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ALVES REDOL AVita Magica da Sementinia Pen on oem Te) , ‘Antinio ALVES REDOL nasu em Vila Franca de Xia em 29 de Denmmivo de 1911, Frquenou o Curso Elementar do Gomario, que teemipow en 1927. O se primal texto fol pe ‘icado em 10 de Julho de 1927 90 joa Vida Ribatjona Em TDR com 16 anos, Aves Redol parte para Angola, onde per tmaece quatro anos © exer vii poles as Uma Aleta do Raj. Box 1939) ‘Como tends inaugurago 0 Neo Reasmo (movimento eto que pretends reflec a vgn 08 anreior do povo) em Portugal A Paris at publice sen de trina obras (nluindo romances, ons ess de tear, libs prs erangas), de que we deste Gevseguintes romances: Avieiros (1942), Panga (1943). orzone Cerrado (1949), Os Homens e as Sombras (1951, Vindima de Sangue (1983) A Barca doe See Lemes (1958), Ua Fenda na Martha (1959), 0 Cavalo Espantado (1960, arnnco de Cegos (1962), Muro Branco (1960, Os Reinegros asia, "A pr da sum actividad Iter, Alves Red desevolveu ium actividad pola, Nomeadamens, em 1945 fer parte da Combs Cena do MUD (Mevineto de Unidade Deroersca) ‘Sem 1988 parcipoa no Congrsso do Itlectnis par a Paz, fella a Pla, Dei ssn conveys derocrtias, fo “iis yees pres pla pollen poltica do regime fascist "Aics Redol face en Litto em 29 de Novem de 1969 ALVES REDOL A Vida Magica da Sementinha ‘UMA BREVE HISTORA DO TRICO | oF BR pr onetnen Se t 420 x Dawe Para 0 Anténio ! : i E omer Saran Tipe Lacie ‘ha fg: Na 19 Soe scapet indice alam os bagos de trigo a © rapto da Sementiaha. 15 © milagre de um Rouxino! apaixonado «.. 19 © ladrio escape-se © a Sementinha cai... 23 Velhas historias que convém saber melhor 2 Em poder da Feiticeira oer © grande mist6ti0 oon 43 Ressurreigao 49 ‘Uma menina com trangas 55 A Sementinha € esquartejada oun 6L ‘As meninas sementinhas vio 4 escola ac ‘A Asa de Corvo casa-se como os chineses or Um viveiro de sementes e de hist6rias B Falam os bagos de trigo Metidos numa velha arca, desde que 0 Anténio ‘Seareito 0s guardara para semente, os bagos de wigo tinham scabado por adormecer naquela escutido de muitos meses, julgando talvez. que estavam esquecidos @ ali ficariam a apodrecer 0 resto da vida Ignoravam, pois, que 0 Doirado um boi amareto todo paciéneia € poder, jf lavrara com a charrua, no COutono, a parte da leiva destinada & semeadura e que (© Antéaio preparava a grade com que desfaria os tomes do alqueive, na esperanga de uma boa colhelta, tanto mais que j4 comprara um saco de adubo para revigorar a terra cansida. 'S6 quem vivesse a apatia dorminhoca dos bagos resignados poderia entender depois o entusiasmo © a alegria que rebentaram na velha area mal a Maria Rita Ihe levantou a tampa e a luz do dia os sacudi. ‘Até o Serrano — vejam Id! —, um bago anafado Sempre resmungio, se pos a salttar de contentamento, ‘como se percebesse, © maroto, © destino que Ihe reser- E no se onganavs, 0 espertalhéo! Toda desembaragos, que a vida no campo € sem- pre de labuta, a Marla Rita trou-os, as punhadas, para um grande tabuleiro; ¢, vai dal, foi sentar-se A porta do casebre para os escolher, mesmo & chapa de uum solzinho que ea um consolo de bran- dura ‘Logo as sementes, ainda aturdidas, se puseram a aritar: — Viva, amigo! Viva! Bom dial — Olt — respondeu-thes © Sol Soalbeiro. — Es- tiveram a dormir este tempo todo, nfo? Boa vida, alo bf dvidal — Sempre tens cada uma! — disse 0 Amarelo de Barba Preta, um velho gro de ttigo muito sabido. — Boa vida numa escuridio daquelas? A tocar uma campainha tagarela, que levava pendurada wo pescogo, jf o Doirado arrastava a grade pela leiva, animado por uma cantiga do Anténio Seareiro © pelo bico do aguilhio, mal o boi parava a folhar a passarada vadia. ‘Os bagos de tigo perderam a cabega com aquele especticulo. $6 a Sementinha estava distralda © indignada, pois metera conversa com a Despedida-de- Verio, uma flor amarela com pintinbas vermelhas, que the dizia, muito anche da sua beleza: — ii viste como sou bonita?... Olha para estes ‘bragos todos e para 0 meu corpo Verde. Que tal”. Repara na minha carapuga vermelha... f linda, no &? 'S6 ui 65 (fo feia, Sementinhal 0 que hei-de fazer? Nasei assim — respondeu ‘4 Sementinha muite contristada, a choramingar de desgosto. ‘Logo © Amarelo de Barba Preta, todo ternuras, ‘corre, aflito, para junto dela "0 que foi, minha pequerrucha?, ‘A Sementinha nem podia falar com tantos solugos. "Tem pena de néo ser linda como ex — disse, ‘muito orgulhosa, a Despedida-de-Verao. — Bonita como (1? — respondeu o Amarelo de Barba Preta. — Pois claro que €... E mais bonita ainda porque no € vaidosa. ‘Verse logo que tens inveja da minha beleza — disse, um nadinha amuada, a Despedida-de-Verao. “Uinveja de qué? Qualquer dia murchas... E depois?. Ferida no seu orgolho, a flor yoltou costas 20 gro de trigo, enquanto este continuava a animar a Sementinha. Deixa 14 falar aquela toleirona. Sem a nossa ajuda os homens viveriam pior, calcula tu! Queres coisa mais bela? — Mas estamos sempre quietos — lamentou o Serrano gorducho. — Quietas ¢ como quem diz... Temos andado por todos 08 caminhos do mundo. Foi neste momento preciso que um passarico, aproveitando a auséncia da Maria Rita, passou pelo tabuleiro, num Yoo £350, € roubou a Sementinha com © bico guloso. O rapto da Sementinha (Os bagos de trigo nem tiveram tempo de ver 0 qve | se passara, tio inesperado foi o desaparecimento a Sementinha, que ainda comesara aos gritos ao sentir- se levada pelos ares fora, Mas logo pensou que jria viajar de avigo por esse mundo além; e calou- “se, embora se sentisse entontecida com a vertigem do | ‘© raptor da posse doazele era um rouxinol vaga- | bundo, que deixara emigrar 0§ companteiros de viagem | para as terms da Arica © da Asia, fiando por ali como | professor de Misica dos péssaros sedentéios, que no receavam o Inverno. E, como the faltasse de comer no bosque onde morava, vi de o procurar na leiva do Anténio Seareiro. ‘A verdade & que ele nfo sabia por que razto ferr- 146 bico na Sementinha morena, quando tinha ali ‘outros bagos mais gordos. $6 percebia agora que & Tevava consigo ¢ que jf entrara no seu bosque, pro- curando a sarga onde Fizera o ninho, embora fossem boas horas de comegar a ligio de canto. «Mas primeiro vou comer este petisquinho!», pensava 0 Rouxinol vagabundo, E assim que largou & presa em cima da sua cama pOs-se a fité-la com os ‘lho: grindes ¢ vives, como se escolhesse por onde de~ veria comegar o banquet. ‘Que belo jantar! — disse, todo contente, pondo- -se a afiar o bico nos bordos do ninho. A Sementinha, que até ali estivera deslumbrada com aquela plumagem cinzenta, muito ruiva por cima fe amarela por baixo, nio conseguiu esconder 0 receio ‘quando Ie ouviu semelhante desabafo, E, muito sora- teira, de vozita mimalha, vi de The perguntar, para 0 distrair — Para que agugas mais o teu bico, & tho agudo? (© Rouxinol sentiv um baque no coragio, vol- tando-se, envergonhado com os seus ruins penss- — Essa agoral... No estou a afiar 0 bico. — Nao sejas. mentiroso! — repreendou a Sementinha. — Nao seri pra me comeres? — Bem... Néo sei bem... E se fosse — Era uma pena — disse a Sementinha, sem deounciar © medo que sentia. — O Amarelo de Barba Preta contou-me coisas to lindas da minha Vidal... Mas, paciéncia! ‘© Rouxinol comegava a comover-se. Volvia a ceabega, cogava a8 ssas com o bico e saltitava da cama para 08 bordos do ninho. ‘— Nilo gostas de ver as searas pelo Verio? —lem- brou-se a Sementinha de perguntar. — Gostol... Li isso gosto! — Pois é de mim que elas nascem, © misico pos-se a rir com gosto: — Néo actedito.. — Fe bem tolo — respondeu a outra, — Sabes povco do mundo. — Mas sei cantar. Sou professor de Misica — Ab! — exclamou 2 Sementinha a sorri. — bonita, a mésica... Eu jf ouvi 0 AntSnio Searito caatar a0 boi Dotrado € gostei muito. — Esse, ao pé de mim, é um burro a zurrar E rin-se outra vez 0 Rovxindl — Entio, canta If pra eu ouvie. E dou-te a minha palavra de honra, palevrinha, de que se cantares melhor do que ele digo-o a toda a gente. A Sementinha inventava pretextos para afastar 0 péssaro daquela ideia de comer, pois nfo sabia que a sila vorita mimalha j4 the tocara 0 coragao. = Canta! — insistiu ainds, receosa do silencio do (© Rouxinol fer-se rogado. — Ev 6 canto nos teatros ou nas aulas.. — Mas canta s6 uma vez... — pediu a Sement muito meiga. Tio meiga que o Rovxinol faminto se comoveu de tal modo com a ternura daquela vozita que logo ‘comegou num gorjeia vibrante © suave ae mesmo tem- po, jd esquecido de que tinha fore. Foi entio que & porta da sua casa, toda graciosa de movimentos, aparece a eabega azul-escura de Chapim aleoviteiro. "6 mestre! © mestre! .. Olhe que estamos todos A sua espera ‘A Sementinhs espreitou © viu-lhe © peititho muito amarelo listrado de preto, enquanto 0 seu carcereito, ‘atrapalhado, procurava escondé-a, Vai andando, que eu ja vou — disse ainda 0 professor, para arranjar desculpa. ‘— Olne que temos hoje ensaio geral — insistiu 0 ‘Chapim Aza, "Abelhuda, a nossa donzela falou debaixo do corpo {quentinho do professor de Miisica: — Eu gostava de ir também.. (© Rouxinol ficou vermelho dos pés & cabeca. — 6 mestre! O mesire mudou de cor — disse, todo rebiteso, 0 Chapim Azul Ea Sementinha, que conseguira safar a cabeca, cespreitou-o e confirmou, pondo-se depois entre os dois, pissaros. *='En prometo no falar no ensaio — juntou ainda, para os conveacer. — Juro-thest Logo © Chapim Azul piscou 0 olho ao Rouxinol, dizendo que sim, que podia ir. 'O pior foi a zaragala que logo surgiu entre os dois ppassaros, quando ambos se propuscram levar a Se- fmentinhs para a tiia onde se faria 0 ensaio do coral Bicada daqui, bicada dali, nem o professor conseguit impor respeito ao aluno, nem este se atemorizou com ‘as ameagas de Ihe porem na cabecita azul um par de ‘orelhas de burro. E foi a Sementinha que os acalmou, embrando 20 Chapim que ele a traria a casa depois do censaio, mas que desta vez 0 lugar cabia, por direito, 20 Rouxinol vagabundo. © milagre de um Rouxinol apaixonado 16 vabadinba de prazer, a nossa donzela voos de novo no bico magano do profesor de Mises, que a ievava por ene os toneor dos pnbeiter, dos fetxes, don eiclipts e dos carvan, mma prin de aviator qe sabe tear da cada conn de wm Ime aperegoate quando a fol pousa, carossmente sobre a tia Goada de urea aroha que foira fs chuvas sara no bosque, como clarins, os tls joviaie dos toe Emaelos de um bando de melo, muito graves nos se nes peo de cia. 3-0 apn Ae trai no biquao euro un potag de msgo pum serit de almotads & Semcatinhe, connie outros dois pe favam nue pontas dot fice de (cia © cnbalavan a onea amiga com desvelos de camareiros reais. ‘Muito slene, 0 Rovxina bates corm o bic na ua cpt presi, man's eg os aps do onwbey, &, “Tecauea um gupo de canes ov ett om a sua grista em poupa, ao lado de um bando de teqplfods, de larga capa azul, coleterosado e pintinas ‘afinando uma frase musical toda viveza; 20 fo do melo esridente, a tepadeia, no sea fato azul- “arruivado, enguanto mais abaixo, nom galho desfo- Thado,o psco piplava, muito humid, n0 ev peitiho de parpura, e & coruja, sotuma, piava do alto de um eucalpto Vamos, atengio! — bradou o Rouxinol, j& initado. Gotas de chuva refulgiam como pedras preciosas nas skimas flhas doiradas do bosque. E um bando de galinholas e tordos chegou arasado, a lembrar que © Tnvemo moraria ali por algum tempo Fol por isso mesmo que todo 0 orfedo ficou surpreso quando o professor bateu de novo com 0 bico ne estante © anunciou com arroginca: "Vamos cantar « Toada da Primavera! E, sem dar conta dos gestos de mau humor da passarada, pOs-se a cantar. Mas cantou sozinho. wr itio?! — pergunto, zangado, quando reparou no siléncio dos alunos. Foi o Chapim Azul quem falou pelos outros. "6 mestte! Nio vé que sem Sol no podemos cantar essa parttura? mE sem flores também — disse o Tentlhio, sacudindo a capa azul como um fidalgo espanhol. ONE com este frio — juntou 0 Piea-Peine — Bu. por mim, estou rouca — disse a Coruja, ccompondo os écules Desdenhoso, o Rouxinol olhou para cima e respondet: Py — Tu estés sempre rouca. — E dirigindo-se aos ‘outros: — E querem voeés cantar no teatro!.. Um bom, cantor no conhece os dias nem as horas. — E cempertigando-se todo: — Eu canto sempre. — Sempre... € como quem diz — respondeu 0 Pisco. — Quando anda de namoro. $6 enti © mestre canta todo o dia e pela noite adiante... Nem dorme. Risada geral nas aves do bosque, que logo se ‘comunicou as irvores e aos arbustos, rindo mais alto do que nenhum, © Carvalho, senhor patriarca da ‘pequena floresta, © professor, irritado, ameagou de abandonar o censaio, voando para junto da Semeatinha, que conti- ‘nuava embalada pelos dois chapins. Muito baixinho, para que os outros a nfo ouvissem, a Sementiaha sussurrou-lbe: — Nio fe fagas birrento... Mostra quem és! ‘Ainda indeciso, o Rouxinol voltou para o seu lugar; f batew depois, mais uma vez, com o bico na estante, para logo dar inicio a uma das suas melodias migicas, io firme e requintada que os outros passaros, ora um fora outro, ¢ todos depois, se puseram a acompanhé-lo © melhor que podiam. Maravilha das maravilhas, 0 Sol despertou, con- fuso, sem entender 0 que se passava, ¢ abriu 0s bragos de oro, longos e quentes, como se estivesse em Maio. E logo os fetos se tomnaram verdes, e de entre eles bro” tram ities brancos, roxos e amarelos; e as campainhas azuis, com os malmequeres, as boninas humildes ¢ os tapetes de musgo apareceram numa magia de cores, enguanto as drvores ganhavam folhas e os arbustos perfumes. ‘Aos bandos, vindos das terras quentes do sul, cchegavam mais rouxindis, poupas cabegudas, cxcos bizarros ¢ rambdias e pintarroxos tenores, que logo cantavam no alto dos galhos do bosque até ha pouco adormecido, ‘Apaixonado, 0 professor de Mdsica levava a palma a todos. 'E nem dava pela chegada das toutinegras reais, dos abelharucos e das pintassiigos cantadotes, enquanto os piicapaus e os petos marcavam ritmos bérbaros na easca das drvores © a felosa imitava todos, louca de prazer fe tonta de melodias, ora soprando flauta como @ toutinegra, ora exprimindo-se em fugas como 0 tordo, ‘ora trinando como 0 tentilhdo de colete cor-de-rosa. Deslumbrada, @ Sementinha pusera-se de pé, @ querer cantar também, enquanto o Rouxinol, cada vez. mais apaixonado, Ihe sortia dos ramos da flia per~ ¢ humilde, sem coragem de se chegar aos uttos, veio o Pardal espreitar o que se passava, e tam- bém ele cantarolou, desajeitado, 0 «estruma a terta>, aque & 0 seu canto conselheito a0 lavrador tardio. SO fle, faminto © desasado com as chuvas, nfo acreditava rnaguela Primavera precoce. ‘Quando reparou na Sementinha, delirante no seu balougo doirado, e se lembrou das eiras, sentin um ba aque de fome no estimago vazio. E sem mais aquelas, Ihdtio € vivo, voou répido sobre © trono da noiva do Rouxinol, levando-a consigo, enquanto um grito de terror enchia 0 bosque ¢ matava a Primavera, ee © Iadrao escapa-se ea Sementinha cai logo 0 bosque ficou triste com os ramos a sol- tarem pingos de chuva, como se as drvores chorassem ‘9 desgosto do professor de Misica. ‘Apavorada, a Sementinha bem seatia no corpo que aguele bico era diferente do outro que a levara na pri- meira viagem. E niio se enganava. Enguanto o do Rouxinol era um instramento delicado para executar ceantos melodiosos, 0 do Pardal era uma ferramenta for- te, como um quebrasnozes, que a partiria nur instante, loge que descobrisse um sitio sossegado para a devora: ‘A fome do Pardal era negra. Que o dissessem muitos ‘outros pros que ele furtara nas eiras nos celeiros. Valera até ali A Sementinha a perseguicao da passarada, que clamava sem canseiras — Agarral Agarra, que € ladrdo! A frente de todos, alucinado, 0 Rouxinol vagabundo batia as asas com frenesi, enquanto o Pardal procurava, 2 tum refigio para comer o seu jantar. B a verdade € que, pouco a pouco, conseguia aumenter a distincia entre si ‘© perseguidares, que, por fim, ja esgotados, ficaram 1 seguilo de longe. (0 Pardal ia cego pela carreira, mas, mal percebeu ‘que 08 outros se ficavam para trs, brit bem os olhos pera se cetificar da sua vitria. Foi entio que vit & soa frente 0 Sr. Espantalho, que estava all, de bragos aber- tos, a guardar as sementes que o Anténio Seareiro iria Seitar& terra, De chapén enterrado até ao nariz, 0 mal~ dito seria capaz de meter medo a um milbafre, quanto mais a um mfsero pardaleco espavorido. E, num instante, julgendo ver no Se. Espantalho o chefe dos seus perseguidores, largou a Sementiahe do bico © voltou, assarapantado, para a banda de umas moitas. Solta de to grande altura, # nossa amiga sentiv-se tonta com @ vertigem e pensou: «Aquele maroto cempurrou-me sem pfra-quedas © agora.» "Mas nfo teve tempo para acabar 0 seu raciocteio, porque chegou a0 chio e perdew os sentides. ‘Quando abriu os olhos, mal se mexendo com © corpo doride, viu-se sozinha no meio do campo. Ouviu ‘a9 longe a campainha do Doirado, chamou pelos Ccompenheitos, mas ninguém the respondeu; iembrou- ‘Se de pedit & ajuda do Sol, e também este desapa- ecera no poente, deixando no céu pardacento uma smancha rosada. ‘Comesava & escurecer Por instantes, a Sementinha encheu-se de receio. Logo, porém, se lembrou que tinha de procurar uma snida para aquele isolamento e ganhou forgas park no peniet a calma, «Amani veremos © que devo fazer», ppensou, resoluts quando a noite chegou nossa amign procurou ‘um torrloziaho de terra, deitando nele a eabega para adormecer. E sonhou com 0 Rouxinol vagabundo, a ccantaroler para Ihe trazer 0 sono, enquanto os dois cchapins ezuis a embalavam na tela doirada da aranha; depois vinham mais pissaros, todos os que vira 00 fensaio do bosque, e que traziam no bico o Amarelo de Barba Preta, 0 Serrano, 0 Rubio, 0 Mocho de Espiga Branca e of outros sous companhires, bagos de Wigo. (Que grande festa Ihe fizeram! 'E foi assim que acordou, com um solinho muito fameno nos olhos, logo bem abertos quando viram o ‘Ant6nio Searviro a espalhar sementes, em grandes punhadas, pela terra riscadinha e negra ‘Antes que pudesse dar-Ihe os bons-ias jd estava & sua beira o Amarelo de Barba Preta. = Nem ganhimos pars 0 susto! — disse © velho bago de trigo. = Nao era caso para isso — respondeu a Sementinha um tanto vaidosita por se saber viajada. — Nem caleulas como foi bom experimentar esta aventura Riu-se 0 velho bago de trigo com a baséfia da com- panheira. E enguanto ela se mostrava estranha com as gargalhadas do velho, este cortava-he as veleidades, — Viagens ¢ aventuras sio as que vamos viver dentro de pouco tempo. — B num tom saudoso: — Os rossos avés também as tiveram ¢ conheceram um mundo bem diferente do nosso.. E bonita a histéria os nossos avs. — EB tw sabe-la? — perguntou, curiosa, a Sementiba. — Um poucochinho — respondeu 0 Amarelo de [Barba Preta. — Se a soubesce toda, estava aqui muitos anos para ta conta. —"Eatio conta o que sabes. a Somentinha aconchegou-se num rego da leiva, ‘enquanto 0 velho bago de trigo se sentava, de perna ‘eruanda, comegando a contar uma bistia, perante a couriosidade de outras sementes que se haviam chegado par sara ompanicia pide ‘Velhas histérias que convém saber melhor = HE af uns oito mil anos. — Ena! — disse, espantado, 0 Serrano gorducho, Os outros gros olharam-no numa reprimends, ‘enguanto 0 Amarelo de Barba Preta se limitou a ol slo de banda e a somir. = Os antepassades do homem de hoje — pros- seguiu o narrador — viviam em pequenos grupos, onde © Wabalho era dividido. E assim, enquanto 0s varves se edicavam 8 caga e & pesca, as mulheres colhiam feuros selvagens e raies, se as cavernas ficavam junto das forests, ou apenhevam marscos, se 0 mar esiava pero. — Eu sei — disse 0 Serrano, que elas desen- terravam as rafzes servindo-se de paus agugados. — Que engragado! — exclamou @ Sementinha, muito interessada, = Trigico & que devies chamar-the, minha amiga — respondeu © Amarelo de Barba Preta. — Quantas ‘mulheres morreram antes que soubessem distinguir-se (05 coguinelos, as rafzes © 05 frutos venenosos? Mas $6 assim foi possfvel, experimentando, aumentar 0s re- ‘cursos com que matavam a fome. E como, principal mente, dependiam de animais, os homens rudes desse fempo julgavam-te seus descendentes. E adoptavam 08, seus nomes, e adoravant-nos, fazendo festas em que 05 imitavam, dangando, no convencimento de que assim (05 cagariam mais facilmente. Tao certos estavam desse poder magico que comegaram a gravar no interior das, ‘Cavers os perfis das renas, dos bisbes © dos mamutes. = E os nossos 2vés? — perguntou 0 Serrano. Fez-se um movimento de impacigncia entre os bagos de trigo. — Os nossos avés, ¢ mais a cevada, foram também descobertos entre as plantas selvagens que as mulheres iam encontrando. ‘= E onde foi? — indagou 2 Sementinha, mordida pola euriosidade. “— Dizein uns que na Mesopotimia, outros que na Abissfnia, ‘Sem as sementes saberem como, apareceram-lhes, de sibito, uns estrantios bagos de trigo: um deles era preto, outro vermelho, outro, ainda, azul. 0 que ¢ isto? — perguntou 6 Moctio de Espiga Branca, — Agora também brincamos o Camaval”. ‘— Sabes poco, companheiro — respondeu © Bago. ‘Azul, — Isto no & uma miseara, mas a nossa propria ‘As sementes estavam espantadas com aqueles gros ‘izarros. — Basta de gragas! — disse o Amarelo de Barba Preta — Ntio ¢ 0 que tu julgas, meu vetho — retorquiu © Bago Vermette. — Como falavas na patria do tigo, ‘n6s viemos para fe dizer que somos oviginitios desse pais, — Da Mesopotimia? — Do Afeganistio — explicou o Trigo Negro. — E af, na Asia, que ainda existe, ocupando campos inteitos, © igo ‘nto... Um trigo de tamanko bizarro, {que € 0 nosso mais velho antepassado. ‘Deixando as outras sementes viver uma expectativa {que as imobilizava, 0 gro asidtico prosseguiu: — 0 nosso povo era pacifico, mas um dia, bé milhares de anos, a sua terra foi invadida por outro ‘povo vindo do Ocidente. Dias terriveis! — exclamou o Bago Azul. — As guerras so sempre torriveist Tao terriveis e tio enusis, {que ainda hoje hi gente do Afeganistto a morar em ci- Gades abertas nas montanhas, com receio dos homens ‘que levaramm a guerra E 9 Trigo Azul calou-se, emocionado, como se vivesse ainda essa época distante — Uma dessas cidades tem seis andares © doze mil grulas — esclareceu 0 Bago Vermelho, ‘= E 0 que fizeram vocés aos invasores? — per- sguntou, excitada, a Sementinta, ‘— Defendemo-nos com tamanho ardor que acabsi- ‘mos por vene8-Ios. Mas também Ihes demos 0 pio de Itigo © de cevada, que eles até af s6 faziam das bolots. oo trigo do Afeganistio viajou pelo mundo. — Tudo isso levou muitos anos! — exclamou 0 ‘Teigo Vermelho. — Mas com os Fenicios ¢ 05 Cretenses tornimo- nos conhecides em todo © Mediterrines, que era 0 | | t 4 BE mar dame grande civilizagio. Ao mesmo tempo, 08 rossos antepassados viajavam mais para o Oriente, chegando & india e & Chi = Mas esses preferem o arroz! — interrompeu 0 Serrano, 0 que nfo quer dizer que nto conheram 0 tigo ‘nd milhares de anos. Vai para cinco mil anos que 0 imperador da China langava 2 tera, numa ceriménia de ‘grinds pompa, a semente de cinco plantas, entre as ‘quais do tego. ‘A essembleia das sementes vivia com entuslasmo aquoas revelagbes. E de tal modo que o Rubio, sem- pie tacitumo, também arrscou a sua pergunta — nada {ola, por sina! “B como souberam semear 0 trigo 0s homens do ‘vosso pais? ‘Deusse um breve silncio, em que os tts bagos Viajantes se entreolharam, como a decidir qual deles

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