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Quando refletimos sobre a Natureza em geral, ou sobre a histéria da humanidade, ou sobre nossa propria ‘atividade intelectual, vemos em primeiro lugar a imagem de um incessante emaranhado de relagbes e reagbes, de ermutagdes e combinagdes, nas quais nada permanece ‘o-qué, onde € como era, mas nas quais tudo se move, toma forma e passa. Vemos portanto em primeiro plano @ imagem de um todo, com suas partes ainda mais ou ‘menos mantidas ao fundo; observamos os movimentos, as transigdes, as conexdes, em vez das coisas que se mover € combinam e estdo ligadas. Esta concepeio do mundo Primitivo, naif, porém intrinsecamente correta, & a mesma dda filosofia grega antiga, e foi formulada pela primeira vez com clareca por Heréclito: do & e nio 6, porque tudo é fluido, esté constantemente mudando, constante- ‘mente tomando forma e passando. Friedrich Engels UL ML. W. vi vu. vu. INDICE A DIALETICA DO SEXO FEMINISMO AMERICANO FREUDISMO: UM FEMINISMO DESVIRTUADO ABAIXO A INFANCIA RACISCO: 0 SEXISMO DA FAMILIA DO HOMEM ‘0 AMOR A CULTURA DO ROMANCE. CULTURA (MASCULINA) DIALETICA SEXUAL DA HISTORIA DA CULTURA © FEMINISMO NA ERA DA ECOLOGIA CONCLUSAO: A REVOLUGAO DEFINITIVA, Ww 28 58 87 1s 147 169 181 197 221 233 I. A DIALETICA DO SEXO As classes sexuais sto tio enraizadas, que se tor- nam invisiveis, A existéncia dessas classes ‘pode parecer ‘uma desigualdade superficial, facilmente soluciondvel com algumas reformas, ou talvez com a integracio plena das mulheres na forga de trabalho. Mas a reagio do homem, da mulher ¢ da crianga comum — “O qué? Ora, nio se pode mudar isto! Voc’ deve estar loucol” — esti mais proxima da verdade. Falamos de algumas coisas tio pro- fundas quanto esta, Essa reagio instintiva € honesta, pois, mesmo quando 0 ignoram, as feministas falam de uma ‘mudanga na condi¢ao biol6gica bésica. O fato de que uma mudanga tio profunda no possa se ajustar em ca- tegorias tradicionais de pensamento, p.e., 0 “politico”, ‘corre no porque essas categorias ndo se usem, mas por- que nao so suficientemente amplas: um feminismo ra cal as perpassa, Se houvesse um outro termo mais abran- gente, do que revoluedo, n6s 0 usariamos. “Até que fosse atingido um certo nivel de evolucdo € que a tecnologia chegasse a sofisticago atual, questio- nar condigdes biol6gicas bésicas era loucura. Por que deveria uma mulher trocar seu precioso lugar no curral, por uma uta sangrenta e sem esperanca? Entretanto, pela primeira vez em alguns paises, as pré-condigdes para ‘8 revolugo feminista existem — na verdade, a situagio ccomega a exigir essa revolucio. uw ‘As primeiras mulheres estéo conseguindo escapar a0 massacre, e, inseyuras e vacilantes, comegam a. des- cobrir-se umas is outras. Seu primeiro passo & uma obser- vvago cuidadosa, em conjunto, para ressensibilizar uma conscigncia partida. Isto penoso. No importa quantos niveis de conscigncia sejam atingidas, 0 problema sempre se aprofunda, Ele se acha em todo iugat. A divisio Yin ¢ Yang peneira toda a cultura, a historia, a economia, © propria natureza; as vers6es ocidentais modernas da discriminagio sexual integram apenas o substrato. mais superficial © recente. Intensifiear assim nossa. sensbili- dade em relagio ao sexismo traz problemas muito piores do que os que a nova conscitneia do racismo’ trouxe Para os militares negros. As feminists tém que questionar fio s6 toda a cultura oeidental, como a prépria organiza- fo da’ cultura, e, mais; até a propria oreanizagto da na- tureza. Muitas mulheres desistem, desesperadas. Se & ne- cessério ir tio longe, elas preferem desconhecer 0 assunt. Outras continuam fortalecendo e expandindo o movimento, sua dolorosa sensbiidade em relacio & opresséo da mu Ther existe com um tinico propésito: eliminé-la Finalmente Contuis, antes que possamos asi para mudar a si- tuasio, precisamos saber como ela suraiv evoluiv,e atra- vvés de que insttuigdes ela opera hoje. Citando Engels: “[Devemos] examinar a sucesséo dos fatos, a partir dos qusis 0 antagonismo brotou, de modo a descobrir. nas condigdes assim eriadas, os meios de pér fim 0 conflito.” Para a revolucio feminista, precisamos de-uma anélise da dindmica da guerra dos sexos tio completa quanto ara a revolugdo econémica foi a andlise de Marx © Engels sobre 0 antagonismo das classes. Mais complete 2inda, Porque Tidamos com um problema mais amplo; com uma ‘opressio que remonia além da histéria eseria, até © proprio reino animal. ‘Ao criat esta andlise, podemos recorter ltico de Marx e Engels, mas nfo a suas opi as mulheres — eles néo sabiam quase nada sobre a con- digdo das mulheres enquanto classe oprimida, reconhe- cendo-a somente quando isso’ coincidia'com aeconomia, 12 Marx e Engels superaram seus precursores socialis- tas, porque desenvolveram um método de anélise 20 mes- mo tempo dialética © materialista. Os primeiros a com- preender a Hist6ria disleticamente, viram 0 mundo como lum processo, como um fluxo natural de acio ¢ reacio, de elementos opostos, porém insepardveis © interpene- trantes. Por terem sido capazes de perceber a Historia mais como um filme do que como fotos instantineas, tentaram evitar cair na visa0 “metafisica” estagnada, que aprisionou tantas outras grandes mentes. Até mesmo este tipo de andlise pode ser um produto da divisio sexual, ‘como discutiremos no Capitulo 9, Combinaram esta vis ‘so da interago dinimica das forcas hist6ricas com uma visio materialista, ie., tentaram pela primeira vez dar uma base real A mudanga hist6rica e cultural, tragar 0 desenvolvimento das classes econSmicas, a partir de cau- ‘sas orginicas, Compreendendo integralmente os meca- nismos da Histéria, esperavam mostrar ao homem como dominé-la, (s pensadores socialistas anteriores a Marx ¢ Engels, ‘como Fourier, Owen ¢ Bebel, nfo foram capazes de fazer ‘mais do que interpretar moralmente as desigualdades so- ciais existentes, postulando um mundo ideal, onde os pri vilégios de classe e a exploracio nao deveriam existi, sim- pplesmente gragas a boa vontade, do mesmo modo como as primeiras pensadoras feministas postularam um mundo ‘onde o privilégio do homem ea exploragio nfo deveriam cexistir, simplesmente gracas & boa vontade. Em ambos os casos — por nio terem os pensadores primitivos com- preendido realmente como a injustica social tinha evo- Iuido, mantido a si mesma, ou poderia ser eliminada — suas idéias cairam num vazio cultural, ut6pico. Marx ¢ Engels, por outro Indo, tentaram um ‘enfoque cientifico dda Histéria, Trouxeram @ conflito das classes as suas ori {gens econémicas reais, projetando uma solucéo econd- mica, baseada em pré-condicbes econdmnicas j existentes: 1 tomada dos meios de produco pelo proletariado levaria ‘4 um comunismo, onde 0 governo se retrairia, no pre~ cisando mais reprimir a classe baixa em beneficio da classe mais alta, Na sociedade sem classe, os interes: 13 Mas a doutrina do materialismo hist6rico, por mais que tenha representado um avango significative em rela- ho a anilise histériea anterior, nfo f resposta com- pleta, como os fatos posteriores o confirmaram. Porque, apesar de Marx e Engels fundamentarem sua teoria na realidade, era ela apenas uma realidade parcial. Esta é a definigio estritamente econdmica do materialismo hist6- “O materialismo histérico € aquela visio do curso da Historia que busca a causa diltime e a grande energia movel Se todos 0s fatos histéricos no desenvolvimento econdmico da sociedade, nas mudangas dos modos de produgto e troca, na conseqiente divisio da sociedade em classes distintas,e nas Tutas entre essas classes.” (Grifos da autora) Mais adiante, ele afirm: “.-.que toda a histéria do. passado, com excesio dos Agios primitvos, fois histria de Tutas de classes; que estas classes confltantes da sociedade sio sempre os resultados dos, ‘modos de produgio e troca—numa palavra, das condiSes ‘econémicas de sun época; que a estrutura econdmica da socie- ade sempre fornece a base real, exclusivamente a parti da gual podemos formular tanto a’ explicaglo.iltima de toda 4 superestrutura das instituig6es politcas e juridicas, quanto 8 das idéias religiosas,filoséficas e demais idéias de um pe- odo histérico dado.” (Grifos da autora). Seria um erro tentar explicar a opressio das mulhe- Fes, a partir desta interpretacdo estritamente econdmica, A andlise de classes 6 um belo instrumento de trabalho, ‘mas é limitada. Apesar de correta num sentido linear, ela no se aprofunda o suficiente, Hé todo um substrate se- xual da dialética historica que Engels algumas vezes per eebe obscuramente. Mas, por ver a sexualidade somente através de um filtro econdmico, reduzindo tudo a ‘sto, rio € capaz de avalié-la por si mesma. 14 on oe entre o homem ¢ a mulher estabeleceu-se para fins de re- Ee ee Mc rhc xno «io ost ee ees ne Mas Engels deu crédito demais oo reconheci soe oan ete eae aus orto msn crs Vee NUT psn 260, (NT) | 1, A correlagio que cle estabelece aa Orisem da Familia, da Propriedade. Private e do Estado entce 0 inerdesenvolvimesto ‘desees dois sistemas ‘mma escala de tempo deve ser intexpretada ‘como se segue MATRIARCADO 5 PATRIARCADD————> 6 ergo gen I 15 dos preconceitos de Marx com relagfio as mulheres (um reconceito cultural partihado por Freud, bem como Por todos os homens de cultura), perigoso, se tentarmos forgar o feminismo a entrar numa’ estrutura marxista orto- doxa — congelando em dogmas o que eram apenas insights incidentais de Marx ¢ Engels sobre as classes se- xuais. Em vez disso, precisamos ampliar © materialismo hiist6rico para incluir o que é estritamente marxista, do ‘mesmo modo como a fisica da relatividade nfo invalidou a fisica newoniana, apenas tragou um circulo a sua volta, limitando sua apiicagdo — por comparagéo apenas — ‘a uma esfera menor. Pois um diggnéstico econdmico que remonta a propriedade dos meios de produgao, ¢ até dos meios de reproducio, nao explica tudo. Existe um nivel da realidade que no deriva diretamente da economi ‘A suposigio de que, antes de ser econémica, a real dade & psicossexual, 6 geralmente acusada de aist6rica pelos que aceitam uma visio materialista dialética da His- {6ria, porque ela parece nos situar antes do ponto em que ‘Marx comegou: tateando através de um nevoeito de hipé= teses ut6picas, de sistemas filoséficos que podem ser cer tos ou errados (niio hé como dizer), sistemas que expli- cam desenvolvimentos histéricos coneretos por categorias @ priori de pensamento. O materialismo histérico, a0 con- trio, tentou explicar o “conhecer” pelo “ser”, © nao vice-versa, Mas existe uma terceira alternativa ainda nfo ten- tada; podemos desenvolver uma visio materialista da His- ‘ria, baseada no proprio sexo. ‘AS primeiras te6ricas feministas foram, para uma visio materialista do sexo, 0 que Fourier, Bebel e Owen foram para uma visio materilista das classes. De modo eral, a teoria feminista tem sido tio inadequada quanto 8 primciras tentativas feministas de corrigit 0 sexismo. Era de esperar que isso ocorresse. O problema é to vasto que, na primeira tentativa, s6 a superficie poderia set examinada, descrevendo-se ‘apenas as desigualdades ‘mai aritantes. Simone de Beauvoir foi a nica que chegou perto de uma andlise definitiva — que talvez a tenha realizado, Sua penetrante obra O Segmdo ts Sexo — que 16 ‘apareceu recentemente, no inicio da década de cinglenta, ara um mundo convencido de que o feminismo estava ‘morto — pela primeira vez tentou assentar o feminismo fem bases hist6ricas. De todas as tedricas feministas, Simo- ne de Beauvoir & a mais completa e abrangente, ao relacio- nar o feminismo com as melhores idéias da nossa cultura. Pode ser que esta virtude também seja seu tinico defeito. Ela € quase que sofisticada demais, culta de- mais. Onde isto se torna uma deficiéncia — 0 que certa- ‘mente € ainda discutivel — & na sua interpretagio rigida- ‘mente existencialista do feminismo (perguntamo-nos 0 quanto Sartre teve que ver com isso). E fazemos isso em vista do fato de que todos os sistemas culturais, incli- sive existencialismo, sdo eles proprios determinados pelo dualismo sexual. Diz ela: 0 homem nunca pensa sobre si mesmo sem pensar no ‘Outro; ele vé 0 mundo sob o signo da dualidade, que ndo é, em primeira instincia, de cardter sexual. Mas, sendo diferente ‘do homem, que se constrdi como Mesmo, & certamente A ca. tegoria do’ Ontro que a mulher pertenee; © Outro inclu a mulher. (Grifos da autora.) Talvez ela tenha ido Jonge demais. Por que postular como explicagio final 0 conceito bésico hegeliano da alte- ridade, © entio cuidadosamente documentar as. circuns- tncias biol6gicas e histGricas que empurraram a classe das “mulheres” em tal categoria, sem levar em conta uma ossibilidade muito mais simples e mais provével, ou seja, gue © dualismo biésico brotava do proprio sexo? Nao. é Nevessério postular categorias a prior! do pensamento ¢ da existéncia — como alteridade, transcendéncia, imanéncia — nas quais a Histéria passa entio a ser moldada. Marx © Engels descobriram que essas préprias categorias filo- s6ficas originavam-se da Historia, ‘Antes de admit essas categorias, tentemos primeiro desenvolver uma andlise, na qual a propria biologi 8 prociagio — se encontra na base do dualismo. A su- osigio imediata do leigo, de que a divisio desigual dos sexos é “natural”, pode ser bem fundada, Nés ndo pre- cisamos, de imediato, enxergar além disso, Ao contrério, Ww das classes econémicas, as classes sexuais brotaram dire- tamente de uma realidade biol6gica: os homens e as mu- “heres foram criados diferentes, e no igualmente privile- giados. Contudo, como Simone de Beauvoir salientou, essa diferenga propriamente dita nao necessitou do mesmo de- senvolvinento de um sistema de classes — a dominagio de um grupo por outro — de que necessitaram as funcoes reprodutoras dessas diferencas. A familia biol6gica 6 um poder de distribuicio inerentemente desigual. A necess dade do poder que leva ao desenvolvimento de classes ori gina-se da formaco psicossexual de cada individuo, de acordo com este desequilfbrio basico, e nio, como Freud, Norman O, Brown e outros postularam — mais uma vez se excedendo — de um conflito irredutivel da Vida contra a Morte, de Eros versus Ténatos. ‘A janilia bioldgica — a unidade bisica de repto- dugio homem/mulher/crianga, em qualquer forma de ‘arganizago social — se caracteriza por estes fatos, se ‘no imutéveis, pelo menos fundamentais: 1) que as mulheres, através de toda a Hist6ria, ‘antes do advento do controle da natalidade, estavam a ‘mere constante de sua biologia — menstruagio, meno- pausa, © “males femininos”, de continuos partos dolorosos, amamentagio ¢ euidado com as eriancas, todos 0s quais fizeram-nas dependentes dos homens. (seja irmin, pai, ‘marido, amante, ou cla, goverue, comunidade em getal) ara a’ sobrevivéncia fisica. 2) que os filhos do homem exigem um tempo ainda maior para crescer do que os dos animais, sendo portanto indefesos e, pelo menos por um pequeno periodo, de- pendentes dos adultos para a sobrevivéncia fisica. 3) que a interdependéncia bésica mée/filho existiu de alguma forma em todas as sociedades, passadas ou presentes, © consegiientemente moldou a psicologia de toda mulher madura e de toda crianga. 4) que a diferenga natural da reprodugdo entre os sexos levou diretamente A primeira divisio de trabalho aseada no sexo, que esti nas origens de toda divisio posterior em classes econémicas e culturais © possivel- mente se encontra ainda na raiz de todas as castas (dis 18 criminagio buscada no sexo e outras caacterens bio- logicamente determinadas, como a raga, « Wade, ete), Estas contingécisbiligies da fama humane no podem ser entendas como soimasanropotgins, Gua {uer um que observe os animals cnzand,reproduindose e euidando de seus hoes tr ifeuldads'om acer 8 linha da “rltvdade cultura Pores fo imports ants tribos se possum encontrar na Oceania ny quale 2° conexdo. do pst com feria sea desconhecde io importa quentos matiineridos, uantey cues 6 inversio do papel sexual, de homens isgumindo afazret domeéstces, ou de" does do part enpatcasy fate que Provam soment uma cols a surpsendentefexfiidade a natureza humana, Mass natura humana € adapted @ralguma eos, re, determina, sim por suas fond Goes ambient! fama olga sue nds deserve. tos exist em todos os. lates ataves dos tempos, Mesmo not mtriarenos. onde a feridade da ‘mulher éeltuada eo papel do pai é dsconheido ou sem impor tina, embora tales nao o pa geneico, existe sae al gum dependéncia da mulher dn eriange com elas 20 fomem. E,apesar de ser verdade que o nicl familiar & ‘ena um desenvolvimento rece, ® gl, como fee rel mostrar, apenas intense, os canton paicoleicos Gs fama biotin, spesar de ser verdade us: atevea da Histria houve milan varias nesta fafa bilo, st coming gue desc exstiom em ods ce Fando distor pricoseroas espectfias ‘na personal dade humana. as 2 Mas, admiir que o desequlfrio sexual do poder esté baseado biolopcamente nfo signifies perder nossa Cause, Nés no somor mais animals ha mute tempo, © Reino da Netoeza nfo tina absoltamen, Como @ prépria Simone de Beauvoir “A teoria do materiatismo histérico revelow algumes ver- dlades importantes. A humanidade néo é uma espéeie animal, é uma realidade histriea. A sociedade humana é uma anti- physis—no sentido de que ela & contra a natureza; ela nfo se submete passivamente & presenga da natureza, mes antes 19 ‘assume o controle da natureza em seu préprio beneficio. Essa usurpago nfo € uma operacdo interna, subjetiva; ela 6 reali- zada objetivamente na pritica.” Assim, o “natural” no é necessariamente um valor “humaano" A humanidade comecou a superar a natureza. ‘Néo_podemos mais jusifcar a\conservacéo do sistema discriminatério de classes sexuais, sob o pretexto de que se originow na natureza, Parece que, exclusivamente por causas pragmiticas, nos precisamos, na verdade, nos des- fazer dele (ver 0 Capitulo 10). ‘Q_problema se torna politico, exigindo mais do que ‘uma anise hist6rica abrangente, pois nos damos conta de ue, apesar do homem ser cada vez mais capaz de liber- tar-se das condigoes bioldgicas que eriaram a tirania dele sobre as mulheres ¢ eriangas, ele tem poucas razbes para renunciar a essa titania, Como Engels diz, no contexto da revolugio econdmica: “0 que se encontra na base da divisio de classes & a lei da divisio do trabalho.” [Note-se que esta prépria divisio criginou-se de uma divisio biolégica bésiea] “Mas isto nfo impede a classe dominante, uma vez predominando, de con- solidar 0 poder, & custa da classe trabalhadora, de transfor- lideraniga social numa intensificada exploragio. das Apeser de o sistema de classes sexuais ter-se origi nado em condig&es biolégicas bésicas, isto mio garante ‘que, uma vez tendo sido varridas as bases biol6gicas de sua opressio, as mulheres sero livres. Ao contrario, a nova tecnologia, especialmente © controle da fertilidade, pode ser usada’contra elas, para reforcar o sistema de exploracao estabelecido. ‘De modo que, assim como para assegurar a elimina- so das classes econdmicas, € preciso a revolta da classe baixa (o proletariado) e, numa ditadura temporéria, a tomada dos meios de producfo, assim também, le seus préprios compos, bem como do controle femining daLfertidade humana, incluindo tanto @ nova tecnologia quanto todas as instituigdes sociais da nutrigfo da edu- cagio das criancas. E, assim como a meta final da revo- lugo socialista ndo era apenas a eliminacio do privilégio da classe econdmica, mas também da prépria distingdo da classe econdmica, assim também a_meta final da re- volucdo feminista deve ser, ao contrario da meta do pri- tmeiro movimento feminist; nio_apenas-a elimiaago’ JO rivilgio do-homem, mas também da propria dstngdo se xual: as diferencas genitais nfo mais significariam cul- turalmente, (Uma volta a uma pansexualidade livre — a “perversio polimorfa” de Freud — provavelmente substi- tuiria a hetero, a homo ¢ a bissexualidade.) A reprodu- fo da espécie por um sexo em beneficio dos dois seria Substituida pela reproducio artificial (ou pelo menos por ‘uma opgio entre as espécies): a forma do nascimento das criancas seria idéntica para o homem e a mulher, ou eto, encarando-se de um outro ponto de vista, ambos se sentiriam independentes em relaco a0 nascimento: a dependéncia que a crianca tem da me (e vice-versa) da- ria lugar a uma dependéncia muito reduzida de um pe- queno erupo mais genérico, e qualauer vestigio de infe- Fioridade com relacio aos adultos referente as forea fisica seria compensado culturalmente. A divisio do trabalho acabaria junto com a eliminacdo total do trabalho (ciber- nética). A tirania da familia biol6gica seria quebrada. E, com isto, a psicologia do poder. Como Engels ret- vindicou para a revolugio rigorosamente socialist ““A existéncia nio simplesmente dessa ou daquela classe ‘dominante, mas de qualquer classe dominante,terd se tornado lum anacronismo obsoleto.” © fato de o socialismo nunca ter chegado 20 ponto de realizar esse objetivo declarado nio 6 conseqiiéncia de ré-condigdes econdmicas ndo realizadas ou falhas, mas também de que a propria andlise marxista i cla nio pesquisou suficientemente fundo as raizes psicos- sexuais das classes. Marx estava ciente de alguma coisa a profunda do que ele conhecia quando observou que a familia continha dentro de si mesma em miniatura todos 0s antagonismos que mais tarde se desenvolvem em larga escala dentro da sociedade ¢ do estado. Porque, a niio ser que a revolugio transtorne a organizacio social bé- sica € a famflia biol6gica — o germe da exploragéo nunca ser aniquilado, Precisamos de uma revolugio sexual mais ampla do-que sevolugio soeulsia == que incon — ‘para_verdadciramente- erradicar_todos_os sistemas de ON Tentamos conduzir a anilise de classe um passo & frente, na diregio de suas raizes na divisio. biolbgica dos sex0s. Nao dispensamos o$ insights dos sociaistas; 0 contrat, o feminismo radical amplia suas andlises, dando as uma base sinda mais profenda em condgbes obe- fivas, explicando com isso muitas das suas questoes inso= Tiveig Como Tundamento de nossa propria andlise, deve- Ios expandir a definigio do. materilismo histrico de Engels. A seguir a definigdo jé citada amteriormente, rees- crita de modo a inclu a divi bioldgica dos sexos, em Fangio da reprodusio, que se encontra na ordem’ das classes: “0 materialismo histérico é aquela visio do curso da Histéria que busca a causa ditima e a grande energia mével de todos os fatos histricos na dialética do sexo: a divisio dda sociedade em duas clases biol6gicas distinta, em funcio {da procriagho, e as Tutas dessas classes entre si; nas mudan- ‘gas dos modos de casamento, reprodugio e educagio das Criancas; no desenvolvimento anélogo de outras classes [eastas] fisicamente diferenciadas; © na primeira divisio do trabalho hhaseada no sexo, que se desenvolveu no sistema econémico e classes." A seguir, a superestrutura cultural, bem como a econdmica, que nao se reportam apenas as classes. (eco némicas), mas sim a toda a problemética do sexo: “Toda a histéria do passado [observe-se que agora pode ‘mos eliminar “com excegao dos estigios primitives") foi a his- ‘éria de futas de classes. Essas classes conflitantes da socie- 2 dade sio sempre o produto de modos de organizagio da uni- ‘dade da familia bioldgica, em funcio da reprodugio da es- Pécie, bem como dos modos de producio e troca de bens € fervigos estritamente econdmicos. A organizagio sexual Te produtora da sociedade sempre fornece a base real, exch vamente a partir da qual podemos formular a explicagio sl. ima de toda a superestrutura das insituigSes econdmicas, jutidicas e demas idéias de um periodo histérico dado.” E agora a visio de Engels dos resultados da aplicagio de um enfoque materialista Histéria fica mais realista: “A esfera total das condigées de vida que rodeiam 0 hhomem e que até agora o regeram passa para o dominio © 0 controle do homem, que pela primeira vez se toma 0 ver- adeito e consciente Senhor da Naturezs, dono de sua prd- pria organizagio social.” Nos capitulos seguintes analisaremos esta definigio do ‘materialismo histérico, examinando as insttuigBes culturais que mantém ¢ reforcam a familia biol6gica (especialmente sua manifestagio atual, a familia nuclear) seu resultado, a psicologia do poder, um chauvinismo agressive, hoje desenvolvido a ponto de nos destruir. Integraremos isto com uma andlise feminista do freudismo: porque pre- conesito cultural de Freud, tanto quanto o de Marx e Engels, no invalida inteiramente sua percepcio, Na ver- dade, Freud teve insights de valor até maior do que os dos teéricos socialistas, pela construgdo de um novo ma- terialismo dialético, baseado no sexo. Tentaremos, ent, correlacionar o melhor de Engels a Marx (0 enfoque ma terialista histérico) com o melhor de Freud (a compreen- so do interior do homem e da mulher e do que os forma) para chegar a uma solucio ao mesmo tempo politica ¢ ‘Pessoal, baseada contudo em condigées reais. Veremos que Freud observou corretamente a dinimica da psicologia, no seu contexto social imediato, mas, pelo fato da estrutura fundamental desse contexto social ser bésica para toda a humanidade — em diferentes graus — ela aparentava ser ‘nada menos do que uma condicio existencial absoluta, que seria insensato questionar. Ela forgou Freud © muitos 23 de seus seguidores a postular construtos a priori, como 0 Desejo de Morte, para explicar as origens desse impulsos psicol6gicos universas. Isto, por sua vez, tomnou as doen- gas da humanidade irredutiveis e incuriveis — motivo pelo qual a solugdo por ele proposta (a terapia psicana tica), uma contradigéo em termos, foi tio pobre, com- parada com o resto de seu trabalho, e um fracasso tio fetumbante na pritica — levando os que tiham alguma sensibilidade socal e politica a rejitar ndo s6 sua solugko terapéatica, como também suas descobertas mais pro- fundas 24 II. FEMINISMO AMERICANO Na visio radical feminista, 0 novo feminismo nio representa somente o reviver de um movimento politico sétio pela igualdade social. Ele é o segundo fluxo da re- ‘volugao mais importante havida na Histéria. Seu objetivo: 4 derrocada do mais antiquado © mais rigido dos siste- mas de classe/casta ja existentes, o sistema de classes ba- seado no sexo — um sistema consolidado ao Tongo de mihares de anos, que emprestou aos papéis arquetipicos de macho e fémea uma legitimidade imerecida e uma per- ‘manéncia aparente, Nessa perspectiva, o pioneito movi- mento feminista ocidental representou apenas a primeira investida violenta, os ridiculos cingiienta anos que 0 suce- deram representando apenas a primeira contra-ofensiva © infcio de uma longa luta pela libertago das opres- sivas estruturas de poder estabelecidas pela natureza e reforgadas pelo homem. Sob essa Iuz, lancemos um olhar ara/o feminismo americano. 1. © Movimento pelos Direitos Femininos na América Apesar de sempre ter havido mulheres rebeldes na Hist6ria,’ nunca antes tinham existido as condiges que 1. Por exemplo: as feticeras devem ser vistas meramente como tulheres envolvdss numa revolts polidea independente, Durante 25 possibilitariam as mulheres destruir seus papéis opressivos cficazmente, A capacidade de reprodugio da mulher era lima necessidade urgente para a sociedade — e, mesmo {que nio o fosse, ndo se dispunha de meios eficazes de Controle da natalidade, Assim, até a Revolugio Indus- {rial a revolta feminista estava fadada a permanecer no plano pessoal. a ‘A vindoura revolugdo feminista da era tecnolégica foi premunciada pelas idéias e os escritos de mulheres iso- Tadas, membros das elites intelectuais de sua época: na Inglaterra, Mary Wollstonecraft e Mary Shelley; na Amé- rica, Margaret Fuller; na Franca, as Bluestockings.* Mas estas mulheres estavam além de ‘seu tempo. Elas tiveram muita dificuldade em ver suas idéias accitas até por seus préprios circulos avancados, que did pelas massas de ho- ‘mens e mulheres de sua época, que mal tinham absor- vido 0 primeiro choque causado pela Revolucéo Indus- trial, Em meados do século dezenove, contudo, com a in- dustrializagio em plena atividade, um movimento femi- nista maduro estava em andamento. Sempre forte nos EUA — onde tinha se fundado pouco antes da Revo- lugdo Industrial, e conseqientemente sua hist6ria ou tra- digdo eram comparativamente pequena — o feminismo foi aticado pela luta abolicionista e pelos ideais latentes da propria Revolugio Americana. (A declaraglo proferida ‘na primeira convengao nacional pelos direitos das mulhe- tes, realizada em Seneca Falls no ano de 1848, foi mol- dada na Declaragio da Independéncia.) ( primitive Movimento pelos Direitos das Mutheres ‘Americanas? foi radical. No século dezenove, o fato de as ‘mulheres atacarem a Familia, a Tgreja (ver Woman's Bible, de Elizabeth Cady Stanton), e 0 Estado (lei) represen- ois séculos indmeras mulheres foram queimadas em fonueiras pela Igreia — pols a religfo era a politica daquele petiodo. + xpress cologuat para se refer is mulheres intlectais, (NT) 12, American Woman's Rights Movement, dagui em diante abre- indo por W.R-M. 26 tava para elas atacar os préprios fundamentos da socie- dade vtoriana na qual elas viviam — o equivalente a ata car as prOprias,distingbes sexuais em nossa época, Os fundamentos teéricos do primitivo W.RM. se originaram nas idéias mais radicais da época, sobretudo as dos aboli- Soke Gra prepaar elanga para vide tla loge gue ne Seca bate acral qe cat, tegen ee Seid como um sao, ou Gomo'am Shea a Persecva ala, Log gue ponte «ciate ara Se frada na comunidad, e todo of nich Nia Brinueds, jams, ou Toupas specs, nom alas pane Indes 56 pan congas Oe ope erm oid ffupes de todas at aise’ Avetnses pancho aa fesividads da comunkade ada Ss Case Car ss Ibidades epesiinnds) conteam 9 aprendino Fara em guer ue env misresudo, quaigus ase fone isan ode"O sistema de aprendidd att abate fas Dar tenga pte oa pois do séulo XIV, om 0 desenvolvimento da ‘burguesia e da ciéncia empirica, essa situa jouer avevoliefentanente, Oconto de inne densa ‘esse como um aceso da famila mote, Earn Siled ‘om vostro poss dexrevet or Caio es inna (pox, o fants fe bob, um cote aus lng fot ead ‘eapeimete pate digas Se cate O"Satantie” tomowse mods rants 0 se SO 93 (Desde entio, ele se expandiu numa arte e num modo de vida, Existem todos os tipos de requintes modernos ‘nessa linguagem infantilesca. Algumas pessoas nunca pas- sam sem ela, e & usada especialmente com as namora- das, que sio tratadas como criangas crescidas.) Os brin- {quedos para crianga no apareceram antes de 1600, ¢ ‘mesmo essa época nio eram usados além da idade de ‘rés ou quatro anos. Os primeiros bringuedos eram ape~ ‘nas réplicas, do tamanho das criangas, dos objetos dos adultos: 0 cavalinho-de-pau substituiu 0 cavalo real que fa erianga era muito pequena para montar. Mas, ao fim do séeulo XVI, encontramos a introdugio de jogos e3- peciais para eriangas. (Na verdade, eles significavam ape- hnas uma divisio: certos jogos, anteriormente partilhados por criangas © adultos, foram cedidos pelos adultos as fiangas e a classe baixa, enguanto que outros jogos fo- ram acolhidos, a partir de entio pelos adultos, para seu 1us0 exclusivo, tornando-se o$ “jogos de saléo” dos adul- tos das classes altas.) ‘Assim, durante o século XVII, a infaincia, como lum conceit novo © da moda, estava “por dentro”. Ariés ‘mostra como a iconografia também reflete a mudanca, ppor exemplo, com 0 crescimento gradativo das glorific das pinturas'da relacio mie/filho, como O Infante nos Bragos de Maria, ou, mais tarde, nos séculos XV e XVI, com as pinturas de interiores e de cenas de familia, in luindo até retratos individualizados de criangas, © da parafernilia da infincia. Rousseau, entre outros, desen- volveu uma ideologia da “infincia”. Grande importincia foi conferida & pureza e A “inocEncia” das criangas. AS pessoas comegaram a se preocupar com a exposigao das criangas ao vicio, O “respeito” pelas criangas, assim como pelas mulheres, desconhecido antes do século XVI, quando elas eram ainda parte da sociedade em geral, tornou-se necessério, agora que elas formavam um grupo ‘oprimido bem definido, Seu isolamento © segregacio ti- ‘nham-se instalado. A ‘nova familia burguesa, centrada ‘na crianga, impOs uma supervisio constante sobre ela; toda a independéncia anterior foi abolida. 94. O significado dessas mudancas 6 itutrado pela his- téria da indumeotésia das eriangas, A roupa era um modo de simbotizar a classe‘e a prosperidade socal ¢ continua sendo, sobretudo para as mulheres. O temor Bie hoje existente, sobretado na Europa, de’ qualquer propredade ‘n0'vestr deve-e, emt primeio ugat, 2 limpropriedads de “disolvr as classes soiis™, Ey ‘os tempos em que as roupas eram caras © 4 produsio em série desconhecda, essa fongao do vestr era nda maior, Pelo fato de os tajes desereverom to vivdamente. as diapardades de sexo e classe, a histéia da moda para criangas nos fornece chaves valiosas sobre’ o que etava scontecendo com ss Os primeros tras especiis para criangas aperece- ram no fim do século XVE, data importante na forme #0 do conesto de infénca, Incalmente, os trajes de Gslangas eram modelados de acordo com os tees a 05 dos adultos, 8 mancira da clase bain que também ‘esti as roupas twadas da arstocracin, Tats realsmos imbolizavam a. crecentoexclisto das_criangas ¢-o Proletriado da vide publica contemportnca, Ants. da Revolugéo. Francesa, quando foram intodusides eal especiis de marinhivo, que mais tarde passaram adi fetenciar a clase baixa,encontramos a misma indumen- tira difundida ene meninos das classes. altas Tso 6 importante, porque lusra bem nitdamente que as erin gas da clase ata constitufam uma clase baixa, dent dessa classe, Essa difeenciag@o. do vestuitio funciona Para intensificar a sepregagio e deixa‘laro gue a cise tingSes de clase fo também corroboradas per um cos. tume dos séculos XVII e XVII, inexpicgel em outres cireustincas: deveriam ser usadas dus fitas Lrg, pelo ‘enino © pela ‘mening, presas A roupa, sobre” cada combro, ¢ estendidas até at costs. Essts fits aparen: temente no tnham outra fungao seo serie de ind cagdes de indumentiia da infncia ‘A roupa do menino, mais do que as outas,revela a conexio do sexo ¢ da infincia com a classe econdmi, ca, Um garoto passava aproximadamente por trés esté- 95 ‘sios. O menino passava das tiras-de-pano* para vestes femininas; mais ov menos na ade de cinco anos mix lava para uma roupa com alguns elementos da rou do homem adult, ek, 0 earn; e, tnament, mais velho, passava a usar todos os emblemas militares. ‘A roupa vestida pelo menino mais velho, na época de Las XVI, era, ao mesmo tempo, antiquada (gola da Renascenca), da classe baixa (calgas de marinheiro), © masculamente militar (jaqueta e botdes). O vestuério tornou-se uma outra forma de iniciagio @ masculinidade, com a crianga, em termos modemos, comegando a avan- sar na diregéo das “calgas compridas”. Esses estigios de iniciagio & masculinidade, refle- tidos na histéria da indumentéria infantil, esto clara- ‘mente ligados ao Complexo de Edipo, como eu 0 expus tno capitulo anterior. Os meninos comecavam a vida na classe baixa das mulheres, Vestidos como mulheres, nao se distinguiam absolutamente das meninas. Ambos, nesse ‘momento, se identificavam com a mie, a fémea; ambos brincavam de boneca. Aproximadamente na idade de cinco anos, sio feitas tentativas para afastar o menino dda. mie, para encorajé-o, lentamente, passo_a passo, tar o pai, p. ex., com a gola mascutina. Esse € 0 pe~ do transit6rio do Complexo de Edipo. Finalmente, 0 menino é recompensado por libertar-se do feminino, e por transferie suas identifi através de ‘um traje especial “adulto”, seus emblemas militares cons- tituem uma promessa do futuro e pleno poder masculino adulto, ‘Que dizer dos trajes das meninas? Eis um fato sur- preendente: 0 conceito de infancia néo se aplicava as ‘mulheres. A menina passava das tiras-de-pano para 0 vestido feminino adulto. Ela néo ia a escola, que, como veremos, era a insttuisio que estruturava a infancia. Na ‘dade de nove a dez anos, agia, iteralmente, como uma “mocinha”; sua atividade nao diferia da das mulheres adultas. Logo que atingia a puberdade, aos dez ou doze + Usados para enrolar os bebis. (NT) 96 anos, ela se casava com um homem muito mais vetho do que ela. O sistema de classes, na base do conecito de cia, fice exposio: as meninas ¢ 0s meninos da. classe roletaria, ambos, nao tinham que ser discriminados por Tadumentdcias cafacteristicas, pois em seus papéis adul- tos eles seriam subservientes aos homens da. classe alta; info era necesséria nenhuma iniciagio & Tiberdade. As ‘meninas nio tinham razo para passar por mudangas de itajes, quando nfo havia nada em diregio a que elas rescerem, As mulheres adultas estavam ainda noma clas- fe baixa, em relagio aos homens. As ctiangas da classe operdria, e isso mesmo até & época atual, eram livres de Ses de indumentiia, pois seus modelos adultos também eram “eriangas” em relagio & classe dominante Embora o: meninos das classes média ¢ alta. comparti- Thassem temporariamente do siatus das mulheres © da classe operitia, gradativamente emergiam dessas classes submissas; as mulheres © os meninos da classe baixa per- maneciam ai, Néo € tampouco por coinciéncia que a efeminizagéo das roupas dos meninos foi abotida na mes- mma época em que as feministas excitaram a opinifo pi- blica, no sentido de acabar com as roupas opressivas das mulheres, Ambos os estilos de indumentéria estavam in- teiramente ligados & submissio das classes e 2 inferiori- dade dos papéis femininos. O pequeno Lord Fauntleroy foi-se junto com as anéguas. (Entretanto, meu préprio pai se lembra do seu primeiro dia de calgas compridas f até hoje, em alguns paises curopeus, esses costumes de Iniciagdo no vest ainda séo praticados.) odemos também compreender a base de classes do conceito emergente de infincia no sistema de educaglo aque o acompanhou, Se a infincia fosse apenas um con- Gcito abstrato, entéo a escola moderna seria a institu Gio encarregada de estabelecéla na_realidade. Novos Conceitos sobre o cielo vital se organizam, em nossa so- tiedade, em tomo de instituigdes; p. ex, a adolescéncia, ‘uma construcio do século XX, foi estabelecida para fa cilitar o reerutamento para o servigo militar.) A educa- ‘fo da escola modema foi, na verdade, a artculagio do 7 ‘novo conceito de infaincia. O ensino foi redefinido. Nao sendo mais confiado ao clero e aos letrados, ele se am- ppliou largamente, para tomar-se 0 instrumento normal de iniciagao social — na evolugdo da inffincia até a maio- ridade mascutina. (Aqueles aos quais a verdadeira ma- turidade nunca era solictada, p.ex., as mogas e rapazes da classe operdria, ndo freqllentaram a escola durante varios s6culos.*) Contrariamente & opiniao popular, o desenvolvimento da escola moderna teve pouca conexio com a cultura tradicional da Idade Média, bem como com o desenvolvi- ‘mento das artes liberais e das humanidades na Renascenga. (De fato, os humanistas da Renascenca foram notados pela incluséo, em suas fileiras, de muitas criangas precoces € ‘mulheres doutas; deram’énfase ao desenvolvimento do individuo, qualquer que fosse a sua idade ou sexo.) Se- gundo Ariés, os historiadores da literatura exageram a importincia ‘da tradigio humanista na estruturagio de rnossas escolas. Os verdadeiros criadores e inovadores fo- am os moralistas e pedagogos do século XVII, os jesu- tas, os oratorianos e os jansenistas, Esses homens estive- ram & frente da ctiacdo de ambos 0s conceitos de infancia © sua institucionalizagao, e do conceito moderno de edu- 2._ Vestsios destes costumes permanecem até em nossos_pré- piios dak. Os earotos de classe operiria tendem ase tornar’co- Inerciantes, mecinicos, ou equivalentes modernos disso, em. Yer ‘de so eovolverem num boollarnin, pars eles indi 180 6 um Femanecons de pose em que a8 cians da cae fegulam um sstema de aprendizado, ao. passo que a8 etianvas 4a classe média tinham comegado a frelentar a escola moderna (Mo € por acato tampouco que tantor grandes artistas da, Ree sascenga. foram garotes da classe balsa, treinados nas. offcinas dos “mestres":) Podemos também encontrar remanescentes dss histria no. nosso.exéreito.atual, onde. estfo. concentrados os fextremos ‘da ‘sociedade de classe, Deum Indo, jovens Pistas" da classe opera, edo outro, oficiais ‘da. classe ala, cadetes militares da arstocacia “pols a arstocacia. tanto ‘Quanto o'proletariado tardaram em adolat estrturn. fami 20 ensino pabiico da burguesa * Pronincin da clase baiza para psleea Bookearin, que sgiticn Stor lass CE) oe 98 cago, Foram os primeiros patronos da fragilidade e da “Sinocéncia” da infancia; colocaram a infan tal, do mesmo modo como a feminilidade tinh ‘num pedestal; pregaram a segregacdo das criancas do ‘mundo adulto. A “disciplina” era a linha mestra da edu- casio moderna, afinal muito mais importante do que a comunicagtio do saber ou da informagdo. Pois, para eles, a disciplina era um instrumento de’ progresso moral € espiritual, adequada menos por sua eficiéncia em ditigit grupos grandes no trabalho em comum do que por seu valor intrinseco moral ¢ ascético. ‘Assim, a fungdo da escola tomou-se a “educagio das ctiancas”, acrescida da disciplinadora “psicologia. infan- iI", Arids cita Regulations for Boarders at Port-Royal, ‘um precursor de nossos manuais de treinamento para pro- fessores: “Deve ser mantida uma vigilineia cerrada sobre as crian- fas, € elas nunca devem ser deixadas sozinhas em lugar ne- ‘Shum, eneontrem-se mau ou bem de sade ... essa supervisio constante deveri ser exercida imperceptiveimente e com uma certa confanga calewada para fazé-las pensar que n6s as ama ‘mos, e que estamos com elas somente para desfrutar de sua companhia. Isso as faré amar sua superviséo, em vez de te- ‘mé-la.” (Grifo da autora) Essa passagem, escrita em 1612, j4 manifesta o tom afetado da moderna psicologia infantil, e a distancia pe- culiar entre adultos e criangas, naquela época esbocada, ‘mas hoje completamente inconsciente. A nova educacio segregava, efetivamente, as crian- as do mundo adulto, por periodos de tempo cada vez maiores. Mas essa segregagdo da crianca do mundo adulto —€ 0 severo processo de iniciagdo exigia que se efetuasse 2 transigio para a vida adulta — indicava um desrespeito crescente, uma subestimacao sistemética das capacidades da erianga, A precocidade, to comum na Tdade Média, ¢ ainda durante algum tempo depois, reduziu-se quase a zero 99 em nossa época." Hoje, por exemplo, a proeza de Mozart, de ser uma crianga compositora, € quase inacreditével. Na sua propria época, ele nio era tio fora do comum. “Maitas ctiangas tocavam e compunham misica seriamente nessa época, e também se envolviam em muitas outras atividades “adultas”. Nossas aulas de piano de hoje no so de modo algum compardveis aquelas. Na verdade, slo apenas indicagoes da opressio infantil — do mesmo modo como os tradicionais“dotes femininos”, como 0 bor- dado, eram atividades superticiais — dizendo-nos apenas da submissio da crianga a0s caprichos dos adultos. E ¢ sig- nilficativo 0 fato de que esses “talentos” sejam em geral mais cultivados nas meninas do que nos meninos; quando 0s meninos estudam piano, na maioria das vezes, 6 por- ‘que so excepcionalmente dotados, ou porque seus pais so apreciadores de misi Ariés cita Heroard, em Journal sur L’Enjance et La Jeunesse de Louis XII, 0 relato detalhado dos anos de infineia do Delfim, esctito por seu médico. Conta como © Delfim tocava violino e cantava na idade de dezessete ‘meses. Contudo, 0 Delfim no era um génio, mais tarde comprovando néo ser, certamente, mais inteligente do que qualquer membro da aristocracia, E tocar violino néo era tudo 0 que ele fazia, O registro da vida infantil do Del- fim, nascido em 1601 — de inteligéncia média apenas — imostra-nos como subestimamos a capacidade das crian- ss, Descobrimos que, na mesma idade em que. tocava Violino também jogava mall, o equivalente do golte para 0s adultos daquela época, bem como tenis; jogava jogos de estratégia militar. Respectivamente aos trés ¢ quatro anos, aprendeu a ler ¢ a escrever. Aos cinco e seis, embora ainda brincasse com bonecas (!), praticava arco'e flecha, jogava cartas e xadrez (aos seis anos) com os adultos, ¢€ jogava muitos outros jogos adultos. Logo que comegou a falar, juntava-se como um igual aos adultos, em todas 3._ No meio judeu ortodoxo, no qual eu cress, considerado an- ‘r6alc0 pelas pessoas’ de fore, muitos meninos ainda ioiciam Um fstudo sir antes dos cinco’ anos de Wade, e-em coneequéncia ‘so comuns os prodigios talmiiicos, 100 1s suas atividades (tais como eram), dangando profissio- nnalmente, atuando € participando em todas as diversoes. ‘Aos sete anos o Delfim comegou a usar roupas de homens. adultos, as bonecas Ihe foram tiradas, e iniciou-se sua edu- cago, sob a orientacio de tutores homens; comegou a ca~ sar, a andar a cavalo, a atirar ¢ a jogar. Mas Arits diz: “Devemos ter cuidado para niio exagerar {a importincia de seus sete anos). Apesar de ter parado de tocar, ou de ter parado de brinear com suas bonecas, 0 Delfim continuou le- vvando a mesma vida de antes... Antes dos sete anos, bonccas © bringuedos alemies; depois dos sete, cacadas, equitagio, esgrima e possivelmente teatro; a mudanca foi quase imper- ceptivel nessa longa sucessio de passatempos que a crianga ccompartilhow com os adultos.” © que me parece mais evidente nessa descrigéo é que antes do advento da familia nuclear e da edvcagso moderna, a infincia era o minimo possivel distinta da vida aduita, A erianga aprendia diretamente com os adul- tos ao seu redor, emergindo, logo que fosse capaz, na sociedade adults. Cerca dos sete anos, havia alguma dife- io de papéis sexuais — isto tinha que comeyar nalgum momento, dado o patriarcado em vigor, mas ainda nio era complicado pela posigio das eriancas’como uma classe. inferior. Até entéo, hevia uma distingéo. apenas entre homens e mulheres, © ainda nao entre criangas © adultos. Num outro século, esta situagio comegou a mu- dar, assim como a opressio das mulheres e das exiangas se catrelagou cada vez mas. Sumariando, com o inicio da familia nuclear, cen- trada na crianga, tomou-se necessiria uma instituigo para estruturar a’ “infancia’, que mantivesse as criangas Sob a jurisdigdo dos pais, tanto quanto fosse possivel ‘As escolas se multiplicaram, substtuindo a erudigho © 0 aprendizado prético por uma educagio teorética, cuja fangdo era “disciplinar” as criangas, em ver de comunt- car 0 saber, para o proprio beneficio delas. Desse modo, rio é surpreendente que a educagdo modema retarde 0 desenvolvimento, em vez de accleré-lo, Ao afasta as erian- ‘gas do mundo adulto — os adultos, no fim das contas, so 101 meramente eviangas em tamanho maior, com uma expe- rigncia do mundo —e ao submetélas’arificialmente a uma proporcdo na qual cada adulto vale por vinte crian- 88, Como poderia ter sido diferente'o resultado final de tim nivelamento do grupo a uma inteligincia mediana (mediocre)? Como se iso nio bastasse, depois do século XVIIT howve uma rigida sepacagio e esting de idades (series escolares"). As criangas no eram mais capazes de aprender nem com eciangas mais vehas e mais infor- ‘madas. Estavam limitadas, na maior parte de suas horas ativas,a1um grupo bem defnido da mesma idade,*e,além disso, a um eurrieulo dado "de bandeja". Essa graduasio rigida aumentou o nimero de niveis necessérios para & iniciagto na vida adults, e tornou difiell para uma erianga disigit sus prOprios passos. Sua motivagio para 0 estudo passou a se caracterizar por set disgida para fora, © por {ima consciéncia de aprovagio, assasinas certeiras da Ori= ginalidade, As eriangas, anteriormente visas simplesmente Como pessoas mais novas — do mesmo modo como hoje vemos um fedelho meio crescido em termos de sia ma Turidade futura — agora exam uma classe bem defini, com suas proprias dvises intemas, incenivando & com: petiglo: “0 garoto mais alto do quarteitéo", “0 garoto Inaisinttigente da escola", ete. AS criangas das a pensar em termos hierérquicos, todos avaliados pelo supremo "Quando eu crecer. ..” Assim, 0 crescimento da escola refletia 0 mundo exterior, que estava se tornando cada vez mais segregado, de acordo com a idade ea classe da. pessoa. Concluindo: © desenvolvimento da familia modema significou o desdobramento de uma sociedade ampla e in- tegrada em unidades pequenas, centradas em si mesmas. 4. Into 6 levado a extremos nas escolaspiblices contemport- Deas, onde iangas perfetamente.preparadas par 0 ensino slo Fecusadas durante um ano inte porgue sua dala de nase ‘mento ett Uns pouvos dias antes de uma data arbirira, 102 Dentro. dessas unidades conjugais, a erianga tomou-se entio importante, pois ela era 0 produto dessa unidade, a razao de sua subsisténcia. Tornou-se conveniente man- télas em casa durante © méximo de tempo possivel, ¢ amarré-las psicol6gica, finaneeira e emocionalmente) & tunidade familiar até 0” tempo em que estivessem prontas para eriar uma nova unidade familiar. Para esse propésito ctiada a Era da Infancia. Mais tarde, foram acres- centadas extens6es, como a adolescéncia, ou, em termos americans do séeulo XX, 08 teenagers, a “juventude uni- Verstétia, 0s “adultos jovens”. O conceto de infincia prescrevia’ que as criangas eram uma espécie diferente 4a dos adultos ndo apenas na idade, mas também nas suas caracteristicas. Uma ideologia foi desenvolvida para provar isso: foram escritos tratados fantasiosos sobre a {noeéncia das criangas e sua proximidade de Deus (* hos"), conseqilentemente levando a erenga de que eram assexuadas, sendo a atividade sexual infantil vista como ‘uma aberracio — tudo em contraste violento com 0 pe- iodo precedente, quando as eriangas eram expostas 30s fatos da vida, desde o inicio. Pois qualquer admissao da sexualidade infantil teria acelerado a transi¢ao para a vida adulta, e isso, na época, tinha que ser retardado a todo custo, © desenvolvimento de roupas especiis cedo ext- gerou as diferengasfiscas entre as criangas © 0s adults, f-aN6 entre estas ¢ as criangas mais velhas. As criangas no jogavam mais os mesmos jogos dos adultos, nem ps ticipavam de. suas festividedes (hoje, normalmente as ctiangas nfo. freqlientam jantares elegantes), mas. Thes fram consagrados jogos especiais e arteatos préprios (oringuedos).O edntar hstérias, antigamente uma arte comunitéria, foi relegado as criancas, levando, em nossa propria época, & eriagao de uma literatura infantil espe- effi, Os adultos falavam com as criangas numa lingua- gem especial, e nunca se langavam numa conversa séria 5. Ver Arts, op. lt, Capitulo V, “From Immodesty to Tano- ‘ence’, para uma descrigo detahida desta exposigio, baseada fas experincias “sexuais do Delfim, como esti registrado no HeroardTownal. 103 na presenga delas (“Nao na frente das ctiangas!"). Os “'oneshbitos” de shjigdo eram insitfdos em casa (*As eriangas deveriam set vistas e nfo ouvidas”) Mas nada disso teria atuado 0 sentido de fazer efeivamente das erianeas uma claste oprimida, se una insiuiglo especial no tvese sido criada para dar conta do recado comple- tamente: a escola moderna, ’A ideologia da escola cra a ideologia da infnci la funcionava a patir do pressuposto de que as erangas preciavam de “dsciplingy de que eram seres especias, que tinham de ser tratados de um modo especial (psico- Togia infant, edueagdo infant, ete), © que, para faci ar iss, elas deveiam ser enctrraladas num lugar espe- al com seus semelhants, e som umn grupo de dade 0 ‘mais que ponivelrestrto& sua propria idade, A escola fl 2 instiuigdo que estruturou a infdncia, segrezando eft ‘amente as erangas do revi socedade, eesti retar dando. sen desenvolvimento para a. maturidade seu ‘desenvolvimento de hablidads.especilizada, das quais a sociedade precsava, Em conseglencia, elas permane- Ceram economicamente dependents por fesiodos de tem po cada ver maiores Deste modo, os Iagos fans pet Ianeceram intactos CChamei a alengSo para o fato de que existe uma relagio’profunda entre as hierarguias da familia. eas Glastes ccondmicas, Engels observou que, dentro da fa- mila, o-marido € o bargoés, ©1a mufher © a5 clangas Soo proletaiad, Forain observadas smilaidades entre as clang efoda a classe opertia ou outros grupos opr tio, fits estados para mostrar que sls compertivam da mesma psicologia. Vimos como o desenvolvimento das roupas_proletrias foi paralsio. 10” das roupas. infantis, Como os jogos deixados pelos adults da clase alta foram fogsdor pelas criangas © pelos “eaipiras™. Dizi. de fmbor que gostavam de trabalhar “com as mos”, con trariamente fs allascerebragSes do homem adult, abate 60s acima deles. Foishes lembrado ambos que tinharn a sorte de serem poupados das preocupagées da responsa- bildade adulta—e ambos 0 desclavam de qualquer jello. As felagbes com a classe dominante, em ambos os 104 ‘casos, tinham um qué de medo, de suspeita, disfargados sob uma leve capa de sedugio'(o adorivel balbucio, 0 irar-de-olhos, ¢ o pisa-mansinho). mito da infancia encontra um paralelo ainda maior no mito da feminilidade. Tanto as mulheres quanto as criancas foram consideradas assexuadas ¢, portanto, “mais puras” do que o homem, Seu status inferior fol ‘mal disfarcado sob um certo “respeito” requintado. Nao se discutiam assuntos sérios, nem se faziam injérias na frente das mulheres e das criangas. Elas eram rebaixadas ‘abertamente; isto era feito 3s suas costas. (Quanto a0 double standard,* relativo aos xingamentos: Um homem pode xingar 0 mundo, porque cabe a cle xingar — mas ‘© mesmo xingamento na boca de uma mulher ou de um ‘menor, ie. um “homem” incompleto a quem 0 mundo ainda ‘flo ‘pertence, € considerado presuncoso, e, conse Gqlientemente, uma impropriedade, ou pior.) Ambas fo- ram discriminadas com roupas ornamentadas ¢ nio-fun- cionais, e Ihes foram atribuidas tarefas especiais (respec- tivamente, 0 servigo doméstico eo dever escolar). Ambas foram consideradas mentalmente deficientes (“O que voc’ pode esperar de uma mulher?” “Ele € muito pequeno para entender!”). O pedestal de adoracZo no qual ambas foram colocadas tomou dificil para que respirassem. Cada interagdo com 0 mundo adulto tormou-se para as crian- gas um dangar conforme a misica. Aprenderam a usar de sua infancia para obter o que queriam indiretamente (“Ela festé tendo um outro acesso de raival”), assim como as mulheres aprenderam a usar de sua feminilidade (“L& vem ela, chorando de novo!”). Todas as incursGes no mundo adulto tornaram-se terriveis expedigOes pela so- brevivéncia. A diferenga entre 0 comportamento natural das criangas, dentro de seu grupo, © seu comportamento afetado ¢/ou timido diante dos ‘adultos confirma isso. ‘Analogamente, as mulheres agem de um modo diferente entre si, do que diante dos homens. Em cada caso, uma diferenga fisica foi ampliada culturalmente, com a ajuda + Ver NAT. A plian 260, (NT) 105 y 0 a 9 < de trex espe, educa, Mbios e avidades, aque cas Pipe nee etal souogen opera ae Stree aeamo star, um proce de ergo que perme ume esreotpecio Hal, ©. invites paces Frnimente eum espe derete doen oman, com seu proprio conjunto de leis ¢ comportamentos pe- State, (ie rek omeemied eh eee: yond ass enna ade ae eg ina ‘A pa contemporincn te eve cade apna. As cana aio Stanhope" as fre ao hamades “gaia, “rbot, rece an tS Gatcutcopa aa €' acess fees eer oma emo core Tits tor homer open, nando ne dane god carter garnhtoy Tbe) gave, vendor marae Sect da dade mut marae epetnete Com ona conoayo stu pecs, Peale open fe clan da moteres e das crane et ead a facies do "ongasadisbor Simo mai fel lato que tevear © ope: pate cia posefespontes eueacs tigre Mole eaetnarnea'cu quanto spam’ ean feels bate ieee de tas eos iar fla do Bee? Qu mule em peo de aa quando um se: SIRT grea Ts a ee ee cone to B finda hojet” com “Estaria melhor se no 0 vissel”, ele ‘ftosnardé: “O que mordeu essa puta hoje?”, ou pior. Fre- r 8 = mente nnfo_sorriem_em_resposta, como deveriam.. “Mulher de merda! Eu nio te foderia, nem se voce se eigragasse pro ‘meu lado!” ... Ou: “Pirralhinho nojento! Se eu fosse seu pai, eu te surrava até vocé ficar roxo!”. jo surpreendente, Contudo, esses homens acham que a_mu- Iher e a erianga devem ser censuradas por nao serem “cor- " Porque & incémodo para eles saber que a mulher, ‘ou a érianea, ou o negro, ou o operdrio resmungam} os ‘grupos oprimidos devem também aparentar gostar de sua ‘opressio — sorrindo, sem graca, embora sintam um infer- 106 no por dentro, © sorriso é 0 equivalente a0 pisa-man- sinho da crianga/muther; ele indica a aquiescéncia da vitima ao seu proprio opressor. (Em meu proprio caso, tive que treinar para me libertar desse sorriso hip6crita, ‘que € como um tique nervoso em toda adolescente. E isso ‘quer dizer que eu sorria raramente, pois, na verdade, eu tinha muito menos razSes para sorrir. Minha Iuta “ut6- pica” pelo movimento de libertacio das mulheres: uma ‘campanha de boicote ao sorriso, & qual todas as mulheres indonando seus sortsos monte exaltaria uma sotedade, na qual 0 cariho em orl sera mals desaprovado; em geral, as tiieas d= Rronsrages. deaf. que wma cringe rectbe hoje sto tsar demonsragbesfingidas, que ela pode sinda co Gerar methor dovque nada.]) Moitos homens nfo. conse fem compeeder query stim fens 280 wo ‘int como um privépio. Serd-que les i pensaram que 2 pessoa real por ts daguele animal neném ou mult fee ptr ao se azariad, ¢ eM Mes 2 Eis saguele momento? tmaginen « propria conser ‘Seng Rata, se sla estanho se aproximasse ele fun, de um modo semethant, acompanhando ses pasts, Sussorrandofatando como trian, sem respeito Por Mua fissfo, ou sua “masculinidade”. Em sumas ao or membrot de classe opettia © dos srypos minortios sagem como enangas”, € porgue a= Entangas de todas as clases odo uma clase balay ss como as mulheres sempre o foram, A ascendo da familia fuclear moderna, com sev scesbrio a “inflnci” etre 0s lagosette os grupos ainda economicamente depen enter, estendendo e fetorando o que tna sido apenas tia breve dependénci, staves Gos meios habitus © desenvolvimento. de uma. ideoloia.espetfiea, de um silo de vida: proprio, linguagem, roupes, manciriamo, ten E, com samen» o cuagre du depradenci ian: fia escravidao das mulheres 4 matennidade também foi 107 ampliada até seus limites. As mulheres ¢ as eriangas en- contram-se hoje no mesmo barco furado, Suas opressbes comecaram a se reforgar, uma a outra, A’mistica das gl6- rias do parto, da grandeza da cristividade “natural” fe minina, acrescentou-se agora uma nova mistica sobre as lérias da propria infancia e da “criatividade” da educagtio das criancas. (“Pois bem querida, 0 que poderia ser ‘mais criative do que eriar uma crianca?”) Hoje as pes- soas esqueceram o que a Hist6ria tinha provado: que “criar” uma erianca é o equivalente a retardar seu de- senvolvimento. O melhor modo de criar uma erianga é DEIXA-LA EM PAZ. 2. Nossa Epoca: 0 Mito é Exagerado ‘Vimos como a crescente privatizacto da vida familiar trouxe ainda mais opresso aos seus dependentes, as Theres ¢ as erianeas. Os mitos correlacionados da femini- Tidade e da infincia foram os instrumentos dessa opressao.. ‘Na Era Vitoriana eles alcancaram proporgGes tio épicas gue as mulheres finalmente se rebelaram — sua rebelifo afetou perifericamente a infaincia. Mas a rebelifo foi des- truida antes que ela pudesse climinar esses mitos. Eles icaram subterrineos, até reaparecerem numa versio mais sidiosa, complicada pelo consumo de massa. Pois, de fato, nada tinha mudado. No Capitulo 2 descrevi como a emancipacio das mulheres foi sutilmente sabotada. A mesma coisa ocorreu com a opressio coroléria da “in fancia”. ‘A pseudo-emancipacio das criancas equipars-se per- feitamente 4 pseudo-emancipacio das mulheres. Embora tenhamos abolido todos os sinais superficiais de opressio — as roupas diferenciadas © pesadas, a palmatéria do mestre-escola — nfo hé dvida de que o mito da infan- cia prospera em proporgdes épicas, no estilo do século XX, Indistrias completas so construfdas para a fabrica- ‘clo’ de brinquedos. especiais, jogos, alimentacio para frianga, café da manhi infantil, livros © hist6rias em 108 ‘quadrinhos infantis, balas atraentes para as criangas, etc. ‘Analistas de mercado estudam psicologia infantil ‘para ‘descobrit produtos que atraiam as criangas de varias id des, Existe uma propaganda, um cinema e uma indistria de TV construfdos s6 para elas, com sua prépria literatura especial, programas e comerciais, e até conselhos de cen- sura para decidir exatamente quais os produtos cultu- rais adequados ao seu consumo. Hé uma proliferagio in- findavel de livros e revistas instruindo o Ieigo na requin~ tada arte de educar as criancas (Parent's Magazine, do Dr. Spock*). Hé especialistas em_psicologia infantil, em métodos de educagao infantil, pediatras, e todos os ramos especiais de saber que se desenvolveram recentemente para estudar esse animal peculiar. A educagio obrigatéria floresce e hoje est difundida o suficiente para formar ‘uma inevitével rede de socializacéo (lavagem cerebral), dda qual nem os préprios ricos conseguem escapar total~ mente, Passaram os dias de Huckleberry Finn. Hoje, os que fingem ser doentes para escapar ao trabalho, ou que se desligam, tém que gastar todo o tempo para afastar 0 enxame de especialistas que os observam, os programas governamentais em proliferagio, os assistentes-sociais no seu encalgo. ‘Observemos mais de perto a forma modema que essa ideologia da infincia assume. Visualmente, ela € to ro- busta, loura e sorridente, quanto um antincio da Kodak. Come 6 © caso da exploracdo das mulheres como um objeto (ready-made), como uma classe consumidora, exis- tem muitas indGstrias ansiosas por beneficiar-se da vul- nerabilidade fisica das crianeas (p.ex, a Aspirina St. Jo- seph, para eriangas). Mas, ainda mais do que sua satide, a palavra-chave para a compreensfo da inflincia modema é felicidade. S6 se € crianca uma vez na vida. As criangas deve set personificagées vivas da felicidade (as criangas ‘mal-humoradas, ou entediadas, ow criangas-problema sfio ‘amente entipatizadas; elas fazem do mito uma mentira). B dever de todos os pais propiciar aos filhos Do wtnero Pais ¢ Phos baste (N-T.) 109 uma infancia memordvel (balangos, piscinas infléveis, bbrinquedos ¢ jogos, passeios em acampamentos, festas de aniversério, etc.). Essa 6 a Idade de Ouro, que & erian- ga relembrars quando erescer para tornarse um robd como o pai. Assim, todo pai tenta dar ao filho tudo 0 que the faltou naquela que deveria ter sido a mais espléndida fase da prépria vida, O culto da inffincia como Tdade de Ouro é tdo forte que todas as outras épocas da vida sho avalidadas em fungio do grau com que se assemelham a la num culto nacional da juventude. Os “mais velhos” fazem papel de bobo com sua apologética invejosa (“EB claro que eu tenho o dobro da sua idade, meu caro, mas. ..”), Hé uma crenca geral de que o progresso se fez Porque, pelo menos em nossa época, as criancas foram libertas da pesada mfo-de-obra infantil, e de muitas outras cexploragdes tradicionais das geragdes do pasado. De falo, existe ainda a lamentacio invejosa de que as crian- ‘gas esto despertando uma atencio excessiva. Flas sio ‘mimadas. (0 “Quando eu ponde 20 “Este mundo é das mulheres. . © mais importante baluarte desse mito da feticidade a constante e rigida segregacio das criangas do resto da sociedade. O exagero de seus tracos distintivos fez delas, como tinha sido planejado, quase que uma outra raga Nossos parques fornecem a metafora perfeita de nossa so- lade etariamente segregada. Um playground especial para os Tenros Intocéveis, as mies ¢ as eriancinhas (ra- ramente encontramos outras pessoas ali, como se isso fosse um tabu), um estidio de atletismo ou uma piscina ara criangas, um recanto aprazivel para casais jovens e estudantes, © uma area de bancos para as pessoas ido- sas. Essa segregacio etéria continua através de toda a vida de cada individuo moderno, As pessoas passam a ter ‘muito pouco contato com as criangas, logo que tenham ultrapassado a propria infincia. E, mesmo dentro da propria infaincia, existem segregacbes etirias rigidas, de ‘modo que uma crianca mais velha ficaré embaragada por ser vista com uma crianga mais nova. (“D8 0 fora! Por ‘que no brinca com gente da tua idade?") Durante a vida escolar, e em nosso século ela dura muito mais tem- 110 po, uma crianea convive com outras de apenas um ou dois anos de diferenca de idade. As pr6prias escolas refle~ tem essas graduagdes cada vez mais rigidas: pré-priméria, etc., caracterizadas por um sistema complexo de promo- ‘sées e “formaturas”, Ultimamente, sio comuns até for- ‘maturas em escolas maternais e/ou em jardins-de-inffncia. ‘Assim, na época em que uma crianca fica madura para a reprodugao, ela no mantém nenhum contato com (0s que estio fora de seu restrito grupo etério adulto, € certamente nenhum com as criangas. Por causa do culto que a rodeia, ela praticamente no se lembra nem da pPrOpria infancia, chegando até a bloqued-1a completamen- te, Mesmo quando crianca, ela pode ter tentado amoldar- se a0 mito, pensando que’ todas as outras criangas eram mais felizes; mais tarde, j& adolescente, pode ter-se en- ‘tregado a satisfagdes desesperadas, atirando-se a “praze- 33", no espftito do “S6 se é jovem uma vez na vida” — quando, na verdade, a adolescéncia é horrivel de ser atra- vessada, (Mas a verdadeira juventude no tem con: da idade — “a juventude € desperdigada pela prépria ju- ventude” e € caracterizada pela espontaneidade verda- deira, justamente pela auséncia dessa artificialidade. O armazenamento de uma felicidade que se perdeu é uma idgia que s6 0s mais velhos poderiam ter criado.) Uma tal auséneia de contato com a realidade da inféncia arrasta todo adulto jovem para o mesmo tipo de sentimentalismo em tomo das criangas que ele proprio provavelmente desdenhou quando era pequeno. E assim por diante, num circulo vicioso. Os adultos jovens sonham em ter seus proprios filhos, numa tentativa desesperada de preencher © vazio causado pela interrupcio artificial da juventude. Mas isso $6 dura até 0 momento em que eles se envol- ‘yem com problemas de gravidez ¢ fraldas, babés e pro- blemas escolares, predilegées ¢ brigas. Entio, por um curto periodo, so obrigados a compreender que as crian- 28 sfo tio humanas quanto o resto da gente. Assim, falemos sobre o que a infincia realmente 6, fe no sobre o que ela é na mente dos adultos. F claro que 0 mito da felicidade infantil floresce amplamente, ‘ndo porque satisfaca as necessidades das criangas, mas ul Porque satisfaz as necessidades dos adultos. Numa cul- tura de pessoas alienadas, a crenga de que todo mundo tem, pelo menos, um bom perfodo na vida, live de preo- cupagdes e de trabalho, difiilmente morre. E, obviamen- te, no se pode vontar com isso na velhics. Logo, uma pessoa ja deve ter passado por ele. Este é 0 motivo da nuvem ‘de sentimentalismo que eavolve toda discussio sobre a infancia © as eriangas. Todo mundo alimenta al- ‘gum sonho secreto em seu proprio interesse, ‘Assim, a segregagio ainda funciona a todo vapor, para reforcar a opressio das criangas, como uma classe. Em que s¢ constitui essa opressio no século XX? Dependéncia Econdmica e Fisica, A diferenca fisis natural entre as criancas e os adultos — sua maior fragil dade, seu tamanho menor — € reforcada, em vez de set compensada, pela nossa cultura atual. As criangas ainda sfo “menorés” perante a lei, sem direitos civis, uma pro- priedade de um cfrculo de pais arbitrdrios. (Mesmo que hiaja criancas que tenham “bons” pais, existem no mundo tanto pessoas “ruins” quanto “boas”, e € bem mais pro- vivel que as pessoas “ruins” cuidem das criangas.) O niimero de surras e de mortes infantis a cada ano teste- munha que as criancas meramente infelizes tém sorte. Ela poderia ser pior, $6 recentemente os médicos houve- ram por bem denunciar essas ocorréncias de tal modo fas criangas estavam A merc8 de seus pais. Contudo, as ciangas que nao tém pais se encontram ainda em situagio pior (assim como as mulheres solteiras, as mulheres sem 2 protegio de um marido, esto ainda em pior situa- ‘Gio do que as mulheres casidas), Nao ha lugar para elas, a nfo sero crfanato, uma espécie de depésito de ferro velho para os indesejados. Mas a opressio das criangas est enraizada, mais do que tudo, na dependéncia econdmica. Qualquer um que ja tenha ‘observado uma crianga tentando persuadir sua mie a Ihe dar dinheiro, sabe que a dependéncia econd- mica é a base da vergonha da ctianga. (Parentes que 42 Bo dinheiro, em geral, slo mais queridos. Mas assegu- ram-se de que 0 dinheiro seja dado diretamente 2 crian- gal) Embora ela possa ndo estar passando fome (nem isso acontecetia, se as criancas tivessem seu préprio em- rego; as criangas negras, que engraxam sapatos, pedem esmolas, ¢ cultivam varias negociatas, e os garotos brancos da classe operdria que vendem jomnais so invejados em sua vizinhanga), ela é dependente, para a sua sobrevi- véncia, de um apadrinhamento, e isso & um estado ruim experimentar, Essa extrema dependéncia nfo vale o seu sustento, E nessa dea que descobrimos um dos eixos do mito ‘moderno. Expalhou-se que a infincia experimenta gran- de progresso, trazendo-se imediatamente & meméria ima- gens dickensianas da crianga pobre, Iigubre, lutando numa mina de carvio, Contudo, mostramos, na breve his- t6ria da infancia apresentada no inicio do capitulo, que as criangas da classe média e da classe alta nfo trabalha- vam no comego da Era Industrial, e sim ficavam abriga- das, em seguranga, nalgumas escolas magantes, estudando Homero ¢ gramética latina. As criancas da classe baixa, € verdade, nao eram consideradas nem 'um pouco mais pri- vilegiadas’ do que os pais, partilhando as torturas desu- ‘manas a que todos os membros de sua classe tinham que se submeter. De modo que, na mesma época em que havia Emma Bovarys e Little Lord Fauntleroys ociosos, tam- bém havia mulheres destruindo suas vidas e os pulmées fem fabricas primitivas de tecidos, e criangas perambu- Tando e mendigando. Essa diferenca entre as vidas das criangas de diferentes classes econdmicas persistiu até os is do direito a0 voto feminino, e até a nossa propria €poca. AAs criangas que eram propriedade da classe mé- dia, em fungéo da reproducfo, sofreram uma pressfio pior do que a nossa. O mesmo aconteceu com as mulhe- res. Mas elas, para compensar isto, tinham uma proterdo econdmica. As criangas da classe Baixa eram exploradas, nnio particularmente como criangas, mas de um modo geral, como classe. O mito da infancia era extravagante demais para ser desperdigado com elas. Aqui, novamente ‘vemos ilustrado com preciséo o grau de arbitrariedade do 13 mito da infincia, eriado expressamente para atender as nevessidades da estrutura da familia da classe média Sim, vocés dirio, mas certamente teria sido melhor ppara as eriangas da classe operdria que clas, também, tivessem podido viver protegidas por esse mito. Pelo ‘menos, teriam poupado a vida. De modo que elas pode- riam esvair a vida espiritual nalguma sala de aula ow eseritério? A questdo € ret6rica, como a pergunta sobre se 0 sofrimento dos negros na América € legitimo, por- que seriam considerados ricos em outro pais. Softimento @ sofrimento. Nao, precisamos pensar em termos mais amplos aqui, Por exemplo, em primeiro lugar, porque seus pais eram explorados: o que qualquer pessoa faz numa mina de carvio? Devemos protestar, néo pelo fato de as criangas serem exploradas como os adultos, mas pelo fato de que os adultos sejam explorados desse jeito. Precisa- ‘mos comegar a falar, néo em poupar as eriancas, durante alguns anos, dos horrores da vida adulta, mas em eliminar cesses horrores. Numa sociedade sem explorasio, as erian- ‘625, poderéo ser parecidas com os adultos (sem nenhu- ma exploragio implicita), e os adultos poderio ser como as criangas (sem nenhuma exploragio implcita). A es- cravidio privilegiada (patronato), que as mulheres ¢ as criangas suportam, niio 6 liberdade. Pois, a_autodeter- ‘minagdo é a base de toda liberdade, e a dependéncia est fia origet de toda desigualdade, ~ Repressio Sexual. Freud descreve a satisfagio primi- tiva da crianga: a satisfago do bebé no seio matemno, que cle entdo tenta recuperar durante o resto da vida; como, por causa da protecio adulta, a erianca é mais indepen Gente do “prinefpio de realidade”, ¢ Ihe & permitido brin- car (atividade realizada pelo prazer dela propria, no para obter qualguer outro fim); como, sexualmente, a ‘rianga é polimorfamente pervertida, e somente mais tarde € dirgida e reprimida, para tormar-se pronta para 0 pra- er genital adulto. Freud também mostrou que as origens da neurose adulta se fundavam no proprio processo da intincia. Em- bora a crianga prototipica possa ter a capacidade de ex- perimentar um prazer puro, isso nfo significa que ela 4 ‘possa satistazé-1o completamente, Seria mais correto dizer ‘que, embora seja propensa, por natureza, ao prazer, n0 momento em que se torna socializada (reprimida), ela perde essa inclinagio. E isso comeca exaiamente neste momento. © “principio de realidade” nao se restringe aos adul- tos. Ele se introduz na vida infantil, quase que automati. camente, em sua pequena escala propria, Portanto, en- quanto esse principio de realidade existr, a nogo de Poupar as criancas seus desgostos seré uma farsa, Na melhor das hip6teses, ela pode sofrer um processo repres- sivo retardado. Porém, mais freqiientemente, a repressi0 acontece, em todos os nfveis, logo que a crianga possa lidar com ela. Néo 6 como se ja tivesse havido um pe- rfodo abengoado, no qual a “realidade” era dispensada, Pois na verdade a repressio comeca logo que ela nasce. ‘As bem conhecidas refeicies cronometradas pelo rel6- to slo apenas um exempio extremo. Antes dos dezoitos ‘meses, afirma Robert Stoller, se estabelece a diferenciagio sexual bésica e, como vimos, esse processo, em si mes- ‘mo, requer a inibigio do impulso sexual dirigido & mic. Assim, desde o inicio, € negada a liberdade de acio & sua cualidade polimorfamente pervertida. (Mesmo hoje, com aexisténcia de uma campanha para reconhecer a mastur- bbacdo como normal, vérias eriancas sio impedidas de brincar com seu proprio corpo, desde a Epoca em que ainda estio no berco.) A crianca & instruida a deixar de mamar e a ir ao banheiro o mais cedo possivel — duas coisas trauméticas, nos termos da crianga. A repressio aumenta, O amor matemo, que, idealmente, representa a satistagio perfeita (“incondicional”), € explorado, & ‘maneira do amor paterno: para melhor dirigir a crianga para a conduta socialmente aprovada. E, finalmente, 6 exigida_uma identificacko ativa com o pai. (Nos lares conde nao ha pai, a identificago pode ocorrer um pouco tais tarde, quando a crianga’comeca a freqilentar a es- cola.) Daf até a puberdade a crianga deve ter uma vida assexuada — ou dissimulada — sem sequer admitir qu ‘quer necessidades sexuais. Essa assexualidade forcada gera uma frustragdo, que € responsével pela extrema rebeldia us © agressividade — ou, numa outra alternativa, a docili- dade anémica — que, geralmente, torna as criangas tio irvitantes & sua volta, Repressdo Familiar. Nao precisamos nos aprofundar ras sutis pressbes psicol6gi que pense na propria familia. E, se isso nfo for suficiente, se por acaso vocé é hoje aquele um-entre-um-milhdo {que esté realmente convencido de que tem uma “familia feliz”, leia alguma das obras de R. D. Laing, particula ‘mente a Politica da Familia, a tespeito do Jogo das Fa milias Felizes. (“Quanto mais uniformemente elas fun- 2 cionam, mais dificeis sio elas de estudar.”) Laing revela f dinimica interna da famfia, explicando sua invisibil dade para o membro normal da famtli “Uma coisa, geralmente, 6 clara para um estranho: exis: tem, planejadas,resist2nclas familiares a descoberta do que 5} extf se passando, e hi estratagemas complicados para manter todas as pessoas ignorantes, ¢ na ignorincia de que sfo igno- rantes. A verdade tem que ser afastads, para que se sustente tuma imagem da familia... Uma vez que essa fantasia existe apenas na medida em que ela esté ‘dentro’ de todo mundo ‘que participa dela, qualquer um que. abandone, destruiré a © [Mfamlia”existente dentro de qualquer outra pessoa.” [ is algumas criancinhas falando sobre si mesmas. De novo, citamos Rei “Ouvi falar de um menino que, até quase os quatro anos, pensava que seu nome era ‘Calese'” “Um menino presenciou uma briga pais, e ouviu sua mie ameagar seu pai com 0 ‘ia seguinte, quando voltor vara casa, depois da escola, ele ‘perguntou 4 mle: “Voc8 jé se divorciou?” Mais tarde, iem- ‘rouse que ficara muito desapontado, porque ela nfo se tinha divorciado.” "Um menino de nove anos foi interrogado pelo pai, du rante a visita que este The fez num acampamento, se tinha fentido saudade de casa, e 0 garoto respondeu: ‘Nao.’ O ps tent, perguntou se os guttos meninos tinham sentido sau Gade de casa. 'S6 alguns’, respondeu 0 garoto, ‘aqueles que ‘tém eachorro em casa.” 116 © que é divertido nessas anedotas, se 6 que elas so divertidas, é a franqueza das criangas, incapazes de com- reender, ou accitar 0 inferno masoquista de tudo isso. Repressio Educacional. & na escola que a repressio € cimentada. Quaisquer ilusGes remanescentes de. liber- dade so, hoje, rapidamente afastadas. Toda atividade sexual ou expansio fisica sfio barradas. Aqui se realiza © primeiro jogo altamente supervisionado, © prazer na- tural das criangas em brincar é, ent&o, incorporado, para melhor socializé-las (reprimi-las). (“Larry fez a melhor pintura de dedos! Que menino habilidoso! Sua mée fica 14 orgulhosa de vocé!”) Em algumas escolas liberais, 0 tempo todo, & verdade, professores gabaritados tentam descobrir temas e atividades que interessem verdadeira- ‘mente as criangas. (E mais fécil manter a sala em ordem, desse jeito.) Mas, como vimos, a estrutura repressiva da rOpria sala de aula, que € segregada, garante que qual- quer interesse natural em aprender, finalmente, acabe atendendo aos interesses essencialmente disciplinados da escola. Os jovens professores, que entram no sistema, idea- fistas a respeito de seu trabalho, logo se indispdem con- tra ele; alguns desistem desesperados. Se tivessem esque- cido que a escola foi uma prisio para eles, se lembrariam novamente de tudo, E, cedo, sfo obtigados a compreen- dder que, embora haja’ prisbes liberais e prises nflo tho liberais, por definicdo, todas elas so pris6es. A crian- sa 6 obrigada a freqiienté-las; a prova disso, & que nunca vio & escola espontaneamente. (“Fim das aulas, Fim das aulas, Pra casa os bobocas vio voltando, Chega de lépis, Chega de livros, Chega de professores implicando.”*) E, embora educadores esclarecedores tenham projetado sis- temas completos de atividades di interessantes, para atrair ¢ seduzir a crianga a accitar a escola, esses sistemas munca conseguem obter éxito total- mente, pois uma escola que existisse somente para atender curiosidade das criancas, entendida nos seus proprios termos, e que fosse dirigida por elas proprias, seria uma No original: “Seboo!'s out, School's out, Teachers let the fois out, [Nomore pencis, No mote books, No mate teachers diy Took (NT) 17 contradiclio em seus prOprios termos — como vimos, a escola moderna, em sua definicdo estrutural, existe para implantar a repressao. A ctianga despende a maior parte de suas horas pro- dutivas nessa estrutura coercitiva, ou fazendo deveres para ela, O curto tempo que Ihe resta, em geral, 6 absorvido pelos afazeres © obrigagées familiares. Ela’é forcada a assistir a discusses familiares infinddveis, ou, em algu- ‘mas familias “liberais”, a assistir a “conselhos familiares”. Existem parentes para’ os quais ela deve sorrir, ¢, geral- mente, missas a que ela deve assistir (todas essas horas, gastas de mé vontade, com preces, pelas eriangas). No curto tempo restante, pelo menos em nossa classe média moderna, ela 6 “supervisionada”, bloqueando-se 0 desen- volvimento de sua inicativa e de sua criatividade, Sua escolha de materiais lidicos esté determinada (brinquedos © josos); sua drea de brincadeira esté definida (gindsios, parques, playgrounds, campings). Geralmente, fica limi tada, na sua escolha dos compankeiros de jogos, as crian- gas da mesma classe econémica, ¢, nos subsrbios, aos colegas de escola, ou aos flhos dos amigos de seus pais. Entra para um niimero de grupos maior do que poderia dar conta (escoteiros, lobinhos, bandeirantes, fadinha acampamentos, clubes extra-escolares, e esportes). Sele cionam a cultura para cla, Na TV, fregientemente, s6 The € permitido assistir aos programas infantis (Papai Sabe-Tudo), ¢ & proibida de assistir aos filmes. (bons) para adultos, Seus livros e sua literatura, geralmente, so firados de listas despastadas. (Grandes Homens e'Mu- Iheres Americanas. Cronicas de Babe Ruth. Lassie. i eriancas que tém a minima oportunidade de escapar desse pesadelo supervisionado — apesar de serem cada vez em menor niimero — sfo as criangas dos guetos e das classes operérias, onde a concepcio medie- val de comunidade aberta — morando na rua — ainda permanece. Isto 6, historicamente, como vimos: muitos desses processos da infincia chegaram tarde nas classes bbaixas, e nunca se firmaram realmente nelas. As crian- gas da classe baixa tendem a proceder de grandes f milias nucleares, formadas de pessoas de idades muito diferentes. Mas, mesmo quando isso nfo acontece, ge- ralmente hé meio-irmios e meio-irmas, primos, sobrinhas, sobrinhos, ou tias, num meio de parentes em constante mudanga. As crianeas, individualmente, sfo muito pouco observadas, e menos ‘ainda supervisionadas; geralmente, podem andar bem longe de casa, ou brincar nas ruas, durante horas. E, na rua, se por’acaso a familia é pe- 4quena, existem centenas de garotos, muitos dos quais jé tém seus préprios grupos sociais (gangs*) formados. Elas geralmente ndo ganham brinquedos, o que significa que ‘eriam seus pr6prios brinquedos. (Vi garotos dos guetos fazerem escorregas engenhosos de papelio, e colocé-los. fem casas velhas sem degraus; vi outros fazerem cart nhos-de-mio e roldanas, com pneus velhos, cordas e ct xotes. Nenhuma erianca'da classe média faz isso. Ela nfo precisa. Mas, em conseqiiéncia, ela logo perde a engenho- sidade.) Elas exploram as regies bem longe de seus pe- 4quenos quarteirdes, e, muito mais que seus companheitos dda classe média, travam relagdes com os adultos, num ‘mesmo nivel. Nas aulas sio rebeldes e indisciplinadas, como, de fato, deveriam ser — pois a sala de aula é um local que faria qualquer pessoa um pouco liberal sus- peitar dela. Existe um desrespeito persistente pela escola na classe baixa, pois afinal ela é na sua origem, um fenmeno da classe média, ‘Sexualmente também as criangas dos guetos so ‘mais livres, Um rapaz me disse que nfo conseguia se lem- bbrar de uma idade em que tivesse tido relagio sexual com outras garotas, sem isso ser uma coisa natural; todos tinham. Aqueles que ensinam nas escolas das favelas observaram ser impossivel refrear a sexualidade das crian- seas. E uma coisa rotineira; as eriangas gostam, e & muito melhor do que uma aula’ sobre a Grande Democracia Americana, ou sobre a contribuigio dos hebreus, com a revelacdo de Um Deus Unico (por que revelar um 362), «As agnes constuem os, ics srupos de cranes de hoje anti fides. Oo tong soa eum modo nmetsSd0r poe bos ser po fice, (OT 9 ‘ou sobre o café ou a borracha, como as exportagdes mais importantes do Brasil. Assim, elas fazem amor nas escadas. E faltam & aula no dia seguinte, Se, na Amé- rica moderna, a infincia livre existe nalgum estégio, i se dé na classe baixa, onde 0 mito € menos expandido. Por que, entio, elas “se tornam” piores em situa- gio do que as criangas da classe média? Talvez isso seja

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