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Copyright © by Francois Laplantine, representado por Robert Laffont, 1987 Titulo original em francés: Clefs pour L'anthropologie Copyright © da tradugdo brasileira: Editora Brasiliense S. A. Nenhuma parte desta publicagéo pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrénicos, fotocopiada, reproduzida por mejos mecdnicos ou outros quaisquer sem autorizagao prévia do editor, ISBN 85-11-07030-3 Primeira edicéo, 1988 14° reimpressdo, 2002 Reviséo: Carlos Augusti Queiroz Rocha e Mério Rogério Quaiato Moraes Fotos de capa: Antonio Carlos Garcia Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Laplantine, Francois Aprender antropologia / Frangois Laplantine : Tradugo Marie-Agnes Chauvel : preficio Maria Iseura Pereira Queiroz — Sto Paulo : Brasiliense, 2000. Titulo original: Clefspour L’anthropologic 14° reimpr. da I*ed.de 1988 Bibliografia. ISBNS 11.07030-3 1, Antropologia 1. Queiroz, Maria Isaura Pereira de. If. Titulo 02-1627 eD-301 Indices para catélogo sistematico: 1. Antropologia 301 editora brasiliense Rua Airi, 22 - Tatuapé - CEP 03310-010 - Séio Paulo - SP Fone/Fax: (OxxI!) 6198-1488 E-mail: brasilienseedit@uol.com.br www.editorabrasiliense.com.br livraria brasiliense Rua Emilia Marengo, 216 ~ Tatuapé CEP 03336-000 - Sdo Paulo - SP’ - Fone/Fax (Oxx11) 6675-0188 5. OS PRIMEIROS TEORICOS DA ANTROPOLOGIA Durkheim e Mauss Boas e Malinowski, nos anos que antecederam a Pri- meira Guerra Mundial, fundaram a etnografia, Mas o pri- meiro, recolhendo com a preciséo dé um naturalista’os ‘fatos no campo, nfo era um teérico. Quanto ao segundo, a parte teérica de suas pesquisas é provavelmente, como acabamos de ver, o que ha de mais contestével em sua obra. A antro- pologia precisava ainda claborar instrumentos operacionais que permitissem construir um verdadeiro objeto cientffico. E precisamente nisso que se empenharam os pesquisadores franceses dessa época, que pertenciam & chamada “escola francesa de sociologia’. Se existe uma autonomia do social, ela exige, para alcangar sua elaboragao cientifica, a consti- tuig&o de um quadro tedrico, de conceitos e modelos que sejam prdéprios da investigagao do social, isto 6, independen- tes tanto da explicacio histérica (evolucionismo) ou geogr4- fica (difusionismo), quanto da explicagio bioldgica (o fun- cionalismo de Malinowski) ou psicoldgica (a psicologia clas- sica e a psicandlise principiante). Ora, convém notar desde j4 — e isso ter conseqiién- cias essenciais para o desenvolvimento contemporaneo de 88 O8 PRIMEIROS TEORICOS DA ANTROPOLOGIA nossa disciplina — que nao séo de forma alguma etndlogos de campo, e sim fildésofos e socidlogos — Durkheim e Mauss, de quem falaremos agora — que forneceram & antropologia 0 quadro tedrico e os instrumentos que lhe faltavam ainda. Durkheim, nascido ém 1858, 0 mesmo ano. que’ Boas, mostrou em suas primeiras pesquisas preocupagdes muito distantes das da etnologia, e mais ainda da etnografia. Em As Regras do Método Socioldgico (1894), ele opde a “pre- cisdo” da histéria 4 ‘“‘confusao” da etnografia, e se d& como objeto de estudo “as sociedades cujas crengas, tradigdes, ha- bitos, direito, incorporaram-se em movimentos escritos e au- ténticos”. Mas, em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), ele revisa seu julgamento, considerando que é n&o apenas importante, mas também necessério estender 0 campo de investigagéo da sociologia aos materiais recolhidos pelos etndlogos nas sociedades primitivas. Sua preocupag&o maior é mostrar que existe uma espe- cificidade do social, e que convém conseqiientemente eman- cipar a sociologia, ciéncia dos fendmenos sociais, dos outros discursos sobre o homem, e, em especial, do da psicologia. Se nfo nega que a ciéncia possa progredir por seus confins, considera que na sua época € vantajoso para cada disciplina avangar separadamente e construir seu prdprio objeto. “A causa determinante de um fato social deve ser buscada nos fatos sociais anteriores ¢ ndo nos estados da consciéncia indi- vidual”. Durkheim nao procura de forma alguma questionar a existéncia desta, nem a pertinéncia da psicalogia. Mas opde-se as explicagdes psicoldgicas do social (sempre “falsas”, segundo sua expressdo). Assim, por exemplo, a questo da relagao do homem com o sagrado n&o poderia ser abordada psicologicamente estudando os estados afetivos dos indivi- duos, nem mesmo através de alguma psicologia “coletiva”. Da mesma forma que a linguagem, também fenédmeno cole- tivo, nfo poderia encontrar sua explicag&o na psicologia dos que a falam, sendo absolutamente independente da crianca APRENDER ANTROPOLOGIA 89 que a aprende, é-Ihe exterior, a precede e continuaré exis- tindo muito tempo depois de sua morte. Essa irredutibilidade do social aos individuos (que é a pedra-de-toque de qualquer abordagem sociolégica) tem para Durkheim a seguinte conseqiiéncia: os fatos sociais séo “coi- sas” que sé podem ser explicados sendo relacionados a outros fatos sociais. Assim, a sociologia conquista pela primeira vez sua autonomia ao constituir um objeto que Ihe é préximo, por assim dizer arrancado ao monopélio das explicag6es his- toricas, geograficas, psicolégicas, biolégicas. .. da época. Esse pensamento durkheimiano — que, observamos, & tao funcionalista quanto o de Malinowski, mas nao deve nada ao modelo biolégico — vai através de suas novas exi- géncias metodolégicas, renovar profundamente a epistemolo- gia das ciéncias humanas da primeira metade do século XX, ou, mais exatamente, das ciéncias sociais destinadas a se separar destas. Vai exercer uma influéncia consideravel sobre @ pesquisa antropolégica, particularmente na Inglaterra e evi- dentemente na Franga, o pais de Durkheim, onde, ainda hoje, nossa disciplina nfo se emancipou realmente da sociologia. Marcel Mauss (1872-1950) nasceu, como Durkheim, em Epinal, quatorze anos apés este, de quem é sobrinho. Suas contribuigdes teéricas respectivas na constituigfo da antro- pologia moderna sio ao mesmo tempo muito préximas e muito diferentes. Se Mauss faz, tanto quanto Durkheim, questfo de fundar a autonomia do social, separa-se muito rapidamente do autor de As Regras do Método Socioldgico a respeitd de dois pontos essenciais: 0 estatuto que convém atribuir a antropologia, e uma exigéncia epistemoldgica que hoje qualificarfamos de pluridisciplinar. Durkheim considerava os dados recolhidos pelos etno- légos nas sociedades “primitivas” sob o angulo exclusivo da sociologia, da qual a ctnologia (ou antropologia) era desti- nada a se tornar umia ramo. Mauss vai trabalhar incansavel- mente, durante toda sua vida (com Paul Rivet), para que’ esta seja reconhecida como uma ciéncia verdadeira, ¢ nao $0 OS PRIMEIROS TEORICOS DA ANTROPOLOGIA como uma disciplina anexa, Em 1924, escreve que ‘‘o lugar da sociologia”’ esta ‘na antropologia’”’ e nao o inverso. Um dos conceitos maiores forjados por Marcel Mauss é 0 do fenédmeno social total, consistindo na integragéo dos diferentes aspectos (bioldgico, econdmico, jurfdico, histérico, religioso, estético. . .) constitutivos de uma dada realidade so- cial que convém apreender em sua integralidade. “Apés ter forgosamente dividido um pouco exageradamente”, escreve ele, “& preciso que os sociolégos se esforcem em recompor 0 todo”. Ora, prossegue Mauss, os fenémenos sociais séo “antes sociais, mas também conjuntamente ¢ ao mesmo tempo fisiolégicos ¢ psicolégicos”. Ou ainda: “O simples. estudo desse fragmento de nossa vida que € nossa vida em socie- dade nao basta”. Nao se pode, ainda, afirmar que todo fené- meno social é também um fendmeno mental, da mesma forma que todo fenémeno mental é também um fendmeno social, devendo as condutas humanas ser apreendidas em todas as suas dimensGes, e particularmente em suas dimensGes socio- ldgica, histérica e psicofisiolégica. Assim, essa “totalidade folhada”, segundo a palavra de Lévi-Strauss, comentador de Mauss (1960), isto é, “‘formada de uma multitude de planos distintos”, s6 pode ser apreendi- da na experiéncia dos indivfduos”. Devemos, escreve Mauss, “observar © comportamento de seres totais, e nao divididos em faculdades”. E a tinica garantia que podemos ter de que um fendmeno social corresponda & realidade da qual pro- curamos dar conta é que possa ser apreendido na experiéncia concreta de um ser humano, naquilo que tem de tnico: “O que é verdadeiro, nao é a orac&o ou o direito, e sim o melanésio de tal ou tal ilha’”’. Nao podemos portanto alcangar o sentido e a fungao de uma instituig&o se nfo formos capazes de reviver sua inci- déncia através de uma consciéncia individual, consciéncia esta que é parte da instituigao @ portanto do social. APRENDER ANTROPOLOGIA 9 Finalmente, para compreender um fendmeno social total, € preciso apreendé-lo totalmente, isto é, de fora como uma “coisa”, mas também de dentro como uma realidade vivida. E preciso compreendé-lo alternadamente tal como o percebe © observador estrangeiro (0 etnélogo), mas também tal como os atores sociais 0 vivem. O fundamento desse movimento de desdobramento ininterrupto diz respeito & especificidade do objeto antropolégico. E um objeto de mesma natureza que © sujeito, que € ao mesmo tempo — emprestando 0 vo- cabulério de Mauss e Durkheim — “coisa” ¢ “representa- gao”. Ora, © que caracteriza o modo de conhecimento pré- prio das ciéncias do homem, é que o observador-sujeito, para compreender seu objeto, esforga-se para viver nele mesmo a experiéncia deste, o que s6 € possivel porque esse objeto €, tanto quanto ele, sujeito. Trabalhando inicialmente com uma abordagem seme- Ihante A de Durkheim, a reflexiio da Mauss desembocou, como vemos, em posigdes muito diferentes. Estamos longe do distanciamento sociolégico que supde a metodologia dur- kheimiana, e préximos da pratica etnogréfica de Malinowski. Este tiltimo ponto merece alguns comentérios. Os Argonautas do Pacifico Ocidental, de Malinowski, ¢ 0 Ensaio sobre 0 Dom, de Mauss, séo publicados com um ano de intervalo (0 primeiro em 1922, 0 segundo em 1923). As duas obras sio muito préximas uma da outra. A segunda supde 0 conhecimento dos materiais recolhidos pelo etné- gtafo. A primeira exige uma teoria que seré precisamente constituida pelo antropdlogo. Os Argonautas sio uma des- crigéo meticulosa desses grandes circuitos maritimos trans- portando, nos arquipélagos melanésicos, colares e pulseiras de conchas: a kula. O Ensaio sobre 0 Dom & uma tentativa de esclarecimento e elaboragio da kala, através da qual Mauss nao apenas visualiza um processo de troca simbdélica generalizado, mas também comega a extrair a existéncia de leis da reciprocidade (0 dom e 0 contradom) e da comuni- cacao, que so proprias da cultura em si, ¢ néo apenas da cry 08 PRIMETROS TZORICOS DA ANTROPOLOGIA cultura trobriandesa. Enquanto Os Argonautas, a obra menos teérica de Malinowski, evidencia o que Leach chama de “inflexao biolégica”, o Ensaio sobre o Dom j& expressa preocupagdes estruturais O fato de poder ser abordada de diferentes maneiras, de suscitar interpretagdes miiltiplas, ou mesmo Vocagées di- versas, é proprio de toda obra importante, e a obra de Mauss est incontestavelmente entre estas. Muitos*mestres da-antro- pologia do século XX (estou pensando particularmente em Marcel Griaule, fundador da etografia francesa, em Claude Lévi-Strauss, pai do estruturalismo, em Georges Devereux, fundador da etnopsiquiatria) 0 consideram como seu préprio mestre. Mauss ocupa na Franga um lugar bastante compa- ravel ao de Boas nos Estados Unidos, especialmente para todos os que, influenciados por ele, procuraram promoyer a especificidade ¢ a unidade das ciéncias do homem.

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