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ENFRENTAMENTO DE SI E PROPRIEDADE:

UMA LEITURA HEIDEGGERIANA DE AUTO-RETRATO, DE CECÍLIA MEIRELES1

Valéria Moura Venturella2

A poetiza americana Mary Oliver afirma que “os poemas começam na experiência,
mas não são, de fato, experiência, ou mesmo necessariamente um relato exato de uma
experiência. Eles são construções criativas, e não existem para nos contar sobre o poeta ou
sobre as experiências reais do poeta. Eles existem para ser poemas” (OLIVER, 1994, p.
103). Assim, ao lermos poesia, mesmo quando escrita em primeira pessoa, não podemos
imediatamente assumir que o texto revela experiências ou concepções pessoais do poeta. A
pessoa que fala no poema pode ser um personagem literário criado pelo autor, um sujeito
ficcional através de quem ele oculta ou desvela parcial ou totalmente sua identidade.
Especificamente na poesia moderna, segundo Cara (1986), “o sujeito explicitado como 'eu'
não se refere a uma pessoa particular. A poesia não alimenta nenhuma ilusão de ser um
armazém de emoções reais” (p. 47).
Segundo Montagner (2003), o sujeito lírico não é necessariamente um emissor real,
mas um dos constituintes do jogo literário, cuja realidade se concretiza no enunciado do
poema e cujo lirismo pode residir exatamente em sua existência fictícia. O sujeito lírico pode
ser, desse modo, uma persona criada pelo autor. Persona – palavra latina que, no original
grego, prosopon, significa “máscara” – é a voz que fala em um texto ficcional, um
personagem criado pelo autor que age como “autor implícito”. Nessa perspectiva, na leitura
de um poema, não devemos buscar uma identidade entre o sujeito lírico e o autor. O
importante é que a persona pareça autêntica para quem realiza a leitura.
Segundo os princípios da estética da recepção (ZILBERMAN, 2004), o que move o
leitor não é a correspondência entre a personalidade real do autor e a persona. A eficácia
estética do texto reside na reciprocidade entre a emoção do autor como ponto de partida e a
do leitor como ponto de chegada, o que depende da aparência de sinceridade e
autenticidade que os meios verbais do texto emprestam à obra, como ilustra o poema Isto,
de Fernando Pessoa (2001):

Dizem que finjo ou minto


Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
(...)

1
Texto produzido como pré-requisito para a obtenção do grau de Doutora em Teoria da Literatura
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul em março de 2010.
2
Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Sentir? Sinta quem lê!

Para Cara (1986), sujeito lírico é o “elemento do texto que amarra todas as escolhas
da linguagem” (p. 7). Segundo a autora, o poeta moderno realiza, através de sua linguagem,
recortes e traduções possíveis do mundo, atribuindo-lhe sentidos que deverão ser
reconhecidos e reinterpretados pelo leitor. O sujeito do texto se revela no e pelo texto, e é
naquele âmbito que ele encontra o leitor, que participa, no ato da leitura, das operações
realizadas pelo sujeito lírico, participação que é indispensável para que os significados se
materializem. Nesse sentido, o leitor pode ser considerado, ele também, um “autor” do texto,
uma vez que não há leitura que não seja, ao mesmo tempo, criação de sentidos.
Embora consideremos que, na perspectiva colocada, o ato da leitura ressignifique o
texto, é importante lembrarmos que qualquer tentativa, por parte de um leitor, de interpretar
uma obra literária jamais poderá ser uma palavra final. Segundo Norma Goldstein (1994), “o
texto literário talvez seja aquele que mais se aproxima do sentido etimológico da palavra
'texto': entrelaçamento, tecido” (p. 6). Como uma trama de palavras, cada texto sugere
múltiplos sentidos, abrindo, assim, uma infinidade de possibilidades de interpretação. E é
com base nessa premissa – a de que cada texto, embora único, se abre a diferentes leituras
– que o presente trabalho se constrói.
Este ensaio realiza uma leitura interpretativa do poema Auto-Retrato de Cecília
Meireles, buscando identificar e descrever o sujeito lírico – ou a persona – que se revela no
texto à luz da concepção de Dasein conforme colocada por Martin Heidegger em Ser e
Tempo. Esta leitura não pretende ser nem estritamente literária nem absolutamente
filosófica, mas procura transitar na fértil fronteira existente entre o que o poema revela,
através de seus artifícios literários, e o que pode dele ser depreendido através de uma
reflexão investigativa com base nos fundamentos filosóficos lançados em Ser e Tempo.
Martin Heidegger é considerado um dos filósofos mais produtivos, originais e
influentes do século XX (SAFRANSKI, 2000). Seu pensamento e sua obra inspiraram
pensadores como Merleau-Ponty, Sartre, Ricoeur, Marcuse e Derrida e contribuíram em
campos como a fenomenologia, o existencialismo, a hermenêutica, a teoria política, a
psicologia, a teologia e os estudos sobre a pós-modernidade.
Sua ligação ambígua com o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães,
o Partido Nazista liderado por Adolf Hitler, nos anos que precederam a Segunda Grande
Guerra, o torna também uma das personalidades mais controvertidas do século. Visto com
desconfiança tanto por defensores quanto por opositores do nazismo, Heidegger foi, em
diversas ocasiões, impedido de publicar e de lecionar. Até hoje, seu envolvimento com o
regime de Hitler é tema de acaloradas discussões.
A preocupação principal de Heidegger foi a ontologia, ou o estudo do sentido do ser.
Sua obra fundamental, o tratado Ser e Tempo, publicado pela primeira vez em 1927, buscou
compreender a essência do modo humano de ser através da análise fenomenológica de sua
existência, em relação a seu caráter histórico e temporal. Segundo o autor, são entes tudo o
que há, tudo que entendemos, tudo de que falamos. Mas, em qual desses entes deve ser
procurado o sentido do ser? De qual desses entes, dentre os tantos que há, deve partir a
pergunta pelo sentido do ser? A resposta para essas perguntas é o Dasein3, o ser-aí, o ser-
no-mundo, o ente aberto ao ser, ao tempo, às possibilidades e à morte.
O esforço do autor para apreender a complexidade do Dasein, e para estabelecer
diferenças entre sua abordagem e a da filosofia tradicional, o levou a criar uma terminologia
peculiar e, para muitos de seus críticos, desnecessariamente hermética. Sua nomenclatura
repleta de palavras unidas por hífens designa traços essenciais do Dasein que estão, em
sua concepção, em uma relação indissolúvel (SAFRANSKI, 2000). Assim, por exemplo, 'ser-
no-mundo' indica que o Dasein não se defronta com o mundo em um determinado momento,
mas já se encontra sempre ligado a ele em uma relação que constitui sua existência; 'ser-
com-outros' assinala que o Dasein está sempre em situações comuns com os outros com
quem compartilha o mundo; e 'ser-adiante-de-si' aponta para a noção de que o Dasein olha
para o futuro constantemente, e providencia, ou seja, toma medidas que permitem que ele
lide com a perspectiva do futuro.
Heidegger inicia Ser e Tempo afirmando a necessidade da retomada de uma
tematização do ser, um conceito considerado universal e auto-evidente – e, por isso, vazio
de sentido – que “resiste a toda tentativa de definição. (...) Embora nosso tempo se arrogue
o progresso de afirmar novamente a 'metafísica', a questão aqui evocada [a questão do ser]
caiu no esquecimento. (...) E não é só isso. No solo da arrancada grega para interpretar o
ser, formou-se um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido do
ser como lhe sanciona a falta” (HEIDEGGER, 2002a, p. 27). Com essa afirmação, o
pensador denuncia um duplo esquecimento do ser, tanto por parte das ciências como da
filosofia tradicional: esquecemos o que é ser, e também esquecemos que o esquecemos,
não considerando importante, assim, definirmos ou questionarmos nossas concepções de
ser, ou buscarmos seu sentido.
Heidegger acredita que a vida humana nos escapa quando procuramos abordá-la
através de uma perspectiva teórica e objetificadora, uma vez que essa abordagem faz
desaparecer as relações de mundo e de vida. Para o autor, o mundo não é algo que existe
fora de nós, algo do qual podemos sair para, de uma posição externa, contemplar. Estamos
imersos em uma realidade que jamais poderemos objetivar totalmente, e existimos como
parte dela. O esforço principal da obra heideggeriana, então, é o de retomar a indagação
pelo ser e pelo sentido do ser, restaurando a compreensão do sentido dessa pergunta em
uma perspectiva que integra os entes ao mundo a que pertencem.
3
A tradução brasileira de Ser e Tempo (HEIDEGGER, 2002a, 2002b) utiliza o neologismo “pre-sença”
como tradução para Dasein, que também pode ser traduzido por ser-aí. Neste trabalho optei por
preservar o uso do termo original.
O fato de o problema ser colocado na forma de uma questão é muito significativo.
“Esse ente, que cada um de nós somos e que, entre outras coisas, possui em seu ser a
possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo Dasein” (HEIDEGGER, 2002a,
p. 33). O Dasein é definido, então, por sua relação com a questão sobre o ser. Ele é aquele
que se interroga sobre seu ser e sobre o sentido de seu ser, tornando transparente o ente
que pergunta. O Dasein é também aquele que, sendo, tematiza e compreende seu ser. “A
compreensão do ser é em si mesma uma determinação do Dasein” (op. cit., 38).
A introdução de Ser e Tempo aponta também para onde a discussão converge: o
“tempo como horizonte transcendental para a questão do ser” (op. cit., p. 71), ou seja, o
tempo como dimensão essencial para qualquer tentativa de conceber o ser. Segundo o
autor, nós nos movemos sempre em uma compreensão do ser. Uma vez que, sendo, o
Dasein compreende seu ser, isso implica também o entendimento de que este 'sendo' é
finito. Ao questionar o sentido de seu ser, o Dasein compreende tanto seu estar-aí quanto a
possibilidade de, a qualquer momento, não estar mais, ou não ser mais. Somos
temporalmente, transitivamente.
Para Heidegger, o tempo não é um meio no qual nos movemos, ou uma dimensão
que podemos medir, mas é algo de que somos feitos, é a estrutura mesma da existência
humana. A temporalidade é o movimento do Dasein em um mundo repleto de
possibilidades, é a experiência sempre fugaz do presente, com referências simultâneas ao
passado e ao futuro, cujos aspectos fundamentais são o ser-possível, e o ser-para-o-fim. O
ser-possível faz parte do Dasein que, enquanto viver, não estará concluído, inteiro e
encerrado, mas sempre aberto para o devir, repleto de possibilidades. Já o ser-para-o-fim
indica a transitoriedade. “Morrer, por sua vez, exprime o modo de ser em que o Dasein é
para a sua morte” (HEIDEGGER, 2002b, p. 28). A morte não é, assim, algo que existe fora
de nós ou que está à nossa frente como o momento final, mas faz parte de nossa vida, está
na própria essência de nosso ser, como uma possibilidade sempre presente.
Segundo Heidegger, o Dasein é primeiro o 'a gente'4, uma parte da constituição do
Dasein que é ao mesmo tempo todos e ninguém, uma modalidade impessoal e mediana das
tantas possibilidades de concretização do Dasein. “[C]ada um é como o outro. (...) O 'a
gente', que não é nada determinado mas que todos são, embora não como soma, prescreve
o modo de ser da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2002a, p. 179).
Ao definir o 'a gente', Heidegger denuncia o desencargo e a falta de responsabilidade
por nossas idéias e ações que domina nossas relações cotidianas conosco mesmos, com o
mundo e com os outros. “Todo mundo é o outro e ninguém é si próprio”, diz ele (op. cit., p.
181). E geralmente permanecemos assim. Estamos sempre ocupados e com pressa, não

4
No original, das Man. Embora a tradução brasileira de Ser e Tempo (HEIDEGGER, 2002a, 2002b)
utilize a palavra 'impessoal' para 'das Man', neste trabalho optei, seguindo a tradução de Lya Luft do
texto de de Safranski (2000), pela expressão “a gente” por considerá-la mais adequada à concepção
de generalidade que o termo original guarda.
pausamos para refletir sobre o mundo-em-torno, sobre mundo-com ou sobre o mundo-do-si-
mesmo (SAFRANSKI, 2000). No entanto, quando o Dasein descobre por si mesmo o mundo
e o aproxima de si, quando ele descobre seu ser-próprio, ele se afasta dos encobrimentos e
das obscuridades em que vive cotidianamente. “O ser do que é próprio não repousa num
estado excepcional do sujeito que se separou do 'a gente'. Ele é uma modificação
existenciária do ‘a gente’ como existencial constitutivo” (HEIDEGGER, 2002a, p. 183).
Um dos momentos em que as dissimulações se quebram é o medo. Não o medo da
morte, mas o medo da vida, de uma vida que se nos apresenta em toda sua contingência.
“Não se constata primeiro um mal futuro (malum futurum) para a seguir temer. (...) Apenas o
ente em que, sendo, está em jogo seu próprio ser, pode temer. O temer abre esse ente no
conjunto de seus perigos, no abandono a si mesmo” (op. cit., p. 196). O tempo, como
horizonte aberto à nossa frente, nos traz incerteza e pavor, e nossa única grande certeza é
a morte.
Com o medo da vida e a certeza da morte, vem a angústia, uma das disposições
inerentes ao Dasein. “[A] angústia se angustia com o mundo como tal. (...) A angústia se
angustia com o próprio ser-no-mundo. (op. cit., p. 250-251)”. Em meio a essa angústia, o
Dasein humano descobre que não tem outro apoio que não esse aí (da) que é seu, que está
entregue a si mesmo, desamparado, só, desorientado. Mas, se tem coragem para enfrentar
essa angústia, ele se passa a se perguntar pelo sentido do ser, pelo sentido do seu ser. A
angústia é indeterminada e ilimitada. Na angústia, experimentamos o estranhamento do
mundo e de nossa liberdade e, ao passarmos por ela, nos tornamos livres para escolher e
compreender nosso ser. Nessa busca, frente à inexorabilidade do tempo e à iminência da
morte, o Dasein “sempre compreende a si mesmo a partir de sua existência, de uma
possibilidade de ser ou não ser ele mesmo” (op. cit., p. 39).
É a angústia, assim, que leva o Dasein a refletir sobre seu poder-ser-no-mundo
(HEIDEGGER, 2002b), projetando-o para suas possibilidades. Descobrimos que somos
aquilo que nos tornamos. Essa liberdade de assumir o que podemos ser, tomar decisões e
realizar escolhas, o ser-livre-para (op. cit.), se configura como “a propriedade de seu ser
enquanto possibilidade de ser aquilo que já sempre é” (op. cit., p. 252). Para Heidegger,
portanto, o modo próprio de existência só é atingido após termos nos deparado com o vazio
do tempo e a certeza da morte, após termos enfrentado nossa angústia, projetado nossas
possibilidades e assumido nossas opções. A propriedade heideggeriana não trata, assim, do
agir bom e correto, mas do assumir as possibilidades abertas no instante presente, que
deve ser vivido em nossos próprios termos.
O Dasein que não decide por si e não vive a partir de seu poder-ser próprio é vivido
pelo 'a gente'. A impropriedade é, desse modo, uma determinação essencial do Dasein,
assim como a possibilidade da propriedade. “[D]e início, e na maior parte das vezes, o
Dasein sucumbe ao 'a gente' e se deixa dominar” (HEIDEGGER, 2002a, p. 226). Heidegger
descreve as táticas culturais de fuga ou de alívio da angústia – o distanciamento em relação
aos outros, a medianidade dos valores e atitudes e o nivelamento das possibilidades do ser
– como uma necessidade elementar que possibilita tanto a vida em sociedade quanto a
sobrevivência. Nesse sentido, a ontologia fundamental de Heidegger pode ser
compreendida como uma tentativa de cortar os caminhos de fuga do Dasein (SAFRANSKI,
2000).
Esses caminhos de fuga decorrem da necessidade que temos por segurança e
estabilidade. “Gostaríamos de repousar no tempo como as coisas. Os consoladores
pensamentos de imortalidade oferecem a força do espaço duradouro contra o tempo
passageiro” (op. cit., p. 206). Procurar o alívio ou assumir o ônus de ser livre para optar e
decidir sem outro suporte que não si mesmo, então, estabelece a impropriedade ou a
propriedade do ser. A inclinação para o fácil priva o ser humano de seu poder-ser todo mais
próprio. A propriedade, no entanto, não abre novos territórios para o Dasein. O mundo, para
ele, permanece como antes, mas é sua postura frente ao tempo, à vida e à morte que muda.
A busca de uma vida própria, assim, é uma responsabilidade e um esforço de cada
um de nós. Cada Dasein tem em suas mãos o direito e o dever de conduzir sua existência, e
de viver segundo suas potencialidades mais próprias. Mais do que possibilidades, o
escolher e o decidir por nós mesmos, assim, são determinações de uma vida que vale à
pena ser vivida. “A vida só é possível reinventada”, escreveu Cecília Meireles (1942),
traduzindo poeticamente a necessidade vital de assumirmos, com criatividade, a regência de
nossos destinos.
Cecília nasceu no Rio de Janeiro em 7 de novembro de 1901. Seu pai, Carlos
Alberto de Carvalho Meireles, havia falecido três meses antes, e sua mãe, Matilde
Benevides, morreu quando Cecília tinha 3 anos. Cecília não chegou a conhecer seus três
irmãos ou seus avós paternos, e foi educada por sua avó materna, Jacinta Garcia
Benevides. “Todos morreram antes de meu nascimento”, ponderava Cecília, avaliando o
peso desse evento em sua vida e seu trabalho. “Minha infância de menina sozinha deu-me
duas coisas (...): silêncio e solidão. Preciso deles para escrever” (VIANNA, 2005).
Em 1922, Cecília se casou com o artista plástico português Fernando Correia Dias,
que cometeu suicídio em 1935, após longos períodos de sofrimento causado pela
depressão, deixando a esposa sem parentes vivos e com três filhas para educar. Essas
perdas fizeram com que, desde cedo, a poetiza vivenciasse a morte e a efemeridade, e
essas experiências marcaram profundamente sua obra. “A noção ou sentimento da
transitoriedade de tudo é o fundamento da minha personalidade” declarou, certa vez
(CULTURA FM, s/d).
Por outro lado, após a morte do marido, premida pelas dificuldades financeiras,
Cecília intensificou sua rotina de trabalho, o que fez com que produzisse, ao longo dos anos,
uma vasta obra. Ela foi poetisa, educadora, jornalista, tradutora, dramaturga, folclorista,
pesquisadora e conferencista. Também foi viajante, esposa e mãe. Escritora e estudiosa
apaixonada, Cecília herdou de sua mãe, a primeira professora primária a se formar no
Brasil, o gosto pelos livros e pelos estudos. “Eu gostava de estudar nos seus livros. Velhos
livros de família que me seduziram muito” (VIANNA, 2005). Seu talento, reconhecido por
críticos e leitores desde sua primeira publicação, o livro de poesias Espectros, de 1919, lhe
rendeu prêmios e títulos importantes, como o Prêmio Poesia da Academia Brasileira de
Letras, o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Deli, Índia, e o prêmio post
mortem Machado de Assis, também da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua
obra.
Eliane Zagury descreve o trabalho de Cecília como “a mais pura tradição lírica
voltada sobre si mesma, autotematizada” (ZAGURY, 1973, p. 59). A estudiosa do trabalho
de Cecília considera que seu estilo se firmou no livro Viagem, de 1938, em que a autora
apresenta, através de versos melódicos, os elementos fundadores de sua poesia: fantasia,
solidão, mar, melancolia, morte e canção (op. cit.). Esse trabalho lhe rendeu o Prêmio
Poesia da Academia Brasileira de Letras. Mas foi com o Romanceiro da Inconfidência,
publicado em 1953, resultado de dez anos de intensa investigação sobre a história daquela
tentativa frustrada de libertação do Brasil da metrópole portuguesa, que Cecília obteve o
reconhecimento definitivo de sua obra (op. cit.).
Cecília Meireles morreu em 9 de novembro de 1964, no Rio de Janeiro, deixando
grande quantidade de trabalhos inéditos que incluíam poemas, traduções, peças de teatro,
artigos para jornais e revistas, e crônicas de viagem, além de sua correspondência. Seu
trabalho permanece, até hoje, um desafio para a crítica nacional. À margem do modernismo,
ela partiu da inspiração pós-simbolista, das técnicas do classicismo e do espírito lírico de
herança portuguesa para construir uma obra atemporal de tom muito pessoal, um canto em
busca “do eterno no transitório, do transcendente no contingente, do milênio no minuto”
(ARRIGUCCI JR., apud SOUZA, 2005, p. 5).
O poema intitulado Auto-Retrato foi publicado pela primeira vez em 1945 no livro Mar
Absoluto. Nesse poema, a persona, uma mulher já madura e experiente, se defronta
consigo mesma e reflete sobre suas vivências e chances ainda possíveis, num movimento
em relação ao passado e ao futuro, numa referência tanto retrospectiva quanto antecipativa
(RICOEUR, 1978) que caracteriza o questionamento que o Dasein realiza sobre o sentido
de seu ser.
No poema, os versos de quatro sílabas poéticas produzem um ritmo complexo, em
um jogo de alternância entre sílabas acentuadas e não-acentuadas. Essa tensão rítmica
(GOLDSTEIN, 1994) reflete a ansiedade e a angústia desse momento de confronto. A rígida
regularidade do ritmo – uma cadência quase coagida, quase artificial – sugere um esforço
de autocontenção que é explicitado na estrofe V, em que a persona descreve sua diligência
silenciosa perante a vida.
A repetição quase obsessiva do som fechado da vogal 'o' e a ausência de sons de
vogais abertas conferem ao poema um tom severo e sombrio. As rimas toantes – o som
constante e também fechado da vogal 'e' – contribuem para essa sonoridade e auxiliam na
composição do quadro introspectivo em que a mulher se questiona e se descobre.
Embora a palavra 'eu' não esteja presente no texto, os verbos de estado conjugados
na primeira pessoa marcam o tom intimista de Auto-Retrato, que é a narrativa do
autoquestionamento, da busca pessoal de autodescoberta realizada pelo sujeito lírico. A
predominância do presente do indicativo sugere, ao mesmo tempo, permanência e
instantaneidade, e os substantivos abstratos abundantes no texto indicam a imaterialidade
desse fenômeno que ocorre apenas no interior da personagem.
O poema mescla estrofes com diferentes números de versos, sugerindo a errância
do pensamento. No interior de cada estrofe, no entanto, a rígida regularidade da métrica e
das rimas toantes contrasta fortemente com o movimento fluente gerado pelo
encadeamento5 dos versos, gerando uma ambigüidade que culmina nas estrofes VIII e X,
em que a persona descreve, respectivamente, a convivência de sua multiplicidade e de sua
unidade, e a presença de diferentes disposições no interior de um mesmo ser, de um
mesmo “prisioneiro” do tempo, da vida e da morte.
Na primeira estrofe, a persona, ao parar para refletir sobre si mesma, percebe suas
muitas versões e questiona quem realmente é.

Se me contemplo,
tantas me vejo,
que não entendo
quem sou, no tempo
do pensamento.

Esse é um momento, desencadeado por uma perturbação interna ou externa, de


estranhamento e de angústia, em que o contexto vivido cotidianamente subitamente se
desfaz. “[N]a angústia, o Dasein se coloca diante de si mesmo a partir de seu próprio ser”
(HEIDEGGER, 2002a, p. 247) e a irrupção do Dasein para o ser-próprio ocorre como um
choque. Esse é o instante em que deixamos de ser 'a gente' para tematizar nosso ser. “O
Dasein se singulariza, mas como ser-no-mundo” (op. cit., p. 253).
Na estrofe II, a personagem recorda suas relações, suas ligações e os episódios
marcantes de sua vida, e percebe a importância deles em sua história.

Vou desprendendo
elos que tenho,
alças, enredos...

5
Segundo Norma Goldstein, o encadeamento, ou “enjambement” é uma construção sintática
complexa em que os versos de um poema se conectam para compor uma unidade de sentido. Assim,
através da pontuação, o encadeamento gera um conjunto de versos que, embora tenham sentido
incompleto quando isolados, assumem, quando juntos, um sentido inteiro (GOLDSTEIN, 1994).
E é tudo imenso...

A característica de ser-em do Dasein, segundo Heidegger (op. cit.), marca a não-


separação entre o ente e o mundo ao seu redor. Somos ser-em não porque estamos em um
determinado lugar, mas porque nos relacionamos estreitamente com o mundo, e porque
lidamos com a realidade – concebida aqui como o mundo-em-torno e também com o
mundo-do-si-mesmo e o mundo-com (a sociedade) (SAFRANSKI, 2000) – estabelecendo
com ela uma ligação indissolúvel. O lidar-com é uma de nossas determinações mais
fundamentais, e esse lidar-com significa atuar, participar ativamente da realidade,
moldando-a e construindo nossa história nessa relação.
A terceira estrofe descreve o encontro do sujeito lírico com sua temporalidade, com o
aspecto do ter-sido do Dasein.

Formas, desenho
que tive, e esqueço!
Falas, desejo
e movimento

A mulher afirma esquecer as configurações e os contornos, ou seja, as


características, que já teve, e também suas falas, seus quereres e os gestos que já realizou.
Segundo Heidegger, o ter-sido é um aspecto sempre presente no Dasein, constituinte de
seu ser tanto quanto o ser-possível. Somos, ao mesmo tempo, o que já fomos e o que ainda
podemos vir a ser, o que caracteriza nosso permanente movimento. Nossas experiências
prévias não ficam perdidas em algum tempo passado, mas fazem parte do que somos e do
que ainda podemos nos tornar.
Ainda na estrofe III, a personagem se pergunta, a respeito do mistério aterrorizante e
incerto para o qual ela se dirige corajosamente.

– a que tremendo,
vago segredo
ides, sem medo?!

Esse momento marca o enfrentamento da morte como possibilidade sempre


presente, e define a emergência do ser-para-o-fim: o ser que concebe sua própria finitude
que vê a morte não adiante de si, mas como parte de si. Para Heidegger, o ser humano,
diferentemente dos outros entes, tem uma relação com seu próprio ser, relação essa que
ele chama existência, e essa existência tem um sentido transitório, impermanente
(SAFRANSKI, 2000). Conceber a morte como um elemento integrante de nosso ser nos
permite a abertura para assumir nossas próprias possibilidades.
Na estrofe IV a persona reconhece não ter poder sobre os entes que a rodeiam e
com que vive.
Sombras conheço:
não lhes ordeno.

Esse reconhecimento marca um dos pontos mais fecundos da concepção


heideggeriana de Dasein: O Dasein, em sua propriedade, vê os outros entes como Dasein
também. Podemos entrever uma dimensão ética na ontologia heideggeriana através do
reconhecimento da condição de ser-no-mundo dos entes à nossa volta: “o mundo do Dasein
libera entes que (...) são e estão ‘no’ mundo e que vêm ao encontro segundo ser-no mundo.
Não são algo simplesmente dado nem algo à mão. (...) São também Dasein” (HEIDEGGER,
2002a, p. 169). Em nossa vida cotidiana, concebemos o mundo-em-torno como um
instrumento. Os objetos à nossa volta têm seu lugar em nosso espaço e em nosso tempo
vitais, desempenhando determinados papéis e estando, desse modo, disponíveis para nós.
O mundo disponível é formado pelas relações de significação em meio às quais vivemos,
com as quais nos familiarizamos, mesmo sem conhecer seus detalhes. Vivemos, então, os
significados sem os trazermos expressamente à consciência. Faz parte da propriedade, no
entanto, não percebermos nem a nós mesmos nem aos outros como objetos, mas como
seres com quem compartilhamos significados. “O mundo do Dasein é um mundo
compartilhado. O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano desses outros é
co-Dasein” (op. cit., p. 170).
Nessa mesma estrofe, a mulher ainda se surpreende com as emoções contraditórias,
mas muito próximas, de estar, em um momento, diante de seu projeto mais pleno e, no
próximo instante, sentir-se perdida e sem apoio.

Como precedo
meu sonho inteiro,
e após me perco,
sem mais governo?!

Essa passagem ilustra, em uma linguagem carregada de lirismo, o ser frente a suas
possibilidades mais próprias, o ser-lançado como um projeto livre diante de um futuro
aberto. O Dasein é um ser nunca idêntico a si mesmo, mas sempre projetado para frente,
para além de si. Nessa condição de ser-lançado, a disposição fundamental do Dasein, para
Heidegger, é a preocupação, ou o cuidado. Preocupação aqui não é um sentimento
eventual, mas uma marca fundamental da condição humana. Para o autor, preocupar-se
significa importar-se, prever, planejar: ações para as quais a noção de temporalidade é
crucial. Só se preocupa um ente que vê à sua frente um horizonte temporal sem limites.
“Preocupação é temporalidade vivida” (SAFRANSKI, 2000, p. 198), e nessa preocupação, o
Dasein encontra apoio apenas em si mesmo, apenas seu próprio respaldo.
A quinta estrofe revela a resistência e a persistência da personagem, seu
enfrentamento silencioso e corajoso da angústia e do medo da vida e da morte.

Nem me lamento
nem esmoreço:
no meu silêncio
há esforço e gênio
e suave exemplo
de mais silêncio.

“Dasein humano é tempo renunciado, suportado, vivido até o fim” (op. cit., p.
206).Diante de sua história, a personagem não reclama ou desanima. Seu silêncio é
carregado de diligência. Ela abraça o chamamento de seu poder-ser-todo mais próprio e,
frente a ele, providencia, o que é a missão do Dasein: impelida pelo tempo, preocupada, ela
lida com a realidade e consigo, buscando, através da ação, a realização de suas
possibilidades. “[A] angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre
para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo. A angústia arrasta o Dasein para o ser-
livre para... (propensio in...), para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser
aquilo que já sempre é. O Dasein como ser-no-mundo entrega-se, ao mesmo tempo, à
responsabilidade desse ser” (HEIDEGGER, 2002a, p. 252).
Na estrofe VI, a personagem volta a refletir sobre a finitude e a transitoriedade de
sua existência, ao tomar consciência, mais uma vez, de que não permanecerá.

Não permaneço.
Cada momento
é meu e alheio.

Para Heidegger (2002a), a temporalidade é um fenômeno genuinamente humano:


ela é, ao mesmo tempo, o modo de existir do Dasein, e inexistente sem o Dasein. A
temporalidade é o que somos e, mesmo assim, nosso confronto com ela – quando ela deixa
de estar disponível e se torna um objeto de reflexão – nos provoca estranhamento, e cada
momento, como afirma a persona, é nosso e também não é nosso, é interior e exterior, é
íntimo e também estrangeiro.
Nessa estrofe a mulher descreve também sua relação ambígua e contraditória com a
realidade, percebendo que, por vezes, o mundo é indiferente a seus esforços (que, em
última alçada, têm sentido apenas para ela mesma) e que, por vezes, ela se deixa estar
indiferente ao mundo.

Meu sangue deixo,


breve e surpreso,
em cada veio
semeado e isento.
Meu campo, afeito
à mão do vento,
é alto e sereno:
AMOR. DESPREZO.

Essa pessoa sente, diante do mundo, apego e indiferença. De qualquer modo, ela
sente. Ela se preocupa. Ela se dispõe. Para Heidegger (2002b), a disposição é um
sentimento de situação, e estamos sempre disposicionados de alguma forma. Não
dominamos as disposições, mas elas nos espreitam, nos invadem, nos ocupam. Embora as
disposições fundamentais do Dasein – a angústia, o medo, a preocupação, ou o tédio – se
evidenciem como ônus, é nas disposições, segundo o autor, que descobrimos os limites de
nossa autodeterminação.
A sétima estrofe, lacônica e dura, marca novamente a apreensão da temporalidade,
quando a persona afirma compreender – no sentido de conter em si – poder-ser-todo mais
próprio.

Assim compreendo
o meu perfeito
acabamento.

O Dasein traz consigo, sempre, seu passado e seu futuro, suas realizações e
possibilidades. Diante do tempo e do espaço aberto, somos porque temos sido e também
porque ainda podemos vir a ser. O tempo próprio se caracteriza como o movimento
irreversível do tempo que passa através de nós, em um fluxo contínuo entre nosso ter-sido e
nosso poder-ser.
Essa relação se explicita na estrofe seguinte, em que a persona se descreve como
múltipla e una. É por ser múltipla – aberta a tantas possibilidades – que ela pode vencer a
angústia que traz consigo. E é sendo una – solitária, em última instância – que deve
suportar preocupação que sente.

Múltipla, venço
este tormento
do mundo eterno
que em mim carrego:
e, una, contemplo
o jogo inquieto
em que padeço.

Em meio à angústia, no momento do estranhamento, ela confronta o ser-possível


que ela é. “O Dasein sempre se compreende a si mesmo a partir de uma possibilidade
própria de ser ou não ele mesmo” (HEIDEGGER, 2002a, p. 39). Nesse ponto de transição,
não lhe resta outra coisa que não assumir o ser-possível diante das possibilidades de seu
poder-ser mais próprio. O Dasein, no entanto, só é próprio quando tem coragem de
depender apenas de si mesmo. Estamos entregues a nós mesmos e temos, por nós
mesmos, de conduzir nossas vidas. Somos, dentre as possibilidades que se nos abrem,
aquilo que nos tornamos através de nossas escolhas.
Mas a abertura de possibilidades e a certeza da solidão frente ao tempo são
perspectivas assustadoras, as quais tentamos esquecer e das quais tentamos fugir. Na
busca de alguma segurança e de algum conforto, o Dasein realiza manobras de escape e
de entorpecimento e cai de volta nas dissimulações da cotidianidade. “Imergir no 'a gente'
junto ao 'mundo' das ocupações revela que o Dasein foge de si mesmo como seu próprio
poder-ser propriamente” (op. cit., p. 247). Essa queda está descrita na estrofe IX, em que a
mulher narra sua busca pela recuperação de algum consolo para, desse modo amortecido,
continuar sendo.

E recupero
o meu alento
e assim vou sendo.

Heidegger concebe que a existência do Dasein é feita de momentos de propriedade


e de impropriedade. “[A] propriedade do ser-próprio se acha, na decadência, obstruída e
fechada” (op. cit., p. 248). Enquanto os artifícios de auto-encobrimento são atos de
impropriedade, o esforço pela autotransparência é propriedade. Mas é importante lembrar
que a queda, em si, pressupõe a experiência da propriedade e das disposições de que
buscamos escapar. “Somente na medida em que, através de sua abertura constitutiva, o
Dasein se coloca essencialmente diante de si mesmo é que ele pode fugir de si mesmo”
(op. cit., p. 248). Ou seja, uma vez próprios, podemos até tentar buscar alívio, mas jamais
poderemos voltar a viver no encobrimento do 'a gente'.
Na décima estrofe, a persona reconhece que, em cada pessoa, o apego a alguma
divindade externa e superior que possa lhe oferecer segurança vive junto ao propósito
sempre necessário de estabelecer um acordo com o erro e com a morte.

Ah, como dentro


de um prisioneiro
há espaço e jeito
para esse apego
a um deus supremo,
e o acerbo intento
do seu concerto
com a morte, o erro...

Embora um dos engenhos de consolo do Dasein seja a crença em uma instância


suprema, fora de si mesmo, que pode lhe aliviar o peso das próprias decisões, essa fé
existe lado a lado com a sabedoria de que essas opções são suas apenas, e trazem consigo
a possibilidade sempre presente do acaso e do engano. O Dasein não encontra sua
propriedade em esfera alguma exterior a si, mas apenas em suas experiências vividas
(SAFRANSKI, 2000), o que define um tipo próprio de responsabilidade carregada de
incerteza, para a qual tendemos a buscar alívio em nossa vida cotidiana.
Quando renunciamos, porém, às ofertas de consolo oferecidas pelo mundo do 'a
gente' e conseguimos reunir forças para sermos o que podemos ser, chegamos então “à
consciência da mortalidade e do tempo, à compreensão da inconfiabilidade de toda a
providência civilizatória do Dasein e, sobretudo, na consciência do próprio poder-ser,
portanto na liberdade, no sentido de espontaneidade, iniciativa, criatividade” (HEIDEGGER,
2002a., p. 207). A propriedade, para Heidegger, trata da abertura de chances para grandes
momentos, que pode ser resumida em uma frase: “faz o que queres, mas decide por ti
mesmo e não deixes que ninguém te roube a decisão e com isso a responsabilidade”
(SAFRANSKI, 2000, p. 208).
O poema culmina na estrofe XI, quando a personagem se entrega ao tempo e à
solidão, assumindo, desse modo, sua propriedade.

(Voltas do tempo
– sabido e aceito –
do seu desterro...)

Tempo, aqui, é exílio, assim como a condição do Dasein é não se sentir em casa.
“Na angústia, o Dasein não se 'sente em casa'. (...) O não sentir-se em casa deve ser
compreendido, existencial e ontologicamente, como o fenômeno mais originário”
(HEIDEGGER, 2002a, p. 253-254). Essa estrofe final, uma frase misteriosa e incompleta,
sem sujeito, sem verbo, sem fim, insinua incerteza e inacabamento, como se não houvesse
uma conclusão para esse confronto, uma resposta para esse questionamento, um destino
para esse ser.
A propriedade heideggeriana, como já foi dito, não trata do bem-fazer ou do atuar de
maneira ética e correta. Uma vez que Heidegger não oferece indicações ou orientações ou
nomeia conteúdos ou valores pelos quais podemos decidir – pois isso seria, na própria
concepção do pensador, uma maneira imprópria de fazer filosofia – a leitura de Ser e
Tempo nos incita a realizar nossas próprias decisões e assumi-las. A obra não oferece
consolo ou esperança. “O sentido do ser é o tempo, mas o tempo não é uma cornucópia de
dádivas, ele não nos dá apoio ou orientação. O sentido é o tempo, mas o tempo não nos dá
sentido” (SAFRANSKI, 2000). No enfrentamento da angústia e na busca de respostas para
as questões decisivas da existência, o Dasein, que é cada um de nós, não tem em que se
apoiar e permanece sozinho, dependente apenas de si mesmo.
Por outro lado, na conferência de posse na Universidade de Freiburg, em 1929,
Heidegger afirmou que a filosofia só acontece quando temos a coragem de deixar o nada
acontecer (SAFRANSKI, 2000). Frente a frente com o vazio e com a incerteza que
compreende a vida, tomamos consciência de nós mesmos e de nossas possibilidades, nos
apercebemos do sentido de nosso ser, compreendemos não apenas que somos reais, mas
que somos capazes de, ao projetarmos e construirmos nossas vidas, fazer algo brotar do
nada.
Reconhecemos agora o significado da indagação inicial do autor pelo sentido do ser:
a procura – infrutífera – por um sentido persistente ou pelo sentido do que persiste. O
Dasein heideggeriano carrega em si um caráter inegavelmente mítico. O herói – o Dasein
que se lança para as possibilidades de seu poder-ser mais próprio – assume todo o peso de
sua liberdade e de sua responsabilidade diante de seu ser, tem um abismo por debaixo de
seus pés e, além de caminhar ereto, é, sempre, apenas o que tem sido e o que pode se
tornar.
A lição que Heidegger nos ensina, e que Cecília, através da persona que criou para
Auto-Retrato, ilustra – embora não de maneira doutrinária, já que isso não seria próprio ou
permitiria a propriedade – é a de que precisamos tentar abraçar e fruir nosso tempo. Porque
se existe mesmo um sentido para nossa existência, ele é o próprio momento. Propriedade é
estranheza e compreensão, é ação e compulsão. Propriedade é carpe diem, o
reconhecimento de que a morte nos acompanha e de que a vida é o presente, como
convergência simultânea do passado e do futuro.
AUTO-RETRATO (MEIRELES, 1983, p. 22-23)

I Se me contemplo,
tantas me vejo,
que não entendo
quem sou, no tempo
do pensamento.

II Vou desprendendo
elos que tenho,
alças, enredos...
E é tudo imenso...

III Formas, desenho


que tive, e esqueço!
Falas, desejo
e movimento
– a que tremendo,
vago segredo
ides, sem medo?!

IV Sombras conheço:
não lhes ordeno.
Como precedo
meu sonho inteiro,
e após me perco,
sem mais governo?!

V Nem me lamento
nem esmoreço:
no meu silêncio
há esforço e gênio
e suave exemplo
de mais silêncio.

VI Não permaneço.
Cada momento
é meu e alheio.
Meu sangue deixo,
breve e surpreso,
em cada veio
semeado e isento.
Meu campo, afeito
à mão do vento,
é alto e sereno:
AMOR. DESPREZO.

VII Assim compreendo


o meu perfeito
acabamento.

VIII Múltipla, venço


este tormento
do mundo eterno
que em mim carrego:
e, una, contemplo
o jogo inquieto
em que padeço.

IX E recupero
o meu alento
e assim vou sendo.

X Ah, como dentro


de um prisioneiro
há espaço e jeito
para esse apego
a um deus supremo,
e o acerbo intento
do seu concerto
com a morte, o erro...

XI (Voltas do tempo
– sabido e aceito –
do seu desterro...)
REFERÊNCIAS

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MEIRELES, Cecília. Auto-retrato. In: Mar absoluto e outros poemas. Rio de Janeiro: Nova
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MONTAGNER, Airto Ceolin. O lirismo de Diogo Pires em 'In nuptiis virginis Mandotiae et
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