ou menos uma questo de moda e, assim, os metafisicos nunca chega- ram a fixar qualquer acordo, de modo que o péndulo das opinides tem “NT: Pode ser encontrado no Timew; mas nio se esgota af, pois é um tema tipico do pensamento de Pitigoras. A ficagio da crenga 53 balangado para um lado e Para outro, desde os tempos mais remotos até os mais recentes, entre uma filosofia mais material ¢ uma mais es- piritual. E a partir desse método, que tem sido chamado de método @ priori, somos conduzidos, no linguajar de Lorde Bacon, a uma verda- deira indugao. Analisamos esse método a priori como algo que prome- tia salvar nossas opinides de seu elemento acidental ¢ caprichoso. Mas seu desenvolvimento, embora seja um Processo que climina 0 efeito de algumas circunstancias casuais, acaba intensificando © efeito de outras. Esse método, portanto, nao difere essencialmente daquele da autorida- de. O governo pode nio ter levantado seu dedo para influenciar-me em minhas convicgdes; posso ter sido deixado praticamente livre para esco- ther, digamos, entre a monogamia ¢ a poligamia e, apelando unicamente para minha consciéncia, posso ter concluido que a ultima pratica é em si mesma licenciosa. Mas, quando venho a saber que o maior obstaculo 4 expansao do cristianismo, entre um Povo de cultura tao elevada como os hindus, tem sido a convic¢ao da imoralidade de nossa forma de tratar as mulheres, nao posso evitar perceber que, muito embora os governos nado interfiram, os sentimentos, em seu desenvolvimento, serio largamente determinados por causas acidentais. Agora, h4 algumas pessoas, dentre as quais devo supor que se encontra meu leitor, que, quando véem que algumas de suas crencas sio determinadas por quaisquer circunstancias estranhas aos fatos, a Partir desse momento, admitirao nao meramente em palavras que sua crenca é duvidosa, mas experimentardo uma divida real acerca disso, de modo que ela deixa de ser uma crenga. Para satisfazer nossas dividas, por conseguinte, é necess4rio que se encontre um método pelo qual nossas cren¢as possam ser causadas por algo em nada humano, mas Por alguma permanéncia externa — por al- uma coisa sobre a qual nosso pensar nio tenha efeito. Alguns misticos imaginam que possuem esse método numa inspiracdo particular vinda do alto. Mas isso é apenas uma forma do método da tenacidade, no qual 4 concep¢ao de verdade como algo piiblico nao foi ainda desenvolvida. A permanéncia externa nio seria externa, no sentido aqui usado, se sua influéncia se restringisse a apenas um individuo. Tem de ser algo que 54 ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA afete, ou que pudesse afetar, a todo o homem. E, embora essas afeccOes Sejam necessariamente tao variadas quanto sao as condigées individuais, todavia o método deve ser tal que as conclusées finais de todos os ho- mem sejam as mesmas. Tal é 0 método da ciéncia. Sua hipdtese funda- mental, colocada numa linguagem mais familiar, € a seguinte: existem coisas reais, cujos caracteres so inteiramente independentes de nossas opiniGes acerca delas; essas realidades afetam nossos sentidos segundo leis regulares e, embora nossas sensagdes sejam tio diferentes quanto o 840 nossas relagdes com os objetos, contudo, aproveitando-se as leis da percepcao, podemos averiguar pelo raciocinio como as coisas realmente so, ¢ qualquer homem, se possuir suficiente experiéncia ¢ raciocinar o bastante sobre o assunto, ser4 levado A conclusao verdadeira. A concep- ¢40 nova aqui envolvida é a de realidade. Podem perguntar-me como eu sei que existem realidades. Se essa hipétese € 0 tinico suporte de meu método de investigac3o, meu método de investigagao nao deve ser utilizado na sustentagio de minha hipétese. A resposta é esta: 1) Se a investigacao nao pode ser considerada como probatéria de que existem. coisas reais, ao menos ela niio conduz a conclusio contraria; todavia, o método € a concep¢ao sobre o qual se ele baseia permanecem sempre em harmonia. Nenhuma diivida de método, por conseguinte, surge de sua pratica, como € o caso para todos os outros. 2) O sentimento que origina a todos os métodos de fixar crenga é uma insatisfago diante de duas proposi¢es contrarias. Mas aqui jd se encontra uma vaga concessio de que existe a/go ao qual uma proposigo deve conformar-se. Destarte, ninguém pode realmente duvidar de que existem realidades ou, entao, se 0 fizesse, a dtivida nao seria uma fonte de insatisfagao. Esta hipdtese, conseqiientemente, € uma coisa que todo intelecto admite, de modo que 0 impulso social nao me leva a duvidar dela. 3) Todos usam 0 mé- todo cientifico para muitas coisas, e apenas cessam de utiliz4-lo quando nao sabem como aplicé-lo. 4) A experiéncia do método nao tem levado a duvidar dele, mas, pelo contrério, a investigacao cientifica tem propor- cionado os mais maravilhosos triunfos no modo de estabelecer a opiniao. Esses triunfos fornecem a explicagio de meu no duvidar do método ou A fixagio da crenga 55 da hipétese por ele suposta; ¢ nao tendo qualquer diivida, nem acredi- tando que o tenha qualquer outra pessoa que eu pudesse influenciar, para mim seria mero palavrério dizer mais sobre o assunto. Se houver alguém com uma divida viva sobre o assunto, deixem-no consideré-la. Descrever o método da investigacio cientifica € a finalidade desta série de ensaios. Por ora, 6 tenho espaco para salientar alguns pontos de contraste entre ele ¢ os outros métodos de fixar a crenga. Este € 0 tinico dos quatro métodos que apresenta alguma distingao entre um caminho certo ¢ um errado, Se eu adotar o método da tenacida- de ¢ evitar todas as influéncias, o que quer que eu pense ser necessdrio, j4 é necessirio de antemao segundo esse método. O mesmo para o método da autoridade: o Estado pode tentar acabar com uma heresia por meios que parecem muito mal calculados para atingir os objetivos, de um ponto de vista cientifico; mas o tinico teste para o método da autoridade & exata- mente 0 que o Estado pensa; de forma que ele nio pode seguir 0 método de maneira errada, Também é 0 que acontece com o método a priori. A propria esséncia dele € pensar o que se esté inclinado a pensar. Todos os metafisicos estardio seguros de fazé-lo, embora possam estar inclinados a julgar-se, uns aos outros, perversamente errados. O sistema Hegeliano reconhece toda a tendéncia natural do pensamento como sendo de natu- reza ldgica, mesmo que venha a ser abolida por contratendéncias. Hegel'* imaginia que existe um sistema regular na sucessio dessas tendéncias, em conseqiiéncia do qual a opiniio acabar4 correta ao final, depois de ficar 4 deriva por um longo periodo de tempo. E € bem verdade que os me- tafisicos chegam por fim a certas idéias corretas; de modo que o sistema hegeliano da Natureza representa toleravelmente a ciéncia de sua época; € pode-se estar certo de que qualquer coisa que a investigacio cientifica tenha colocado fora de diivida, receberd, da parte dos metafisicos, uma “«N.T: Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), famoso representante do ide- alismo alemio, defendia que o método dialético (confrontagio entre tese ¢ antitese, ¢ posterior sintese) levaria o pensamento a verdade. 56 ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA demonstragao @ priori. Mas para o método cientifico o caso € diferente. Posso comegar com fatos conhecidos e observados no intuito de envere- dar no desconhecido; ¢, contudo, as regras que sigo, ao fazé-lo, podem nao ser as que a investigacao aprovaria. O teste sobre se estou seguindo verdadeiramente o método nao é um apelo imediato a meus sentimentos ¢ propésitos, mas, pelo contrario, envolve em si mesmo a aplicagio do método. Por isso é que o mau raciocinio, assim como 0 bom, sao ambos possiveis; ¢ tal fato ¢ 0 fundamento do lado pratico da légica. Nao que os trés primeiros métodos de estabelecer a opinido nado apresentem qualquer vantagem sobre o método cientifico. Pelo contra- rio, cada um possui sua conveniéncia particular. O método a priori dis- tingue-se por suas conclusdes confortaveis. E da natureza desse processo adotar qualquer crenga para a qual estejamos inclinados, ¢ hd certas li- sonjas para a vaidade humana nas quais todos acreditamos por natureza, até sermos acordados de nosso agradavel sonho por alguns fatos rudes. O método da autoridade sempre governara a massa da humanidade; ¢ aqueles que dominam as varias formas de for¢a organizada dentro do Estado nunca ficario convencidos de que um pensamento perigoso nao deveria ser suprimido de algum modo. Se a liberdade de expressao vier a ser desembaracada das formas mais grosseiras de coa¢ao, entio a unifor- midade de opiniao ser4 assegurada por um terrorismo moral, € a respei- tabilidade da sociedade dard sua completa aprovagio para isso. Seguir o método da autoridade é o caminho da paz. Certas inconformidades so permitidas; certas outras (consideradas inseguras) s40 proibidas. Essas opinides diferem em distintos paises ¢ em diferentes épocas; mas, onde quer que vocé esteja, deixe que saibam que vocé seriamente mantém uma crenga-tabu, ¢ entio poderd estar perfeitamente seguro de que sera tratado com uma crueldade menos brutal, mas mais refinada do que se Ihe cagassem como a um lobo. Assim, os maiores benfeitores intelectuais da humanidade nunca ousaram, e no ousam ainda hoje, enunciar a tota- lidade de seu pensamento; ¢ assim uma sombra de ditvida prima facie se lanca sobre toda proposi¢io considerada essencial 4 seguranga da socie- dade. Bastante singularmente, a perseguicio nao vem toda de fora; um ' i { OOOO A fixagiio da crenga Ey homem atormenta a si mesmo, ¢ freqiientemente fica muitissimo angus- tiado,-ao encontrar-se acreditando em proposigdes que anteriormente fora levado a considerar com aversio. O homem pacifico e compreensi- vo, portanto, achard dificil resistir 4 tentagio de submeter suas opinides 4 autoridade. Entretanto, eu admiro o método da tenacidade mais do que todos, por sua for¢a, simplicidade e pelo fato de ser direto. Homens que seguem esse método distinguem-se por seu carater resoluto, que se torna muito facil admitindo-se uma regra mental. Eles nao perdem tempo tentando desenvolver 0 que querem em suas mentes, mas, Como um relampago, abragam qualquer alternativa que lhes apareca primeiro, mantém-na até o fim, acontega 0 que acontecer, sem sequer um instan- te de hesitagdo. Esta é uma das espléndidas qualidades que geralmente acompanham o sucesso brilhante € imediato. & impossivel nao invejar 0 homem que consegue desprezar a razao, embora saibamos no que isso resulta ao final. Tais sio as vantagens que os outros métodos de estabelecer a opi- nido possuem sobre a investigacio cientifica. Um homem deve ponderar bem acerca disso; ¢ depois deve considerar que, afinal de contas, ele deseja que suas opinides coincidam com os fatos, ¢ que nio h4 razao que sustente que os resultados desses trés primeiros métodos fagam isso. Ocasionar esse efeito € a prerrogativa do método da ciéncia. Sob essas consideragdes, 0 sujeito tem de fazer sua escolha — uma escolha que é muito mais que a adogao de qualquer opinido intelectual, uma escolha decisiva para sua vida, que, uma vez tomada, obriga-o a aderir. As vezes, a forca do habito fara com que um homem se agarre a velhas crengas, mesmo depois de estar em condi¢ao de ver que elas nao possuem bases corretas. Mas a reflexio sobre 0 estado disso sobrevir a esses hAbitos, ¢ o homem ter4 de conceder reflexio todo o seu peso. As pessoas as vezes se recusam a fazé-lo, pois ndo conseguem evitar a idéia de que as crencas so todas sem fundamento. Mas que essas pessoas imaginem um caso andlogo conquanto distinto do deles préprios. Que se perguntem a si mesmas o que diriam a um mugulmano convertido que hesitasse em abandonar suas antigas crengas a respeito das relagGes entre os sexos; OU LL ee 58 ILUSTRAGOES DA LOGICA DA CIENCIA © que diriam a um catdlico que se recusasse a ler a Biblia. Nao diriam eles que esses sujeitos deveriam considerar a questéo plenamente, de maneira a entender claramente a nova doutrina, e que entao deveriam abrag4-la, em sua totalidade? Mas, acima de tudo, que considerem se a integridade da crenga é mais saudavel do que qualquer crenga particular, © esquivar-se de inspecionar o suporte de qualquer crenga, por causa do medo de que ele se revele apodrecido, é tio imoral quanto desvantajoso. A pessoa que reconhece que existe algo tal como a verdade, verdade que se distingue da falsidade simplesmente porque sua a¢3o nos leva ao ponto que desejamos atingir e nao o contrério, mas que, entao, muito embora esteja convencida disso, nao se atreve a conhecer a verdade ¢ procura evit4-la, tal pessoa encontra-se realmente num estado de espirito lamentavel. Sim, os outros métodos possuem scus méritos: uma clara conscién- cia légica tem seu prego — assim como nos custa caro qualquer virtude, bem como tudo o que estimamos. Mas nao devemos desejar que seja de outra forma. O génio do método légico de um homem deve ser amado € reverenciado como se fosse sua noiva, escolhida dentre todas as do mundo. Ele nao precisa menosprezar as outras mulheres; pelo contrario, pode honrd-las profundamente, ¢ assim fazendo ele honra a sua ainda mais. Todavia, ela é aquela que ele escolheu, ¢ ele sabe que estava certo ao fazer essa escolha. E tendo feito, trabalhar4 e lutar4 por ela, ¢ nao reclamard dos golpes que levar, esperando que possam ser tantos € tio duros quanto os que ele desfere em resposta. Tal homem esforcar-se-4 para ser o valente cavaleiro e campedo da mulher de cujos esplendores ele retira sua inspirag3o ¢ sua coragem.

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