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FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In : O que é um autor? Lisboa: Passagens.

1992. pp. 89-128.

A VIDA DOS HOMENS INFAMES1

Isto não é uma obra de história. O acervo que aqui encontraremos não
obedeceu à regra mais importante que o meu gosto, o meu prazer, uma emoção, o
riso, a surpresa, um certo assombro ou outro sentimento qualquer, cuja intensidade
talvez me fosse difícil justificar, agora que é passado o pri meiro momento de
descoberta.
É uma antologia de existências. Vidas de algumas linhas ou de algumas
páginas, desditas e aventuras sem número, recolhidas numa mão -cheia de palavras.
Vidas breves, achadas [90] a esmo em livros e documentos. Exempla, mas — ao
contrário daqueles que os sábios recolhiam no decurso das suas leituras —, são
exemplos que têm menos de lições a serem meditadas, do que de breves efeitos cuja
força se desvanece quase imediatamente. Agradar -me-ia designá-los com o termo de
―novelas‖, pela dupla referência que ele comporta: ao desembaraço da narrativa e à
realidade dos acontecimentos relatados; pois é tal a coesão das coisas ditas, nestes
textos, que ficamos sem saber se a intensidade que os percorre vem mais do fulgor
das palavras ou da violência dos factos de que eles estão repletos. Vidas singulares,
não sei por que acasos tornadas estranhos poemas, eis o que pretendi recolher numa
espécie de herbário.
A ideia veio-me um dia, quero crê-lo, em que me encontrava na Bibliothèque
Natio-nale a ler um registo de internamento redigido mal começava o século XVIII.
Parece-me, até, que a ideia me surgiu na sequência da leitura das duas notícias seguin-
tes.
Mathurin Milan, internada no hospício de Charenton em 31 de Agosto de
1707:
―a sua loucura foi sempre o esconder-se da família, levar uma
vida obscura no campo, ser processado, [91] emprestar a usura e a
fundo perdido, passear o seu pobre espírito por caminhos esconsos
e crer-se capaz dos maiores cometimentos.‖
Jean Antoine Touzard, internado nos paços de Bicêtre em 21 de Abril de
1701:
―Frade apóstata, sedicioso, capaz dos maiores crimes, sodomita,
ateu até mais não poder ser; um verdadeiro monstro de abominação
que mais valia sufocar do que deixar livre.‖
Embaraçar-me-ia dizer o que foi que experimentei ao certo, quando li estes
fragmentos e muitos outros semelhantes. Sem dúvida que uma daquelas impressões
das quais se diz que são ―físicas‖, como se fosse possível existirem outras. E
confesso que tais ―novelas‖, ao assomarem de súbito por entre dois séculos e meio
de silêncio, percutiram em mim mais fibras do que aquilo a que vulgarmente
chamamos literatura, sem que ainda hoje eu possa dizer se mais me emocio naram a

1 "La vie des hommes infâmes", in Les Cahiers du Chemin, n.° 29, 15 janvier 1977, pp. 12-29.
beleza daquele estilo clássico, talhado em algumas frases em volta de personagens
decerto miseráveis, ou os excessos, a mescla de sombria obstinação e perfídia
daquelas vidas de que pressentimos, sob a [92] pedra polida das palavras, o
descalabro e a sanha.
Há muito tempo, para um livro, servi-me de semelhantes documentos. Se o
fiz então, foi sem dúvida por causa da vibração que ainda hoje sinto quando me
acontece encon trar aquelas vidas ínfimas transformadas em cinzas nas poucas frases
que as prostraram. O meu sonho era restituir -lhes a intensidade mediante uma
análise. À falta do necessário tal ento, ruminei pois longamente a simples análise;
tomei os textos na sua secura; indaguei qual teria sido a sua razão de ser, a que
instituições ou a que prática política se referiam; intentei saber porque é que, numa
sociedade como a nossa, se tinha de súbito tornado tão importante que fossem
―sufocados‖ (como se sufoca um grito, um fogo, um animal) um monge escandaloso
ou um usurário fantasista e inconsequente; procurei a razão pela qual se tinha posto
tanto zelo em impedir os pobres de espírito de se passearem por caminhos esconsos.
Mas as intensidades originais que me tinham motivado continuavam a ficar de fora.
E uma vez que havia o risco de não passarem à ordem das razões, porque o meu
discurso era incapaz de as comportar como deveria ser, não seria melhor deixá-las na
forma mesma que mas tinha dado a sentir?
[93]Daí a ideia desta recolha, feita um pouco ao sabor do momento. Recolha
que se foi compondo sem pressas e sem um fim claramente definido. Durante muito
tempo alimentei a ideia de a apresentar segundo uma ordem sistemática, com alguns
rudimentos de explicação e de maneira a poder dar mostras de um mínimo de
significado histórico. Renunciei a isso, por razões a que voltarei em breve; resolvi-me
muito simplesmente a reunir um certo número d e textos, pela intensidade que me
pareciam possuir; acompanhei-os de alguns preliminares; e distribuí-os de maneira a
preservar — o menos mal possível, em minha opinião — o efeito de cada um. A
minha incompetência votou--me ao lirismo frugal da citação.
Este livro não será pois do agrado dos historiadores, menos ainda que os
outros. Livro de humor e puramente subjectivo? Diria antes — mas isso talvez acabe
por dar no mesmo — que é um livro de convenção e de jogo, o livro de uma
maniazinha que se dotou de um sistema. Creio bem que o poema do usurário
fantasista ou o do monge sodomita me serviram, de ponta a ponta, de modelo. Foi
para reencontrar algo como aquelas existências-clarão, como aqueles poemas-vida,
que impuz a mim mesmo um certo número de regras simples:
[94]
 que se tratasse de personagens realmente existentes;
 que essas existências tenham sido ao mesmo tempo obscuras e
desafortunadas;
 que fossem contadas em algumas páginas, ou melhor algumas frases, tão
breves quanto possível;
 que tais relatos não fossem simples anedotas estranhas ou patéticas, mas que
de uma maneira ou de outra (porque eram queixas, denúncias, ordens ou
relatórios) tenham realmente feito parte da história minúscula daquelas
existências, da sua infelicidade, da sua raiva ou da sua duvidosa loucura;
 e que do choque dessas palavras e dessas vidas ainda nos venha um certo
efeito no qual se misturam beleza e assombro.
Mas acerca destas regras, que podem parecer arbitrárias, é necessário que me ex -
plique um pouco mais.
*
* *
Pretendi que se tratasse sempre de existências reais; que se lhes pudesse dar
um lugar e uma data; que, por detrás destes nomes que já não dizem nada, por detrás
destas palavras breves e que bem podem na [95] maior parte das vezes ter sido fal sas,
enganadoras, injustas, exorbitantes, tenha havido homens que viveram e morreram,
com os seus sofrimentos, as suas malfeitorias, os seus ciúmes, as suas vociferações.
Bani pois tudo o que pudesse ser imaginação ou literatura, porquanto nenhum dos
negros heróis que estas possam ter inventado se me afigurou tão intenso como
aqueles remendões, aqueles soldados desertores, aquelas vendedeiras de roupa,
aqueles tabeliões, aqueles monges vagabundos, todos eles danados, escandalo sos ou
dignos de lástima; e isto em virtude do simples facto de sabermos que existiram. Do
mesmo modo, excluí todos os textos que pudessem constituir memórias,
recordações, quadros descritivos, todos os que relatavam a realidade mas mantendo
face a ela a distância do olhar, da memóri a, da curiosidade ou do divertimento. Fiz
questão que estes textos mantivessem sempre uma relação, ou antes, o maior número
possível de relações, com a realidade: não apenas que se lhe referissem, mas que nela
operassem; que fossem uma peça da dramaturgia do real, que constituíssem o
instrumento de uma vingança, a arma de um ódio, um episódio de uma batalha, a
gesticulação do desespero ou do ciúme, uma súplica ou uma ordem. Não procurei
reunir textos que fossem, mais do que outros, fiéis à [96] realidade, que merecessem
ser conservados pelo seu valor representativo, mas sim textos que desempenharam
um papel nesse real de que falam, e que, em compensação, se encon tram, seja qual
for a sua inexactidão, a sua ênfase ou a sua hipocrisia, atravessados por ele:
fragmentos de discurso que consigo levam fragmentos de uma realidade da qual
fazem parte. Não é uma recolha de retratos que aqui iremos ler: são armadilhas,
armas, gritos, gestos, atitudes, astúcias, intrigas, de que as palavras foram os
instrumentos. Vidas reais foram ―representadas‖ nestas poucas frases; não quero
com isto dizer que elas aí foram retratadas, mas que, de facto, a sua liberdade, a sua
desgraça, por vezes a sua morte, em todo o caso o seu destino aí foram, pelo menos
em parte, decididos. Estes discursos realmente atravessaram vidas; tais existências
foram efectivamente postas em risco e deitadas a perder nestas palavras.
Pretendi também que estas personagens fossem elas mesmas obscuras; que
nada as tivesse predisposto a uma qualquer notorie dade; que não tenham sido
dotadas de nenhuma das grandezas como tal estabelecidas e reconhecidas — as do
nascimento, da fortuna, da santidade, do heroísmo ou do génio; que pertencessem
àqueles milhões de existências que estão destinadas a não deixar [97] rasto; que, nas
suas infelicidades, nas suas paixões, naqueles amores e naqueles ódios, houvesse algo
de cinzento e de ordinário aos olhos daquilo que habitualmente temos por digno de
ser relatado; que, contudo, tenham sido atravessados por um certo ardor, que tenham
sido animados por uma violência, uma energia, um excesso na malvadez, na vilania,
na baixeza, na obstinação ou no infortúnio, tais que lhes proporcionassem, aos olhos
daqueles que os rodeavam, e à medida da sua própria mediocridade, uma espécie de
medonha ou lamentável grandeza. Tinha-me posto à procura destas espécies de
partículas dotadas de uma energia tanto maior quanto elas próprias forem mais
pequenas e difíceis de discernir.
Para que algo delas chegasse até nós, foi porém necessário que u m feixe de
luz, ao menos por um instante, as viesse iluminar. Luz essa que lhes vem do exterior.
Aquilo que as arranca à noite em que elas poderiam, e talvez devessem sempre, ter
ficado, é o encontro com o poder: sem este choque, é indubitável que nenhuma
palavra teria ficado para lembrar o seu fugidio trajecto. O poder que vigiou aquelas
vidas, que as perseguiu, que, ainda que por um só instante, prestou atenção às suas
queixas e ao seu leve burburinho e que as marcou com um golpe das [98] suas garras,
foi também o poder que suscitou as poucas palavras que delas nos restam: quer
porque se lhe tenham querido dirigir para denunciar, apresentar queixa, solicitar,
suplicar, quer porque ele tenha pretendido intervir e que com algumas palavras tenha
julgado e decidido. Todas aquelas vidas, que estavam destinadas a passar ao lado de
todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sido ditas, não puderam deixar
traços — breves, incisivos, enigmáticos muitas vezes — senão em virtude do seu
contacto momentâneo com o poder. De maneira que é sem dúvida para sempre
impossível reavê-las em si mesmas, tal como seriam ―em estado livre‖; já não se pode
recuperá-las a não ser fixadas nas declamações, nas parcialidades tácticas, nas
mentiras imperiosas que supõem os jogos de poder e as relações com ele.
Dir-me-ão: ora aí está o senhor, sempre com a mesma incapacidade de
transpor os limites, de passar para o outro lado, escutar e fazer ouvir a linguagem que
vem de fora ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado do poder, do que ele diz
ou faz dizer. Estas vidas, porque não ir escutá -las lá onde falam por si próprias? —
Mas, antes de mais, daquilo que elas foram na sua violência ou na sua infelicidade
singular, será que nos ficaria o que quer que fosse, se, a dado [99] momento, não
tivessem cruzado o poder e provocado as suas forças? Afinal, não será um dos traços
fundamentais da nossa sociedade o facto de o destino tomar aqui a forma da relação
com o poder, da luta com ou contra ele? O ponto mais intenso das vidas, aquele em
que se concentra a sua energia, encontra -se efectivamente onde elas se confrontam
com o poder, se batem com ele, ten tam utilizar-lhe as forças ou escapar -lhe às
armadilhas. Nas palavras breves e estridentes que vão e que vêm entre o poder e as
existências mais inessenciais, é sem dúvida aí que estas últimas encontram o único
momento que alguma vez lhes foi concedido; é o que lhes dá, para atravessarem o
tempo, o pouco de fulgor, o breve clarão que as traz até nós.
Pretendi, em suma, juntar alguns rudimentos de uma lenda dos homens
obscuros, a partir dos discursos que na infelicidade ou na ira trocaram com o poder.
―Lenda‖, porque nela se dá, como em todas as lendas, um certo equívoco
entre o ficcional e o real. Produz-se nela por razões inversas, porém. O lendário, seja
qual for o seu núcleo de realidade, não passa afinal da soma do que dele se diz. É
indiferente à existência ou à inexistência daquele cuja glória transmite. Se existiu, a
lenda recobre-o de tantos prodígios, embeleza-o com tantas [100] impossibilidades,
que tudo se passa, ou quase, como se nunca ele tivesse vivido. E se é puramente
imaginário, a lenda dá conta de tantos relatos insistentes a seu respeito que ele
adquire a espessura histórica de alguém que teria existido. Nos textos que s erão lidos
mais à frente, a existência destes homens e destas mulheres reconduz -se exactamente
ao que dela foi dito; daquilo que eles foram ou daquilo que fizeram nada subsiste,
salvo em algumas frases. É a raridade, e não a prolixidade, que aqui faz com que real
e ficção se equivalham. Nada tendo sido na história, não tendo desempenhado
nenhum papel apreciável nos acontecimentos ou entre as pessoas importantes, não
tendo deixado à sua roda qualquer traço que possa ser refe rido, não têm e nunca mais
terão existência a não ser ao abrigo precário destas palavras. E, graças aos textos que
deles falam, chegam até nós sem serem portadores de mais indícios de realidade do
que se viessem da Lenda Dourada ou de um romance de aventuras. Esta existência
puramente verbal que desses infelizes ou desses celerados faz seres quase ficcionais,
devem-na eles ao seu desaparecimento quase exaustivo e àquela sorte ou má -sorte
que fez com que sobrevivessem, no acaso de documentos reencontrados, algumas
raras palavras que falam deles ou que eles próprios [101] pronunciaram. Negra lenda,
mas sobretudo seca lenda, reduzida ao que foi dito um dia e que improváveis
encontros conservaram até nós.
Aí reside um outro traço desta lenda negra. Ela não se transmitiu como aquela
que é dourada por alguma necessidade profunda, segundo trajectos contínuos. É, por
natureza, sem tradição; rupturas, apaga mento, esquecimentos, cruzamentos,
reaparecimentos, só por aí é que ela pode chegar até nós. Desde o início que a
transporta o acaso. Foi necessário, antes de mais, um jogo de circunstâncias que,
contra tudo o que seria de esperar, atraíram sobre o mais obscuro indivíduo, sobre a
sua vida medíocre, sobre defeitos afinal bastante ordinários, o olhar do poder e o
estrépito da sua cólera: eventualidade que fez com que a vigilância dos responsáveis
ou das instituições, sem dúvida destinada a suprimir toda a desordem, captasse isto
em vez de aquilo, o monge escan daloso, a mulher espancada, o bêbado inveterado e
furioso, o mercador dado a contendas, e não tantos outros a seu lado, cujo
espalhafato não era menor. E depois foi preciso que, no meio de tantos documentos
perdidos e dispersos, tenha sido justamente um determinado e não outro qualquer a
ter chegado até nós, a ter sido reencontrado e lido. [102] De maneira que, entre
aquelas pessoas sem importância e nós, que a não temos mais do que elas, não há
nenhuma relação necessária. Nada tornava provável que surgissem da sombra,
aquelas mais do que quaisquer outras, com a sua vida e as suas vicissitudes. Podemos
divertir-nos, se assim o quisermos, a ver nisso uma vingança: a sorte que permite que
aquelas pessoas absolutamente destituídas de glória surjam do meio de tantos mor -
tos, que gesticulem ainda, que continuem a manifestar a sua ira, a sua aflição ou a sua
invencível mania de divagar, talvez compense a má fortuna que sobre elas atraiu, mau
grado a sua modéstia e o seu anonimato, o clarão do poder.
Vidas que são como se não tivessem exis tido, vidas que não sobrevivem senão
do choque com um poder que mais não quis que aniquilá -las, ou pelo menos
apagá-las, vidas que a nós não tornam a não ser pelo efeito de múltiplos acasos, tais
são as infâmias de que eu quis juntar aqui alguns restos. Existe uma falsa infâmia,
aquela de que desfrutam homens de pavor ou de escândalo como o foram Gilles de
Rais, Guilleri ou Cartouche, Sade e Lacenaire. Aparentemente infames, por causa das
abomináveis recordações que deixaram, das malfeitorias que se lhes atribuem, do
respeitoso horror que inspiraram, [103] são de facto homens da lenda gloriosa,
mesmo que as razões desse renome sejam inversas das que fazem, ou deveriam fazer,
a grandeza humana. A infâmia deles não é mais do que uma modalidade da universal
fama. Mas o monge apóstata, mas os pobres espíritos extraviados por caminhos
desconhecidos, esses são infames a todo o rigor; já não existem senão por via das
poucas palavras terríveis que estavam destinadas a torná -los indignos, para sempre,
na memória dos homens. E quis o acaso que fossem estas pal avras, estas palavras
somente, a subsistir. O seu presente retorno ao real faz -se da mesmíssima forma
segundo a qual tinham sido expulsos do mundo. É inútil procurar -lhes um outro
rosto, ou suspeitar neles uma outra grandeza; já não são senão aquilo pelo qual se
quis ajoujá-los: nem mais nem menos. Tal é a infâmia estrita, aquela que, não sendo
temperada, nem de escândalo ambíguo, nem de uma surda admiração, não é
compatível com nenhuma espécie de glória.
*
* *
Perante a grande colectânea da infâmia, que lhe reuniria os traços de um
pouco por toda a parte e de todos os tempos, bem me [104] dou conta que a presente
recolha é mesquinha, pobre, um pouco monótona. Trata-se de documentos que
datam, todos, mais ou menos da mesma centena de anos, 1660 -1760, e que provêm
da mesma fonte: arquivos de reclusão, da polícia, das petições ao rei e das lettres de
cachet 2. Suponhamos que se [105] trata, com isto, de um primeiro volume e que a Vida

2 N. T.: acerca do que eram as lettres de cachet, as informações contidas no texto são suficientes para que pouco
haja a acrescentar-lhes de modo a que o leitor não iniciado em estudos históricos possa compreender o uso que
Michel Foucault delas faz como material da sua análise das relações entre o poder e o discurso. Tratava-se, no
essencial, de documentos emitidos em nome do rei, mas não necessariamente, nem na sua maioria, por sua
própria iniciativa, e que tinham como função sujeitar a medidas de segurança tais como a prisão ou o
internamento todo o indivíduo cujos comportamentos eram, no discurso desses mesmos documentos,
tipificados de "indesejáveis". Instrumento de Estado posto ao alcance dos súbditos, não se fizeram estes
rogados sempre que a eventual vulnerabilidade de um vizinho ou de um familiar desavindo dava azo a que sobre
ele se pudesse exercer um despotismo de monarca. Embora Foucault não se ocupe senão daqueles que, ―sem
nome‖, tão só ficaram ―infames‖ porque deles se ocuparam as lettres de cachet, contam-se entre as suas vítimas
algumas personagens que outras razões tornaram célebres: Sade foi uma delas, mas também Voltaire, que não se
coibiu de fazer uso, à sua conta, desse mesmíssimo instrumento de poder. Como o próprio Foucault indica
algures no texto, a lettre de cachet foi uma instituição confinada a determinado período da história de França, nada
havendo, portanto, que em rigor possa ser considerado seu equivalente em qualquer outra época ou lugar. Não
é pois lícito traduzi-la, nomeadamente por ―carta de prego‖ que, em Portugal, era uma missiva selada, com
carácter de segredo de estado, que o rei ou um alto dignitário enviavam — a um chefe militar ou a um
diplomata, por exemplo — rodeada de especiais medidas de segurança, de modo a que só o destinatário pudesse
ter acesso ao respectivo conteúdo e que, normalmente, transmitia ordens ou instruções de conteúdo muito
preciso, em circunstâncias de particular relevo ou urgência. Por vezes, mas nem sempre, podia tratar-se de uma
ordem de prisão. Enquanto sistema de relações de poder, e contemporâneas das lettres de cachet, o que mais se lhes
assemelhará na história portuguesa serão as redes de denunciantes do Santo Ofício, sem as quais toda a máquina
inquisitorial seria impensável, mas trata-se de um possível paralelo que não cabe aqui desenvolver.
Este não é o único texto em que Michel Foucault se debruçou sobre as lettres de cachet, tendo-lhe inclusivamente
dedicado um estudo, em colaboração com Arlette Farge: Le désordre des familles. Lettres de cachet des archives de la
Bastille, Paris, Gallimard-Julliard, 1982. Com efeito, a referência às lettres de cachet remonta, na obra de Foucault,
e tanto quanto nos foi dado verificar, pelo menos a Histoire de la folie à l'âge classique, Paris, Plon, 1961. Na versão
brasileira deste livro – História da loucura, Rio de Janeiro, Perspectiva, 1978, 1987, 1989, – lettres de cachet aparece
traduzido por ―cartas régias‖, inadequadamente, cm nossa opinião, pelas razões atrás expostas. Por norma, os
tradutores da obra foucauldiana optam por não verter o termo para expressões que efectivamente lhe não
dos homens infames poderá alargar-se a outros tempos e a outros lugares. [106]
Escolhi este período e este tipo de textos por causa de uma velha
familiaridade. Porém, se o gosto que tenho neles desde há anos ainda não se
desmentiu e se a eles volto ainda hoje, é porque aí suspeito um começo; [107] de
qualquer modo, um acontecimento importante em que se cruzaram mecanismos
políticos e efeitos de discurso.
Estes textos dos séculos XVII e XVIII (sobretudo quando comparados com
o que será, posteriormente, a banalidade administrativa e policial) possuem um
fulgor, reve-[108]lam na subtileza de uma frase um esplendor, uma violência que
desmente, pelo menos aos nossos olhos, a pequenez do assunto ou a mesquinhez
bem vergonhosa das intenções. As vidas mais deploráveis aí são descritas com as
imprecações ou a ênfase que parecem convir aos mais trágicos. Efeito cómico, sem
dúvida; há algo de irrisório em convocar todo o poder das palavras e, através delas,
a soberania do céu e da terra, a pr opósito de desordens insignificantes ou de
infortúnios tão comuns: ―Vergado ao peso da mais excessiva dor, Duchesne,
empregado comercial, ousa com humilde e respeitosa confiança lançar-se aos pés de
Vossa Majestade para implorar a sua justiça contra a mai s ruim de todas as
mulheres... Que esperança não alimentará o desventurado que, em último
extremo, hoje recorre a Vossa Majestade após ter esgotado todas as vias de boas pala -
vras, de advertências e de considerações, para fazer voltar aos seus deveres u ma
mulher desprovida de qualquer sentimento de religião, de honra, de probidade e até
de humanidade? Tal é, Sire, o estado do infeliz que ousa fazer ressoar a sua lamentosa
voz aos ouvidos de Vossa Majestade‖. Ou ainda, daquela ama abandonada que
reclama a prisão do seu marido em nome dos quatro filhos ―que talvez mais nada

corresponderiam nas diferentes línguas. É o caso da tradução americana de Histoire de la folie, por Richard
Howard: Madness and Civilization, New York, Random House, 1965, cujo capítulo ―The Great Confinement‖
(―Le grand renfermement‖, no original francês) é reproduzido por um dos maiores especialistas americanos em
Foucault, Paul Rabinow, na colectânea de textos por si organizada – The Foucault Reader, New York, Pantheon
Books, 1984 (V. pp. 124-140). Também John Rajchman não traduz lettres de cachet, ao referir explicitamente este
mesmo ―La vie des hommes infames‖ num dos seus artigos críticos sobre o filósofo francês: ―Foucault, or the
Ends of Modernism‖, in Octoher, n.° 24, MIT Press, 1983, pp. 37-62. Identicamente procede o espanhol Ramon
Maiz que, numa recolha de estudos de diversos autores acerca do pensamento foucauldiano por si editada –
AAVV: Discurso, Poder, Sujeto. Leituras sobre Michel Foucault, Universidade de Santiago de Compostela, 1986 – inclui
um texto inédito que o próprio Foucault compôs para essa publicação – ―El poder y la norma‖, pp. 211-216 –
no qual lettres de cachet permanece na sua língua de origem. Dos restantes textos onde ocorre o termo, e de que
conhecemos traduções em diferentes línguas, saliente-se um de que existe versão portuguesa: ―Enfermement,
psychiatrie, prison‖, Dialogue avec David Cooper, Jean-Pierre Faye, Marie-Odile Faye, Marine Zecca et Michel
Foucault, in Change, n.° 22/23 – ―La folie encerclée‖, octobre 1977, pp. 76-110. Encontramo-lo, em português,
em: Manuel Maria Carrilho, organização, introdução e notas, Dissidência e nova filosofia, Lisboa, Assírio & Alvim,
1979, sob o título ―Dissidência, enclausuramento, psiquiatria, prisão‖, a pp. 99-120. ―Confinement, Psychiatry,
Prison‖ é o título da versão em inglês, que se inclui em Lawrence D. Kritzman, edição e introdução: Michel
Foucault. Politics, Philosophy, Culture – Interviews and Other Writings 1977-1984, New York & London, 1990 (V. pp.
178--210); lettres de cachet, tal como na versão portuguesa do texto, não é traduzido; em nota de pé de página,
assinala-se: ―originally a royal letter that could denounce, arrest, and confine someone‖, o que é exacto, salvo
para o facto de não se tratar exactamente de uma ―carta régia‖, a não ser na medida em que a sua legitimidade
invocava a autoridade real. Na tradução castelhana de Miguel Morey: Michel Foucault. Un diálogo sobre el poder y otras
conversaciones, Madrid, Alianza Editorial, 1985, um dos subtítulos em que se encontra dividido este debate –
―Encierro, psiquatría, prisión‖ (V. pp. 87-127) – apresenta-se como ―Cartas de Encarcelamiento‖, mas assinala,
entre parêntesis, ―Lettres de Cachet‖, que é o que adequadamente se mantém nas versões inglesa e portuguesa
referidas, sendo esta última a única que conhecemos cujo tradutor teve o escrúpulo de anotar, em pé de página,
aquilo que uma lettre de cachet efectivamente constituía: ―ordem de prisão com o selo real‖.
tenham a esperar de seu pai [109] que um exemplo terrível dos efeitos do
desregramento. A Justiça de Vossa Senhoria poupar -lhes-á tão aviltante instrução, a
mim, à minha família, o opr óbio e a infâmia, e deixará fora de estado de causar
qualquer dano à sociedade um mau cidadão que não pode senão trazer-lhe prejuízo‖.
Riremos talvez; mas é preciso não o esquecer: a esta retórica que não é
grandiloquente senão em virtude da pequenez das coisas às quais se aplica, o poder
responde em termos que de modo nenhum nos parecem mais comedidos; com a
diferença, porém, que nas palavras que são suas perpassa o clarão das suas decisões;
e a solenidade delas pode tomar autoridade, senão da importância daquilo que
punem, ao menos do rigor do castigo que impõem. Se se prende uma qualq uer leitora
da sina, é porque ―há poucos crimes que ela não tenha cometido e nenhum de que
não seja capaz. Além de que não há menos caridade do que justiça em livrar
incessantemente o público de tão perigosa mulher, que o rouba, o intruja e o
escandaliza impunemente desde há tantos anos‖. Ou a propósito de um jovem
estroina, mau filho e devasso: ―É um monstro de libertinagem e de impiedade...
Dado a todos os vícios: velhaco, indócil, impetuoso, violento, capaz de atentar
contra a vida de seu próprio pai com propósito deliberado... [110] sempre em
sociedade com mulheres da mais baixa prostituição. Tudo quanto se lhe representa
das suas velhacarias e dos seus desregramentos não provoca nenhum sentimento em
seu coração; a tal não responde a não ser com um sorriso de celerado que dá a conhe -
cer o seu endurecimento e que leva a pensar se não será incurável ‖. À menor
extravagância, já se está no domínio do abominável, ou pelo m enos no discurso da
invectiva e da execração. Estas mulheres de maus costumes e estes fedelhos danados
não desmerecem de Nero ou de Rodoguna. Na época clássica, o discurso do poder e
o discurso que a ele se dirige engendram monstros. Porquê um tão empático teatro
do quotidiano?
A tomada do poder sobre o ordinário da vida, tinha-a o cristianismo
organizado, em grande parte, à volta da confissão: obrigação de fazer passar pelo fio
da linguagem o minúsculo mundo de todos os dias, os pecadilhos, as faltas, mesmo
que imperceptíveis, até aos turvos jogos do pensamento, das intenções e dos desejos;
ritual de confidência no qual aquele que fala é ao mesmo tempo aquele de quem se
fala; apagamento da coisa dita pelo seu próprio enunciado, mas igual mente anulação
da própria confidência que deve permanecer secreta, e não deixar atrás de si nenhum
traço a não ser o arrependi -[111]mento e as obras de penitência. O Ocidente cristão
inventou essa espantosa coacção, que impôs a toda a gente, de tudo dizer pa ra tudo
apagar, de formular até as mais ínfimas faltas num murmúrio ininterrupto,
encarniçado, exaustivo, ao qual nada deveria escapar, mas que nem por um só
instante deveria sobreviver a si próprio. Para centenas de milhões de homens e
durante séculos, o mal teve que se confessar na primeira pessoa, num cochicho
obrigatório e fugidio.
Ora, a partir de um momento que podemos situar em finais do século XVII,
este mecanismo passou a ser enquadrado e exce dido por um outro cujo
funcionamento era muito diferente. Agenciamento administrativo e não já religioso;
mecanismo de registo e não já de perdão. O objectivo visado era, porém, o mesmo.
Em parte, pelo menos: discursificação do quotidiano, revista do uni verso ínfimo das
irregularidades e das desordens sem importância. Mas a confissão já aí não
desempenha o papel eminente que o cristianismo lhe tinha reservado. Para este
esquadrinhamento, utilizam-se, e sistematicamente, procedimentos antigos mas até
aí localizados: a denúncia, a queixa, o inquérito, o relatório, a delação, o
interrogatório. E tudo o que assim se diz é registado por escrito, acumulado,
constitui dossiers e [112] arquivos. A voz única, instantânea e sem rasto da confissão
penitencial, que suprimia o mal suprimindo-se a ela própria, é doravante
retransmitida por múltiplas vozes que se depositam numa enorme massa documental
e que constituem assim, pelo tempo fora, como que a memória sempre crescente de
todos os males do mundo. O mal minúsculo da miséria e da falta venial já não é
remetido ao céu pelo segredar quase inaudível da confissão; acumula-se na terra sob
a forma de traços escritos. É um tipo completamente diferente de relações que se
estabelece entre o poder, o discurso e o quotidiano, uma maneira completamente
diferente de gerir este último e de o formular. Nasce, para a vida ordinária, uma nova
encenação.
Os seus primeiros instrumentos, arcaicos mas já complexos, são nossos
conhecidos: as petições, as lettres de cachet ou as ordens reais, os diversos
enclausuramentos, os relatórios e as resoluções policiais. Não repetirei estas coisas já
sabidas, mas tão só alguns aspectos susceptíveis de dar conta da estranha vivacidade
e de uma espécie de beleza que revestem por vezes as desenvoltas imagens onde
pobres homens adoptaram, perante nós, que os divisamos de tão longe, o rosto da
infâmia. A lettre de cachet, o internamento, a omnipresença da polícia, tudo [113] isto
não faz habitualmente evocar outra coisa que não o despotismo de um monarca
absoluto. Mas é forçoso ver que tal ―arbitrariedade‖ constituía uma espécie de
serviço público. As ―ordens do rei‖ não se abatiam de improviso, das alturas, como
sinais da cólera do monarca, a não ser nos casos mais raros. A maior parte das vezes,
elas eram solicitadas contra alguém pelos seus próximos, o pai e a mãe, um dos
parentes, a sua família, os filhos ou filhas, os vizinhos, o pároco por vezes, ou algum
notável; eram assediados, como se de um grande crime merecedor da cólera do
soberano se tratasse, por qualquer obscura questão de fa mília: esposos injuriados ou
agredidos, fortuna delapidada, conflitos de interesses, jovens desobedientes,
vigarices ou bebedeiras, e todos os pequenos desvios da conduta. A lettre de cachet que
se entregava como a vontade expressa e pessoal do rei, de fazer encerrar um dos seus
súbditos fora das vias da justiça regular, não era senão a resposta a um pedido vindo
de baixo. Todavia, não era concedida de pleno direito a quem a pedia; devia ser
precedida de um inquérito destinado a ajuizar do bem fundado da solicitação; devia
estabelecer se sim ou não tal abuso ou tal embriaguez, tal violência ou tal liberti -
nagem eram merecedores de internamento, [114] em que condições e por quanto
tempo: tarefa da polícia, que, para este fim, recolhia testemunhos, delacções, e todo
aquele equívoco murmúrio que turva o ambiente em volta de cada um.
O sistema lettre de cachet-enclausuramento não passou de um breve episódio: não
mais de um século e localizado em França somente. Nem por isso é menos
importante na história dos mecanismos de poder. O que ele assegura não é a irrupção
espontânea do arbítrio real no elemento mais quotidiano da vida, mas antes a sua
distribuição segundo circuitos complexos e todo um jogo de pedi dos e réplicas.
Abuso do absolutismo? Talvez; mas não no sentido de o monarca abusar pura e
simplesmente do seu próprio poder, e sim no sentido de cada um poder fazer uso por
si, para os seus próprios fins e contra os outros, da enormidade do poder absoluto:
uma espécie de disponibilização dos mecanismo da soberania, uma possibilidade,
dada a quem for suficientemente habilidoso para os captar, de lhes desviar os efeitos
em proveito próprio. Daí um certo número de consequências: a soberania política
vem inserir-se ao nível mais elementar do corpo social ; de sujeito a sujeito – trata-se,
por vezes, dos mais humildes –, entre os membros de uma mesma família, em
relações de [115] vizinhança, de interesse, de profissão, de rivalidade, de amor e de
ódio, é possível fazer valer, além das tradicionais armas da autoridade e da
obediência, os recursos de um poder político que tem a forma do absolutismo; cada
um, se souber jogar o jogo, pode tornar -se face ao outro um monarca terrível e sem
lei: homo homini rex; uma cadeia política inteira vem entrecruzar -se com a trama do
quotidiano. Mas este poder, há ainda que apropriá -lo, canalizá-lo, captá-lo e
inflecti-lo na direcção pretendida, ao menos por um instante; para fazer uso dele em
proveito próprio, é preciso seduzi -lo; torna-se, ao mesmo tempo, objecto de cobiça
e objecto de sedução; desejável pois, e isto na exacta medida em que é absolutamente
temível. A intervenção de um poder político sem limites nas relações quotidianas
torna-se assim não apenas aceitável e familiar, mas também profundamente desejada,
sem deixar de se transformar, por esse mesmo facto, no tema de um medo
generalizado. Nada há de surpreendente nesta tendência que, pouco a pouco, abriu as
relações de pertença ou de dependência tradicionalmente ligadas à família a controles
administrativos e políticos. Nem é de surpreender que o desmesurado poder do rei,
ao funcionar assim no meio das paixões, das raivas, das misérias e das vile-[116]zas,
tenha podido tornar-se, a despeito ou em virtude da sua própria utilidade, objecto de
execreção. Aqueles que faziam uso das lettres de cachet, e o rei que as concedia, foram
apanhados na armadilha da sua cumplicidade: os primeiros perderam cada vez mais
o seu poder tradicional, em proveito de um poder administrativo; q uanto ao
segundo, ao imiscuir-se todos os dias em tantos ódios e intrigas, tornou-se odioso.
Como dizia o duque de Chaulieu, creio eu, nas Mémoires de deux jeunes mariés, ao cortar a
cabeça ao rei, a Revolução francesa decapitou todos os pais de família.
De tudo isto, gostaria de reter de momento o seguinte: com este dispositivo
das petições, das lettres de cachet, do internamento, da polícia, vai nascer uma infinidade
de discursos que atravessam em todos os sentidos o quotidiano e se encarregam, mas
de um modo completamente diferente da confissão, do mal minúsculo das vidas sem
importância. Nas teias do poder, ao longo de circuitos bastante complexos, vêm
perder-se as disputas entre vizinhos, as querelas entre pais e filhos, os
desentendimentos domésticos, os excessos do vinho e do sexo, as brigas públicas e
não poucas paixões secretas. Houve nisto como que um imenso e omni presente
apelo à discursificação de todas [117] aquelas agitações e de cada um daqueles
pequenos sofrimentos. Começa a erguer-se um murmúrio imparável: aquele
mediante o qual as variações individuais da conduta, as vergonhas e os segredos são
oferecidos pelo discurso à acção do poder. O insignificante deixa de pertencer ao
silêncio, ao rumor passageiro ou à confidência fugaz. Todas aquelas coisas que
constituem o ordinário, o pormenor insignificante, a obscuridade, os dias sem glória,
a vida comum, podem e devem ser ditas, – mais, escritas. Tornam-se descritíveis e
transcritíveis, na própria medida em que são atravessadas pelos m ecanismos de um
poder político. Durante muito tempo, não mereceram ser ditos sem escárnio senão
os feitos dos grandes; o sangue, o nas cimento e a façanha, e só eles, davam direito à
história. E se alguma vez acontecia aos mais humildes serem guindados a uma
espécie de glória, era por qualquer facto extraordinário, – o fulgor da santidade ou a
desmedida de um delito. Que na ordem quotidiana pudesse haver qualquer coisa
como um segredo a desvendar, que a insignificância pudesse ser, de certa maneira,
importante, tal permaneceu excluído até que viesse pousar, nessas turbulências
minúsculas, o alvo olhar do poder.
[118] Nascimento, pois, de uma imensa possibilidade de discurso. É aí que,
pelo menos em parte, tem a sua origem um certo saber do quotidiano e, com ele, uma
grelha de inteligibilidade que o Ocidente se encarregou de assentar sobre os nossos
gestos, sobre as nossas maneiras de ser e de agir. Mas para tanto foi necessária a
presença ao mesmo tempo real e virtual do monarca; foi preciso imaginá -lo
suficientemente próximo de todas aquelas misérias, suficientemente atento à menor
daquelas desordens, para que fosse tomada a iniciativa de o solicitar; foi preciso que
ele próprio surgisse dotado de uma espécie de ubiquidade física. Na sua forma pri -
meira, este discurso sobre o quotidiano encontrava -se inteiramente voltado para o
rei; dirigia-se a ele; tinha de se insinuar nos grandes ritos cerimoniais do poder; devia
adoptar-lhe a forma e revestir os respectivos signos. O banal não podia ser dito,
escrito, descrito, observado, esquadrinhado e qualificado, a não ser no interior de
uma relação de poder dominada pela figura do rei, – pelo seu poder efectivo e pelo
fantasma do seu poderio. Daí a forma singular deste discurso: exigia uma linguagem
decorativa, imprecatória ou suplicante. Cada uma destas historietas de todos os dias
devia ser dita com a ênfase dos raros acontecimentos que são dig-[119]nos de
concitar a atenção dos monarcas; uma retórica grandiosa devia envolver estas
questões de lana-caprina. Nunca a tristonha administração policial, nem os arquivos
da medicina ou da psiquiatria, voltarão posteriormente a encontrar semelhantes
efeitos de linguagem. Umas vezes, um sumptuoso edifício verbal para contar uma
vileza obscura ou uma pequena intriga; outras vezes, meia-dúzia de frases breves que
fulminam um desgraçado e o devolvem à noite que é a sua; ou ainda o longo relato
dos infortúnios contados ao tom da súplica ou do auto-rebaixamento: o discurso
político da banalidade não podia ser senão solene.
Mas também se produz nestes textos um outro efeito de desproporção. Era
frequente acontecer que os pedidos de internamento fossem feitos por pessoas de
muito baixa condição, pouco ou nada alfabetizadas; elas próprias, com os seus
parcos conhecimentos, ou, em seu lugar, um escriba mais ou menos hábil, compunha
como podiam as fórmulas e os torneados que julgavam exigíveis sempre que se
dirigissem ao rei ou aos grandes, e misturavam-nos com as palavras desastradas e
violentas, as rudezas de expressão com as quais sem dúvida pensavam conferir mais
força e verdade às suas súplicas; deste modo, em frases solenes e descabidas, ao lado
de [120] termos anfigúricos, avultam expressões rudes, desajeitadas, malsoantes;
com a linguagem obrigatória e ritual entrelaçam-se as exasperações, as cóleras, as
fúrias, as paixões, os rancores, as revoltas. Uma vibração e um ardor selvagens
desaprumam as regras deste discurso empolado e abrem caminho com as suas
próprias maneiras de dizer. Assim fala a mulher de Nicolas Bienfait: ―toma a
liberdade de representar muito humildemente a Vossa Senhoria que o dito Nicolas
Bienfait, cocheiro de aluguer, é um homem muito desabrido que a mata com
pancada, e que vende tudo tendo já feito morrer as suas duas mulheres de que a pri -
meira matou-lhe o filho no corpo, a segunda depois de lhe ter comido e vendido, com
os seus maus-tratos a fez morrer à míngua, a ponto de querer estrangulá -la na véspera
da morte... A terceira, quer-lhe comer o coração no churrasco para não falar em
muitos outros assassínios que fez; Senhor meu, lanço-me aos pés de Vossa Grandeza
para implorar a Vossa Misericórdia. Espero da vossa bondade que me façais justiça,
pois estando a minha vida em risco a todo o momento, não deixarei de pedir ao
Senhor pela conservação da vossa saúde...‖.
Os documentos que aqui reuni são homogéneos; e muito se arriscam a parecer
monó-[121]tonos. Todos porém funcionam à base da desproporção. Desproporção
entre as coisas relatadas e a maneira de as dizer; desproporção entre aqueles que se
queixam e suplicam e os que sobre eles detêm todo o poder; des proporção entre a
ordem minúscula dos problemas levantados e o gigantismo do poder a que se lança
mão; desproporção entre a linguagem da cerimónia e do poder e a das exaltações ou
das impotências. São textos que elevam o olhar para Racine, ou Bossuet, ou
Crébillon; mas trazem consigo toda uma turbulência popular, toda uma miséria e
toda uma violência, toda uma ―baixeza‖ como se dizia, que nenhuma literatura dessa
época teria podido acolher. Fazem com que os maltrapilhos, os desgraçados ou os
simples medíocres se dêem a ver num estranho teatro em que adquirem portes,
ressonâncias de voz, grandiloquências, em que se ataviam com as roupagens de que
necessitam se querem que se lhes preste atenção no palco do poder. Fazem às vezes
lembrar um pobre grupo de saltimbancos melhor ou pior arreados de ouropéis que já
viram dias de fausto, prontos para actuar perante um público de ricos que troçará
deles. Salvo que é a sua própria vida que representam, e diante de poderosos que dela
podem decidir. Persona-[122]gens de Céline a quererem fazer-se ouvir em Versalhes.
Virá o dia em que toda esta desproporção se irá ver suprimida. O poder que
se exercerá a nível da vida quotidiana já não será o de um monarca próximo e
distante, todo-po-deroso e volúvel, fonte de toda a justiça e objecto de seja que
sedução for, simultaneamente princípio político e força mágica; será constituído por
uma rede fina, diferenciada, contínua, onde se dissemi nam as diversas instituições da
justiça, da política, da medicina, da psiquiatria. E o discurso que se irá formar então
já não terá uma teatralidade artificial e inepta; desenvolver -se-á numa linguagem que
terá a presunção da observação e da neutralidade. O banal será analisado de acordo
com a grelha eficaz mas cinzenta da administração, do jornalismo e da ciência; sob
condição de ir procurar os seus esplendores um pouco mais longe, na literatura. Nos
séculos XVII e XVIII, encontramo-nos ainda nas toscas e bárbaras eras em que tais
mediações não existem; o corpo dos miseráveis defronta-se quase directamente com
o do rei, a agitação deles com as suas cerimónias; também já não há linguagem
comum, mas um choque entre os gritos e os rituais, entre as desorden s que se querem
dizer e o rigor das formas que é preciso seguir. Daí, para nós que olhamos de [123]
longe este primeiro afloramento do quotidiano no código do político, as estranhas
fulgurações, qualquer coisa de pungente e de intenso, que haverá de perder-se
posteriormente, quando se fizerem, daqu elas coisas e daqueles homens, ―processos‖,
actualidades de jornal, casos.
*
* *
Momento importante, aquele em que uma sociedade atribuiu palavras,
maneiris-mos e grandes frases, rituais de linguagem, à ma ssa anónima do povo para
que possa falar de si mesmo – falar publicamente e sob a tripla condição de esse
discurso ser dirigido e posto a circular no interior de um dispositivo de poder bem
definido, de fazer aparecer o fundo até então quase imperceptível das existências e
de, a partir dessa guerra ínfima das paixões e dos interesses, dar ao poder a
possibilidade de uma intervenção soberana. O ouvido de Dionísio era uma
maquinazinha bem elementar quando comparada com esta. Como o poder seria sem
dúvida agradável e fácil de desmantelar, se se limitasse a vigiar, espiar, surpreender,
proibir e punir; mas incita, suscita, produz; não é apenas olho e ouvido; faz agir e
falar.
[124]Esta maquinaria foi sem dúvida importante para a constituição de novos
saberes. Também não é alheia a todo um novo regime da literatura. Não quero com
isto dizer que a lettre de cachet tenha estado na origem de formas literárias inéditas, mas
sim que, na viragem dos séculos XVII e XVIII, as relações entre o discurso, o poder,
a vida quotidiana e a verdade se estabeleceram de um modo novo, no qual a literatura
se encon trava também ela comprometida.
A fábula, no verdadeiro sentido da palavra, é o que merece ser dito. Durante
muito tempo, na sociedade ocidental, a vida de todos os dias só pôde ter acesso ao
discurso quando atravessada e transfigurada pelo fabuloso; era preciso que ela fosse
retirada para fora de si própria pelo heroísmo, a façanha, as aventuras, a providência
e a graça, eventualmente a perversidade; era preciso que fosse marcada por um toque
de impossível. Só então se tornava dizível. Aquilo que a punha fora de alcance
permitia-lhe funcionar como lição e exemplo. Quanto mais a narrativa fugisse ao
vulgar, mais força tinha para fascinar ou persuadir. Nesse jogo do
―fabuloso-exemplar‖, a indiferença face ao verdadeiro e ao falso era pois
fundamental. E se acontecesse alguém tomar a iniciativa de di zer por mor dela
mesma a mediocridade do [125] real, mais não era que para provocar u m efeito
cómico: o simples facto de se falar disso fazia rir.
Desde o século XVII, o Ocidente viu nascer toda uma ―fábula‖ da vida
obscura de onde o fabuloso se achou proscrito. O impossível ou o irrisório deixaram
de ser a condição sob a qual se poderi a contar o ordinário. Nasce uma arte da
linguagem cuja tarefa já não é cantar o improvável, mas pôr em evi dência o que não
é evidente – o que não pode ou não deve ser evidente: dizer os graus últimos, e os
mais ténues, do real. A partir do momento em que se instala um dispositivo para
forçar a dizer o ―ínfimo’, aquilo que não se diz, que não merece glória nenhuma, o
―infame‖ portanto, toma forma um novo imperativo que vai constituir o que se
poderia chamar a ética imanente ao discurso literário do Ocidente: as suas funções
cerimoniais vão esbater-se pouco a pouco; já não terá por tarefa manifestar de modo
sensível a excessiva exuberância da força, da graça, do heroísmo, do poder; mas sim
ir à procura daquilo que é mais difícil de notar, o mais oculto, o que dá mais trabalho
a dizer e a mostrar, enfim o mais interdito e o mais escandaloso. Uma espécie de
injunção de desentranhar a parte mais nocturna e mais quotidiana da existência (com
risco de lá des-[126]cobrir por vezes as figuras solenes do destino) vai traçar aquela
que é a direcção para que pende a literatura desde o século XVII, desde que é
literatura no sentido moderno do termo. Mais do que uma forma específica, mais do
que uma relação essencial com a forma, é este constrangimento, eu ia dizer esta
moral, aquilo que a caracteriza e que até nós transportou o seu imenso movimento:
dever de dizer os mais comuns dos segredos. A literatura não resume por si só esta
grande política, esta grande ética discursiva; também não se lhe reconduz
inteiramente; mas é aí que ela tem o seu lugar e as suas condições de existência.
Daí a sua dupla relação com a verdade e o poder. Enquanto que o fabuloso só
pode funcionar no terreno indeciso entre verdadeiro e falso, a literatura, no que lhe
toca, instaura-se numa decisão de não-verdade: dá-se explicitamente como artifício,
comprometendo-se porém a produzir efeitos de verdade como tal reconhecíveis; a
importância que, na época clássica, se concedeu ao natural e à imitação é uma das
primeiras maneiras de formular este funcionamento ―em verdade‖ da literatura. A
ficção substituiu desde essa altura o fabuloso, o romance libertou -se do romanesco e
não se desenvolverá a não ser na medida em que dele se for [127] libertando cada vez
mais completamente. A literatura faz assim parte daquele grande sistema de coacção
por meio do qual o Ocidente obrigou o quotidiano a pôr -se em discurso; todavia, ela
ocupa aí um lugar especial: obstinada a procurar o quotidiano por debaixo dele
próprio, a ultrapassar limites, a levantar brutal ou insidiosamente segredos, a
deslocar regras e códigos, a fazer dizer o inconfessável, ela terá tendência a pôr -se
fora da lei, ou pelo menos a tomar a seu cargo o escândalo, a transgressão ou a
revolta. Mais do que qualquer outra forma de linguagem, é a ela que continua a ser o
discurso da ―infâmia‖: cabe-lhe dizer o mais indizível – o pior, o mais secreto, o mais
intolerável, o vergonhoso. O fascínio que, desde há anos, uma sobre a outra exercem
psicanálise e literatura, é, neste ponto, significativo. Que não se esqueça, porém, que
esta posição singular da literatura não é senão o efeito de um certo dispositivo de
poder que atravessa, no Ocidente, a economia dos discursos e as estratégias do
verdadeiro.
Dizia, ao começar, que estes textos, gostaria eu que fossem lidos como outras
tantas ―novelas‖. Era ir longe demais, sem dúvida; nunca nenhum chegará à menor
das narrativas de Tchekhov, de Maupassant ou de James. Nem ―quase‖ nem
―sub-literatura‖, [128] não há neles nem sequer um esboço de género; há-o na
desordem, no som e na fúria, no labor que o poder põe nas vidas, e no discurso que
aí tem origem. É uma destas histórias a que conta Manon Lescaut.

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