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Sistema Politico Brasileiro: uma introdugdo ORGANIZADORES: LUCIA AVELAR ANTONIO OCTAVIO CINTRA TODOS OS DIREITOS DESTA EDICAO RESERVADOS: FUNDAGAO KONRAD ADENAUER Centro de Estudos Praca Floriano, 19 - 30° andar 2031-050 - Rio de Janeiro ~ RJ Tel.: (Oxx 21) 2220 5441 Fax: (Oxx 21) 2220 5448 konrad@adenauer.org br wwwaadenauer.org.br FUNDAGAO EDITORA DA UNESP (FEU) Praga da Sé, 108 01001-900 — Sao Paulo - SP Tel: (xx 1) 3242-7171 Fax: (Oxx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGACAO NA PUBLICAGAO (CIP) $636 Sistema politico brasileiro : uma introdugio / organizadores: Licia Avelar & Antonio Octavio Cintra. [2. ed.]. - Rio de Janeiro : Konrad-Adenauer-Stiftung ; Sio Paulo : Editora Unesp, 2007. 496p. ; 19,5 x 26 cm. ISBN 978-85-7504-108-6 (Fundagio Konrad Adenauer) ISBN 978-85-7139-753-8 (Editora Unesp) 1. Brasil - Politica e governo ~ Discursos, ensaios, conferéncias. L Avelar, Liicia. Il. Cintra, Antonio Octavio. III. Konrad-Adenauer-Stiftung. CDD-320.81 A Editora Unesp é afiliada a: Capitulo 4 Administragéo publica e burocracia ANTONIO AUGUSTO PEREIRA PRATES Este capitulo discute as relagées entre administracio piblica, Estado e democracia representativa no contexto das sociedades modernas ¢, & luz dessa discussio, apresenta os dilemas da administragao pablica no Bra- sil de hoje, um pafs altamente diversificado social e economicamente e com uma tradi- io fortemente centralizadora do sistema de formulacio ¢ implementagio de politicas pablicas. ‘Atemitica em foco tem sido objeto de dis- cussio intensa na literatura recente da sociolo- gia politica internacional. Hé os que defendem que somente um projeto associativista forte conseguiria realimentar a democracia nas so- ciedades contemporineas; f outros criticam a idéia com a suposigo de que tal projeto pode- ria significar a expansio da esfera privada so- bre a publica, comprometendo, assim, o card- ter democritico do Estado de Direito (COHEN e ROGERS, 1995). Essa discussio constitui, muito mais, um reflexo das tenses concretas entre gover- nabilidade, participagao, representacio e le- gitimidade, nas sociedades democraticas contemporaneas, do que, puramente, uma reflexio teérica, de natureza académica. Sua solugio, portanto, nio depende apenas de “formulas” de engenharia institucional, mas, principalmente, da motivacio dos atores politicos para mobilizar energias que alimen- tem novos ou velhos sistemas de participa- cio e representagio na sociedade. 1. Administragso publica e burocracia © conceito de atividades de natureza administrativa é muito mais amplo do que 0 de administracio piblica. Essas atividades podem ser vistas como um tipo de acio co- letiva muito mais geral e abrangente do que ocompreendido pela concepcio moderna do termo administracdo piiblica. Na primeira acepcio do termo, a atividade administrativa refere-se 4 acio, dentro de uma comunidade ou sociedade,' voltada para a implementagio de um sistema de ordem em uma associagio humana qualquer. Para Weber, a existéncia de qualquer “associagi0” (verband) pode ser acompanhada da presenca de um quadro administrativo: Por associacao (verband) deve- se entender uma relacdo social com 1. Por comunidade Weber entende um agrupamento humano cujo sistema de solidariedade € predominante- mente baseado em sentimentos que geram identidade comum. Por sociedade Weber entende um agrupamen- +0 humano cujo sistema de solidariedade esté bascado, predominantemente, em interesses “racionais” arti- ‘culados através de grupos burocraticamente organizados. 7 Administragao pablica e burocracia 118 regulagdo limitadora para fora quan- do a manutencdo de sua ordem est garantida pela conduta de determi- nados homens destinada em especial este proposito: um dirigente e, even- tualmente, um quadro administrati- vo. (WEBER [1944], 1964:39) Embora a presenga de um quadro admi- nistrativo nao constitua requisito para a exis- téncia da “associagéo”, é, segundo Weber, imprescindivel a agio administrativa do seu dirigente, ou “governo”, voltada para a ma- nutengio da ordem interna: “Basta a presen- ade um dirigente ~chefe de familia, direcio do sindicato, gerente mercanti, principe, pre~ sidente do Estado, chefe da Igreja—cuja con- duta se dirija para a realizago da ordem da associag4o” (op. cit., p.39). Portanto, a atividade administrativa di- ficilmente pode ser identificada como admi- nistragio pablica, na acep¢o moderna do termo. Os sistemas de ordem patrimonial,? por exemplo, embora disponham de um quadro administrativo relativamente com- plexo, nao podem ser tratados como siste- mas cuja administragao seja de natureza piblica, pois neles nao existe 0 conceito de esfera piblica, diferenciado do da esfera privada. De acordo com Bobbio (1987), © direito piblico europeu que acompanha a formacao do Estado constitucional moderno considerou privatistas as concepeoes patriar- calistas, paternalistas ou despoticas do poder soberano, que assimilam 0 Estado a uma familia ampliada ow atribuem ao soberano os mesmos po- deres que pertencem ao patriarca, ao pai ou ao patrao, senhores por varios titulos e com diversa forea da socie- dade familiar. (p.16) A rigor, a administracio piblica constitui um fendmeno do Estado moderno no qual a burocracia, com maior ou menor grau de racionalidade legal passou a ser a estrutura predominante de administragio. Assim, pode- se afirmar que o marco definitive do surgimento da administragao de natureza piiblica seja o advento do Estado burocritico moderno. Do ponto de vista sociolégico, foi Max Weber o grande te6rico dessa for- mulago. De acordo com ele, o “Estado racional” é um fenémeno tipico do Ociden- te: o Estado moderno € aquela associacao de autoridade (dominio) que tem 0 monopé- lio legitimo da violencia dentro de um ter- rit6rio, ¢ sua administragio € exercida por funcionarios especialistas comprometidos com regras impessoais ¢ legais que regulam suas atividades. Nas palavras de Weber: No Estado moderno, o ver- dadeiro dominio, que ndo consiste nem nos discursos parlamentares nem nas proclamas do monarca mas no manejo diario da administragao, en- contra-se necessariamente em mdos da burocracia, tanto militar como ci- vil... Da mesma forma que o chama- do progresso para o capitalismo, a partir da Idade Média, constitui aes- 2. Refere-se ao sistema de ordem baseado na lealdade pessoal ao Senhor e na referéncia normativa a valores “sagrados” 4 Tradigdo. 3. Otermo racional-legal é tilizado por Weber para designar o tipo de acdo orientada pela crenga na validade dos princfpioslegais em que se baseia a legitimidade da organizagio burocritica, em contraposicio as cren- «as baseadas na Tradicio que legitimam os sistemas burocriticos patrimoniais. calas nomi agresse bases sdoe siona comp docu super igual do E come 1964. Admi nal-legal Estado 1: dedomin permitird as esferas capitalist: 2. O Es! © pat Ocon civil tem cléssico de Hoje, are reflete mu xista do kc dos em cc malmente perspectit ctiagio ra se libertar natural. Sc correspon tradigao 1 vida polit 4. Ven pa da ou 9s po- 7a, a0 varios socie- constitui no qual a > grau de estrutura im, pode- itivo do natureza trocratico ‘iol6gico, tessa for- “Estado » Ociden- ‘ciagio de monopé- eum ter- rcida por ometidos » regulam ober: » ver- nsiste snem as no 0, en- ‘mos noci- vama- no, a iaes- na validade jlo As eren- cala univoca de modernizagao da eco- nomia, assim também constitui o pro~ .gress0 para o funciondrio burocritico, baseado no emprego, no soldo, pen- sio e ascensdo, na preparacao profi sional e na divisdo do trabalho, em’ competéncias fixas, no formalismo documental e na subordinagéo e na superioridade hierdrquica, a escala jigualmente univoca da modernizagao do Estado, tanto do mondrquico como do democrético. (WEBER, 1964:1060) Administragao paiblica e burocracia racio- nal-legal caminham juntas no contexto do Estado racional moderno. £ esta estrutura de dominagao, na linguagem weberiana, que permitiré a clara e explicita separagio entre as esferas piblica e privada nas sociedades capitalistas ocidentais. 2. O Estado e a sociedade civil: © puiblico e o privado conceito contemporaneo de sociedade civil tem muito pouco a ver com o conceito classic dos jusnaturalistas, de Hobbes a Kant. Hoje, a referéncia ao termo “sociedade civil” reflete muito mais 0 conceito hegeliano-mar- xista do I6cus da esfera dos interesses priva- dos em contraposigio ao interesse geral for- malmente expresso pelo Estado; este visto,na perspectiva dos jusnaturalistas, como uma criagio racional e artificial dos homens para se libertarem das mazelas da vida em estado natural. Sociedade civil, nesta tiltima acepcio, corresponde ao significado oposto aquele da tradigao marxista; ou seja, ela constitui a vida politica governada pelas leis ¢ regras do Estado criado para superar a ameaga da anarquia e/ou do despotismo inerente 3 con- digo da vida natural (BOBBIO, 1991). Nio se justifica, neste capitulo, uma dis- cussio alongada ou exaustiva desse concei- to.‘ E suficiente, para nés, esclarecer que 0 termo “sociedade civil” serd utilizado com 0 significado marxista de “reino dos interesses privados”, em contraposi¢io a0 conceito li- beral do Estado racional, visto como a ex- pressio do interesse ptiblico. Nesta concep- 40, 0 denominado Estado de Direito adqui- re significado de uma “empresa” de natureza piiblica, em contraposi¢ao & esfera privada dos interesses na sociedade civil. O Estado buro- ctatico-racional, para Weber, assenta-se no ordenamento juridico-formal da separacio entre a esfera piblica e privada. Como assinala Habermas (1984), as cate- gorias de piblico e de privado, embora partes da vida politica da Antiguidade Cléssica, passam a ter novamente uma efetiva aplicacao processual jurtdica com o surgimento do Estado moder- no e com aquela esfera da sociedade civil separada dele: servem para a evidéncia politica, bem como para a institucionalizagdo juridica, em sen- tido especifico, de uma esfera pribli- ca burguesa. (p.17) E este tipo de distingao entre as catego- rias que nos interessa aqui. O Estado moderno, definido a partir da predominancia da administracao burocra- tica racional-legal como sistema de gestio interna, e nao apenas como senhor sobera- no de uma nagio ou comunidade, que ca- racterizou o Estado absolutista, possbilitou a 4. Ver, para uma discussio do conceito, Prates (2000). g separagao nitida, no plano formal, entre as ca- tegorias do pablico e do privado. Mais do que isso, essa distingo constituiu, para Max Weber, a base juridica do Estado nas democracias de ‘massa, Somente nesse contexto pode-se,rigo- rosamente, falar de administragio piblica; até entio a administracio das “coisas” do Estado, incluindo as finangas e o exercicio do poder, se dava sem essa diferenciag3o entre as esferas piiblica e privada. Como sugere Weber, é 0 processo de burocratizagio do Estado e do Direito que possibilita a separagao entre 0 piiblico eo privado. A “coisa pablica” refe- re-se ao ambito do Estado, cuja pretensio de validez legitima descansa nas leis impes- soais que 0 regulam. Os conceitos de Esta- do burocratico ¢ Direito formal nao seriam compativeis com as estruturas pré-burocra- ticas do Estado patrimoni: Samente com a burocratizagéo do Estado e do Direito em geral, ve- mos a possibilidade definida de sepa- rar, clara e conceitualmente, uma or- dem juridica “objetiva” dos “direitos subjetivos” do individuo, que ela ga- rante; de separar Direto “Piblico” do Direito “Privado”. (WEBER [1943], 1971:276-7). 3. Caracteristicas da burocracit racional-legal e sua emergéncia histérica na administragéo publica De acordo com Weber (1964) as princi- pais caracteristicas da administracio buro- critica racional-legal, seja de natureza pi blica seja de natureza privada, sa ‘Acespecializagio que define o sistema de divisio do trabalho constitui um sistema estével baseado na especificagao clara e explicita de esferas de competéncia. Essa caracteristica enfatiza 0 elemento racional da divisio do trabalho baseada no saber técnico. O sistema de autoridade tende a ser hie~ rarquico, baseado no conhecimento téc~ nico de nivel superior. Como a primeira, essa segunda caracte~ ristica enfatiza, também, a natureza técnico- cientifica da legitimidade da autoridade na burocracia racional.’ . Orecrutamento e a ascensio de funcio- nirios tende a basear-se em critérios universalistas® de competéncia técnica. Esta tendéncia rompe radicalmente com ‘5. Um dos mais importantes tedrios da sociologiacontemporinea, Talcot Parsons (1947, ed. 1964), a0 traduair ‘o texto Economia e Sociedade de Weber para o inglés ~¢ foi a primeira versio da obra de Weber para o inglés colocou num rodapé (p-58-9) uma observagio que instigou uma dscussio viva até os dias de hoje. Na observasio, Parsons criticou Weber por nio ter distinguido duas bases distintas de autoridade legitima dentro das orpanizagbes autoridade baseada na hierarquia do cargo burocritico, portantotipica de qualquer buro- craci, ea baseada no saber técnico,tipica dos profissionas das burocracias. Segundo Parsons, as duas bases de sutoridade seriam rlativamente contraditrias e suscitariam tensio constanteno interior das burocracias: a autoridade baseada no conhecimento do perto, contra aautoridade do cargo hierdrquico. Em outras palavras, Parsons refera ao conflto, hoje muito documentado, entre o profissional ou técnico eos seus superiores que no precisam possuir o mesmo nivel de competénca tenia dos subordinados. 6. O termo wniversalista diz respeito a valores que enfatizam as qualidades de desempenho e reaizagio das esas, ou sea, seus prOprios mérios, em contraposigéo ao conceito de partcularismo, que acentua as éaracterstcas herdadas pelos individuos,tais como classe de nascimento, etna, familia ete os erités organiz Neste ti nam set adscrite aldade. mente ¢ nicos de gundo a 0 éxito rigorosa nado po jugado & nao dep (WEBE} dessa “ri que Wet cional-le condigac co-libera do sisten téncia de gulaoco cipio bas dios con concreta vel atrav nal-legal critérios « nal de ca exemplo, ido, cor, + Tendé rios d meios Deact nal implic: rca 3éncia > pdblica ) as princi- ago buro- tureza pi- 0: sistema de am sistema fo clara e téncia, + elemento vaseada no ea ser hie- mento téc- da caracte- za técnico- oridade na de funcio- 1 critérios a técnica. nente com 20 traduzie para inglés de hoje. Na ftima dentro alquer buro- las bases de srocracias: a raspalavras, periores que alizagio das (0s critérios particularistas e “clientelistas” da “organizagio burocritica de tipo patrimonial. Neste tipo de burocracia, os chefes selecio- nam seus funcionérios com base em critérios adscritos” de nascimento, religio, raca e le- aldade. Jé as carreiras funcionais sio clara- mente estabelecidas com seus critérios téc- nicos de ascensao aos niveis superiores: “Se- gundo a experiéncia, 0 6timo relativo para ‘© éxito e manutengio de uma mecanizagio rigorosa do aparato burocritico € proporcio- nado por um salario monetirio certo, con- jugado & oportunidade de uma carreira que nao dependa do simples acaso e arbftrio” (WEBER, [1943] 1971:242). £ no sentido dessa “regra” universalista de recrutamento que Weber sugere que a burocratizacio ra- cional-legal da sociedade ocidental foi uma condigdo sine qua non do sistema democrati- corliberal de governo. A base de legitimidade do sistema democritico-liberal esta na exis- téncia de um sistema jurfdico-formal, que re- gulao comportamento do Estado, cujo prin cipio basico € o tratamento de todos os cida- dios como iguais perante a lei. A expressio concreta deste princfpio somente foi possi- vel através da criagio da burocracia racio- nal-legal que, por defini¢io, é cega para os critérios de recrutamento ¢ ascensio funcio- nal de cardter nio-meritocritico como, por exemplo, os de status de nascimento, reli- sido, cor, raca ou sexo. “Tendéncia da separagio entre funcioné- rios da burocracia e a propriedade dos meios de administracio. De acordo com Weber, a burocracia racio- nalimplicava a mesma condigio postulada por ‘Marx para o surgimento do capitalismo: a separacio entre os produtores ¢ a proprie- dade dos meios de producio. Weber, conhe- cedor da teoria de Marx, demonstrou apli- car-se essa condicio também & burocracia piiblica em que os funciondrios (produtores) nio tinham a propriedade dos meios admi- nistrativos (meios de produgio). Em contraposigio aos exércitos medievais, por exemplo, os membros dos exércitos moder- nos nao sao proprietarios de suas préprias armas, © mesmo se dé nas universidades € em outras burocracias piiblicas. = Aremuneragio dos funcionsrios tende a ser na forma de salarios e no em espé- cie ou prebendas. Essa caracteristica 6, segundo Weber, uma das condigées histéricas mais favoraveis 4 cri- aio do sistema burocrético racional. Enquan- to na burocracia tradicional-patrimonial 0 pagamento dos funciondrios era predominan- temente em espécie (por exemplo, ficando 0 fancionario com parcela dos impostos arre- cadados) ou em prebendas (mediante doagdes de bens ao funcionério, em troca de lealdade e de favores), na burocracia racional-legal a remuneragio se faz predominantemente em dinheiro, mediante salério. Este se deve a0 exercicio de um cargo e fungio explicitamente definidos e nao predisposicio subjetiva e difusa de lealdade e obediéncia ao senhor da burocracia. . Asnormas que regulam o relacionamen- to entre os funciondrios ¢ lhes definem as atividades tendem a ser totalmente im- pessoais e formalmente explicitas. 7. O termo adscrito, em portugués, tem significado distinto do seu uso sociolégico em inglés. Aqui o termo é utilizado no seu significado sociol6gico ~ status de origem de um individuo relativamente 2s caracteriticas biol6gicas de nascimento, tais como sexo, raga, cor e as sociais herdadas do grupo ou classe a que pertence, tais como religiio e status socal 121 2 8 Administragao pai 122 Finalmente, essa tiltima caracterfstica da burocracia racional-legal constitui uma con- digo da objetividade do sistema de controle racional das atividades da organizagio. E ela que permite o salto qualitativo no sistema de controle organizacional da burocracia tra- dicional: em vez do controle por meio de supervisio direta, praticado na velha buro- cracia, a estabilidade da burocracia moder- na, a previsibilidade do que faz, assenta no controle remoto, 2 distancia, de natureza normativa, proveniente do sistema de regras formais, sobre as atividades dos seus mem- bros, ¢ nao sobre suas pessoas. De acordo com Weber, a burocracia ra- cional-legal € 0 instrumento mais poderoso ¢ eficaz de controle do comportamento hu- mano. Qual a origem hist6rica desse modelo de administrac3o fundado na racionalidade ins- trumental? Uma constelagao de fatores his- 1t6ricos favoreceu o aparecimento ¢ sedimen- tacio da administragdo burocratica. Entre eles: 0 carter formalista do Direito Roma no, base do direito racional do Estado oci- dental moderno, sobre 0 qual se fundou a formagio técnica dos funciondrios pablicos. No Absolutismo ou nos impérios patri- moniais do Oriente, a Justica caracteristica era a material, guiada “pelos princfpios uti- litatios e de equidade, de acordo com os quais procede, por exemplo, a jurisdigio do Cad islamico”, ou seja, o Direito voltava-se paraa distribuigao da Justica de acordo com regras ce normas da “tradi¢a0” de um grupo social e no de acordo com as regras de um sistema formal “racionalmente” orientado, como no caso do Direito Romano € nos estados bu- roctiticos modernos, em que a Justica se orientou pela ética juridico-formal: *O Di- reito Romano foi aqui [Weber referia-se 4 Alemanha] 0 meio que serviu & erradicagio do direito material em beneficio do formal” (WEBER, 1964:1049-50). O Ocidente, a0 contrério da China e da india, onde a admi- nistragao de Estado contava com funciona- rigs humanistas (os mandarins na China e os escritores na india), “dispunha de um Direi- to formalmente estruturado, produto do gé nio romano, e os funciondrios formados na base do dito Direito se revelaram, enquanto técnicos da administragio, como superiores a todos os demais” (WEBER, 1964:1050). Um outro fator hist6rico favoravel & ra- cionalizagio do Estado e da economia foi a politica mercantilista adotada na Europa docidental a partir do século XIV. Para Weber, © Mercantilismo € o primeiro passo de arti- culagio entre o Estado e as empresas capita- listass o Estado é tratado como se constasse tinica e exclusivamente de empresas capitalistas; a politica eco- némica exterior descansa no princt- pio dirigido a ganhar a maior vanta- gem possivel do adversdrio ... O Objeto consiste em reforcar o poder da direcéo do Estado para fora. ‘Mercantilismo significa, pois, forma- ¢40 moderna do poder estatal, direta- mente mediante aumento da renda do principe, e indiretamente mediante aumento da forca impositiva da po- pulagéo. (WEBER, 1964:1053) ‘Mas, mais decisivo do que as politicas mercantilistas para 0 processo de racionali- zacio formal no Ocidente foi o Puritanismo protestante que veio constituir o pilar ético do capitalismo moderno baseado na disci- plina € no céleulo racional. Weber ilustra a tese com o conflito entre os empresirios ‘puritanos e os capitalistas “aventureiros”, ti picos do perfodo capitalista monopolista do ‘Mercantilismo, no Banco da Inglaterra, ap6s o fracas Stewart Con cia [We cion vai j ciac bros oui owe nein 196. Aa racional veio cor Ocident esfera p & Ore favo inte, a0 aadmi- nciona- ina eos aDirei- odo ge- ados na quanto 1050). vel ara- aia foi a Europa Weber, de arti- seapita- > se ede >oliticas tcionali- tanismo lar ético 1a disci- itustra a resirios iros”, ti slista do ‘ra, apés, 0 fracasso da politica monopolistico-fiscal dos Stewarts, no século XVIII: Pela siltima vez se enfrentaram aqui [Weber refere-se & Inglaterra] em Iuta aberta os capitalismos irracio- nal e racional: 0 capitalismo orien- tado para as oportunidades fiscais e coloniais, dos monopélios estatais, € 0 que foi orientado para as oportu- nidades de mercado, que se buscavam automaticamente, de dentro para fora, em virtude das realizagbes mer- cantis proprias ... A tiltima vez que o Banco da Inglaterra se desviow no sen- tido do capitalismo de aventura foi na ocasido da questao da South-Sea- Company. Mas prescindindo do dito caso, podemtos seguir passo a passo em sew comportamento como a influén- cia de Paterson os do seu grupo [Weber refere-se, aqui, ao grupo tradi- cional de empresdrios mercantilistas] vai perdendo terreno frente a influén- cia da categoria racionalista dos mem- bros do Banco, que eram todos direta ow indiretamente de origem puritana com estavam sob a influéncia da ma- neira de ser puritana. (WEBER, 1964:1055) A administragio burocratica, de carter racional, baseada na disciplina e no calculo, veio coroar 0 processo de racionalizacéo no Ocidente, tanto na esfera ptiblica quanto na esfera privada. 4. A supremacia da meritocracia sobre 0 clientelismo: 0 novo dile- ma do Estado racional A burocracia racional-legal constituiu ‘uma condigiio essencial do regime democriti- co das sociedades liberais contemporiineas. Sua énfase sobre critérios universalistas ¢ meritocraticos (critérios baseados no mérito pessoal) para o recrutamento e ascensio na carreira minou, passo a passo, a légica do “velho” sistema clientelista’ da administra- io piblica tradicional. Critérios relaciona- dos 4 origem de classe ou “estamento” per- dem legitimidade e efetividade no novo ce- rio da administragio piblica. O Estado de Direito gana terreno sobre a administracio do Estado Patrimonial; cada vez mais a ide- ologia liberal da igualdade formal perante a lei se expande como crenca legitima do Es- tado moderno. A democracia formal se ins- titucionaliza a partir da crescente legitimagio das regras administrativas do Estado buro- erético-racional: “a ‘igualdade perante a lei? ¢ a exigencia de garantias legais contra a ar- bitrariedade requerem ‘objetividade’ de ad- ministragao formal e racional, em oposigio a discrigao pessoalmente livre, que vem da ‘graga’ do velho dominio patrimonial” (WEBER [1943], 1971:256). Embora seja importante no esquecer que © proceso de racionalizacio burocratica é, empiricamente, uma questo de grau, ou seja, em alguma medida 0 clientelismo ¢ 0 particularismo estio sempre presentes no sistema administrativo, mesmo naquele mais racional-burocritico, o que importa é a cren- ‘¢apredominante que legitima o sistema. No caso do Estado de Direito, sio os valores da 8. Otermo clientelista significa o tipo de relagdes politicas baseadas na troca de lealdade ao chefe politico por favores pessoais aos seus seguidores ou stiitos. 123 Administragao pablica e burocracia igualdade perante aleie a competéncia técni- ca, vista como critério de qualificagao para 0 servigo pablico, que legitimam o sistema. Contudo, devem-se salientar trés dilemas basicos para as democracias contemporaneas, apontados pelo préprio Weber, relacionados 8 expansio da burocracia técnica. Os dois primeiros dizem respeito @ enorme énfase que 0 sistema burocritico coloca sobre 0 formalismo ¢ a meritocracia. No primeiro caso, o dilema dé-se pela exigéncia crescen- te ilimitada da formalizagio do direito, que faz com que a face material da justica seja cada vez mais negligenciada (WEBER, 1964; HABERMAS, 1984). No segundo caso, o dilema surge pela for- ca dos critérios meritocréticos que, no con- texto de uma democracia social precéria, ten= de a criar um novo tipo de estamento? basea- do no conhecimento técnico especializado, que reproduz o sistema de desigualdade a0 acesso as oportunidades educacionais (WEBER, 1971). terceiro dilema diz respeito a associa- gio entre o conhecimento técnico e 0 con- trole dos “segredos” de Estado no contexto das burocracias racionais, que cria uma base de poder especifico da prépria burocracia no sistema de governo democritico. O uso des- se poder pelas agéncias burocraticas ou pe- los funcionirios pablicos pode comprome- ter aeficécia do Poder Legislativo como sis- tema de controle representativo do governo democratico: O conceito de *segredo oficial” & invengao especifica da burocracia, e niada é tao fanaticamente definido pela burocracia quanto essa atitude que ndo pode ser substancialmente defendida além dessas dreas espe- cificamente qualificadas. Ao enfren- tar 0 parlamento, a burocracia, leva- da por seguro instinto de poder, luta contra qualquer tentativa daquele para conseguir o conhecimento atra- vés de seus proprios peritos ou por ‘meio dos grupos de interesse. (WEBER 11943}, 1971:270) Os trés dilemas colocam as sociedades democraticas contemporaneas em constan- tes tensGes estruturais nas esferas da justica, dos direitos sociais e da representatividade. 5. Servigo publico, ética e democracia Uma das variveis intervenientes mais importantes na relacZo entre servigo pabli- co e democracia é a ética. De fato, uma das questoes centrais das burocracias piblicas, nas democracias contemporaneas, é a posi- io do funciondrio como servidor piblico. De acordo com Weber, a ética do Estado de Direito exige do servidor piiblico adesio moral aos principios de “neutralidade” e de “responsabilidade” no cumprimento das fun- ‘s6es a ele delegadas pelos representantes le- gitimamente escolhidos pelo povo (MARCH ¢ OLSEN, 1995). ‘As democracias liberais tém dois requisi- tos fundamentais quanto ao funcionamento do aparato burocritico do Estado: o primei- ‘ro refere-se ao mecanismo de “autorizagao” 0s servidores piiblicos para agirem em nome 9. O termo estamento designa um grupamento social que monopoliza simbolos de status ¢ controla os meca- nismos de entrada ou participagio no grupamento. da soci mento, ciedad dos da accoun requisi mente ‘March dade di aautori wn OSI combin socieda conseqi do con (MARC Este coerent tivos a tral nas lado, p efetivid represei como o democr relagi rocraciz lado, ax eP Hirs associat modelo vidor pt deems mento ¢ a quest? serefere 10. Trad 11. Emb “cob prt ude onte spe- en- ova uta uele ‘tra por BER iedades onstan- justica, vidade. es mais 0 pabli- ama das siblicas, $a posi- piiblico. stado de adesio de" ede das fun- antes le- 4ARCH requisi- tamento primei- sizagio” mnome da sociedade; 0 segundo refere-se ao provi- ‘mento, pela burocracia, de informacio 3 so- ciedade para que esta possa cobrar resulta- dos da aco governamental (a chamada accountability em lingua inglesa). Os dois requisitos, entretanto, ndo sio estrutural- mente congruentes. Como sugerem J. G. Marche J. P. Olsen, “a delegacao de autori- dade dao direito para exercer discrigio, mas aautoridade é controlada pela accountability = © sistema de antoridade discriciondria, combinado com a auditoria do controle da sociedade, é erodido pelo duplo medo das conseqiiéncias da agio ¢ das ambigiiidades do controle da sociedade (accountability)” (MARCH e OLSEN, 1995:59).!” Esta dupla demanda, relativamente in- coerente, dos requisitos democriticos rela- tivos & administracio péblica tem sido cen- tral nas democracias contemporaneas. De um lado, propéem alguns, com base na baixa efetividade dos mecanismos tradicionais de representacio politica nessas sociedades, tais como os partidos politicos, um sistema de democracia mais participativa, centrada nas relagdes diretas entre associagGes civis ¢ bu- rocracias locais (WRIGHT, 1995). De outro lado, autores como J. G. March, J. P. Olsen eB Hirst criticam o modelo da “democracia associativista”, em virtude dos riscos que esse modelo acarreta para a posigao ética do ser- vidor piiblico ¢ para a autonomia da socieda- de em seu papel de auditora do comporta- ‘mento das burocracias piiblicas."" Portanto, a questio da ética do servidor piblico nio se refere somente 3 esfera moral da sua cons- ciéncia, mas, principalmente, 4 esfera da efi- cdcia dos valores que sustentam o sistema democritico. Entre estes, por exemplo, o da responsabilidade do servidor, autorizada pelo povo, ¢ 0 da disponibilidade, para a socieda- de, de informagées sobre as politicas pabli- cas. 6. A diversidade social brasileira ‘ea democracia $6 podemos falar em burocracia racio- nal-legal no Brasil a partir da Revolucio de 30. Até af, a administracdo pablica brasilei- ra era moldada pelo velho estilo patrimonial do favoritismo politico e social, sem qual- quer distinggo de natureza formal ou subs- tantiva entre 0 piblico ¢ 0 privado. As oli- garquias do Império ¢ da Repablica Velha, embora eficazes na garantia da unidade territorial, ndo chegaram a tentar a moder- nizagdo do aparato burocritico do Estado brasileiro, Foi somente com a Revolucio de 30 que surgiu tal iniciativa. A partir desse momento, 0 Estado brasileiro comegou a se fazer presente e visivel na estrutura poli- tica do pafs. O texto de Gercina Oliveira exemplifica: com a crescente intervengdo es- tatal em quase todos os setores das atividades produtivas, se ampliam os servicas piiblicos, sobretudo, da ad- ministracéo federal, que se refletem na criagdo de autarquias, sociedades de economia mista e no proprio cres- 10, Tradugio livre. I, Embora se deva salientar que estudos sociolégicos sobre as “condigdes reais” de existencia de um sistema de “cobranca” publica tém mostrado que ele no depende somente do desenho formal das institu namentais. A cultura civica, por exemplo, parece constitair uma condigio importante para a priticas coletivas de acompanhamento das ages governamentais (R. PUTNAM, 1993). 125 ‘Administragéo pablica e burocracia ‘cimento do niimero de 6rgdos da ad- ministracdo centralizada. Criam-se alguns ministérios (Trabalho, Indiis- tria e Comércio, Educagdo e Satide e Aerondutica), autarquias previ- dencidrias (IAPC, lapetec, IAPI), re- guladoras da economia (IAA, IBC etc,), ¢ industriais (maritimas e fer- rovitiria principalmente). (OLIVEIRA, RAP, v4, 2.2, 2° sem. 1970) Estava se criando, entio, na sociedade brasileira, 0 Estado moderno, interven- cionista e social. O instrumento mais visivel dessa trans- formagio foi, sem diivida, a tentativa de im- plantagao de uma administrag4o piblica de molde weberiano. Em 1936 foi criado 0 Con- selho Federal do Servigo Piblico Civil, que, ‘em 1938, transformou-se no Departamento, ‘Administrativo do Servigo Pablico (DASP).! Desde entdo, 0 Servigo Piblico Federal p: sou a ser regido pelas normas da burocracia racional-legal, antes descritas, embora no dia- a-dia esse sistema sempre tenha convivido com priticas clientelistas do velho modelo patrimonial. Se, por um lado, o DASP veio a ser 0 instrumento de modernizagéo mais eficaz da administragao piblica brasileira, por ou- tro, foi transformando-se em gigantesco obstéculo a mudanga adaptativa do sistema piblico. Centralizando e homogeneizando, através de padrées, normas e regulamentos, a vida funcional de todas as instituig6es pi- blicas federais, em qualquer estado ou re- gio brasileira, o DASB, com 0 tempo, pas- sou a ser conhecido nao pelo seu papel modernizador da burocracia publica, mas como a metafora do “gigante adormecido” do nosso Hino Nacional: uma instituigao enorme, lenta, pesada, ineficiente e altamente ritualista, O proprio governo federal, assim como o Dr. Frankenstein, viu-se frente a fren- te com sua criagdo recalcitrante e poderosa. Incapazes de reestruturar a propria maquina administrativa, os governos buscavam saidas jurfdicas menos penosas ¢ mais rpidas para a questéo da adaptagio da administragao piiblica as demandas do crescimento ¢ de- senvolvimento econémico-social diversifi- cado dos anos pés-1930. Sao conhecidas as freqiientes tentativas governamentais de driblar 0 peso burocratico da maquina pai- blica de administragao direta pela criagio de “autarquias” que gozavam de maior au- tonomia frente ao DASP. Essa estratégia de governo atingiu seu Apice em 1967, com o Decreto-Lei 200, que instituiu um sistema diferenciado para a administragao indireta, pelo qual se dava grande autonomia para contratagio de pessoal pelo regime da CLT = Consolidacio das Leis Trabalhistas ¢ se enfatizava um sistema de controle baseado no planejamento, orgamento ¢ avaliagao de resultados. Fundagdes de dircito privado, sociedades de economia mista ¢ empresas piblicas foram as grandes beneficidrias des- 12. A tajet6ria do sistema de controle da Administragio Pliblica Federal se deu através dos seguintes Srgios ASP, extinto em 1986; seguiu-se a SEDAP (Secretaria da Administragio Pablica da Presidéncia da Repabli 2), incorporada em 1989 A Secretaria do Planejamento da Presidéncia da Repablica. Em 1990 foi criada a ‘SAF (Secretaria da Administagio Federal da Presidéncia da Repdblica, incorporada ao Ministério do Traba- tho em 1992). Em 1995, a SAF transforma-se em MARE (Ministério da Administragao Federal ¢ Reforma ddo Estado). Para uma boa discussio das tensOes entre burocracia ¢ eficiéncia na historia recente brasileira, ‘ver Bresser Pereira, “Da Administracio Piblica Burocritica A Gerencial”, in RSP ~ Revista do Servigo Piblico ano 47, 120, 2.1, jan-abr. 1996, p.7-37. sa politi pondeu a gestao da: brasileira Entret ra (1996, governo t nistrar a“ em contra bém prod cias indes« praticas ci soal eam tracio di inoperant receber qu termos dei quase vint cracia da federal foi contexto, + encontra governo da tituigao de Gnico para daadminis e fundagoe dos anos 3( sucederam quina unifo bito nacion diversas mit tenas de aut mesma “va ridico Unic uma reagio nistragao in igdes pei- © on re- 1p0, pas- 2a papel ica, mas mecido” stituigao JItamente al, assim teafren- oderosa. miquina um saidas das para ristragio ato € de- siversifi- ecidas as ntais de uina pé- vcriagio aaior au- égia de 7,como « sistema indireta, nia para :da CLT stas € se baseado iagio de privado, -mpresas stias des- 6rgios: a Repabli- oicriada a do Teaba- + Reforma brasileira, ¢0 Pablico sa politica que, sem sombra de davida, res- pondeu a necessidade de maior eficiéncia na gestio das politicas ptiblicas que a economia brasileira pedia naquele momento. Entretanto, como sugerin Bresser Perei- 1a (1996, op. cit.), embora essa estratégia de governo tenha sido uma tentativa de admi- nistrar a “coisa priblica” de forma gerencial, em contraposigio & forma burocritica, tam- bém produzin, pelo menos, duas conseqiién- cias indesejéveis e ndo-previstas: a volta de praticas clientelistas no recrutamento de pes- soal e a marginalizacao politica da adminis- tragio direta que, vista como sistema inoperante ¢ muito caro, foi relegada, sem receber qualquer atencio governamental em termos de investimento e renovagio. Durante quase vinte anos do regime militar, a buro- cracia da administracio direta do governo federal foi posta em segundo plano. Nesse contexto, em que a administragio direta se encontrava envelhecida e marginalizada, 0 governo da Nova Repiiblica, através da Cons- tituicéo de 1988, instituiu o Regime Juridico Unico para todos os servidores ptiblicos civis daadministragio direta e indireta (autarquias ¢ fundag6es), no mais puro espfrito daspiano dos anos 30. Novamente, os governos que se sucederam enfrentaram uma gigantesca mé- guina uniformizadora e centralizadora no m- bito nacional. Antigas fundagSes, com as mais diversas missOes, universidades federais e cen- tenas de autarquias foram todas colocadas na mesma “vala administrativa”. O Regime Ju- ridico Unico ~ RJU constituiu ndo apenas ‘uma reacio ao poder discriciondrio da admi- nistragio indireta, mas, também, uma reagio simbélica aos tempos do regime militar. Nesse sentido, sua concepgio estava conta- minada tanto pela “paixio” politica quanto pela busca estratégica de “redemocratiza¢io” da sociedade brasileira, sua justificativa ra- cional. Esta além do escopo deste trabalho analisar as disfung6es do novo “gigante” bu- rocritico criado pela Constituicio de 1988. Contudo, a ineficiéncia do sistema para ge- rir tantas ¢ tio diferentes instituig6es pi- blicas, espalhadas pelas mais distintas regi- Ges brasileiras, é, hoje, consenso das mais diversas correntes de opinides politicas ¢ ideolégicas. Com base em um diagnéstico que enfa- tizava essas disfungoes, 0 governo federal propés, em 1995," um plano de reforma do Estado que mudaria estruturalmente o siste- ma de administracio piblica brasileira. Des- dea criagio do DASP, foi a primeira iniciati va de reforma estrutural da administragio piiblica do pais. Sem pretender discutir tec- nicamente a proposta, vou apenas apresenti- Ia em suas caracteristicas fundamentais.'* E bastante criativa e inovadora em termos da concepgio geral das atividades estatais. Di- ferencia os setores estatais de acordo com suas fungdes, das mais exclusivas ou tfpicas de Estado até as préprias, no necessaria- mente exclusivas do Estado. Esses setores sio: 0 do “nicleo estratégico”, composto pelo Legislativo, Judiciério, Presidéncia e ciipula dos ministérios; 0 das “atividades exclusivas”, tais como policia, regulamen- tacio, fiscalizagao, fomento, seguridade social basica; 0 dos “servigos nao-exclusi- vos”, como universidades, hospitais, centros 13, Ver, para uma boa apresentagio desse diagn6stico, Bresser Pereira, op. cit 14. Ver Ministério da Administragio Federal e Reforma do Estado, Plano Diretor da Reforma de Estado, 1995. 15. Para uma apresentagio didética e bem fundamentada, ver Bresser Pereira, op. cit. 127 de pesquisa e museus e,finalmente, 0 da “pro- ducio para o mercado”, as empresas estatais. © Plano diferencia, também, formas de pro- priedade - estatal, piiblica nio-estatal"* ¢ ; Su privada - ¢ formas de administragio: buro- critica e gerencial. A administragio de tipo burocrético enfatiza o cardter formalista ¢ universalista de recrutamento e de ascensio dos funcionarios com base em critérios eritocriticos. Jé o modelo gerencial enfatiza as dimens6es de flexibilidade e autonomia BOBBIO,? do gestor para administrar seus recursos hu- manos e materiais (BRESSER PEREIRA, op. cit., p.31). ‘Administragao piblica e burocracia ‘Como pode perceber-se, 0 Plano de Re~ | ——-BRESSERI forma idealizado no inicio do governo ; batches Fernando Henrique Cardoso é bastante ou- COHEN, J sado ¢ inovador. Talvez e, ironicamente, por HABERM causa dessas duas “qualidades”, que dio ao ‘a plano um potencial de mudanga estrutural Manca da administracao piblica brasileira, nao te- el nha ele conseguido viabilizar-se politicamen- PERROW, te, nem sequer no segundo mandato de PRATES, A Fernando Henrique Cardoso. Os focos de da Dire resisténcia foram muitos, mas, entre eles, PUTNAN, destacam-se as préprias corporagées sindi- Getulio cais dos funciondrios piblicos e os amplos | WEBER, setores da elite burocrética que chefiam as “EB instituig6es publicas brasileiras. aie 16. Refere-se, de acordo com Bresser Pereira (op. cit), &s instinuigbes de Dircito Privado com fins nio lucrativos «3s organizagbes sem fins lucrativos. Sugestées de leitura BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Tetra, 1987. Sociedade e Estado na filosofia politica modema. 3.ed, Sao Paulo: Brasiliense, 1991. cet al. Diciondrio de Politica (verbete Administracio Pablica). 4.ed. Braslia: Ed. UnB, 1992. BRESSER PEREIRA, L. C. Da administragio piblica burocritica a gerencial. Revista do Servigo Piiblico, RSP, ano 47, v.120, nul, p.7-39, janJabr. 1996. COHEN, J., ROGERS, J. Associations and democracy. WRIGHT, E. O. (Ed.). Londres: Verso, 1995. HABERMAS, J. Mudanca estrutural da esfera piiblica. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984. ___. The Theory of Communicative Action, v.1. Boston: Beacon Press, 1984, MARCH, J. G., OLSEN, J. Democratic governance. Nova York: The Free Press, 1995. PERROW, C. Complex organizations: a PRATES, A.A. P Sociedade Civil (verbete). In: SILVA, F.C. T. da. et al. (Org.). Diciondrio critico do pensamento dda Direita, Rio de Janeiro: Mauad, 2000. PUTNAN, D. Robert. Comunidade e democracia ~ a experitncia da Itélia moderna. Rio de Janeiro: Fundacio Getulio Vargas, 1996. WEBER, M. Economia y sociedad, wl, cap. IX. México: Fondo de Cultura Econémica, 1964. Ensaios de sociologia. In: GERTH, H. H., MILLS, C. W. (Orgs.). Rio de Janeiro: Zahar, 1971. WRIGHT, E, (Ed.). Associations and democracy. Nova York: Verso, 1995. tical essay. 2.ed. Glenview: Scott, Foreman and Company, 1979. 129

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