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Pós-Graduação em Direito
Semestre letivo: 2008.1
Disciplina: Arqueologia crítica das teorias jurídicas – Código 384518
Horário: Quartas 19:00h às 22:30h
Professor: George Rodrigo Bandeira Galindo
Estudante: Paulo Rená da Silva Santarém matrícula: 09/66754
DIREITO E PROGRESSO
Todavia, em face da mudança, é adequado falar que, em todos esses campos, o direito
progrediu? Ou mesmo a sociedade: é possível advogar que houve um progresso social e
que o mundo de hoje é melhor para os seres humanos do que era antes? Qual a
possibilidade de se falar em progresso jurídico, até mesmo como forma de lutar contra
sua contraface, o regresso jurídico? Considerando os limites do próprio saber, da ciência
como forma de conhecimento e do direito como sistema de regulação de condutas, qual
o sentido mais apropriado para o uso desse conceito hoje?
1
Essa limitação geográfico-cultural é apenas uma forma de assumir a ignorância em relação ao que
extrapola essa fronteira e de não ousar falar sobre a situação do direito nas demais partes do mundo.
I. Tempo e história: do ciclo à flecha
Pode-se admitir que seja intuitivo pensar que a história, como estudo cronológico das
ações humanas, pressupõe uma noção de tempo.
Dito de forma inversa: pode ser considerado quase evidente que a noção de tempo
condiciona a forma como se escreve a história3.
Mas quais as formas do tempo a partir da qual a história pode ser escrita?
Culturas antigas como os Incas, Maias, babilônios, gregos antigos, hidus, budistas,
jainistas e outros adotaram (e adotam ainda hoje) um conceito de roda do tempo, que o
concebe como um movimento cíclico, de repetições das eras que acontecem entre o
nascimento e a extinção de cada ser do universo.
2
AGAMBEN, 2005, p. 111.
3
VEYNE, 1992.
4
BORGES, 1998, p. 56.
5
AGAMBEN, 2005, p. 112.
que a antiguidade não tivesse uma experiência do tempo vivido
é certamente uma simplificação, mas também é certo que o
lugar em que os filósofos gregos tratam o problema do tempo é
sempre a Física. O tempo é algo de objetivo e de natural, que
envolve as coisas que estão "dentro" dele como em um
invólucro (periechón): assim como cada coisa está em um lugar,
ela está no tempo.6
Esse tempo com final, esse tempo com meta, com o qual não
estavam familiarizadas nem a cultura mediterrânea grega nem a
do Oriente Médio, converte-se na raiz da compreensão do
mundo como história e princípio da consciência histórica, que
logo impregnará constantemente o espírito da modernidade
6
Idem, p. 114.
7
A relação entre a história, especialmente da historiografia com o direito, está em que ambos os sistemas
olham para o passado o tempo inteiro para fundamentar os atos presentes. A história tradicional do
direito, das leis, dos tribunais e dos processos necessita de uma história da sociedade articulada ao mesmo
tempo com o direito e a história. Porém, as premissas de construção de sentido, de acordo com a função
de cada subsistema social, são diferentes.
8
A tradução como “norma” eliminaria exatamente a distinção que se tenta traçar entre o horizonte de
sentido da antigüidade clássica e o moderno.
européia (certamente incluso quando essa modernidade, há
muito tempo secularizante e crítica da religião, volta-se contra
os conteúdos teológicos e metafísicos dessa idéia de tempo).9
9
METZ, 2001, p.38 (traduzido).
10
AGAMBEN, 2005, pp. 114-115.
No século XX, após as teorias de Albert Einstein, chega-se à idéia da flecha do tempo,
um termo cunhado em 1927 pelo astrônomo britânico Arthur Eddington e usado para
distinguir a direção do tempo em um modelo da realidade em quatro dimensões:
largura, altura, profundidade e tempo. Os corpos se movem não apenas no espaço, mas
no tempo, e os vetores componentes do movimento de relacionam entre si.
Para o direito, essa mudança permite deslocar o fundamento do passado para o futuro.
Em relação à Constituição, por exemplo, se para os antigos o termo se vinculava a um
mínimo necessário à manutenção da essência da sociedade, sem o que ela deixaria de
ser ela mesma; se o papel do legislador era textualizar as tradições, para permitir a
comunicação a quem não era habituado aos costumes do lugar; na modernidade o
referencial passa a ser o futuro, a construção de uma realidade distinta da que se
apresenta, e a adoção de um fundamento desligado da tradição11.
11
A história dos conceitos (KOSELLECK, 2006) delineia essa mudança, por exemplo, em relação ao
“giro” que sofreu o termo revolução, passando do significado de retorno ao passado para o sentido
contemporâneo associado a figuras extremamente inovadoras, os revolucionários, ameaçadores da ordem.
12
O sociólogo português Boaventura de Souza Santos fala de como a predominância de um
conhecimento-regulação racionalizou o caos como ignorância e a ordem como conhecimento e atribuiu
ao direito o papel de assegurar essa ordem essa a ser assegurada por um direito estatizado (SANTOS
2000).
13
KANT, 1995.
14
HEGEL, 1999.
15
CONDORCET, 1995
16
COMTE, 1995.
II. Conhecimento e progresso: invenção e arrogância
A partir da total ausência de reverência que Nietzsche tem para com a filosofia
ocidental, Michel Foucault problematiza a relação entre conhecimento e tempo,
identificando o próprio saber como uma invenção num dado momento e num dado
lugar, e não como um instinto natural dos seres humanos17. Ao desenvolver suas
conclusões em direção a uma genealogia política do conhecimento, como mecanismo de
assimetria da relação de poder, Foucault propor que decorre de uma postura arrogante e
mentirosa a idéia de o conhecimento filosófico ou científico se postar como saber mais
válido que os demais18.
Sobre o progresso, Giácomo Marramao descreve o processo mediante o qual essa noção
de avanço qualitativo e direcionado através do tempo veio substituir, como categoria
histórica de descrição da realidade, a noção de aperfeiçoamento.
Dizer que o hoje é melhor que o ontem envolve a comparação qualitativa e temporal
entre dois mundos distintos. Mas cada um desses mundos é, individualmente,
indescritível em sua totalidade. Cada descrição de um tempo, de uma época, é um
recorte, é a enumeração de certas características específicas, nunca de todas as
características. E se as descrições são parciais, as comparações são duplicações dessa
parcialidade, e geram conclusões insustentáveis, senão como significados subjetivos.
Se conhecer é atribuir sentido, assim como o futuro aberto, diante das inúmeras
possibilidades de acontecimentos e do sentido que a eles serão atribuídos; o presente e o
passado são igualmente abertos, já que a construção de sentido depende da observação, dos
elementos selecionados para a significação da realidade.
Já o próprio uso de um termo como hoje é uma redução. Falar em um hoje, a fim de
delinear alguma característica de um tempo atual, traz sempre o risco de se privilegiarem,
no horizonte de sentidos, alguns elementos como presentes. Quando se diz, por exemplo,
que hoje o mundo vive uma crise econômico-financeira, não se leva em conta que há
milhares de pessoas, nesse mesmo mundo de hoje, para quem os problemas do mercado
mobiliário dos Estados Unidos da América não têm nenhuma implicação imediata que lhes
permita se identificar com essa crise. Para quem vive abaixo da linha da pobreza, a saúde
financeira das companhias mundiais é um assunto completamente remoto.
Da mesma forma, falar sobre o futuro ou o passado. Um exemplo sempre recorrente são as
especulações sobre as profissões do futuro. Essas especulações, que sempre indicam o
caminho para a garantia de uma vida profissional segura, nunca levam em conta seja a
inexistência de uma profissão do presente, seja a inexistência de uma profissão do passado.
assimilar, bem como existem mais possibilidades de ação do que se poderia realizar.
23
James Joyce, por exemplo, leva todo o livro Ulisses apenas para descrever a “odisséia” de um único dia na
vida do personagem Leopold Bloom.
No âmbito macro, falar que o Ocidente hoje progrediu com relação ao Ocidente de o séc.
XVI seria esquecer que há elementos hoje que se mantém há quatro séculos. Sem dúvida,
não se trata do mesmo mundo ocidental, mas a diferença é tão múltipla, que reduzi-la a uma
linearidade qualitativa de progresso é, novamente, uma forma de arrogância.
III. Conquistas de direitos: tensões tectônicas
Assim como a história, o direito também se estrutura a partir de uma concepção de tempo.
Usando o instrumental teórico fornecido pela teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, pode-
se formular que, como todo subsistema social, o direito é constituído por comunicações. E
os processos comunicativos não apenas são produzidos ao longo do tempo, como também
pressupõem alguma noção de tempo durante o qual se possam produzir. Assim, o direito,
simplesmente por ser um subsistema social, pressupõe uma noção de tempo.
Da mesma forma, em termos de filosofia do direito, o brocardo de que “a justiça tarda mas
não falha” vem sendo substituído pela idéia de que a justiça que tarda já é uma justiça
falha24. O tempo da comunicação que se direciona a estabilizar de forma congruente as
expectativas normativas se apresenta como um fator indisponível, como uma grandeza tão
importante quanto a própria justeza do resultado dessa comunicação jurídica.
24
Essa noção ecoa não apenas entre as instituições cujas atribuições estão diretamente ligadas à produção de
comunicação jurídica (BRASIL, 2006), mas também disseminadas em trabalhos acadêmicos das mais
diversas profundidades (GOOGLE SCHOLAR BETA, 2008).
Um conceito que pode se aplicar a essa eterna abertura de significados é a visão tectônica:
A historiografia tradicional assumiu uma leitura tal do tempo que a busca por uma leitura
do passado tinha a finalidade de desvelar a força que move a trajetória histórica dos
acontecimentos e, com isso, permitir a previsão do futuro.
25
MARRAMAO, 2007.
As situações, mesmo antagônicas, coexistem e uma ou outra pode retornar a emergir a
qualquer momento. Assim o risco não é propriamente de um retorno, mas de mudança da
situação constituída.
Como modelo explicativo, pode-se pensar nas placas tectônicas e nas áreas de contato entre
elas. Um acomodamento qualquer, por mais duradouro que seja, está sempre sujeito a
alguma modificação que gere erupção, lava, destruição e alteração da situação. Essa nova
situação, com o tempo, chegará a um novo acomodamento, que não é mesmo
acomodamento que havia anteriormente, de forma que não se trata propriamente de um
ciclo; nem é um acomodamento melhor que o anterior, mas com ele não se confunde,
porque dele dependeu para sua própria existência.
Por mais que sua probabilidade seja variável, o rompimento da conformidade na tensão
tectônica é uma eterna possibilidade. Mas essa permanência está no próprio tempo, e não
fora dele. Não há uma dualidade entre mundos, entre esferas de existência.
Pode-se identifica uma tensão tectônica que não se soluciona na perspectiva linear ou
circular, mas uma acomodação, uma conformação sempre contingente e sempre sujeita a
uma nova erupção. Assim, qualquer pergunta sobre o futuro da relação entre religiões
monoteístas e direitos humanos, em relação à pretensão de universalidade e as formas
totalizantes de visão de mundo, é de resposta tão difícil quanto uma pergunta sobre o seu
presente ou o seu passado.
Quando se debatem questões sobre vida no Supremo Tribunal Federal, o próprio presente
se mostra ponto de disputa, assim como o futuro e o passado. O conceito de vida se torna
arena para embates entre visões de mundo, entre ciência, religião e política, enfim, entre
subsistemas sociais de produção de sentido, cada um em sua parcialidade característica. E
falar em laicidade do estado, como ponto de progresso da história da humanidade, pode não
se mostrar muito mais do que a negação de legitimidade ao sentido religioso da vida. Da
mesma forma que impor, pelo poder público, uma visão religiosa do que seja a vida pode
significar a opressão de todas as pessoas que não partilham dessa visão religiosa, seja
porque sequer tem uma religião, seja porque, no interior dessa mesma religião, priorizam
outras premissas de produção de sentido.
Todas as questões jurídicas de proteção aos direitos de minorias como indígenas, no caso
da terra Raposa/Serra do Sol, por exemplo, ou nas questões de gênero, seja em relação as
mulheres, seja em relação aos homossexuais: a tensão é inafastável.
O progresso só pode ser observado não como uma dimensão objetiva, mas como um juízo
de valor subjetivo e parcial em relação às adaptações possíveis à situação que presente. No
caso do direito, em que a expectativa normativa positivada se orienta à negação jurídica ou
à proteção jurídica de uma dada situação, cada lado da moeda será considerado como
progresso apenas a partir de um referencial que não está dado está interno ao direito ou à
situação em questão.
Mas essa defesa, conquanto pareça atraente, tem como ponto cego a própria disputa de
significado em relação ao conteúdo da Constituição ou dos direitos humanos. Não apenas a
mudança ou conservação do que se estabelece no texto está sujeita à escolha, como
aquisição evolutiva ou não, mas o próprio sentido que se atribui, ou que se atribuiu no
passado, se mostra inegavelmente disponível para seleção. E boa parte da disputa jurídica
encontra-se exatamente em defender uma ou outra posição interpretativa como sendo a
mais adequada à manutenção da integridade do subsistema do direito; os argumentos e
contra-argumentos buscam se justificar como sendo a melhor forma de dar continuidade à
construção do texto em cadeia26.
Essa aquisição, afinal, é contingente, e da mesma forma que poderia não ter existido, pode
deixar de existir. Da mesma forma, aqui, não quer dizer com a mesma probabilidade, mas
com a mesma possibilidade.
26
Sobre a metáfora do direito como um romance em cadeia, ver DWORKIN, 1986
Ao se advogar a indisponibilidade jurídica de algum conjunto de normas cria-se uma
estrutura da realidade, uma simplificação da realidade, que dá forma à complexidade e
diminui a probabilidade de esse conjunto ser alterado. Diminui mas não elimina. Não
elimina porque é sempre possível que a própria regra da indisponibilidade, exatamente por
ser expressa, pode ser questionada como regra.
Nesse sentido é que a postulação de uma posição como um avanço histórico, como um
progresso, seja ele da humanidade, da sociedade ou do direito, apresenta o risco da
desqualificação de uma outra perspectiva que, por mais que ao observador se apresente
como inadequada, permanece possível; sendo que essa desqualificação prévia impede a
própria comunicação sobre a perspectiva desacreditada e desautoriza inclusive o debate.
Se há pessoas que não admitem o respeito à diferença, e inegavelmente há pessoas que não
admitem o respeito à diferença, a simples reafirmação do discurso da superação temporal
da época do preconceito não tem o condão de alterar a realidade, ainda que se valha de
instrumentos legais, doutrinários, religiosos, artísticos etc.
V. Referências
BORGES, Vavy Pacheco. O que é História. 4ª edição. Brasília: Editora Brasiliense, 1998.
BRASIL. STF - Supremo Tribunal Federal. Notícias STF. “Justiça que tarda, falha”,
afirma Cármen Lúcia na CCJ do Senado. Quarta-feira, 17 de maio de 2006.
Disponível em <http://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?
idConteudo=66982&caixaBusca=N> (acesso em 19 de setembro de 2008).
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª. Edição: Léa Porto de Abreu et
al. J. (supervisão final do texto) NOVAES. Tradução: Roberto Cabral de Melo
MACHADO e Eduardo Jardim MORAIS. Rio de Janeiro, RJ: NAU Editora, 2005.
GOOGLE SCHOLAR BETA. Pesquisa "justiça que tarda é uma justiça falha". Disponível
em <http://scholar.google.com.br/scholar?q=justica+que+tarda+
%C3%A9+uma+justi%C3%A7a+falha&hl=pt-BR&lr=> (acesso em 19 de setembro
de 2008).
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. “O curso da história universal.” In: Filosofia da
História, por Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, tradução: Maria RODRIGUES e
Hans HARDEN, 53-72. Brasília: EdUnB, 1999.
METZ, Johann Baptist. Dios. Contra el mito de la eternidad del tiempo. In: PETERS,
Tiemo Rainer y URBAN, Claus (ed.). La provocación del discurso sobre Dios.
Trad. Daniel Romero. Madrid: Trotta, 2001, p. 35-53.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma concepção pós-moderna do direito. In: Para um
novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. A
crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Vol. 1, cap. 2. São
Paulo, São Paulo: Cortez Editora, 2000. Pp. 119-188.