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A CHINESA®? A Chinesa pode ser definido como um documentitio- ficgéo, com lances de /alk show de televisao. Temos aqui uma reportagem ficticia sobre um grupo de rapazes que se encerram num apartamento em Paris para estudar as bases de estabelecimento de uma revolucao a chinesa (maoismo) na Franga. Sao cinco jovens, a maioria deles estudantes em férias, que emprestam o apartamento de uma amiga e vio viver nele segundo os ditames de Mao Tsé Tung. Veronique (Anne Wiazemsky), estudante de filosofia, é a mais radical do grupo. Guillaume (Jean- Pierre Leaud) é ator e namorado de Veronique. Henri (Michel Seminiako) é estudante de légica econdémica. Ivone (Juliet Berto) é uma camponesa que veio pata a cidade e se prostituiu por nao encontrar setvico. Kirilov (Lex de Brujin) é um pintor preocupado com 0 sentido que sua arte teria de tomar num novo estado das coisas. Do grupo, Ivone é a mais ingénua, razao porque a puseram para cuidar dos trabalhos caseiros. Eles tém um modo de vida bastante rigoroso. De manha, vaio até o © Texto inédito [Nota para esta edi¢ao]. 294 Os ANOS DE CHUMBO terrago e praticam ginastica ao ritmo de uma oragao de solidariedade a Mao e 4 Revolugio Cultural. Em seguida, iniciam seus estudos e pesquisas, enquanto Henri coloca na lousa o programa de discusses do dia. Kirilov se dedica a pintura, Ivone cozinha e Veronique afixa cartazes anti-imperialistas nas paredes. Cada dia, um dos membros da célula faz uma conferéncia sobre um tema qualquer, como a faléncia do capitalismo ou a rebeliao do terceito mundo. Depois ha discussdes sobre o assunto tratado. Numa de suas reunides, Veronique propGe o assassinato de uma importante figura politica do governo francés. A proposta é colocada em votagao e é aprovada por quatro votos contra um. Henti, o opositor, opta pela convivéncia pacifica com a burguesia e, apés ser vaiado pelo grupo, é acusado de “revisionista” e expulso da célula comunista. Numa das “entrevistas” que concede a Godard, ele faz a revisio dos pontos de vista do grupo, concluindo que seus colegas nao passavam de fanaticos. Nesse interim, o grupo vive um drama. Kirilov, apds chegar 4 conclusao de que “a arte nao é um reflexo do real, mas o teflexo do teflexo”, opta pelo suicidio, uma vez que percebe que seu ideal artistico, de acordo com sua conclusao, era contrario 4 ideologia marxista-leninista. Apds exigir em vaio que lhe deixem cometer o atentado politico, Kirilov se suicida. O grupo comega a se desintegrar. Apés cometer o crime, Veronique esboga as bases de uma campanha terrorista destinada a provocar o fechamento provisério das universidades, o que daria 4s esquerdas tempo pata se organizarem. Apés um didlogo com Francis Jeanson, onde Veronique é vencida pela posicéo mais madura do filésofo, a célula se esvazia. O apattamento é pedido de volta. Veronique volta as aulas e Guillaume volta a recitar Brecht e Racine. Ivone retorna a Henri, seu namorado, e passa a vender jornais nas ruas. A Chinesa é um filme aberto. Godard nao apresenta mensagens acabadas, visdes de mundo fechadas, nem procura tirar conclusdes apressadas do drama de seus personagens. Ai esta a distancia que separa esse filme do anterior Masculin-féminin (Masculino- ARLINDO MACHADO 295 feminino), também sobre um grupo de jovens. Enquanto este filme se caracteriza por uma obsessdo um tanto afetada em querer desmascarar as insuficiéncias da juventude atual, A Chinesa nao reduz seu precioso (e perigoso) material tematico a uma tribuna politica. Apesar disso, A Chinesa é um filme essencialmente politico, um dos maiotes filmes politicos do cinema. Mas nao ha nele pregacio ideoldgica, nem 0 autor esta preocupado em converter o espectador para esta ou aquela seita politica. Temos ai uma penetrante (e profética) reflexao acerca da situacao politica da Franca as vésperas da insurtei¢o estudantil de maio de 1968 e sobre o papel da juventude nessa conjuntura. Os jovens de A Chinesa nao sio simplesmente “a geracao dos filhos de Marx e da Coca Cola”, como os de Masculino-feminino. Sao personagens-simbolos que falam na linguagem politica do homem moderno e mesmo do préprio Godard. Eles trazem em si uma 4nsia de transformagio e uma insatisfacao com relacio ao mundo que encontram ja estruturado. Os jovens de A Chinesa falam da Revolucio Cultural e léem frases do Livro Vermelho de Mao, mas também poderiam estar pregando o comunismo soviético, ou eventualmente até o fascismo, poderiam estar citando Marx, Castro, Guevara, Kennedy, Churchill ou de Gaulle. O que importa no filme é a maneira como Godard “fotografa” os 4nimos politicos na Franca de 1967, como que ja antevendo o que vai acontecer. O filme alega ser “apenas os primeitos passos timidos de um longo caminho.” Acertou em cheio. Alguns meses depois de terminadas as filmagens, no inicio de 1968, os estudantes de fato tomam a Sourbone e dio inicio a um periodo de greves ¢ manifestagdes que literalmente param a Franca no més de maio. Isso quer dizer que a0 mesmo tempo em que os personagens de Godard planejavam a revolugio em um apartamento qualquer de Paris, os estudantes reais planejavam uma revolucio de verdade nos blocos universitarios, quase como se 4 Chinesa fosse uma reportagem para a televisio sobre o que estava acontecendo naquele momento nos setores mais radicalizados da politica local. O filme cheira a 296 Os ANOS DE CHUMBO atualidade, dialoga com a realidade que lhe é contemporanea, como se fizesse parte dela. Sartre ja havia afirmado que nunca houve na historia da humanidade uma era em que a juventude tivesse um papel tio decisivo quanto hoje. Nascidos na era do computador, condicionados 4 ditadura dos meios de comunicacio e dos pensamentos enlatados, submetidos desde a infancia a uma explosio de informagées contraditérias, condicionados a viverem na massa € nao como seres individuais, os jovens atuais foram forcados a encarar todos esses problemas e decidir sobre o futuro que querem construir. A Chinesa é 0 retrato dessa juventude: ao mesmo tempo ousada e utdpica, integrada e revolucionitia. O filme, ele prdéprio, assume essa contradicio. O que explica a enorme polémica que o filme causou, sobretudo na Europa. O L’Humanité eo L’Humanité Nouvelle, Srgios oficiais da esquerda francesa, fizeram violentas acusacées ao filme, taxando-o de “reaciondrio”, enquanto o Osservatore Romano, Otgao dos catélicos, fez elogios 4 sua abordagem critica. No Brasil, o filme causou a mobilizagio de importantes parcelas dos intelectuais quando a censura decidiu proibi-lo, num primeiro momento. Na verdade, o filme njo deixa claro se est4 ou no do lado dos estudantes tadicais. “Um filme esta sendo feito”. E o que se 1é numa das primeiras imagens do filme. Durante todo o desenrolar da fita, Godard faz questao de mostrar ao espectador o processo de elaboragao do filme. A claquete entra em cena a todo momento, revelando-nos o processo lento e paciente de construcio das seqliéncias. Mas nao é sé isso. Godard utiliza ainda, mais que em seus outtos filmes, recursos de cinema direto, entrevistando seus personagens, dialogando com eles por detras da camera (apenas ouvimos sua voz). E mais: Godard deixa que seus personagens “conversem” com os espectadores, na medida em que os fazem falar olhando diretamente para a objetiva da camera. O cineasta nao se demora compondo planos para exprimir estados emocionais ou mentais dos seus personagens, como o faria um Antonioni ou um Bergman, mas deixa que eles se expliquem por si mesmos. AARLINDO MacHabo 297 Temos ai uma proposta bastante original de desdtamatizagao no cinema. Nao um simples distanciamento emocional, mas uma desdramatizacio que nasce do ato de desmistificagao da arte cinematografica. Temos, assim, um filme dramaticamente ftio, que nao busca o envolvimento emocional do espectador. Este ultimo sé vé constantemente forcado a desligat-se da magia da tela e concentrat-se na tealidade concteta do filme. Para Godard, cinema é vida e filmar é uma maneira de viver. Como tal, ele nos langa 4 realidade do prdprio cinema, mostrando-nos um espetaculo em sua fase de elaboragio. Com isso, convida-nos a uma meditagio sobre o meio em si mesmo. Isso nos transporta imediatamente 4 metalinguagem. Chegamos a um ponto em que a linguagem-objeto volta-se para si mesma, buscando a sua prépria razio de ser. Diziamos atras que Godard busca tefletir sobre a crise das sociedades modernas. Ora, dentro dos dominios godardianos, vida e arte se confundem e, portanto, o cineasta nao poderia captar a vida atual em toda sua complexidade se nao fosse capaz de compreender, antes de tudo, o proprio veiculo de suas idéias: 0 cinema. Dai porque Godard é inimaginavel sem metalinguagem. Um aspecto particularmente revelador de A Chinesa é 0 processo constante de desmistificacio do prdéprio filme que esta sendo feito. Os filmes mais recentes de Godard nao tém um roteiro acabado, porque o filme, para o cineasta, é uma realidade vivida no momento da filmagem. Dai ser a improvisagio uma das ténicas dos filmes de Godard. Improvisagao nao no sentido de desleixo, mas como uma tentativa de restaurar no cinema o impulso espontineo, como nas fontes mais primitivas do fenémeno artistico. Por outro lado, Godard faz questo de ignorar os limites que separam ficcao e documentirio. Desta maneira, ele funde com a mais absoluta simplicidade o mundo real das relacées humanas com o mundo ficticio saido da imaginac4o do artista. Ele nos coloca, por exemplo, uma figura real (Francis Jeanson, pensadot e politico de esquerda, batalhador pela libertagao da Argélia) em didlogo com 298 Os ANOS DE CHUMBO um personagem de ficcio (Veronique). Destrdi-se assim o antagonismo entre o mundo imaginado e 0 mundo pragmitico. Alias, nao € a primeira vez que Godard utiliza esse procedimento. Ja em Vivre sa Vie (Viver a Vida), Brice Parain expunha sua opiniao sobre a linguagem e em Pierrot /e Fou (O Demonio das Onze Horas) Samuel Fuller explicava o que é 0 cinema. Alids, neste ultimo filme ha uma cena muito reveladora do ponto de vista de Godard sobre as relagGes do real/imaginario, quando uma repérter, fazendo uma ressalva de alguma coisa que disse, observa: se ¢ gue existe alguma diferenca entre personagens reais e ficticios. Uma outra caracteristica da obra godatdiana é 0 desprezo por um cinema tomado como arte isolada das outras artes, ou que seja dotada de uma linguagem candnica, diferente das outras formas de expressao. Godard ignora o cinema como arte cinética ou motovisual. Pata ele, cinema é uma unidade entre ser, viver e pensar €, portanto, nao deve sujeitar-se a esquemas simplistas e castradores, Daia constante interrupgao da natrativa por quadros, cartazes, leitura de obras literatias pelos personagens, exposicdes filoséficas, nartacio, etc, Godard destréi a unidade, inaugurando um cinema multiplice ¢ fragmentario, melhor adequado 4 realidade de nossos dias. Além se ser um filme sobre assuntos politicos, A Chinesa é também um filme sobre problemas estéticos atuais. As vezes, Godard fala pela boca de seus personagens, tanto na aula sobre artes plisticas de Kirilov, como na descoberta de Guillaume de que o primeito documentarista do cinema foi Méliés e nao Lumiére, pois enquanto este filmava a vida banal e sem importincia, aquele filmava temas de atualidade. Outro achado do filme é a “entrevista” com Guillaume, quando este fala sobre tema do atot. Interessante éa histéria que ele conta de um militante que desce do aviio coma face enfaixada, dizendo-se vitima de ataques ctiminosos na Argélia. Depois, tira as bandagens e todo mundo vé que seu rosto nao tinha nada, a face estava perfeita. Contrariando a ira dos repérteres que atacaram a “mentira” da falsa vitima, Guillaume diz que eles nio entenderam nada: o tapaz era um ator e, como tal, tinha o direito Aruipo Mactapo 299 de camuflar-se numa pessoa imaginatia para transmitir uma mensagem. A identificagéio personagem-ator — um dos elementos essenciais da técnica do documentario — é outra das caracteristicas da obra godardiana. No saldo final, duas seqiiéncias aritolégicas em A Chinesa: 1) a pantomima sobre-a Guerra do Vietnd, realizada na aula de Guillaume, quando este mostra 0 conflito através do ponto de vista dos varios paises implicados (Vietna, EUA, Russia, Fratiga e China), evocados através de dculos cujas “lentes” siio bandeirinhas dos paises citados. Ao fundo vemos um cattaz da Shell, enquanto Kiriloy, fantasiado de tigre da Shell, “dispara” sua metralhadora sobre Ivone. Esta, de chapéu de cone na cabe¢a, 4 moda vietnamita, com 0 rosto pintado de sangue, pede socorro a monsiewr Kosygin,” enquanto avides de brinquedo voam ao seu redor, sublinhados por sons de bombardeios reais na trilha sonora. A seqiiéncia é dinamica ¢ salpicada de fotografias jornalisticas e desenhos de super-herdis das histérias em quadrinhos. 2) 0 rock-and-roll frenético, com elogios a Mao e a Revolugio Cultural, cantado por Ivone e dangado por todos os elementos do grupo (ilustragao visual do sagan “Civilizagao dos filhos de Marx e da Coca Cola” do filme Masculino-Feminino). Se, no futuro, Godard for banido das histérias do cinema, isso nao importa. Seus filmes sio como reportagens do tempo presente, concebidos para refletir sobre esse tempo e intervir nele. [1969] ® Na época, primeiro ministro da Uniio das Repiblicas Socialis: (URSS) [Nota para esta edicio}. Soviéticas

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