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Nildo Viana*
A teoria das classes sociais de dificuldades acima aludidas se
Marx é uma parte de sua obra, assim reproduzem também neste caso, bem
como várias outras, que deixou como em outros semelhantes (Fisher,
inacabada. Apesar da importância das Bagú, etc.).
classes sociais na teoria geral de Marx, Sendo assim, assume grande
ele não escreveu uma obra completa importância não só fazer uma releitura e
sobre o assunto. Em O Capital, o capítulo análise rigorosa de sua obra para resgatar
que seria dedicado às classes ficou em o pensamento de Marx como, também,
apenas três páginas. Vários trechos de fazer a leitura, análise rigorosa e crítica
diversas obras ele retoma e discute as dos intérpretes de Marx, inclusive
classes sociais, em geral ou específicas. buscando descobrir as raízes das
Curiosamente, ninguém se deu ao interpretações equivocadas. Os “não-
trabalho de selecionar estes trechos e leitores” de Marx tendem a aceitar
produzir uma coletânea, tal como foi acriticamente tais interpretações e os
feito com seus textos sobre religião maus-leitores também. Os não-leitores e
(Marx e Engels, 1972), educação (Marx e maus-leitores de Marx, para usar
Engels, 1992), colonialismo (Marx e expressão de André Gorz (1982),
Engels, 1970), arte (Marx e Engels, precisam ser alertados das más
1986), sindicalismo (Marx e Engels, interpretações. O objetivo deste artigo é
1980), Anarquismo (Marx e Engels, justamente submeter a uma análise crítica
1987), entre outros fenômenos. Isso cria a interpretação problemática da
uma dificuldade a mais no processo de concepção de classes em Marx realizada
interpretação do conceito de classes em por Lefebvre, sendo o primeiro de uma
Marx e faz com que muitas interpretações série de textos analisando outras
sejam extremamente problemáticas. interpretações com o mesmo objetivo.
Claro que problemas de outra ordem são Lefebvre inicia o capítulo de sua
mais importantes, tal como os valores, obra “Sociologia de Marx”, dedicada ao
concepções, sentimentos, daqueles que tema da “Sociologia das classes sociais”
fazem a interpretação, bem como a afirmando que irá “examinar a noção de
formação intelectual do intérprete, o classes em Marx” nos “quadros sócio-
contexto histórico, a influência das econõmicos do capitalismo de livre
interpretações canonizadas, etc. concorrência” (Lefebvre, 1979, p. 67).
Os adversários de Marx buscaram Antes já havia afirmado que Marx não
criticar sua concepção, mas nem sequer pôde prever a vitalidade e elasticidade do
chegaram a entendê-lo (Aron, capitalismo. A razão desta afirmação se
Dahrendorf, Gurvitch, etc.). Outros encontra na sua tese de que a partir da
partem da deformação leninista do Segunda Guerra Mundial surgiram novas
pensamento de Marx e sua formulação classes e frações de classes e outras
sobre classes, para fazer uma imposição desapareceram, bem como as fronteiras
interpretativa muito mais do que uma entre elas em alguns casos se acentuaram,
análise rigorosa. Por fim, temos aqueles em outros se apagaram, e tudo isso sob
que querem manter fidelidade ao formas diversas, dependendo dos países,
pensamento de Marx e são pensadores da “estrutura” e da “conjuntura”.
mais complexos e refinados, tal como é o Essas afirmações já deixam claro
caso de Henri Lefebvre. Porém, as alguns pontos problemáticos do texto de

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Lefebvre. A análise se limitará ao Porém, para quem leu obras como A
capitalismo livre-concorrencial e isto Ideologia Alemã (1982), Manifesto do
significa que deixará de lado as classes Partido Comunista (1988), A Sagrada
sociais no pré-capitalismo e, por Família (1979), entre diversas outras, ou
conseguinte, os textos de Marx que mesmo O Capital (obra central da análise
abordam este período. Isto provoca, em de Lefebvre), sabe que não é bem assim.
1º lugar, um recorte arbitrário da obra de A primeira frase do Manifesto Comunista
Marx e, em 2º lugar, a desconsideração é suficiente: “a história de todas as
do conceito de classes sociais em Marx. sociedades tem sido até hoje a história
Isto, porém, não é gratuito, como das lutas de classes” (Marx e Engels,
veremos adiante, pois Lefebvre defende a 1988). Sem dúvida, é possível afirmar
tese de que as classes sociais só existem, que Lefebvre evitou as demais obras de
efetivamente, no capitalismo. Segundo Marx por algum motivo razoável. Porém,
ele: isto só se justifica se ele houvesse
A sociedade na qual, explicitado tal razão, o que não fez.
segundo Marx, a polarização em Alguns recusam utilizar o Manifesto
classes antagônicas torna-se
essencial é uma sociedade Comunista e justificam sua opção, outros
historicamente tardia, a última a recusam as obras de juventude e
surgir antes do socialismo, o explicam a razão, o que Lefebvre não fez
capitalismo. Antes dela, todas as no caso das diversas obras que deixou de
sociedades, todas as etapas da lado.
formação econômico-social
apresentam cisões, oposições, A afirmação taxativa de que Marx
contrastes, conflitos. Onde faltam “jamais confundiu” classes com castas e
essas oposições, a sociedade outros grupos é tão questionável que
estagna ou regride. As sociedades outros autores dizem, com a mesma
não mudam, não progridem e não tranqüilidade, o contrário:
se destroem senão em função das Classe é uma realidade
diferenças e oposições internas que genérica. Dentro da denominação
elas contêm. Contudo, até o classe se incluem a casta, o
capitalismo essas oposições são, estamento, a classe social do
sobretudo, traços distintivos, em capitalismo industrial e qualquer
vez de conflitos essenciais outro grupo que na história
(Lefebvre, 1979, p. 67-68). desempenhou funções estritamente
Lefebvre aprofunda o seu conectadas com um mecanismo de
pensamento citando o exemplo da dominação (Bagú, 1972, p. 123).
sociedade feudal: “Esta sociedade tem, Claro que a afirmação acima
pois, por característica uma hierarquia e também é problemática (o difícil é
não uma polarização. Marx jamais encontrar algum autor que aborde classes
confundiu os grupos, as castas, as classes em Marx sem dizer o que não está dito
em via de formação, com as classes em lugar algum e trocar as afirmações).
constituídas e polarizantes” (Lefebvre, O procedimento de Lefebvre é
1979, p. 68). O que Lefebvre diz aqui é problemático por afirmar algo como não
que as classes sociais só existem no passível de discussão e definitivo, que,
capitalismo, que é onde há a no fundo, não é tão claro assim.
“socialização da sociedade”, através da A ideia de polarização é um
expansão das comunicações e trocas e equívoco menor, pois trechos de Marx
superação dos particularismos. Marx dão margem para esta interpretação, que,
“jamais confundiu” castas e grupos com no entanto, desconhece Lefebvre, é um
classes sociais, diz Lefebvre. Obviamente momento da análise na qual Marx
que, deixando de lado diversas obras de distingue “classe em si” e “classe para
Marx, esta afirmação seria aceitável. si”, sendo que, em ambos os momentos já
o
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se trata de classes sociais, inclusive no as classes. Segundo ele, “a análise se faz
primeiro, antes da “polarização”. em três níveis, sobre três planos
Lefebvre, mais à frente, percebe esta simultâneos”. Estes seriam “a forma pura
distinção, mas não a aprofunda e nem (lógica); a relação entre forma e
percebe que cai em contradição devido a conteúdo, os produtos reais (lógica
isto. dialética); o trabalho social e suas
Lefebvre busca discutir a questão contradições internas (movimento
das classes sociais a partir de um resumo dialético que envolve as determinações
das 100 primeiras páginas de O Capital. precedentes e permite a exposição em
Procedimento curioso, mas justificado: “a conjunto” (1979, p. 74).
polarização da sociedade em classes que Aqui Lefebvre atribui a Marx
mantém relação essencialmente conflitiva procedimentos intelectuais formais
só se dá juntamente com um fato dito inexistentes em sua obra. Essas
econômico: a generalização da abstrações em nada contribuem para o
mercadoria” (Lefebvre, 1979, p. 68). entendimento da obra de Marx, apenas
Assim, Lefebvre apresenta como Marx obscurece. Claro que algumas
define mercadoria e aponta o processo de semelhanças, principalmente formais,
produção capitalista de mais-valor. E podem ser encontradas, mas a questão é
assim o capitalismo é apresentado como que isto complica o que já é complexo e
a única sociedade de classes da história. dificulta ao invés de facilitar a
Lefebvre, ao fazer isso, limita sua análise compreensão. Sem dúvida, como
à sociedade moderna, o “objeto de Lefebvre além de sociólogo é filósofo,
estudo” da sociologia. Assim, o trabalho muitas vezes deixa seu lado filosófico
intelectual especializado de sociólogo tomar proporções exageradas e
limita o nível da análise, transformando desmotivadas.
Marx em um “sociólogo”, o que ele não Segundo Lefebvre, as classes e suas
foi, nem no sentido intelectual, nem no lutas podem ser analisadas em vários
profissional. Não é sem motivo que o níveis: o nível das forças produtivas e das
título do livro de Lefebvre é “Sociologia relações de produção, o nível das
de Marx”. relações de propriedade e relações
Depois de discutir a mercadoria, jurídicas, o nível das ideologias, o nível
Lefebvre chega a uma definição da classe das superestruturas políticas, embora não
capitalista e da classe operária: faça nenhuma análise substancial sobre
A forma da mercadoria e a tais níveis, com exceção do primeiro.
do contrato tornam-se níveis de Essa abordagem de níveis é problemática
realidade em sua sociedade
histórica e em uma práxis concreta. e não-marxista e parece uma recaída na
Essa sociedade e essa práxis “doutrina dos fatores”, já amplamente
necessariamente se polarizam: de criticada por Labriola (1959) e Plekhanov
um lado, aqueles que utilizam e (1989) e no início do século 20, em 1902
manejam as formas (mercadoria, e 1908, respectivamente1.
dinheiro e capital, contratos); do
outro, aqueles que detêm somente O nível em que ele consegue
este conteúdo ativo e produtivo: o desenvolver melhor uma análise
trabalho, isto é, a força e o tempo realmente relacionada com as classes
de trabalho social. Em economia sociais é o das forças produtivas e
política, é preciso entender por relações de produção. A classe operária,
proletário o assalariado que produz
o capital e o faz frutificar
1
(Lefebvre, 1979, p. 74). Isso se reproduz em outra obra sua, na qual
Lefebvre discute “formas, funções, distingue, ideologicamente, uma “filosofia”,
estruturas” como categorias para analisar “moral”, “sociologia”, “economia” e “política”
no marxismo (Lefebvre, 1979b)
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nesse nível de análise, aparece como confundir o que o intérprete pensa com o
força produtiva e também como força que pensa o interpretado.
social e política e a burguesia como Lefebvre prossegue relacionando
responsável pela transformação constante trabalho produtivo com “trabalhador
da produção. O estudo das relações de coletivo”. No capitalismo, o trabalhador
produção mostra “uma estrutura de classe coletivo expressa o conjunto das
móvel e complexa”, na qual uma mesma unidades de produção (empresas
base econômica sofre influência de vários capitalistas) com sua própria organização
“fatores empíricos”, produzindo visando produção de bens materiais,
gradações e variações consideráveis. principalmente lucro. A noção de
Lefebvre cita o exemplo da produção trabalhador coletivo, no entanto, muda
agrícola, devido sua diferença com a dependendo da sociedade e modo de
produção industrial, na qual a análise produção. A partir disso Lefebvre
“distingue diferentes classes, frações de começa a definir quais são os
classes e camadas sociais”. trabalhadores produtivos e improdutivos:
Curiosamente, Lefebvre em lugar
nenhum explica o que são frações de Técnicos, engenheiros
classes e camadas sociais. Ao nível das fazem parte dos trabalhadores
produtivos. A agricultura, a pesca, a
forças produtivas, a análise não pode ser indústria extrativa, as indústrias de
concluída, pois “estrutura e conjuntura transformação, a construção de
agem perpetuamente uma sobre a outra” edifícios e sua reparação, o
(Lefebvre, 1979, p. 77). Porém, a transporte de mercadorias devem
diversidade e mobilidade não anulam a ser consideradas atividades
produtivas. Da mesma forma, certas
polarização das classes que é a base da atividades comerciais (conservação,
análise. estocagem, transporte de bens
O estudo das classes a partir da consumíveis). Outras atividades
divisão do trabalho deve abordar comerciais (publicidade) são
diferenças “difíceis de definir”, mas improdutivas. Da mesma forma, os
‘serviços’ materiais e culturais, a
importantes, tal como entre trabalho educação, a pesquisa científica. Da
produtivo e improdutivo. Para Lefebvre, mesma forma ainda o aparelho
para Marx, o trabalho é produtivo quando estatal, o aparelho bancário e
gera lucro. A distinção entre trabalho financeiro, as forças armadas, a
produtivo e improdutivo não coincide polícia, a burocracia, o aparelho de
distribuição comercial, etc.
com a distinção entre trabalho manual e (Lefebvre, 1979, p. 79).
intelectual. A abordagem de Lefebvre
neste ponto é confusa e desarticulada. Aqui Lefebvre faz outra confusão e
Isto é visível no fato dele não explicitar a novamente cai em contradição. Antes
razão de discutir a distinção entre afirmou que o trabalho é produtivo
trabalho produtivo e improdutivo, já que quando gera lucro para o capitalista e
ele não aborda a relação disto com a depois diz que o trabalho em publicidade,
questão das classes sociais. Além disso, educação, etc., são “improdutivos”. Um
simplifica o pensamento de Marx sobre o educador ou um publicitário que
trabalho produtivo, inclusive passando trabalham para empresa educacional ou
por cima das contradições que ele de publicidade geram lucro e porque não
manifesta nesse caso. Lefebvre atribui a seria produtivo no sentido fornecido por
Marx uma posição que é a dele e para ele Lefebvre? O seu exemplo, apresentado
parece estar “resolvida”, o que é um antes desta definição, sobre teatro e
equívoco grave de interpretação, trabalho produtivo mostra justamente o
contrário. Além disso, passa de
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categorias profissionais (engenheiros, época, mas nem por isso ele generalizou
técnicos) para formas de produção a tendência presente no ser-de-classe do
(agricultura, indústria de transformação, proletariado para as demais classes
etc.) e termina com serviços e aparatos sociais.
(estatal, bancário). Ora, o “aparato Lefebvre afirma que a estrutura da
bancário” tem tanto banqueiros quanto sociedade (a constelação de classes e
bancários, além de funcionários de frações de classes) muda com as
limpeza, segurança. E o mesmo vale para mudanças conjunturais. Assim, para
o resto. Lefebvre não percebe que Marx comprovar isso, ele afirma que Marx
fornece definições diferentes de trabalho observou, em 1848, oito classes sociais
produtivo e por isso acaba reproduzindo na Alemanha (senhores feudais,
as contradições dele sem a sua burguesia, pequena burguesia,
profundidade2. campesinato grande e médio, pequenos
Lefebvre resume sua concepção de camponeses, servos, operários agrícolas,
classes sociais: operários industriais) e sete classes na
Primeiro ponto: Não há França (burguesia financeira, burguesia
classes sem luta de classes, sem industrial, burguesia mercantil, pequena
lutas políticas. Enquanto não entra
na arena política, ao nível superior burguesia, camponeses, proletariado e
da práxis, com uma práxis lumpemproletariado)3. Lefebvre aqui
revolucionária, uma classe só existe afirma um truísmo, pois obviamente dois
virtualmente (é uma ‘classe em si’ e países em estágio de desenvolvimento
não ‘para si’). Segundo ponto: as capitalista diferenciado irão possuir
classes polarizadas, em luta e
conflito, não deixam de constituir estrutura de classes diferentes, o que
uma unidade. Esta unidade recebe confirma outro truísmo: é preciso analisar
uma denominação geral (a o “conjuntural” também. Claro que,
‘sociedade’), uma denominação tendo em vista os leitores iniciantes ou as
particular (a nação) ou uma deformações do pensamento de Marx,
denominação singular (a divisão
dos trabalhos complementares nas isso pode ter uma certa utilidade, mas no
unidades de produção). Os conflitos plano teórico não avança muito na
permitem-nos acentuar a unidade; compreensão da teoria das classes
reciprocamente, desde que sociais.
acentuemos a unidade, devemos Lefebvre encerra sua análise
elucidar sua essência conflitiva
(Lefebvre, 1979, p. 6). discutindo o problema da renda das
Aqui temos mais problemas. classes sociais. Segundo ele:
As classes descritas e
Lefebvre toma como “modelo de classe” analisadas por Marx como
o proletariado e este é o seu equívoco: a essenciais no capitalismo de
burguesia e as demais classes não concorrência, a saber, os
necessitam de práxis revolucionária. A proprietários fundiários, os
“unidade” que é a sociedade possui capitalistas industriais, os
operários, tiram suas rendas de três
várias outras classes, além das fontes: a renda fundiária, o lucro, o
fundamentais (“polarizadas”). Sem
dúvida, o foco de Marx é no proletariado, 3
por ser a classe revolucionária de nossa Lefebvre, nesse ponto, não explica que apenas
classes com práxis revolucionária, ou
“polarizadas”, que seriam duas, existiam e
2
No interior de O Capital já se manifesta agora aparece essa quantidade de classes. Em
algumas afirmações que podem ser Marx, que não fez esta afirmação, isso não é
interpretadas como contraditórias e levando em problema, mas em Lefebvre, que a fez, é um
consideração outras obras (Grundrisse, Teorias problema que deveria ter sido resolvido. Outro
da Mais-Valia, O Capitulo Inédito de O problema é que confunde frações de classes
Capital), isto se torna mais intenso. com classes sociais.
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salário. No entanto, nem o Desta forma, fizemos uma breve
proprietário fundiário obtém sua exposição da abordagem de Lefebvre
renda de seus rendeiros, meeiros e
trabalhadores agrícolas, nem o sobre a concepção de classes sociais em
capitalista, de seus próprios Marx. Sem dúvida, a obra de Lefebvre
operários. O conjunto da mais-valia tem seus méritos, tal como sua definição
produzida vai na massa geral da de ideologia, sua análise do Estado no
renda nacional (Lefebvre, 1979, p. capítulo seguinte, etc., apesar de certos
88).
equívocos. No entanto, entre as obras
Aqui se revela mais um equívoco
sobre Marx, é uma das mais
de Lefebvre. Realmente Marx abordou a
interessantes. Claro que o sociologismo e
questão do mais-valor global (Marx,
filosofismo atrapalham muitas vezes,
1988), o que é quase equivalente ao
principalmente quando vai discutir
termo utilizado pela economia política
questões do modo de produção
burguesa de “renda nacional” (a
capitalista. Também, as atribuições que
diferença é que o mais-valor global é o
Lefebvre faz a Marx são outros
total de mais-valor produzido na
problemas, além das dificuldades de
sociedade e a renda nacional tem também
interpretação.
a renda produzida pelos modos de
O balanço geral que fazemos é o de
produção não-capitalistas existentes no
que Lefebvre apresentou uma análise
interior do capitalismo). Porém, Marx
muito limitada da concepção de classes
nunca fez uma afirmação metafísica
sociais em Marx, devido seu foco em O
como a de que a burguesia não explora
Capital e seus pressupostos e subsunção
seus próprios operários. Obviamente que
ao discurso sociológico e filosófico. Da
determinado capitalista, ou conjunto de
mesma forma, outros problemas ocorrem
capitalistas, exploram seus operários. Isto
devido ao fato de Lefebvre não definir o
vale apenas para os latifundiários – no
que entende por classes sociais (a
caso da análise de Marx em O Capital –
polarização acaba sendo o único e
cuja renda fundiária vem do mais-valor
abstrato critério, sem ser explicitado) e
que o capitalista extraiu do operário (e
outros termos correlatos (frações de
não do mais-valor global, que seria uma
classes, camadas sociais). A sua opção
coisa metafísica que estaria junto em
por considerar classe apenas a “classe
algum lugar e cada um tiraria sua parte).
para si” é outro obstáculo para uma
No fundo, Lefebvre não entendeu o
análise mais ampla do conceito e
conceito de mais-valor global. No caso
demonstra uma incompreensão do
do capitalista, a extração do mais-valor é
pensamento de Marx. Porém, é preciso
direta, e não como no caso de outras
contextualizar a obra de Lefebvre4.
classes, via pagamento do capitalista,
Estado, etc. Por fim, Marx também não 4
É preciso entender também que, mesmo em cada
disse que a classe burguesa, os fase, há mudanças. As duas fases aludidas
latifundiários e os proletários formam as remetem a determinadas mudanças mais
três classes essenciais do capitalismo e drásticas e, no interior delas, outras mudanças.
sim as três grandes classes – tendo como Ele mesmo faz críticas à suas obras, tal como O
foco a Inglaterra da época – e entre Materialismo Dialético, em que afirma ter
exagerado o lado filosófico (Lefebvre, 1975) ou
“grande” (critério quantitativo) e mesmo Para Compreender o Pensamento de
“essencial” (critério qualitativo), há uma Karl Marx (Lefebvre, 1975), cujo prefácio
diferença enorme (Marx, 1988). As afirma algumas mudanças, embora nada
classes fundamentais do capitalismo são fundamentais. Claro que somente uma pesquisa
a burguesia e o proletariado e nenhuma aprofundada do conjunto de sua obra, algumas
bem inacessíveis, e sua biografia, podem
mais. fornecer um quadro mais amplo da evolução do
seu pensamento.
Revista Enfrentamento – no 07, Jul./Dez. 2009 22
A primeira fase do seu pensamento Neste livro sobre Marx, que se
foi o período “marxista”-leninista, propõe a uma “nova leitura de Marx”,
quando produziu obras de caráter apesar de se afastar do leninismo, cai no
positivista e vanguardista, tal como seu erro de uma leitura filosófica e
livro sobre materialismo dialético (1969, sociológica, enquanto o autor estava além
original de 1939); sobre lógica (1979, da divisão do trabalho intelectual em
original de 1947); sobre Marx (1975, ciências particulares, não sendo nem
original de 1948), sobre Lênin (1969, mesmo uma ciência, “no sentido burguês
original de 1957), entre diversas outras. do termo” (Korsch, 1977).
A segunda fase se inicia após sua Essa breve análise deve servir de
expulsão do Partido Comunista Francês alerta para a leitura da obra de Marx e,
em 1958 (Favre e Favre, 1991), que foi a mais especialmente, sobre as classes
época mais proveitosa de sua produção. sociais e outros temas que não receberam
Este texto sobre a sociologia de Marx é grandes desdobramentos e os intérpretes,
de 1968. Nesse período já havia rompido na maioria dos casos, buscam completar
com grande parte do “marxismo”- as lacunas e os silêncios com sua
leninismo, apesar de alguns resquícios, imaginação ou suas ideologias, o que
que nunca conseguirá superar na sua promove um distanciamento cada vez
totalidade. maior do autor interpretado.

REFERÊNCIAS

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* Professor da UFG; Doutor em Sociologia pela UnB. E-mail: nildoviana@ymail.com.br

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