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©d Pedic: Direitos reservados desta edi¢ao: Universidade Federal do Rio Grande do Sul autores, » 2007 Capa: Alfredo Nicolaiows Revisfio: Rosangela de Mello Feditoracdo eletr6nica: Tales Gubes Apoio & pesquisa: CS DY @cnpq CRP es Feats M586 Mesticagens na arte contemporanea / organizado por Icleia Borsa Cattani. ~ Porto Alegre: liditora da UPRGS, 200° 3386p. ib 16x 2lem Inclui referéncias e bibliografia complementar, Inclui caderno de imagens. Inclui desenhos, forografias ¢ imagens 1. Arte, 2. Arte contemporinea — Mesticagem. 3. Actes visuais. 4. Poié Poiéticas visuai contemporinea. 7. Produ — Atte — Mesticagens. 5, Histéra da arce. 6, Teoria ~ Critiea de arte de arte — Pintura ~ Escultura ~ Desenho — Gravura — Objeto. 8. Videoarte — Performances — Instalages ~ Fotografia, 9. Pesquisa em mistas. LC: atte ~ Novas tecnologias — Técn sani, Ieleia Maria Borsa. I. Titulo. CDU_ 7.036 CIP-Brasil, Dados Internacio (Ana Lucia Wagner — Bibliotec ISBN 978-85-7025-968-4 is de Catalogacio na Publicacio. responsavel CRBI0/1396) MBSTICAGENS NA ARTE CONTEMPORANEA: CONCEITO F DESDOBRAMENTOS Icleia Borsa Cattani Mesticagens na arte contempordnea: esse tema pode provocat muitas questdes, quando nao estranhamento ¢ até mesmo rejeicio. Isso porque, culturalmente, 6 termo vincula-se estreitamente as mesticagens de ra- cas na esteira da colonizacao européia ¢ das grandes migracdes volunta- tias ou forcadas.' No entanto, sobretudo nos tiltimos dez anos, tedricos transpuseram-no, enquanto conceito, as 4reas da aco politica ¢ da atua- c&o cultural? A pesquisa que enseja este texto nasceu simultaneamente a esses novos estudos €, na busca da confirmagio de seus pressupostos, dialogou com os autores que desenvolveram novas categorias de andlise. Buscou-se a especificidade do conceito pata a area das artes visuais con- temporaneas. O resultado foi o surgimento de novas problematicas vin- culadas a essa dea, Este texto visa situar algumas das questées abordadas ao longo da pesquisa, a luz de um conceito proprio de mesticagem. Modernidade — contemporaneidade na arte: rupturas e vinculos Existem diferencas significativas nas obras ¢ nas praxis artisticas en- tre 0 perfodo considerado como a modernidade na arte (de meados do 'O termo, embora existente desde a Idade Média, referiu-se sucessivamente a tecidos e grios mistos, posteriormente a misturas de plantas e de animais e, finalmente, a unides socialmente desiguais, Foi apenas a partir da colonizacao das Américas com as unides entre autéctones ¢ curopeus ¢, mais tarde, de africanos com os precedentes, que se consolidou 10 sentido de mestico pata definir os frutos dessas unides; no encanto, o cariter pejozativo nasceu no apenas por razSes taciais, mas pelo status indefinido ¢ infetiorizado desses des- cendentes, em face do eurocentrismo dos colonizadores. > CE Laplantine; Nouss (1997, 2001), Nouss (2005), Gruzinski (2001) e Berthet (2002). 21 século XIX aos anos 1970) e a contemporaneidade. Algumas delas, no Catanto, podem ser relativizadas, situando-se mais entre os modelos analt. ticos do que na producio realizada propriamente dita. Outras se de tacam pela maior ou menor recorréncia de determinados fenémenos ctiativos e no pela sua auséncia em um desses periodos, O que se pode observar é que houve, sobretudo, um questionamento de paradigmas que nortearam a modernidade na arte, Sistematizados Por tedricos e artistas desde os anos 1910, esses eram a novidade, a originalidade e a unicidade. Enfatizados Pela radicalizacio da persona do artista enquanto génio criador, a eles fo- ram acrescidos a partir dos anos 1940-1950 as categorias propostas por Clement Greenberg: a planaridade ¢ o antiilusionismo da pintura, a ab- soluta pureza de expresso de cada meio artistico, a auto-reflexividade, a essencialidade ¢ a absoluta autonomia da arte moderna.* Na contempora- neidade, a partir dos anos 1970-1980, comecaram a predominar, no campo artistico, nao a Proposicio propriamente dita de nov ‘08 paradigmas, mas ‘press © questionamento dos modernos. Esse questionamento foi tealizado por te6ticos por artistas, ao constatarem as novas quest6es levantadas pela Producio contemporinea. A partir de 1975 houve o surgimento progres. sivo de linguagens e formas abandonadas na modernidade, acompanhadas de misturas de elementos que abrem a mesticagens ou a hibridagdes. Trata- se de obras miltiplas, “impuzas”, que recorreram ao passado, em ruptura rom 0s Principios de pureza, de unicidade ¢ de originalidade modernos Em oposicao 4 puteza, a producio attistica contemporanea aceita as con- taminaces provocadas pelas coexisténcias de clementos diferentes ¢ opos- {98 entre si, como, por exemplo, a coexisténcia de imagens e palavras, cujo sentido permanece no entremeio dos dois univetsos, ressignificando-se, recontaminado-se mutuamente. A unicidade dé lugar §s migracdes de ma- teriais, técnicas, suportes, imagens de uma obra a outra, gerando poéticas marcadas pela transitoriedade e pela diferenca; o tinico di lugar, assim, & coexisténcia de multiplos sentidos, Os outros paradigmas modernos também sio questionados desde en- tac ‘\ideia do artista enquanto génio criadot ~ embora seja uma concep¢io Greenberg (1974) ¢ Ferreira; Cottim (1997) jue subsiste para 0 grande ptiblico — esta sendo substituida pela constatagio dla posicio deste em uma rede, na qual outros atores (curador, colecionador) ocapam lugares igualmente importantes. A planatidade ¢ 0 antilusionismo cla pintura vémn sendo negados ou justapostos a volumetrias ¢ a figuragées ilusionistas, desde os anos 1970-1980. As misturas, os revivals, as aberturas para o real, os cruzamentos com outras areas do saber também marcam as producées artisticas dos uiltimos trinta anos. jo entanto, pode-se avancar a conclusio de que nao houve corte absoluto entre a arte moderna ¢ a contem- porinea, e de que muitos movimentos ¢ obras atuais guardam mais vinculos com a modernidade do que As vezes se gostaria de admitir, Considerando apenas 0s tiltimos cem anos, as rupturas instauradas no inicio do século XX pelo cubismo, futurismo, expressionismo e pelas primeiras abstragdes, radicalizaram 0 sentido dos paradigmas modernos, ¢ esses cortespondiam & complexidade das proprias obras que, embora contivessem miltiplas referéncias a expressdes artisticas niio-européias, abriam-se também as nov possibilidades oferecidas 4 visualidade pela fotografia, pela iluminacio a gas ¢ depois elétrica, pela velocidade dos novos meios de locomogio, pela nova tealidade da vida urbana, e ainda outros aspectos que a modernidade econdmica, social e politica trazia a vida cotidiana, especialmente nas novas e fervilhantes cidades. Sabe contemporinea surgiram ainda na modernidade. Pode-se destacar os , todavia, que muitos aspectos considerados préprios 4 arte happenings, com 6 dada ¢ 0 surtealismo; os livros de artista, dos quais os carnets de Torres-Garcia siio um exemplo; as insta lagdes, com o surtealis- mo e Duchamp, com a obra Ezant donnés... Muito antes da existéncia da videoarte, cujas primeiras manifesta- Ges surgem nos anos 1970, foram tealizadas experiéncias com a imagem em movimento em filmes como Anémic Cinéma de Duchamp, os filmes de Lé enganador do retrato como testemunho da “verdade” do individuo foram ger e muitos outros. As experiéncias fotogrificas ¢ mesmo 0 aspecto questionados desde os travestimentos de Duchamp com Rrase Séavy e de Claude Cajun, cujos auto-retratos 1 de grande ambigiiidade sexual. Os paradigmas modemos foram reforgados e, paradoxalmente, questionados pelas segundlas vanguardas dos anos 1960 ¢ 1970, As priticas artisticas que comegam ao mesmo tempo que aquelas nos anos 1970 6, sobretudo, a partir dos anos 1980, apresentam novas problemiticas que permitem consideracdes sobre a possibilidade da existéncia de uma produ- cio artistica pos-moderna, F: a pos-modernidade na arte seria caracteri- zada pelo retorno massivo aos suportes, técnicas ¢ linguagens tradicionais, minoritérios descle os anos 1960, como a pintura, o desenho, a escultura, Além do retorno a esses meios de expresso, ha uma nova caracteristica marcante: o apelo majotivitio a historia da arte, inclusive & arte moderna, para a constituicio de novos sistemas de signos, Fim muitos casos, ainda, o uso simultineo de estilemas de varios momentos hist6ricos evidencia fend- menos de apropriacio classificados como releituras, citagdes, reriraly ¢ que chegaram, em alguns casos, aos limites da copia. Por outro lado, o deseaso técnico, a utilizacao de tintas industriais consideradas inadequadas, fez com que se alargasse 0 emprego do termo “ma pintura”, embora esse ja fosse empregado para a obra de Philip Guston. Os elementos citados evidenciam as mudancas ocortidas a partir da década de 1980, em relacio & modernidade. Essas novas experimentacdes podem ser em alguns casos analisadas a partir do conceito de mesticagens. Isso ocorre quando os miiltiplos cruzamentos mencionados produzem novos sentidos que sio marcados por tensées. Esse conccito nfo abrange toda a producio artistica atual, mas apenas as obras que se constituem em suas poitticas €/ou em suas poéticas, a partir desses cruzamentos. 24 Mestigagens na arte contemporanea: conceitos e questoes No momento contemporaneo, constata-se que a arte é campo de experimentag’io no qual todos os cruzamentos entre passado ¢ presente, manualidade ¢ tecnologia, materiais, suportes ¢ formas diversos se tor- nam possiveis.! A partir dos anos 1990, as mesticagens constitutivas das obras vin- culam-se a novas modalidades de expressiio. Destacam-se as que utilizam simultaneamente linguagens miltiplas como as instalagdes, a videoarte (sobretudo, as videoinstalacées), as cartografia novas modalidades de performan vas tecnologias, as obras que dio origem a outra , os livros de artistas, as s, as confrontacdes entre “velhas” € no- obras. Hvidenciam-se, também, as obras instauradas numa linguagem tnica (como a fotogra- fia), que utilizam imagens de outros meios artisticos, como © cinema € 0 video. Esse procedimento marca igualmente a utilizagio das novas tecnologias, mescladas a fotos, a gravuras, a filmes, a pinturas, a dese- nhos, a colagens de materiais heteréclitos, Em novas tecnologias, ainda, esto as obras interativas realizadas em rede, que colocam em questio © principio da autotia tinica. ‘Todos esses procedimentos tendem a ctiat imagens “em abismo”, que nos levam a perder-nos num labirinto de sen- tidos nviltiplos. Pa: como ele é abordado neste texto. E necessario verificar, inicialmente, o se necessatio explicitar melhor 0 conceito de mestigagem, tal que a mesticagem na arte contemporanea nao é, para depois pensar 0 que a constitu, Ela difete do conceito de hibridismo, pois, segundo Sousiau (1990, p. 840), 0 termo hibrido em estética possui um sentido pejorative ¢ re- 1m textos anteriores, foram investigadas algumas modalidades, sintomaticas © exem- plates, desses cruzameatos ¢ seus novos efeitos de sentido, a partir do pressuposto de que a mesticagem, tal como considerada neste text, é um conceito que clucida Fendme- hos concretos evidencindos na poirtica dos artistas © na postica das obras. fer © a obras “que misturam influéncias, estilos ou géneros disparata~ dos € mala similados, provocando falta de unidade € desarmonia”.’ Os. hibridismos nio visam 4 manutengao das tenses e da integridade dos diversos componentes, mas sim 4 fusio dos clementos dispares que os estruturam. Conforme Laplantine ¢ Nouss (1997, p. 118), 0 hibride ¢ 0 “produto do cruzamento de dois elementos de genero ¢ de espécic dite- rentes”. Eles mencionam como exemplo que a hibridacao une natureza- cultura, politica-ciencia, peixe-gato, serpente emplumada (Quetzalcéatl), mulher-aranha, lobisomem ete. (Laplantine; Nouss, 1997, p. 89), ope- tando uma fusio com esses elementos. Gruzinski, cujos conceitos de hibtidismo e mesticagem diferem em parte dos autores precedentes, refere-se ao cinema contemporinco de Peter Greenaway, estabelecendo uma diferenca entre os filmes Prospero Books, no qual “o hibrido preser- va uma coeréncia relativa”, e The Pillow Book, que qualifica como regido pelo principio de mestigagem, em que “os componentes jamais perdem sua singularidade” (Gruzinski, 2001, p. 162 e 118). O autor estende essas diferencas, generalizando-as, a obras de arte contemporaneas. Suas defi- nicdes, nese caso, viio no mesmo sentido de Laplantine ¢ Nous, com os quais concotdamos. Podemos acrescentar que, mesmo em obras com novas techologias sobre as quais predominam anilises em que as hibri- dacées sio colocadas como predominantes, essas diferencas existem as vezes e marcam sentidos diversos. ‘A mesticagem diferencia-se também do sincretismo, porque esse éncia € 0 essencial no pensamento”; é uma “concepcio do universalismo feita de estandardiza- € uma “totalizacio que introduz © compacto, a cio, de nivelamento € de uniformizagio conduzindo a uma banalizagao da existéncia” (Laplantine; Nouss, 1997, p. 9-10}. O sineretismo elimina aalteridade pela adigio, constituindo rotalidades indiferenciadas. Torna-se mais evidente, pela oposicio, no que o conceito de mes e dos ticagem com © qual trabalhamos diferencia-se dos precedentes, com os confundido. quais € muitas v¢ “Todas ay citacdes —dirctas ou indiretas — exteaidas de obras publicadas em lingua estran geita foram traduyidas pela autora, 26 A mesticagem constitui uma rede sem centro nem margens € sem hic- Latquias, A semelhanca do conceito de tizoma, de Deleuze ¢ Guattari (1973). i « lementos 1 defini¢io opde-se a de mesticagem como agio que deve levar ai fasio de endo esta tiltima, a mais corrente na drea de artes, sobretudo, na ibordagem das obras consideradas pos-modernas (Joppolo, 2000). Deleuze ¢ Guattari analisam o rizoma como uma tede de conexdes potcncialmente infinita, sem centros nem periferias, na qual qualquer pon- to pode conectar-se a qualquer outro, a qualquer momento. Por que tizoma nas mestigagens attisticas? Porque seus sentidos sio méveis e sem hierar- «quias, citculam entre os diversos elementos constitutivos das obras, indo de suas poéticas as poiéficas que as estruturam e vice-versa, a cada vez trazendo novos significados; também, porque a forma rizomitica é inclusiva ¢ infi- nita. Ela é fluida, pode cscorregar entre os elementos, manifestando-se nos auspectos mais inesperados das obras, em suas fissuras € vi0s. O método do entre (Deleuze, 1983, 1985) adquire singular impor- tancia: entre-lugares, entre-formas, entre-espacos, entte-tempos, os sen- tidos mio se encontram em seus diversos elementos construtivos, mas claboram-se nas relagdes que esses tecem entre si, mantendo-se sempre méveis ¢ mutantes. O entre é proprio das obras realizadas sob o principio das mesticagens, das quais surge a diferenca sem lugares fixos, alteran- do sem cessar seus limites internos e externos; sio obras marcadas pelo signo da expansio e da novidade, fruto de duas ou mais origens dife- renciadas. O enire também se torna o principio pelo qual se pode iden- tificar 0 punctum em cada obra marcada pela mesticagem. Esse punctum nao transparece num detalhe transformando-o num centro de atencao, como na definigio proposta por Roland Barthes (1984, p. 69) para a fotografia. Ble se constitui, pelo contrario, no vazio entre dois pontos, substituindo, como no barroco, © principio de centralidade do circulo pela bipolaridade da clipse.’ Também, como no pensamento © na arte barrocas, 0 principio da dobra (Deleuze, 1988) faz-se presente nas obras “Conforme debate es ministrado em conjunte no Programa de Pis-Gradluagio em Artes Visuais (PPGAVT) do Instituto de Artes (IA) da UERGS, em 1998, yelecido com Filiane Chiron no Seminario de Pesquisa sobre @ Prmnciao y contemporineas, elaboradas sob o signo das mestigagens, pelas diversas camadas de sentido que acumulam ¢ a partir das quais estabelecem jogos de palimpsestos ¢ de velamentos — desvelamentos. E cipio mesmo de mestigagem, enquanto motor operatorio, 0 conceito de métis s obras ‘mesticas” resgatam para o campo da arte, ¢ pata o prin- dos gregos. Méticé forma de inteligéncia pratica, astuciosa e magica, segundo Detienne ¢ Vernant (1974), 20 que podemos acrescentar argricia, inteligén- cia, subversio ¢ iransvertalidade, sendo as duas tiltimas as mais importantes para esta andlise: subversio dos principios modernos e clissicos ¢ transversalida~ de como justaposigdes de elementos opostos, por exemplo, profundidade/ >/abstracio, € vé duas caracteristicas vinculam-se ao que definimos como crazamentos pro: superficie; volume/planaridade; figura ios outros. Essas dutores de novos sentidos. Méis vincula-se ainda ao daidalon, do qual derivoa Dédalo, encarnacio dos artesios ¢ dos artistas. O daidalm define a fascinacao exercida pela imagem que oferece uma aparéncia ambigua ¢ iluséria da sea lidade (Frontisi-Ducroux, 1975). Nao por acaso, Dédalo é 0 construtor do labitinto, forma nascida da astiicia, na qual todos se perdiam. ‘A mesticagem no é da ordem do homogéneo, mas do heterogéneo: ao invés de fundir ¢ s diversos elementos num todo tinico, ela os acolhe em permanente diversidade. Nao se trata de algo heterogéneo a alguma coisa, mas do heterogéneo em si mesmo, como qualidade intrinseca, re- gulando as relagdes dos elementos de um conjunto, Segundo Nouss, “Na mesticagem, o heterogéneo cultiva uma tensio interna que impede toda € qualquer estabilizacio entre seus Componentes” (Laplantine; Nous 2001, p. 292). Ainda de acordo com Nouss, 0 heterogéneo procede por articulacdes es ¢ insere numa continuidade, passando de um elemento ao outro, numa cadcia de contigiiidades. A mesticagem pressupée, ainda, os primérdios do incerto’ e do informe. Gruzinski tefere-se 4 necessidade de analisar 0 pensamento mestico, segundo o modelo da nuvem, que “supde que toda realidade 7 CE Gruzinski (2001, p. 60), Nouss (2005, p. 63) ¢ Chiron (1998). * Cf. Krauss; Bois (1996) ¢ Didi-Huberman (1995) 28 comporta algo de irreconhecivel e sempre contém uma dose de incerteza ede aleatério”. gundo esse autor, a nuvem é “forma desesperadamente complexa, imprecisa, mutavel, sempre em movimento. As mesticagens se encaixarn nessa ordem de realidade” (Gruzinski, 2001, p. 60). De acordo com Didi-Huberman (1995), o informe é também transgressio. Podemos afirmar que cle relaciona, no caso da arte, a essa forma incerta. Incerto-informe-transgressio: miltiplos cruzamentos produtores de novos signos que mantém em seu interior tensdes irresolvidas, sem- pte em vir a ser, marcas de pulsdes internas e de aberturas ao devir, que constituem as mestigagens na arte contemporanca. ‘Todos esses levantamentos de conceitos de diferentes areas das ciéne: s humanas (alguns dos quais relacionados diretamente as questées das mesti- cagens e outros relativamente desvinculados das mesmas, mas aproximados para os fins desta andlise), ¢ de alguns da propria érea de artes, permitem-nos tia um dorpus para melhor definir 6 que compde o conccito de mestigagem na arte contemporanea. Nesse sentido, com efeito, cle adquire especificida des ditadas pelas proprias obras ¢ pelos processos que as constituem. Desdobramentos do conceito Sintetizamos a seguir problematicas internas ao conceito de mes- ticagem nas ptoducdes artisticas atuais ¢ em exemplos da modetnidade, que constituem as poiéticas dos artistas ou as poéticas de obras que Thes dao consisténcia.’ — Deslocamento de sentidos: cruzamentos entre a palavta falada e a imagem, entre o texto € a imagem, abrem novos caminhos 4 arte con- temporinea, O video eo livro de artista, as vezes a performance, sio em ge- ral exemplares dessas quest6es, embora elas também se fagam presentes Seriio priorizadas problematicas relativas as obras analisadas nesta publicagao, embora sem refeti-las explicitamente. Outros desdobramentos do conceito ja foram objeto de andlise da autora em publicagoes anteriores. 29 sempre que 6 discurso, ou mesmo palavras soltas, invadem o campo da indo obra, Sempre que nos deparamos com alguma forma de texto, exis ou nao um principio de narratividade, outtas quesides colocam-se a pro- ducio artistic: Pensamento verbal ¢ pensamento visual interagem, res- significando-se matuamente em diilogos abertos ¢ inclusivos, acurmulan- do camadas de significados. A narrativa, quando existe, torna a pres da imagem ainda mais comple enga entre a ilustracao do texto pela imagem (¢ vice-versa) ¢ a antiilustracio micua, ocorrem aproximagGes, sobrepo- sigdes, descolamentos ¢ deslizamentos de sentidos, transversalidades. — Apropriagdes ¢ justaposicdes: muitas obras atuais apresentam moda- lidades diversas de apropriagdes de elementos do cotidiano ou de fragmentos de outtas obras. Esses se justapdem, de modo geral, ctiando sobreposigdes de sentido que ocorrem, nao nos elementos em si, mas entre os mesmos. As obras abrem-se, assim, as infinitas possibilidades do etre. Muitas vezes, os sentidos mesticos escorregam nos entremeios dos objetos e formas, sempre méveis e mutaveis, nunca fixos, jamais definitivos. Algumas dessas obras, ain- da, a0 justapor componentes de diferentes origens, ressignificam as relagdes de espago-tempo: clas 0s atualizam, comprimindo-os mum presente tinico, © da obra. Instalacdes € videoinstalacées, fotomontagens, fotojustaposigdes, narrativas nas quais se criam disjuncdes entre imagens (fixas ou méveis) ou entre imagens € texto — todas essas estratégias criativas, © as obras que delas decottem, trazem freqiientemente em seu bojo essas quest6es. _ Desdobramentos e ambigiiidades: quando a obra coloca 0 corpo em questo, qualquer corpo, cla nos interpela de modo especifico. Trata- se de jogos especulares, nos quais nos vemos no corpo figurado ou suge rido; corpos que se transformam, que se desdobram em nossos corpos. ‘Trata-se, ainda, de ambigitidades de sentidos, no vai e vem entre o Eu e 6 outro, que estabelecem muitiplas e vatiiveis relacdes. Quando 0 corpo animal entra em cena, substituindo o humano, levantam-se questiona- mentos sobre 0 sujcito: até que ponto nos assemelhamos a corpos que queremos acreditar irracionais, até que ponto nos diferenciamos? Outras sio as questaes provocadas pelo corpo materializado pelo sangue ¢ pelas vestes, ou pelo sangue na vestes em obras de arte: corpo contet- 30 Jo/continente, presente/ausente, vivo/morto. Faz-se presente uma ten: io permanente: entre vida e morte, entre animal e humano. Essa tensio nao & no entanto, negacio da possibilidade de convivéncia. Vida e mor- (, bumano e animal: o si stema inclusivo que configura a mesticagem. — Proliferacdes ¢ transversalidades: obras que dio origem a outras obras, que proliferam, que se abrem a outros modos de expressao, a novas linguagens, a diferentes suportes e técnicas. Convivem principios de cons- tru clio ¢ destruicéo, principios seriais marcados pela diferenca intrinseca obras. Criam-se transversalidade: em que 0 pensamento visual avanca atravessando diferentes camadas de sentidos: gravuras que se transformam em obras com novas tecnologia, pinturas que acumulam sobreposicSes € incis6es e que se transformam em novas obras, sempre diferentes. Migragées; assim como muitos dos artistas contemporineos mi- gram, sofrendo com isso mutagées em si proptios ¢ em suas produgdes, assim também as formas, as técnicas e os materiais migram de uma obra 4 outra, criando uma poética da transitoriedade ¢ da diferenga. Insete-se de modo transversal nessa problemética, atravessando-a, a ctiagio de car- tografias, imaginatias ou ressignificadas, que marcam a poética das migra- gées, mas, muitas vezes, também, evidenciam a critica a hierarquias e a centtalidades geopoliticas. As cartografias criam configutacées fisicas, mas jogam simultaneamente com 0 conceito, ao inventar mapas de lugares ficti- cios, ao desdobra-los, inverté-los, retitar-thes os centros ou questionar-lhes as fronteiras, Na América Latina, os mapas adquirem especial significado: continente de imigracio desde a descoberta, a memoria dos exilios ¢ das violéncias fazem parte de nosso patriménio inconsciente, com sua carga de dores, mas também de encontros ¢ de renascimentos. A essas questdes, somam+-se as elaboracées criticas de momentos de opressio, quando as hicrarquias, as centralidades, as fronteiras, por vezes mesmo a idéia de na- cio, foram subvertidas em obras que reconfiguravam metaforicamente o regime vigente e suas estruturas. Desde a colonizagio, as formas migratam de seus contextos de origem, mesclando-se, justapondo-se, gerando novas formas, simultaneamente iguais e diversas, incertas, trazendo latentes ques- tdes de novas identidades culturais e artisticas, mesticas. at Poiética/ poética: os processos fazem parte da poiética que cria as obras, culminando em sua instauragio. Mas, em certas circunstincias, 08 proprios processos constituem a poética das obras. Anulam-se nesse caso as diferencas de tempo e de circunstancia: ambas as instancias pas- sam a coexistir, remetendo continuamente uma A outra, estabelecendo uma pulsagio permanente. Eo que ocorre em certas performances pre senciais, nas quais a etapa anterior A obra € constituida apenas pelo pla nejamente 0 ato que as concretiza é fazer ¢ obra simultaneamente, sem separacées nem cortes. O material que permanece apés sua tealizacio possui um estatuto ambiguo: simples documentagio, obra substitutiva? Certas experiéncias de interatividade na web também colocam essa ques. q to, acrescentando-Ihe um elemento complicador: em obras coleti a propria questio autoral tio cara 4 arte ocidental se perde. O que resta da experiéncia, enti, pode ser considerado como a obra? — U-fopos: a utopia também se relaciona ao conceito de mesti¢: gens ha arte no momento contemporineo. De modo diverso da modernidade, em que a utopia esteve mais proxima das formas artisticas que buscavam a pureza das formas ¢ dos matetiais, na contemporaneidade, ela se encon tra proxima da coexisténcia dos opostos. Ela ‘ critica e poética, Critica, porque se elabora na contracorrente da indiferenciacio globalizada, pro- pondo, em oposi¢io a essa, a existéncia e a aceitagio das diferencas so- cioculturais e artisticas dentro de uma teia rizomatica, sem centralidade, sem periferias, sem hierarquias, sem alto nem baixo, sem norte nem sul, mas, também, sem fusGes nem compromissos. Uma teia na qual os cru- zamentos petmitem a existéncia das alteridades e 0 seu enriquecimento miituo, com a manutencio, todavia, das diferengas. Poética, porque o lugar da utopia nao é apenas 0 politico nem o social, mas, também, o da criag 9. Criagio que enseja um sentido sempre inconcluso, aberto cons- tantemente a um devir que mao teme as tensdes nascidas dos encontros de diferentes, que gera em si mesmo o lugar das idéias sem lugar. As obras mesticas tornam-se 0 /ocus de acolhida permanente, sem- pre o mesmo e sempre diverso, das utopias das quais a arte é portadora, Aberturas Assim como os processos artisticos, suas instauragdes ¢ as obras produzidas sob 0 signo de cruzamentos que produzem tensdes cons titutivas, 0 corpus tedrico estruturado para a anilise das mesticagens na arte contemporanea também se apresenta tenso. Es a tensio provém dos cruzamentos de conceitos ¢ termos, de questées formais e de praticas ar- tisticas que o estruturam no seu interior. Ela provém, também, do fato de que nio se trata de um conceito estabelecido definitivamente: cle é mével © mutante, nece: satiamente inclusivo, talvez incerto e informe, marcado. pelas transversalidades possiveis que o fazem avangar de modos obliquos € pelos sentidos que escorregam pelos vios ¢ frestas ou que se matetiali zam entre dois ou mais elementos. Ele é, sobretudo, aberto ao devir que acompanha a arte existente ¢ aquela que se elabora sob os nossos olhos, nas contradicées, nas lutas € nos enconttos do presente. Referéncias BARTHES, Roland. A cdmara elar Nova Fronteira, 1984. nota sobre a fotografia, Rio de Janeiro: BERTHET, Dominique (Org). Vary une Esthétique du Métissage? Pavis: L'Harmattan, 2002. CHIRON, Eliane (Org). L’lnertain dans V'art. Paris: Publications de la Sorbonne, 1998. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mite Piateanx. Paris: Editions de Minuit, 1973 DELEUZE, Gilles. Cinéma 1. L’Tmage-Monvement. Paris: Editions de Minuit, 1983. « Cinérva 2. LTmage-Temps. 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