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PROJETO DE PESQUISA

Prof. Dr Luigi Bordin

A MÍSTICA COMO A VERDADEIRA ESSÊCIA DO CRISTIANISMO


A força da mística como contra cultura numa época de desencanto e de desesperança

EMENTA
Enquanto na Europa o cristianismo definha, na América Latina assistimos a uma enorme
expansão de religiões de satisfação de desejos que, penetrando profundamente no protestantismo e
no catolicismo, fazem da esperança cristã apenas uma força para ajudar a satisfazer os desejos
ocultando a verdadeira mensagem de Jesus em sua forma radical. Em nossa pesquisa, após de
mostrar como tais formas religiosas sofrem à influência perniciosa da cultura dominante,
apresentaremos, seguindo Marco Vannini, a proposta de “uma volta à mística cristã ocidental”,
entendida, antes de tudo, como exercício de desapego do próprio “eu” e, sobretudo, como o
verdadeiro caminho de acesso à “experiência do divino”. No espírito dum diálogo filosófico inter-
religioso, sublinharemos também as afinidades profundas entre a mística cristã ocidental com o
budismo e o hinduismo, destacando, sobretudo, os grandes filósofos do nosso tempo que, abertos à
perspectiva tanto da filosofia quanto da mística ocidental e oriental, foram testemunhas e críticos da
cultura ocidental. Em nossa pesquisa nos remeteremos, sobretudo, a Schopenhauer, Nietzsche
Wittgenstein e Simone Weil. Na primeira parte, focalizaremos a “fonte grega” da mística ocidental
detendo-nos em Platão e o neoplatomismo. Na segunda, abordaremos as afinidades entre a mística
ocidental (Eckhart) e o budismo, mostrando que os ensinamentos de Buda aparecem como uma das
formas mais potentes e coerentes do “exercício da razão”, isto é, como um pensamento dos mais
profundos e amplos que a mente humana tenha produzido. Na terceira parte, estudaremos o
pensamento de Schopenhauer e de Nietzsche e sua relação com a mística ocidental (Eckhart) e
oriental (budismo, hinduismo). Na quarta parte, no deteremos nos aspectos místicos da filosofia de
Wittgenstein e de Simone Weil,. No final, como corolário, abordaremos a relação entre filosofia,
literatura e judaísmo em Emanuel Lévinas

NÚCLEOS TEMÁTICOS DA PESQUISA E SUA JUSTIFICATIVA

PARTE I
UM EXCURSO SOBRE OS TEMAS A SEREM APROFUNDADOS

1 O desenraízamento dos jovens no meio da crise de valores hoje


Em nossas sociedades de consumo e de espetáculo vai se difundindo uma cultura hedonista e
narcisista que aliena, sobretudo a juventude, desenraizando-a dos grandes valores humanos, éticos,
políticos e religiosos tradicionais e jogando-a numa situação de mal-estar onde o relativismo e
niilismo põem em cheque a identidade e a própria subjetividade dos indivíduos. Dominados pelos
mecanismos do mercado os indivíduos arriscam perder sua autonomia e singularidade, vendo o
mundo como expectadores passivos de uma história que parece nos escapar e vendo o futuro como
uma ameaça. Com efeito hoje reina um clima difuso de pessimismo devido às poluições de diverso
tipo, desigualdades sociais, desastres econômicos, aparecimento de novas doenças e duma miríade
de violências cotidianas. De tudo isso deriva toda uma série de conseqüências negativas como um
vazio interior, uma perda de sentido da vida, uma alastrar-se de patologias psiquiátricas e, em modo
particular, de um senso de impotência e duma tristeza que atravessam todas as camadas sociais. Os
jovens estão sucumbindo às regras da sociedade de mercado e de consumo, enquanto a publicidade
através da mídia solicita neles a satisfação imediata dos desejos. Isto é, o meio sociocultural em que
vivem não favorece o amadurecimento psíquico. A fragilidade do eu e uma interioridade restrita a
emoções confinam, sobretudo, os jovens num individualismo extremado. Muitos deles tendem a
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apegar-se a modalidades de gratificação primárias, tendo dificuldade a se tornarem maduros, sendo


condicionados a viver no imaginário sem contatos com a realidade que não conhecem bem e que os
desiludem e deprimem. Pior, nem sempre esse meio transmite aos jovens os elementos capazes de
alimentar a estrutura psíquica em formação. O culto do corpo, a obsessão da velhice e da morte, a
promiscuidade e a libertinagem sexual são as manifestações duma busca narcisista (às vezes sádicos
masoquistas) de prazeres e satisfações imediatos e que não visa à alteridade. Num mundo em que o
indivíduo vive com mentalidade de consumidor, num ritmo concebido em função do instante e com
uma representação da vida virtual vinda da mídia, é urgente fazer com que os jovens descubram o
sentido da realidade. Em seu perfil psicológico, os jovens, hoje, são os resultados duma educação
falha, que centralizada nos prazeres e no consumo, produz neles uma insegurança afetiva e uma
dúvida sobre si diante do outro que os leva a uma perda do sentido. As conseqüências são trágicas:
alguns se encontram angustiados diante do empenho e da relação institucional. Nessa situação,
mesmo desejando de se casarem, muitos jovens preferem manter relações intimistas e lúdicas, às
vezes com mais pessoas, relações, porém, que ficam fora da ligação social.

2 O declínio da religião tradicional e o hedonismo como nova forma de religião


“Deus está morto” anunciava Nietzsche no ápice da crise da Modernidade, prefigurando para
os homens do século XX e agora XXI um panorama espiritual no horizonte do qual a metafísica
seria fatalmente extinguida. O Deus do qual o pensador alemão proclamava a morte não era apenas
aquele de Abraão, Cristo ou Maomé, mas o símbolo de toda uma especulação ocidental em busca de
valores absolutos, de certezas firmes ou de dados objetivos. Nietzsche denunciava, dessa forma, o
tempo do desencanto e da perda de sentido com o desfazer-se das esperanças metafísicas e dos
fundamentos sobre os quais se ancorava uma filosofia e uma teologia dogmáticas. É essa tomada
de consciência do declínio da confiança nos grandes sistemas (filosóficos ou religiosos que sejam) e
a consciência do limite da razão que explica a inquietude moderna que atravessa todo o século XX.
Talvez foi Walter Benjamin captar antecipadamente a derrota da religião tradicional vendo no
capitalismo triunfante uma nova forma religiosa, sem teologia nem fé, fundada na idolatria do útil.
Na verdade, o capitalismo se desenvolveu de forma parasitária sobre o cristianismo, substituindo
gradualmente ao poder religioso o poder econômico. Na globalização de hoje vem se estabelecendo,
em um ritmo cada vez mais avançado, a hegemonia da economia e da comunicação, comportando a
concentração de riqueza, de tecnologia e de poder que provoca, de um lado, um processo de
desigualdade e de descriminação crescente e, de outro, uma deturpação da própria palavra e língua
através da comercialização e a utilização da informação e da comunicação em moldes de sedução e
de condicionamento de clientes e consumidores, Também a religião é explorada por vários estilos
de marketing do sagrado que tomam conta das celebrações, das devoções e de todo o universo
religioso. As privações, as angústias e a frustrações, frutos dos sistemas dominadores e opressores,
estão ocasionando formas de religiosidade edulcoradas e sentimentais e formas degradadas de
religião. Por uma série de razões (secularização, difusão e apelo a uma cultura permissiva e
consumista, etc.) os jovens não receberam e não recebem mais uma verdadeira formação humana e
cristã profundas. Acontece que, na formação das idéias e na moldagem dos comportamentos,
sobretudo no campo da sexualidade, a mídia, como porta voz do mercado, e mensageira duma
cultura consumista - que leva a um uso desenfreado dos prazeres materiais, (entre os quais o sexo e
a droga) - possui uma força determinante em relação a qual, as igrejas e as religiões perderam seu
poder de convicção. Todavia, apesar de estarem envolvidos num narcisismo que os aprisiona cada
vez mais, aspiram a ingressar na vida saindo dum mal-estar que se manifesta por um enorme vazio
interior. Depois do advento do iluminismo (século XVIII) e do positivismo (século XIX), da
secularização tecnicista (século XX) e, hoje, do neoliberalismo que produz e alimenta o
individualismo, o narcisismo e o hedonismo, subsiste uma religião que não quadra mais com a
honestidade da razão. Trata-se de uma religião feita de dogmas, crenças, de objetivações
supersticiosas, ao invés que duma experiência autêntica do divino, isto é, duma religião que esvazia
do senso comum palavras como “espírito” e “alma”. A idolatria do mercado, que se vai tornando
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mais e mais dominante na globalização acumuladora de riqueza e de poder, tende a incrementar,


também, a mercantilização da experiência da religiosidade, banalizando e aviltando o que há de
mais sagrado no ser humano. Com isso, os jovens são afastados da difícil tarefa de assumir a
responsabilidade e da coragem de construir uma solidariedade universal à luz de uma ética mundial
e ecológica. Pervertida pela ambição desmedida e pelo sistema concentrador de privilégios, a
globalização torna-se a fonte de desgraça para a humanidade. Bem equipada pelos recursos da
tecnologia cada mais avançada, ela continua se afirmando como a nova herdeira da colonização, da
escravização e da dominação, isto é, das tristes figuras desumanas dos imperialismos de ontem e de
hoje e, nesse novo contexto, a religião é chamada a buscar a legitimação ideológica e a sacralização
religiosa da globalização para seus desmandos e apetites de dominação.

3 A urgência duma educação que leve a um aprofundamento da vida interior


Diante dessa situação, trata-se de proporcionar aos jovens uma educação que faça com que eles,
superando o narcisismo, o individualismo e egocentrismo, possam se abrir ao “sentido do outro”
isto é, ao amor como responsabilidade. Mas, para isso, é urgente implementar neles a “inteligência
da fé” visando que cheguem a uma verdadeira e profunda “experiência de Deus” que foi sempre
um marco cultural nas diversas tradições místicas das grandes religiões ao longo dos séculos. Faz-
se necessário, pois, voltar à mística cristã ocidental - (e em diálogo com as místicas das grandes
religiões, em particular com o budismo e o hinduísmos) - entendida como exercício de desapego
do próprio “eu” e, sobretudo, como o verdadeiro caminho de acesso à “experiência do divino”.
Iluminada pela experiência de Cristo e de sua imitação, a mística cristã na línea de mestre Eckhart
e outros místicos, - longe de opor-se ao pensamento, é, de um lado, o coração e a raiz viva de cada
religião autêntica, e, de outro, a base de um “pensamento” no sentido mais real, profundo e forte.
Precisa que entendamos, nós e os jovens (como desde sempre tinham entendido os verdadeiros
cristãos como por exemplo o filósofo Kierkegaard no século XIX e um grande escritor Dostoievski
no século XX), que a verdadeira filosofia é a prática radical da imitação de Cristo e que, fora
disso, estamos sempre mergulhados no abismo do mal. Com efeito, o cristianismo em seu
radicalismo proclama o amor como a única realidade. Sem amor, ninguém se salva. Em termos mais
radicais: ninguém se salva pela fé, pela esperança ou pela religião. Nenhuma religião salva, mas,
como afirmava já Agostinho no século IV, somente o amor. Não o amor preso ao nosso pequeno e
mesquinho eu egocêntrico (entorpecido e sedado pelo lixo da Tv e a mídia em geral) , mas o eu
aberto ao amor universal e que se dá como exercício de desapego. A essa altura, trata-se de decidir
qual é a essência do Cristianismo, se é uma religião ou, sobretudo como é de fato, a superação duma
religião reduzida só a ritos, dogmas, instituição etc., e que, na prática, é uma superstição a serviço
da idolatria do poder e sobretudo, agora, do mercado.

4 A mística como a verdadeira essência do cristianismo


Num seu livro polêmico e marcante “Teses para uma reforma religiosa” Marco Vannini, um dos
mais profundos estudiosos da Mística ocidental, na convicção que o nosso tempo apresenta
sintomas duma verdadeira doença moral e comunitária, declara que a única saída está na volta à
verdadeira compreensão da mística, fora da qual, segundo ele, é quase impossível captar o sentido.
Em defender tal posição, Vannini precisa que suas teses são fruto não tanto do seu pensamento, mas
representam una síntese do patrimônio presente na “mística especulativa” ocidental. Esse seu livro
(e as teses ali defendidas) surge da convicção que nós estamos hoje vivendo no contexto e num
estado de profunda corrupção, dum mal-estar difuso e, mais ainda, dum alastrar-se duma verdadeira
e própria “doença moral” imputável, a um declínio da religião (no seu sentido mais profundo e
verdadeiro) que traz como conseqüência, de forma inevitável, o fim de cada idealidade e da moral
em si, sem a qual a sociedade se torna somente uns acúmulos de empreendimentos em vista da
acumulação do capital, da riqueza e do poder. Diante desta constatação, porem, Vannini não se
espanta e não pensa a uma recuperação da religião tradicional que deve, ao contrário, segundo ele,
ser superada, pois, trata-se de religião ou de religiões que perderam sua essência e verdade,
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tornando-se formas de superstições que devem ser (hegelianamente) superadas a fim de deixar
emergir a mística como a verdadeira essência do cristianismo. Vannini, não tem alguma dúvida
que o mundo que hoje se declara cristão não entendeu a mensagem de Cristo, isto é, a boa nova
(evangelho) da “humanidade de Deus” e da “divindade do homem”. Segundo ele, as religiões
reveladas, os livros sagrados e as teologias construídas sobre eles, aparecem inaceitáveis ao homem
moderno, que conhecem suas origens e história. Tudo isso produz, de um lado, alienação e
superstição, do outro, ateísmo e relativismo e, sobretudo, um desarraigamento moral e social e os
conflitos que estão diante dos nossos olhos. Na verdade estamos numa crise de civilização ou, para
usar as palavras de Walter Benjamin, de “uma nova barbárie” As teses de Vannini se movimentam
ao interior da tradição místico-filosófica em que o a cultura ocidente e a cultura oriental se
encontram, individuando no liame com o ego e na sua vontade de auto-afirmação a origem da fé e
da religião como desvios e mentiras. Vannini mostra, também, como existe uma profunda
afinidade entre o budismo originário e a mística cristã, assim como também entre a mística cristã
e o hinduísmo. Com efeito, cristianismo, budismo e hinduismo fundamentam a verdadeira
identidade espiritual do homem na união com Deus e com o cosmo. Este livro de Vannini é
importante porque num modo provocatório abre um debate atual sobre a religião propondo uma
reforma religiosa que consiste numa profunda renovação do pensar e do ser, na descoberta
paradoxal do cristianismo como uma “religião” fundada, não num sentimentalismo edulcorado e no
pequeno eu egocêntrico, mas numa razão forte “especulativa” e “dialética” livre das constrições
autoritárias das burocracias institucionais, isto é uma religião fundada como “religião do espírito”.

5 A impotência das ciências humanas e psicológicas em curar as aflições da existência hoje


Segundo Vannini, a crise da religião tradicional provocou uma espantosa aflição de que já
falava Jung e que hoje se procura curar com métodos absolutamente não à altura da doença. De
fato, essa tristeza e aflição a que estamos submetidos não é outra coisa que a “perda da experiência
de Deus” no fundo da alma (Mestre Eckhart) Neste sentido, a doutrina do desapego e do controle
das paixões, proposta pela mística cristã (e, também pela mística budista e hinduísta) constitui o
verdadeiro remédio. A esse respeito Vannini se posicionou num outro livro importante: “A morte
da Alma”. Neste, ele indaga o processo através do qual a modernidade ocidental extraviou o valor
efetivo da alma perdendo, com isso, o sentido da eternidade e de sua coincidência com a divindade.
Segundo Vannini, nossa modernidade (ou pós-modernidade como quisermos chamá-la) se
caracteriza próprio pelo abandono do pensamento grego clássico e, pois, por cindir o natural do
sobrenatural, relegando este último fora do homem. Isto é, a modernidade, que teorizou a
separação dos saberes para obter com a separação dos vários objetos de análises o máximo do
conhecimento, presumiu de separar, também, o conhecimento do espírito da psique. Segundo o
grande pensamento grego, a alma é conhecível só através dum saber que coincida com o ser, através
duma prática compreensiva que mire à “salvação” e à “beatitude” e não a uma estéril procura da
“higiene mental” e do “equilíbrio psíquico”. O conhecimento da alma, para Vannini (como para os
gregos antigos), não pode ser que a forma mais radical do conhecimento de si que se desenvolve
num processo de amadurecimento e, ao mesmo tempo, de desapego regulado pela razão. Na
realidade, o modelo do conhecimento das ciências exatas, que surgiu no o século XIX com o
positivismo, foi passado, também, para as ciências humanas provocando uma desconfiança radical
nas faculdades da razão. Passou-se do conhecimento das causas a uma simples coleta e a correlação
de dados. Caiu-se com isso num relativismo que expulsou da reflexão o conceito de Deus junto ao
conceito do espírito. Não é de admirar, pois, que a nossa sociedade pós-cristã e pós-iluminista,
refugiada no sentimentalismo e na moda das mitologias (hoje elaboradas pela grande mídia) se tinha
reduzido a uma sociedade de doentes vorazes de terapias (também farmacológicas) para uma
“alma” que não se conhece mais. Apesar desse desafio,Vannini se mostra esperançoso declarando
que é agora que chegou o tempo para redescobrir a mística, levando-a fora do âmbito da religião
confessional no qual, apesar de tudo, foi canalizada e mais ainda aprisionada. Trata-se de resgatar
um pensamento, profundo, forte e poderoso que nos ajude a sair do irracionalismo e da loucura e da
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idolatria do capital, do dinheiro e do mercado, num tempo em que precisa compreender a mística
por aquilo que é, ou seja, não como uma experiência irracional, mas como prática de essencialidade,
como domínio das paixões e de desfrute de suas energias enquanto exercício capaz de conduzir-nos
ao “fundo da alma” para descobrir ai, nessa “experiência radical”, que a criatura é tudo e que
coincide com Deus.

6 A mística como “pensamento forte” e como “experiência de Deus”


Conforme Vannini, foram os filósofos gregos os grandes expertos da alma: de Platão a Plotino.
Só graça a eles existe a experiência espiritual do sucessivo mundo cristão que tem seu auge na
mística de Mestre Eckhart no final da idade média em 1300 e no século de oro na Espanha em
1600. A aquisição espanhola dos Países Baixos, na época do rei Carlos V, favoreceu entre os
espanhóis o conhecimento essencial da mística de mestre Eckhart mediante os sermões de Tauler
seu discípulo.. Em 1700, porem, houve uma progressiva marginalização da mística até o ponto que
pela cultura iluminista foi considerada como ilusão e patologia. Só em 1800 os grandes filósofos do
idealismo almão Fichte, Schelling e Hegel, todos eles sublinharam a parentela de sua filosofia com
a espiritualidade mística de Eckhart e de Tauler chamada, então, de Teologia Alemã. Hegel até
escreveu textualmente que aquilo que um tempo se chamava “místico” é o mesmo daquilo que ele
chamava “especulativo”, ou seja, a compreensão racional, dialética, da unidade dos opostos;
compreensão, essa, que faltava ao intelectualismo modesto do Iluminismo e que falta, agora, a
cultura neopositivista e academicista de hoje. Por outro lado, o significado filosófico da grande
mística medieval alemã foi reconhecido também por um grande adversário do idealismo, isto é, por
Schopenhauer, o qual achava de trazer em sua filosofia, no essencial, a mesma mensagem de
Tauler e da Teologia Alemã. Todavia, com o advento do positivismo a Mística dialética e
especulativa foi relegada, pela ciência, do âmbito da razão ao âmbito da devoção, da piedade e da
fé. Com isso não só a mística foi arbitrariamente desvalorizada, mas também a própria filosofia. No
tempo presente, no lugar da mística é a psicologia que trata da alma, entendida só como psique, sem
o conceito de espírito de que não tem mais experiência. Por isso, não é de admirar que a psicologia
se tornou um grande supermercado de escolas, doutrinas, grupos. Todavia, as mais profundas
exigências do homem não são certamente satisfeitas pela psicologia, e por isso não maravilha o
surgimento do atual interesse pela mística (às vezes através do budismo ou de outras filosofias
orientais), interesse que vem próprio duma necessidade espiritual. O uso dos conceitos de filosofia e
mística está, hoje ainda, confuso, na medida que continua ligado ao passado e suas discutíveis
interpretações e mistificações. A aposta está em confiar, hoje, por uma mais correta compreensão da
verdadeira relação entre filosofia (no sentido de especulação dialética) e Mística e de sua profunda
unidade, aí onde se capte o significado e a experiência do espírito.

7 A potência racional da mística ocidental e o amor como desapego


A fonte da mística ocidental não é a religião judaica mas o mundo e o espírito grego, como bem
mostrou a grande mística e escritora contemporânea Simone Weil. É do espírito grego que se deve
iniciar o longo e sugestivo itinerário na busca do Deus escondido. Do cristianismo emergiram
certamente figuras místicas de grande relevância, mas isso aconteceu sobretudo porque essas
souberam mediar a mensagem evangélica com a grande filosofia de Heráclito e de Platão. Porem,
mais do que à religião, a mística se liga à racionalidade da filosofia. A mística não é a piedade ou
devoção da alma, não se identifica com a santidade e menos ainda com a vida religiosa. A
experiência mística é, sobretudo, a experiência da unidade profunda do homem com Deus e da
unidade entre o mundo e Deus. A história da mística é, também, a história da luta para a liberdade
da consciência, e não por acaso está cheia de intervenções da Inquisição, como testemunham as
fogueiras em que foram queimados os grandes místicos do passado como, por exemplo, Giordano
Bruno. A experiência da mística é experiência da profunda união eu-Deus, na qual o eu não é mais
o pequeno eu psicológico, centro da vontade particular, e Deus não é mais o Ser Supremo todo
poderoso e vingativo, mas o Deus que constitui o nosso real e o nosso mais profundo “eu”. Não há
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um sujeito ou uma substância determinada que possa ser definido como “eu”. Este, pelo contrário,
configura-se como um “nada”, já que se perde numa quantidade infinita de conteúdos (volições,
sensações, pensamentos) que mudam continuamente, sem que se possa chegar a uma verdadeira
identificação. Entre os místicos encontramos os mais honestos indagadores da alma que poderíamos
definir como os verdadeiros “psicólogos do profundo”. Para esses místicos, os conteúdos
psicológicos, os pensamentos, os desejos e os instintos não são de forma alguma essenciais e
constitutivos da verdadeira realidade do homem, mas unicamente do “eu”, cuja natureza é a
vontade, absolutamente egoística, sempre em um incessante anseio de ser, de ter, de possuir. O
ponto essencial é que os místicos descobrem na vontade, com sua carga de mal, a raiz de todo o
mal. Os místicos, pois, vêem o “eu” como um aglomerado psicológico escravo duma vontade
egoística. Por isso eles pregam o desapego. Com efeito, é a prática do desapego que conduz o
homem para fora da servidão do querer, fora do pequeno eu psicológico, em busca duma região
de liberdade e do espírito. É essa região de liberdade do espírito que aparece como o verdadeiro ser
do homem e de Deus que se configura não mais como um ente, um dado, mas como puro espírito.
Tal é a experiência fundamental para o conhecimento de nós mesmos como inseridos num espírito
universal. A contraposição homem-psíquico e homem-espiritual nada mais é que a contraposição
psicologia-mística, sobre a qual é preciso, hoje, mais do que nunca, refletir. A marginalização da
mística ocorrida no final do século XVII teve, de fato, entre outras, a conseqüência do enorme
progressivo desaparecimento do espírito do terreno concreto das ciências humanas. O amor,
segundo a mística, é a divina potência que se move em direção ao infinito e só do infinito se
satisfaz, no momento que o próprio querer desaparece. A psique é toda outra coisa, radicalmente
egoística e condicionada pelo determinismo do espaço e do tempo. A perda da concreta noção de
espírito marca realmente a crise de uma civilização.

8 Filosofia e Mística no mundo moderno e contemporâneo


Entre os grandes pensadores do século XIX, Schopenhauer e Nietzsche alem por sua
originalidade tornaram-se famosos pela força corrosiva de sua crítica negativa à civilização
burguesa do tempo. Só a critica direta efetuada por Marx tem condições de estar a altura dela,
embora, a eficácia prática da crítica marxiana tenha uma relevância maior. Os dois porem se
destacam por traços místicos, tanto que são definidos “místicos sem Deus”. Schopenhauer foi o
primeiro mostrar uma via da mística por muitos aspectos nova no mundo ocidental, propondo, como
ética, o desapego e a compaixão. Enquanto a Nietzsche, sua teoria do “eterno retorno” não significa
outra coisa que o “amor ao destino” dos estóicos e o amor para a vida em sua totalidade se expressa
numa alegria que supera cada dor e que quer “profunda eternidade. No século XX aos inícios do
terceiro milênio se assiste a um convulso proliferar de “misticismos”, nos quais se expressa, embora
confusamente, uma necessidade de verdade, de sabedoria que as ciências da natureza, a matemática,
a lógica e técnica não podem satisfazer. Entre as muitas figuras que poderíamos tomar em
consideração quais místicos do século XX são particularmente significativas Ludwig Wittgenstein,
Simone Weil e Emanuel Lévinas

Schopenhauer
Numa perspectiva largamente inspirada ao budismo, Schopenhauer mostra que a vontade,
enquanto tal, é sempre egoísta, vontade de viver, de conservar si próprios e a espécie, e que porta
consigo a pena, pois é sempre dor. Como ensina o Budismo, “não existe dor igual àquele do ser”:.
Prisioneiro da vontade, o homem quer de forma incessante ser, e por isso produz sempre
sofrimento. É inútil, pois, e absurdo procurar a salvação na vontade, no mundo, na história que é
um campo de batalha dos egoísmos, o amor sexual é um instrumento cego da vontade para a
conservação da espécie, e – o que mais conta – tudo isso é sempre e somente fonte de sofrimento.
Para Schopenhauer, o fundamento da moral é a piedade, a compaixão, ou seja: o conhecimento da
dor aléia. O sofrimento dos outros, na medida que vem sentido como nosso e compartilhado, leva
à justiça e à caridade e instaura uma unidade espiritual entre todos os seres humanos, para isso
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porem precisa negar na raiz a própria vontade egoística. E é aqui, neste ponto, que o pensamento de
Schopenhauer se encontra em seus traços essenciais com a mística cristã. Ele releva que na mística
se encontra a sua própria doutrina e, junto, a essência verdadeira do cristianismo, afirmando com
clareza que “o que no Novo Testamento nos aparece como através dum véu ou duma neblina,
aparece com plenitude e evidência nas obras dos místicos” E por místicas ele entende e cita com
admiração vários autores e obras, entre os quais, Fénelon, madame Guyon, Mestre Eckhart, Tauler,
Ângelus Silesius que, todos eles ensinaram e praticaram a anulação da vontade e o desapego.
Schopenhuer foi o primeiro grande filósofo a compreender a fundo, no ocidente, o valor da
sabedoria indiana, seja na forma hinduísta, seja naquela budista. Porem, enquanto reconhecia o
grande valor da sabedoria indiana, recusava todavia as mitologias, como também sempre recusou o
conjunto mitológico do próprio cristianismo.

Nietzsche
Também Nietzsche, como a mística cristã e budista, tem a coragem de olhar sem medo a
radical não permanência do “eu” e das “coisas” e a sua ausência de valor chegando com isso a um
pleno desapego de todas as opiniões. Essa liberdade de opinião e do espírito, que se configura,
evangelicamente, como “não julgar” e de ser como o sol que “esplende dobre os justos e os
injustos”, é outro traço significativo que o remete à grande mística. Precisa distinguir nele sua
polêmica contra a moral cristã e o seu respeito para a figura do homem Jesus e por o seu
ensinamento que, segundo ele, é oposto daquele da Igreja. Igual a Schopenhauer Nietzsche quis ser
um ateu honesto mais do que um crente despudorado, só que, como em Schopenhauer, a recusa da
imagem bíblica de Deus e da teologia cristã acaba por tornar-se uma negação total de Deus. Mas,
sem Deus considerado enquanto espírito e amor infinito (além de cada representação mítica e
religiosa), o espírito decai em utilitarismo egoístico do qual vive a psicologia. Isto é: Schopenhauer
e Nietzsche não conseguiram reconhecer plenamente na mística a essência do cristianismo, como,
de resto, também as Igrejas institucionais. Com efeito, estas continuaram a apresentar o
cristianismo não como verdade, mas como uma mitologia. Não é de se maravilhar que, depois, o
positivismo (odiado tanto por Schopenhauer e por Nietzsche) tenha triunfado, opondo de forma
vulgar a “ciência” à fé e criando a imagem da mística como uma patologia psíquica. Nietzsche, nas
suas surpreendentes páginas de O Anticristo, ao separar a práxis religiosa de Jesus daquela
empreendida por seus “seguidores”, denuncia de que modo a experiência da moral cristã distorce a
mensagem originária de Jesus, sustentada por uma axiologia imanente, na qual não haveria qualquer
conotação moralista em seu discurso; pelo contrário, a dinâmica sagrada da beatitude crística é de
âmbito prático, e compreendendo-se unificado com “Deus”o indivíduo alcança em sua existência
uma alegria efetiva; mais ainda, os efeitos degenerativos do ressentimento são suprimidos, pois a
experiência evangélica de Jesus promove o amor e o perdão.

Wittgenstein
Mostra em sua obra como a ciência, a técnica e a cultura positivista contemporâneas são pobres
e incompletas. Ainda se a religião tradicional não é em condição de oferecer respostas adequadas,
todavia a própria a inteligência pode encontrar, apesar de tudo, a via que ele próprio define do
“místico”,. O místico, para ele, e compreender o mundo na perspectiva do eterno. Para
Wittgenstein, pois, a ciência da natureza, cujas regras vem estudadas pela lógica, não tem nada
haver com os valores. Isto é, o bem, como em Platão, está acima do ser, fora do âmbito dos fatos,
que são todos sob o domínio da necessidade. Leitor atento de Schopenhauer, de Silésius e dos
poetas Tralk e Rilke, com simpatia por Agostinho, Wittgenstein extraordinário filósofo da ciência,
da lógica e da matemática, tem porem a consciência que a solução do enigma da vida está fora do
espaço e do tempo e do alcance das ciências lógicas e da linguagem. Acreditar em Deus significa,
para ele, compreender a questão do sentido da vida, isto é, ver que a vida tem um sentido e entender
que os fatos do mundo não são tudo.
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Simone Weil
Vinda duma família da alta burguesa judaica, Simone Weil recebeu uma educação humanista
profunda num horizonte agnóstico. Em 1933-1934 trabalhou como operária na Renault com
participação às lutas operárias; em 1936, durante a guerra civil espanhola, se ligou a um grupo
internacional de anarquistas, e combateu na coluna Durrití. A partir dessas experiências ela
entendeu que tanto o mundo liberal capitalista quanto o mundo sonhado pelos revolucionários é
substancialmente igual, pelos menos, acerca da idêntica adoração da força. O estender-se da
adoração da força, do dinheiro, da técnica, da alienação no mundo moderno é interpretado por
Simone como desenraizamento e afastamento do bem, que é Deus. Deriva daqui a sua contundente
crítica ao mito do progresso, visto como, também, o verá Walter Benjamin, com uma catástrofe. A
crítica que ela dirigiu ao marxismo revolucionário e, depois, ao cristianismo institucional, está fora
da ortodoxia comum, mas é conduzida com uma probidade intelectual fora do comum. Nunca
ingressou no partido comunista, apesar de que durante tantos anos se sentiu muito próxima dele,
tampouco aceitou de se batizar. O pensamento de Simone Weil, que não pode ser reivindicado
integralmente nem no horizonte ético-político, nem no filosófico ou metafísico, foi, sobretudo, de
alcance místico e religioso. Em seus estudos, absorveu profundamente a grande cultura grega de
Platão, de Homero e dos trágicos, considerando Platão o cume de toda a espiritualidade do mundo
antigo e suas culturas, onde ela descobriu e salientou, também, intuições pré-cristãs. Com efeito, na
sabedoria contida nessas tradições, ela vê a mesma sabedoria que se encontra no próprio evangelho.
A reflexão religiosa de Simone se funda, como nos filósofos estóicos, na aceitação da condição
humana, considerada como a única realidade significante. Embora marcada pela contradição, a
condição humana é, para Simone, a só realidade entre a qual é possível experimentar o que não é
concebível: o belo, o bem, Deus, o divino, o sobrenatural. Trata-se, pois, não só de aceitar, mas
também de amar a condição humana assim com ela é, com suas contradições, realidade oposta e em
contraposição aos nossos desejos. Em outras palavras, para Simone crer significa aderir àquela
parte de verdade sobrenatural que cada autêntica expressão humana contém em si e que, se
estivermos atentos, nos abre ao mistério religioso e ao mistério da cruz. Seus autores são Platão,
Kant, Marx, Homero, os trágicos, os evangelhos, os textos sagrados do hinduismo e do budismo.
Nos últimos anos aparecem no centro de sua reflexão o símbolo da cruz e a imitação de Cristo que
se apoderam totalmente de sua existência. Condenou asperamente como forma de idolatria a cultura
da força, tanto no judaísmo quanto na cultura romana antiga dos imperadores, culturas, essas duas,
que segundo ela, afetaram negativamente também o cristianismo. Não existe conhecimento
sobrenatural, experiência mística, num cristianismo que não se libertou completamente dessas
influências. Por isso ela não quis receber o batismo. Só libertado da mitologia e da idolatria social e,
pois, reconduzido à sua fonte grega, o cristianismo se configura, para Simone Weil, como abertura
ao sobrenatural e à graça. Segundo ela, os pontos essenciais da experiência mística, isto é do
“conhecimento sobrenatural”, são os mesmos da grande tradição do Ocidente e do Oriente. Ela viu
no hinduismo e no budismo duas espiritualidades próximas ao verdadeiro cristianismo e
continuamente repete duma forma insistente o ensinamento de Eckhart que ao homem compete só
uma ação “negativa” de purificação, de esvaziamento na finalidade de transformar o homem, de
sujeito egoísta, em espírito universal. E, nisso, sua consonância com o platonismo é total. Sua tese
da coincidência entre platonismo e cristianismo significa que a essência do cristianismo se encontra
na mística, de que Platão é o pai no Ocidente, enquanto o judaísmo, com seu espírito teocrático, é o
oposto.´
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PARTE II
CORRESPONDÊNCIAS ENTRE PENSAMENTOS DO ORIENTE E DO OCIDENTE
A importância do diálogo com a filosofia budista para uma reforma religiosa hoje

O BUDISMO COMO UM PENSAMENTO EM SENTIDO FORTE:


um pensamento dos mais amplos e profundos que a mente humana soube produzir

Introdução
Segundo Marco Vannini, a mística especulativa cristã se encontra em modo surpreendente igual
com a aquela budista. Com efeito, tomando em sua originalidade e autenticidade, o budismo é uma
doutrina essencialmente do desapego como a de mestre Eckhart, ou seja: “Buda capta a ligação
profunda entre amor e desapego, aonde amor não é a paixão, como a comum ignorância e a
concupiscência supõem, mas [...] compreensão e compaixão” (p. 184). Foram muitos os estudiosos
que sublinharam afinidades entre a mística de Mestre Eckhart e a do budismo e do hinduismo, entre
eles Rudolf Otto, e Daisetz Teitaro Suzuki, especialmente em sua obra, “Misticismo Cristã e
Budista”. Importante foi também, também, o diálogo entre Suzuki e de Tomas Merton um dos
grandes místicos do nosso tempo. Em geral com sua mística especulativa, mestre Eckhart aparece
como a figura cristã mais exemplar do diálogo entre o oriente e o ocidente. O ponto crucial deste
diálogo e relação é o desapego e a superação do “eu psicológico” de seus laços. Também Simone
Weil , exemplar figura de mística em nossos dias, entrou em diálogo com o budismo zen, lendo e
copiando, em seus cadernos, textos de Suzuki que tiveram influência nela na elaboração de alguns
conceitos decisivos de sua própria reflexão espiritual (apego, desapego. imaginação, ilusão
compensação e ação não agente). O diálogo entre a mística cristã e budista é de suma relevância
para os nossos dias do ponto de vista dum enriquecimento e aprofundamento recíproco duma sólida
vida interior. A posição de Buda é duma modernidade que surpreende. Ele não pretende que as
religiões nos dêem soluções, mas que o homem simples compreenda a “não permanência” de tudo
o que existe, não excluso si mesmo, a partir se sua própria experiência e não se apoiando em
nenhuma resposta predeterminada. Por isso, todo esforço de Buda e do budismo põe em primeiro
lugar não a especulação ou uma doutrina, mas a meditação, a contemplação, a quietude da mente e
o silêncio interior para que o homem, por si próprio, através de sua meditação e experiência chegue
a vislumbrar a “não permanência” e a contingência de tudo o que existe. Os ensinamentos de
Buda colocam, no centro da reflexão, o sofrimento como característica da contingência humana que
se quer eliminar. A problemática de Buda não é a duma elucubração racional, mas a intuição da
existência humana como algo antropológico e propondo indicações práticas, em particular, a prática
do desapego, como meio para superar as causa profundas que provocam o sofrimento. É aqui,
nessas propostas práticas, que se assemelham às posições de mestre Eckhart e do budismo visando
com isso chegar a uma sábia disposição de benevolência em relação a todos os seres humanos. A
seguir vamos pontuar alguns princípios básicos do budismo.

1 Conhecer através da experiência as causas do sofrimento


A finalidade principal da vida humana segundo o budismo é aquela de conhecer as verdadeiras
causas do sofrimento para podê-las extirpar. Porem, para entender essas causas, mais que da teoria
deve-se partir da experiência prática. É dessa experiência pessoal e do conseguinte desapego que
surge a iluminação da verdade. Está é base da filosofia budista. Em outras palavras, o budismo é
empirismo, isto é, seu conhecimento se dá através da experiência da vida ou seja: é essa experiência
prática da vida que leva ao conhecimento, isto é à iluminação.´É através da experiência prática que
podemos descobrir as duas (doutrinas) teorias fundamentais para compreender a realidade da
existência: a primeira, a da “não substancialidade do eu” (anattá), e a segunda da “não
permanência das coisas” (aniccá). A ´primeira teoria não nega de forma absoluta o eu, mas nega
sua pretensão de pôr-se como absoluto, isto é, ela mostra a inconsistência e a falsidade de qualquer
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“coisa” que pretenda existir em forma independente das outras. A teoria do “não eu”, não só recusa
que o “eu” tenha uma substância, mas sublinha também que a própria idéia do eu é uma ilusão. Em
outras palavras, o que pelo senso comum se chama de “eu” ou de “consciência” é algo complexo e
que sempre muda. Isto significa que a consciência não existe numa forma pura, incondicionada,
mas sempre enquanto consciência de alguma coisa. Isto é, a consciência nunca é totalmente
absoluta, desligada de cada condição. A consciência e o eu são, pois, sempre relativos e sempre em
mutação. A consistência puramente nominal e convencional do eu é um tema que será depois
amplamente retomado por Nietzsche. A teoria budista da “não substancialidade do eu” abre a uma
visão das coisas e das idéias que são sempre constituídas por relações. Essa teoria tem
conseqüências importantes: no nível psíquico não aceita a separação entre mente e corpo; no nível
ético e político acaba com a ideologia fundada no individualismo; e no nível ecológico justifica a
inter-relação de cada ente com o outro. A segunda teoria da “não permanência” das coisas mostra
que cada momento da existência é, na realidade, um evento transitório que passa. Isto é: não existe
uma realidade constituída, mas em processo e sempre em mudança. Com outras palavras a
permanência e a não permanência são sempre relativas: o que denominamos de “ser” é sempre em
“devir”, em movimento, isto é a permanência e sempre também não permanência.

Com o tempo nos tornaremos velho perdendo vitalidade e saúde e, no fim, morreremos. Mudar
esse estado de coisas seria como procurar impedir que o sol resplandeça ou impedir o suceder-se
das estações em seu ciclo desde milênios. Todavia, resulta difícil aceitar esta verdade. Nos
deslocamos sem trégua de uma experiência a outra, procurando o prazer e tentando de evitar o
sofrimento, mas os sentimentos prazerosos são instáveis e acabam cedo. Em cada situação, ao
prazer segue, enfim, a desilusão. O que temos de mais precioso perde gradualmente a sua atrativa.
Uma nova relação amorosa torna-se desagradável não apenas conhecemos os defeitos pessoais da
pessoa amada. Até os filhos, pelos quais nutrimos tantas esperançais, acabam por traírem nossas
expectativas. Podemos procurar o bem-estar e o sucesso, na esperança de resolver os nossos
problemas e serem atraídos por projetos, pensamentos e emoções que gastam energias e tempo, mas
as nossas fantasias se realizam raramente. Ainda que nós façamos muitos sacrifícios, chegando a
atingir nossas metas, nos parece que falte ainda algo. No fim, aparece claro que nossas vidas não
são produtivas para nós mesmos e para o mundo. Como animais num sonho, corremos no deserto
perseguindo uma miragem. Mas mais que corremos, mais nos sentimos acalorados, mais nossa
energia é exaurida e mais vivido se faz nossa miragem, pois, uma vez que todas as coisas são
transitórias e que são compostas, elas se desintegram constantemente. Não existe, pois, coisa
alguma digna de apego neste mundo, onde cada um de nós é feito para sofrer toda espécie de dores
e pesares. Como escapar, pois, dos sofrimentos ou como conseguir vencê-los?

2 O desapego como forma para extinguir as causas do sofrimento


Uma vez descoberto, através da nossa experiência de vida, a realidade da “não
substancialidade do eu” e da “não permanência de todas as coisas” estamos no caminho para
entender como extirpar as causas do sofrimento. “Todos os estados condicionados são dolorosos”
Esta afirmação constitui o conteúdo da primeira afirmação das celebres Quatro Nobres Verdades
da doutrina budista. “Nascimento é sofrimento, envelhecer é sofrimento, doença é sofrimento,
morrer é sofrimento, angústia, aflição, dor, ânsia e desespero são sofrimentos; não obter o que se
deseja é sofrimento; em breve os cinco agregados da existência conexos com o apego são
sofrimentos” Justamente esta última proposição indica claramente o sentido geral da perspectiva em
que se compreende, no sentido do budismo, a realidade do sofrimento, ou seja: cada elemento da
existência implica sofrimento na medida que seja conexo com o apego. Isto significa que a
existência, enquanto tal, não é entrelaçada ao mal, mas que pode tornar-se má, quando, por não
compreender a natureza não substancial e impermanente de cada realidade física e mental, nos
apegamos a ela. Em outras palavras, o sofrimento não é conexo, de forma intrínseca, aos elementos
e às condições da existência, mas nasce apenas quando nos apegamos a elas. Isto é: o nascimento, a
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velhice, a doença, a morte implicam sofrimento se pensamos de sermos permanentes, imortais, ou


seja, - repetindo mais uma vez, - se não tivermos compreendido que a não permanência (aniccá) é
uma característica que nos iguala a qualquer outra coisa que existe, seja essa inanimada, como um
rochedo, ou não. Com efeito, o enunciado da segunda Nobre Verdade da doutrina budista explicita
diretamente a origem do sofrimento: “É aquela avidez de querer existir novamente, acompanhada
da vontade de querer isto ou aquilo; ou seja, a avidez pelos prazeres sensuais, a avidez e o desejo
intenso de existir e de não existir. Esta é a origem do sofrimento”. E a terceira Nobre Verdade, em
seguida, afirma: “O que é a nobre verdade da extinção do sofrimento? É justamente a extinção
sem resíduos dessa avidez, o abandono, a renúncia, o libertar-se, o desligar-se dessa avidez, desse
desejo. Esta se chama acabar com sofrimento”. A quarta Nobre Verdade declara: “E qual é a via
que conduz a acabar com sofrimento? É a justa visão, a justa ação, o justo comportamento, o justo
esforço, a justa presença mental, a justa concentração”.

3 A “compaixão” e a “participação” às dores e às alegrias do próximo


A via da experiência do mundo culmina no conhecimento do sofrimento e de suas causas e na
abolição das causas do sofrimento através do desapego. Nos sofremos sobretudo por causa da nossa
imperfeição. Sofrendo tomamos consciência de nós mesmos e em nós se acende o desejo de
melhorar-nos e, na medida em que superamos as nossas imperfeições e limitações, nos tornamos
mais livres e mais felizes. O homem perfeito, pois, deveria ser completamente livre da dor e
perfeitamente feliz. Mas, se pode provar felicidade, sem provar também a sensação oposta, a da
infelicidade? A resposta do budismo a essa pergunta é: quem é perfeito não conhece mais a dor
pessoal, mas participa à dor de todos, prova alegria em ajudar e participar da felicidade do próximo.
A participação aos sofrimentos (compaixão) e às alegrias dos outros se torna a “razão de ser”
dos homens perfeitos e é um dos principais indícios da maturidade interior. E mais que nós
progredimos na evolução psíquica, mais nos libertamos das limitações, mais amplo se torna o
nosso horizonte, menos procuramos a felicidade somente para nós, menos desejamos salvar
somente nós mesmos, sem incluir todos os outros. Isso não tem nada haver com a beneficência no
plano social, mas representa a nossa atitude interior, da qual surge a nossa espontânea conduta em
relação ao próximo. Pois, segundo a concepção budista, para a pessoa “iluminada” não existe um
“eu” imutável nem uma essência psíquica em si, mas existe algo comum e universal. Quem vive
em sintonia com o resto do mundo tira do seu sofrimento interior a força de agir para libertar todos
os seres e sabe encontrar sua própria redenção nesse esforço. Apesar da enorme multiplicação deste
saber e apesar de todos os progressos da civilização, nós até agora não temos superado de um só
passo a sabedoria de Buda, de Platão, de Cristo. Apesar disso, não podemos sustentar que estes
mestres da humanidade não tenham vivido em vão. Eles levaram para a via da auto-realização
milhões e milhões de homens e deram vida a grandes culturas ainda vivas e em evolução, culturas
estas que, alem, de serem patrimônio espiritual de povos e de raças, estão para se tornar o
patrimônio da humanidade no sentido mais amplo.

4 Correspondências entre os ensinamentos de Buda e dos pensadores gregos


Existe uma forte correspondência entre os ensinamentos de Buda e aquele dos pensadores
gregos antigos em relação ao problema do sofrimento como problema central da vida humana. O
grande filósofo Aristóteles, por exemplo, afirma: “O ser vivente está sempre em angústia”,
retomando uma opinião comum de filósofos que o tinham precedido. E Antífone da cidade de
Atenas dizia: “Em cada lugar na vida se encontra mesquinharia e fraqueza, transitoriedade e
mistura de grandes sofrimentos”. Existe uma correspondência entre os ensinamentos de Buda e ds
filósofos gregos antigos como Platão, Aristóteles e Epicuro em contrastar a prepotência do desejo
utilizando a mente, a qual devia ser treinada a produzir uma medida dos desejos, de forma que esses
não se tornassem destrutivos. Por isso se exortava a refletir sobre o fato que entre as virtudes
somente a virtude da temperança merecia de ser adotada pelos garotos e pelas garotas, pelas
mulheres casada e pelos anciãos, mas sobretudo pelos jovens, e a preservar a saúde física e a
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aspiração ao mais nobres ideais da vida. Esse ideal de equilíbrio corresponde á escolha de todas as
escolas budistas para uma “via de meio” em cada circunstância, seja prática que teórica. Demócrito
deixou escrito que “A sabedoria imperturbável vale todos os bens, pois é a coisa mais preciosa que
existe”; e que é “difícil combater o próprio desejo, mas o domínio o consegue só o homem que
saiba fazer o reto uso da razão”. E Epicuro, na esteira de Demócrito, diz de forma exemplar:

“Quando dizemos que o prazer é o bem completo e perfeito, não entendemos os


prazeres dos devassos ou dos crápulas, como acreditam alguns que ignoram ou não
sabem interpretar bem a nossa doutrina, mas o não ter dor no corpo nem turbamento na
alma. Pois não as farras, as festas, nem abusar de mulheres, faz a vida ser feliz, mas o
cálculo sóbrio que indaga as causas de cada ato de escolha e de recusa, e que nos afasta
das falsas opiniões das quais nasce aquele grande turbamento que aflige as almas. De
todas essas coisas o princípio e o bem máximo é a prudência; por isso mais do que a
filosofia, deve-se apreciar a prudência, da qual deriva todas as virtudes, que ensina
como não pode existir vida feliz sem que essa seja sábia, bela e justa”

Como nos ensinamentos de Buda, também em Epicuro, é considerada fundamental a função da


mente em tirar as dores do corpo e os turbamentos da alma, distinguindo os prazeres que procuram
dores daqueles que, ao contrario, conduzem o corpo e a alma na melhor das condições: aquela que
Epicuro chama de paz; e que o Buda chama de tranqüilidade, produzida pela extinção dos desejos
desmedidos. Para Epicuro sem a prudência, a vida pode ser sábia, bela e justa, mas não feliz.

PARTE CONCLUSIVA
ATUALIDADE DA FILOSOFIA DE EM MANUEL LÉVINAS:

UMA RELIGIÃO PARA ADULTOS E UMA ÉTICA COMO “FILOSOFIA PRIMEIRA”

Emmanuel Lévinas: o “ser para os outros” com ruptura do senso comum


Depois do encontro com Husserl e Heidegger, Lévinas, começou a reconsiderar a tradição da
filosofia ocidental em base à sua própria cultura judaica (talmúdica) e a grande literatura Russa. Isto
o levou a passar do “ser para a morte” de Heidegger ao “ser-para-os-outros” influenciado nisso,
em particular por Dostoiévski. Deriva daqui a centralidade do problema da alteridade em seu
pensamento e a atualidade de sua proposta duma “ética como filosofia primeira” em contraposição
à cultura e à ética pós-moderna, relativista e fragmentária. Ele não funda a ética num ideal de
humanidade comum ou, como Habermas, na estrutura transcendental de um “agir comunicativo”
ideal. Para Lévinas, estas propostas mantêm ainda a centralidade dum eu forte e, pois, num certo
sentido, ainda dum eu prisioneiro do individualismo e egoísmo. A sua proposta é outra: não duma
ética da responsabilidade, mas duma ética onde a dedicação ao outro é a própria estrutura que nos
constitui enquanto sujeitos. Seguindo a lição de Franz Rosenzweig e pondo-se em sintonia com
Martin Buber, Lévinas começou aprofundar sua raiz judaica a partir dos eventos que tinha, então
vivenciado: as terríveis catástrofes e provações das guerras mundiais e a perseguições nazistas aos
judeus e os campos de concentração, etc. Como Buber, ele acha que a relação homem a homem é
mais originária do que a relação homem e o ser. E acha que o sentido não está no cuidado (como
propunha Heidegger) mas na responsabilidade para com o outro. Ou seja: o culto consagrado ao
outro, que ele chama de religião, se dá na consciência de uma extrema responsabilidade. Daí a
recusa, por parte de Lévinas, da esfera do sagrado que ele considera como uma penumbra onde
floresce uma série de degenerescências pseudo-espirituais (bruxaria, certos tipos de espiritismo
astrologia..) e tentações idolátricas. Ele reivindica explicitamente a desmitização do religioso como
passo fundamental que conduz a uma história da humanidade do encantamento do mito ao sentido
ético.
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