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em nome da liberdade.
Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutro pasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse um abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever um sismo. Original é o poeta
Original é o poeta expulso do paraíso
de origem clara e comum por saber compreender
que sendo de toda a parte o que é o choro e o riso;
não é de lugar algum. aquele que desce à rua
O que gera a própria arte bebe copos quebra nozes
na força de ser só um e ferra em quem tem juízo
por todos a quem a sorte faz versos brancos e ferozes.
devorar um jejum. Original é o poeta
Original é o poeta que é gato de sete vozes.
que de todos for só um. Original é o poeta
que chegar ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia
como se fosse uma mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.
José Carlos Ary dos Santos, Resumo. Obra Poética
CANTIGA DE AMIGO
imagem: net
Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
o meu amigo está longe
e a distância é bastante.
imagem: net
Vista da casa onde morou Ary dos Santos. Imagens – aqui.
ESTRELA DA TARDE
[…]
[…] […]
Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa. Minha alegria
minha amargura
Em ti respiro minha coragem de correr contra a ternura.
em ti eu provo
por ti consigo Por isso digo
esta força que de novo canção castigo
em ti persigo amêndoa travo corpo alma amante amigo
em ti percorro por isso canto
cavalo à solta por isso digo
pela margem do teu corpo. alpendre casa cama arca do meu trigo.
Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura.
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
foto: net
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
me alagaria de pena;
em renegada poesia
POETA CASTRADO
Pode-se dizer terem sido poucos os poetas a se auto-definirem tão bem como o fez aqui Ary dos
Santos. Esse poema é não só uma declaração do que para o poeta representava ser poeta, mas
também quase que uma auto-confissão de como ele era e do que dele poder-se-ia esperar
enquanto ser humano. Na primeira estrofe, Ary dos Santos começa já de forma direta – uma das
suas características pessoais mais marcantes – e por vezes mesmo agressiva – a relatar que para
ele pouco importa o que os outros dele venham a dizer, desde que isso não afete a sua
liberdade de dizer o que pensa. Reconhecendo mesmo alguns dos aspectos que o caracterizavam
e que muitos criticavam nele (“cabeçudo”, exibido e outros), e até mesmo reconhecendo-se
como publicitário de profissão, Ary dos Santos proclama que tudo isso pode-se dele afirmar, mas
não o fato de que por alguma razão tenha visto a sua liberdade de expressão
“castrada”.Continua compactuando com os que o “entendem” e “reconhecem”, aqueles que
sabem ver nele tanto o lado terno, o lado sentimental com que expressa saudade e alegria, mas
também a necessidade de ser e negar tudo isso para se cumprir uma função enquanto poeta
revolucionário, a de expôr a verdade, por mais dura que seja. Passa, então, o poeta, a listar o
que deveria estar num poema que expusesse a verdade, mas que se encontrava ausente na
grande maioria da poesia que se fazia então. E Ary dos Santos faz suas afirmações de uma forma
direta, procurando a um só tempo chocar e motivar a procura da verdade em seus leitores, em
essência um poeta revolucionário. Assim sendo, afirma que se esquece da fome, mas será que se
pode esquecer “de uma bala num esqueleto de criança”? Procura-se não falar da dureza da
morte, mesmo quando há tanto horror em volta – lembremos que este poema foi escrito não só
ainda em meio das guerras coloniais na África, mas também da Guerra do Vietnã. O poeta passa
das guerras ao seu redor para os horrores do holocausto na Segunda Guerra Mundial, convergindo
para uma crítica aos que procuram apagar da memória o acontecido e acabam por entrar em
novos conflitos do mesmo gênero.
Antes de voltar a reiterar-se como um poeta de livre expressão, Ary dos Santos termina sua
descrição do que deve relatar um poeta revolucionário, criticando aos poetas puristas com um
verso a um só tempo coloquial e acadêmico: “– Ah não me venham dizer que é fonética a
poesia!”.
Para concluir sua auto-definição como poeta, Ary dos Santos volta a reconhecer as críticas que
fazem a ele, seja enquanto homossexual (“prostituta”, “proxeneta”), quer seja pelo fato da sua
popularidade adquirida sobretudo graças às inúmeras participações nos Festivais RTP
(“demagogo”, “televisão”). E por fim, novamente reforça sua posição de ser um pouco
de tudo o que dizem, mas nunca um poeta longe da verdade que lhe cabe dizer como
poeta revolucionário.
Mauro Neves Jr., Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, No.40�2005, Ary
dos Santos: Poeta da Revolução, Poeta do Fado
Meu amor, meu amor
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.
meu nó e sofrimento
minha mó de ternura
e morremos morremos
devagar devagar.
Voz de Amália
foto: eli
A MÁQUINA DE COSTURA
Para o Mendes de Carvalho
Baptista Bastos, “Ary dos Santos ou a voz indomada e indomável”, in Jornal de Negócios
foto: net
José Carlos Ary dos Santos. Assumiu-se sempre como 'nascido na alta burguesia'. De
vasta cultura, era um perfeccionista em tudo que sabia fazer. Ele driblava as
palavras. Como que as reinventava. Do corpo de linho trazia Agosto. Da menina do
alto da serra com cheiro a feno pela manhã. Do cavalo à solta com poema e gomos
de saudade.
E na tourada daquele tempo como no tempo que hoje passa. Que toureamos ombro a
ombro as feras. E não se pegou no mundo, depois de tanto tempo, pelos cornos da
desgraça. Foi cantado maravilhosamente por Simone, Tonicha, Fernando Tordo,
Paulo de Carvalho, Carlos do Carmo e Amália.
Com 16 anos de idade publica poemas e é aclamado como a revelação. E sai de casa
como todos os inconformados. Faz de tudo. Vendedor de pastilhas elásticas. Até
publicitário, onde cria os melhores anúncios da época. O seu livro A Liturgia do
Sangue é uma pedrada no charco.
E foi Tonicha com „Menina‟, uma outra jóia da canção portuguesa. Ainda Fernando
Tordo tem a vitória com „Tourada‟, numa crítica social tremenda. É Nuno Nazareth
Fernandes o compositor que ao lado de Ary cria as canções de sucesso.
Escreveu centenas de poemas. Publicou livros. Gravou discos onde declamava com
paixão as suas palavras. Aos 47 anos de idade (18 Janeiro 1984), o poeta de „As
portas que Abril abriu‟ continua vivo.
Ary (conheci-o bem) não era uma pessoa fácil. Difícil até no trato. Mas um coração do
tamanho do mundo quando era preciso. E como era vaidoso. Fazia gala disso. As palavras
dos seus poemas podem dizer tudo. Da sua forte personalidade. Dos seus erros e das suas
ARY E A SUA REVOLTA COM O PAÍS
Ary (conheci-o bem) não era uma pessoa fácil. Difícil até no trato. Mas um coração do
tamanho do mundo quando era preciso. E como era vaidoso. Fazia gala disso. As
palavras dos seus poemas podem dizer tudo. Da sua forte personalidade. Dos seus
erros e das suas grandes virtudes. Da revolta que sentia porque não compreendia o
seu país tantas e tantas vezes. Ary dos Santos era um lutador.
INESQUECÍVEL EM TUDO
Estive várias vezes em sua casa na rua da Saudade. Ouvi-o muitas vezes ralhar. Tentar
ajudar. E perceber naquele grande homem uma solidão tremenda. As recordações de
sua querida mãe, de seu irmão, que se suicidou aos 21 anos de idade. Uma outra dor.
Teve amigos. Grandes nomes da cultura. Como era de Amália. Idolatrava-a. Fez teatro
no seu tempo de juventude. No teatro de revista, assinou peças inesquecíveis. E o
que foi que ele não fez?
ESQUECIMENTO
Quando eu morrer,
Sem o cansaço inútil da jornada