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A VIDA NOS MUNDOS INVISÍVEIS

Poucas pessoas existirão que não tenham


por vezes indagado o que acontecerá após a
morte. A maioria tem idéias formadas sobre
Céu e Inferno, mas para obter algo mais só-
lido e não convencional acerca de tão impor-
tante questão, devemos nos voltar a outras
fontes mais precisas.

Há muitos anos, o Monsenhor Robert Hugh


Benson, filho de um ex-Arcebispo de Cantuá-
ria, escreveu um livro intitulado Os Necro-
mantes, o qual obteve considerável fama,
porém desvirtuava a realidade da comunica-
ção dos espíritos. Em sua introdução à pre-
sente obra, o autor esclarece que, ao passar
para a vida espiritual, Monsenhor Benson
chegou a saber que suas idéias eram intei-
ramente erradas. Assim, um dos seus princi-
pais objetivos na nova esfera de existência
foi, justamente, esforçar-se por corrigir a
falsa noção que havia divulgado em seus
escritos quando ainda na terra; para tanto,
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entrou em comunicação com o autor, o
qual fielmente registrou as mensagens rece-
bidas. Sua principal finalidade na divulgação
dessas mensagens era tentar re-mover da
mente dos homens o temor da morte, atra-
vés do reexame de sua experiência pessoal e
a transmissão do conhecimento que havia
adquirido no mundo do espírito.

Neste livro o leitor passa a conhecer a vida


nas regiões do Além, e essa vida é relatada
nos mínimos pormenores de suas variadas
esferas de atividades, dos mais baixos aos
mais elevados reinos.

Para aqueles que acreditam existir uma vida


após a morte, a presente obra oferece um
profundo interesse; e para aqueles, em dúvi-
da, o esclarecimento e a promessa de . uma
nova e superior existência no futuro.

ANTHONY BORGIA
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A VIDA NOS MUNDOS INVISÍVEIS
Prefácio de Sir JOHN ANDERSON
Tradução de J. ESCOBAR FARIA
Titulo do original inglês:
Life in the world unseen
Capa de PEDRO GAMBAROTTO
MCMLX
Direitos Reservados
EDITORA "O PENSAMENTO" LTDA.
Praça Almeida Júnior, 100
São Paulo
Impresso nos Estados Unidos do Brasil
Printed in the United States of Brazil
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Í N D I C E

Prefácio 9

Introdução do autor

PRIMEIRA PARTE
ALÉM DA VIDA

I — Minha Vida na Terra


II — Passagem Para o Mundo do Espírito
III — Primeiras Experiências
IV — Lar Para Repouso
V — Templos da Sabedoria
VI — Várias Questões Respondidas
VII — A Música
VIII — Planos Para Trabalhos Futuros
IX — Os Domínios Sombrios
X — Uma Visita
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SEGUNDA PARTE
UM MUNDO DESCONHECIDO

I — As Flores
II — O Solo
IH — Métodos de Construção
IV — Tempo e Espaço
V — Posição Geográfica
VI — Os Reinos Inferiores
VII — Primeiras Impressões
VIII — Recreações
IX — Pessoa Espiritual
X — A Esfera das Crianças
XI — Ocupações
XII — Gente Famosa
XIII— Organização
XIV — Influência do Espírito
XV — Os Reinos Superiores
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PREFÁCIO

SINTO-ME satisfeito em prefaciar este livro, o


qual oferece um quadro pitoresco da exis-
tência vivida nas esferas espirituais por a-
queles que na terra agiram de acordo com as
leis divinas. A assertiva confirma tudo aquilo
que positivei certo e verdadeiro em minhas
investigações acerca de uma filosofia do
pensamento.

Esta obra tranqüiliza aqueles que no presen-


te vivem uma existência voltada para o bem,
e encoraja os outros no sentido de modifica-
rem seus impulsos mentais, assim evitando
que penetrem nas esferas sombrias do mun-
do espiritual, que resultam da aceitação das
malignas vibrações da terra, vibrações que
nos têm causado não pouca adversidade.

O pensamento é a força criadora do Universo


conforme as ações individuais para o Bem ou
para o Mal. Enquanto vivermos na terra, es-
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taremos instituindo a nossa própria herança
no mundo do espírito, e este será exatamen-
te o reflexo da qualidade de nossos pensa-
mentos.

Causa e efeito é lei cósmica imutável, mas o


homem é livre para agir de acordo com o
seu arbítrio. O que ocorre com a alma ao
entrar para o mundo espiritual é justamente
o resultado de sua escolha de conduta na
terra. A punição do Mal é o remorso da alma
eterna imposto pela reação da consciência
de cada um.

No passado, as responsabilidades da vida e


as conseqüências das ações pessoais têm
obscurecido a mente coletiva da Humanida-
de. Por esta razão, as religiões ortodoxas
falharam em estabelecer a paz na terra se-
gundo os ensinamentos do Grande Mestre.

A Civilização vive seus últimos caminhos, e é


de esperar que novas obras de informações
como esta apareçam a fim de favorecer a
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regeneração espiritual do mundo com o
estabelecimento da paz e da harmonia entre
os homens.

Sir JOHN ANDERSON


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INTRODUÇÃO DO AUTOR

O CONHECIMENTO é o melhor antídoto para o


temor, especialmente se este temor diz res-
peito à existência após a morte.

Para saber que espécie de lugar é o outro


mundo, nós devemos indagar de alguém que
lá está e registrar o que esse alguém disser.
Isto foi feito neste livro.

O informante, de quem pela primeira vez tive


conhecimento em 1909, cinco anos antes de
sua passagem ao mundo espiritual, foi na
terra conhecido como Monsenhor Robert Hu-
gh Benson, filho de Edward White Benson,
ex-Arcebispo de Cantuária. .

Até que estes escritos se redigissem, jamais


se havia comunicado diretamente comigo, se
bem que em certa ocasião fosse eu informa-
do por outro espírito de que ele desejava
corrigir certas coisas. As dificuldades da co-
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municação foram-lhe explicadas por espíri-
tos e conselheiros, mas ele persistiu em seu
propósito. Assim, quando a época adequada
se apresentou, foi-lhe dito que podia comu-
nicar-se através de algum amigo de seus
dias na terra, tendo sido eu a privilegiada
pessoa escolhida para atuar como seu intér-
prete.

A primeira narrativa intitulou-se Além Desta


Vida, e a segunda O Mundo Invisível.

Na primeira, Monsenhor apresenta, numa


perspectiva geral, o relato de sua morte e as
subseqüentes viagens através das várias re-
giões das terras espirituais. Na segunda, tra-
ta pormenorizadamente dos fascinantes e
importantes fatos e aspectos da vida do espí-
rito, sobre os quais, anteriormente havia a-
penas tocado de passagem e levemente.

Por exemplo: em Além Desta Vida, menciona


os reinos superiores e os inferiores. Em O
Mundo Invisível realmente os visita e descre-
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ve o que viu e ocorreu nesses lugares. Se
bem que cada uma das narrativas seja autô-
noma e completa, a segunda acrescenta no-
va matéria à primeira e ambas formam um
todo uno e indivisível.

Somos velhos amigos, e sua passagem não


interrompeu antiga amizade; pelo contrário,
ficou fortalecida e proporcionou melhores
oportunidades de encontro do que teria sido
possível quando Monsenhor ainda vivia na
terra. Constantemente ele expressa o seu
prazer de voltar numa natural normal, sadia
e agradável maneira, oferecendo informa-
ções de suas aventuras e experiências no
mundo do espírito assim como quem "estan-
do morto (segundo o consideram inúmeras
pessoas), ainda assim pode falar".

ANTHONY BORGIA
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PRIMEIRA PARTE

ALÉM DA VIDA

I. MINHA VIDA NA TERRA

QUEM sou não importa. Quem fui importa


menos ainda. Nós não trazemos conosco
para o mundo do espírito as posições que
ocupamos na terra. Tudo isso ficou para
trás, inclusive a minha importância terrena.
O valor espiritual é o que importa agora,
meu bom amigo, e esse valor está muito
além do que seria ou poderia ser. É o bas-
tante, a respeito do que sou. Quanto ao que
fui, gostaria de transmitir algumas informa-
ções sobre a minha atitude mental, anterior
ao meu passamento e entrada no mundo em
que hoje vivo.

Minha vida terrena não foi difícil, pois jamais


passei privações, se bem que fosse árdua em
relação aos trabalhos de ordem mental. Nos
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meus primeiros anos fui atraído para a
Igreja pelo misticismo em que ela se envolve
e por ter sido eu mesmo uma personalidade
mística. Os mistérios da religião expressos
numa profusão de luzes, vestes e cerimoni-
ais, pareciam satisfazer inteiramente o meu
espírito. Muitas coisas, naturalmente, eu não
entendia, mas a partir do momento em que
passei para o mundo espiritual, elas deixa-
ram de ter importância. Eram problemas re-
ligiosos provocados pela mente humana, e
na verdade não tinham nenhuma significação
no grande esquema da vida. Mas a esse
tempo, como tantos outros, eu acreditava
totalmente em tais coisas, sem um vislumbre
de entendimento, e se algum entendimento
havia, era ínfimo. Ensinei e preguei segundo
os textos ortodoxos, firmando minha reputa-
ção. Quando refletia sobre uma futura exis-
tência, eu pensava — e muito vagamente —
naquilo que a Igreja me havia ensinado e
que era infinitamente pequeno e mais falso
ainda. Eu não compreendia a proximidade
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dos dois mundos — o meu e o vosso, —
embora tivesse uma ampla demonstração
disso. As experiências que tive em ocultismo
foram acontecimentos espontâneos, e, pen-
sava eu, provenientes de qualquer extensão
de leis naturais; julguei-os antes incidentes
ocasionais, do que ocorrências normais.

O fato de ter sido um sacerdote não me im-


pediu de receber visitas daqueles que a Igre-
ja preferiu chamar demônios, se bem que
jamais tivesse visto, devo confessar, qual-
quer coisa que remotamente se parecesse
com tal. Nunca entendi como pudesse ser e
o que era afinal, na esfera terrestre, aquilo
que denominam um sensitivo, um psiquista
— uma pessoa dotada de poderes de visão,
ainda que em grau limitado.

Eu considerava perturbadora essa intromis-


são de faculdades psíquicas em meu ministé-
rio sacerdotal, visto como se chocava contra
as minhas idéias ortodoxas. Procurei, então,
aconselhar-me entre os meus colegas, mas
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eles sabiam menos ainda que eu e apenas
decidiram rezar por mim, a fim de afastar os
demônios de meu caminho. Suas preces em
nada me beneficiaram, o que seria de se es-
perar — como agora o sei. Fossem minhas
experiências desenvolvidas em alto plano
espiritual, eu teria sido considerado um ver-
dadeiro santo. Mas, na realidade, não foi
assim, pois essas experiências ocorriam com
qualquer outro dotado dos mesmos poderes.
Tratando-se, porém, de um sacerdote da
Santa Igreja, elas eram entendidas como
"tentações do demônio", tratos com o diabo
e, por outro lado, como alguma forma de
aberração mental, caso ocorressem com lei-
gos. O que os sacerdotes meus colegas não
entendiam era que tais poderes podiam ser
considerados um dom — um precioso dom,
segundo os compreendo agora — e de cará-
ter inteiramente individual, tanto no meu
caso como em todos os outros, e que rezar
para que fossem removidos seria tão insen-
sato como rezar para que se removesse do
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artista o dom de tocar piano ou de pintar.
Não seria apenas uma insensatez, mas in-
contestavelmente um erro, visto que esse
dom de ver além do véu celeste fora outor-
gado para ser exercido em favor da Humani-
dade. Posso pelo menos regozijar-me de que
jamais orei para que tais poderes me fossem
retirados; pelo contrário, orei para que maior
luz se fizesse em meu entendimento.

A grande barreira a quaisquer novas investi-


gações a respeito dessas faculdades, era, e
é, a atitude da Igreja: insensível, inflexível,
estreita e ignorante. As investigações, ainda
que por caminhos longos, ainda que exausti-
vas, recebiam, invariavelmente, o mesmo
julgamento final: "Tais atividades têm sua
origem no demônio". E eu estava amarrado
pelas leis dessa Igreja, administrando seus
sacramentos, divulgando seus ensinamentos,
enquanto o mundo do espírito batia à porta
de minha própria existência, tentando mos-
trar-me, para que eu mesmo visse, o que
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não poucas vezes havia contemplado — a
nossa vida futura.

Enunciei em meus livros muitas de minhas


experiências psíquicas, torcendo porém as
narrativas no sentido da religião ortodoxa. A
verdade estava lá, mas o sentido e a finali-
dade foram deformados. Num trabalho mais
amplo achei que devia defender a Igreja
contra os assaltos daqueles que acreditavam
na sobrevivência da alma após a morte do
corpo e julgavam possível a comunicação
dos espíritos. Nesse trabalho atribuí ao de-
mônio — contra o meu melhor julgamento —
aquilo que eu realmente conheci como sendo
a atividade de leis naturais, acima e inde-
pendente de qualquer religião ortodoxa, e
não de origem maligna.

Para seguir as minhas próprias inclinações,


eu teria que infligir à minha vida, uma com-
pleta revolução, a renúncia às idéias ortodo-
xas, e, muito provavelmente, um grande sa-
crifício material, visto que eu possuía tam-
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bém boa reputação como escritor. Tudo
quanto já havia escrito iria perder o seu va-
lor, desde então, aos olhos dos leitores e
além disso eu seria olhado como um louco
ou herege. Assim, deixei passar a maior o-
portunidade da minha vida. Quão grande foi
essa oportunidade e quão grande o remorso
dessa perda, eu fiquei sabendo ao trans-
ferir-me para este mundo, cujos habitantes
já vira tantas vezes e em tão diferentes oca-
siões. A verdade estivera ao meu alcance e
eu a deixei escapar. Entregara-me à Igreja, e
seus ensinamentos estavam fortemente ade-
ridos a mim. Via que milhares de pessoas
pensavam como eu, e isto me encorajava de
tal forma, que não era capaz de pensar que
tanta gente poderia estar errada. Tentei se-
parar minha vida religiosa das experiências
psíquicas que sucediam comigo, tratando-as
como dois fatos completamente estranhos
um ao outro. Era difícil, mas dirigi os aconte-
cimentos de tal modo que houve menor in-
quietação mental, e assim prossegui até o
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fim, quando, então, vi-me no limiar da-
quele outro mundo, de que já tinha visto
manifestações. Do que sucedeu comigo ao
deixar de ser um habitante da terra, passan-
do para o grande mundo dos espíritos, espe-
ro a seguir dar-lhes alguns pormenores.

II. PASSAGEM PARA O MUNDO DO ESPÍRITO

O real processo da morte não é necessaria-


mente doloroso. Durante minha vida terrena
testemunhei muitas dessas passagens para
as fronteiras do espírito. Tive oportunidade
de observar com os meus próprios olhos a
luta mantida pelo moribundo para libertar-se
da matéria. Por intermédio de minha visão
psíquica, também pude observar essa liber-
tação, mas em parte alguma me foi possível
descortinar — segundo as fontes ortodoxas
— o que exatamente ocorria no momento da
separação, nem consegui saber quais as
sensações experimentadas pela alma que
deixava o corpo. Os autores de tratados reli-
giosos não nos informam dessas experiên-
21
cias por uma razão muito simples — eles
nada sabem.

O corpo físico dá a impressão muitas vezes


de estar sofrendo intensamente de dor ou de
asfixia. A morte, pois, oferece o quadro de
um sofrimento extremamente doloroso. Seria
realmente assim? — era a indagação que
sempre fazia a mim mesmo. Qualquer que
pudesse ser a resposta, eu não podia acredi-
tar que o processo físico da morte, fosse na
verdade doloroso, não obstante tudo indicas-
se que sim. A resposta à minha indagação,
eu sabia que a teria um dia, mas tinha espe-
ranças de que pelo menos não fosse violenta
a minha morte. E assim foi, se bem que de-
morada, como tantas outras que testemu-
nhei.

Eu tinha um pressentimento de que os meus


dias na terra se encurtavam cada vez mais.
Sentia um peso na mente, algo semelhante
àquele que nos invade na hora de repousar.
Muitas vezes me sentia como que flutuando
22
ao longe e depois voltando suavemente.
Durante esses períodos de depressão aque-
les que me tratavam sem dúvida julgavam
que, se ainda não era a morte, eu caminhava
rapidamente para ela. Todavia, em meus
intervalos lúcidos não sentia mal-estar físico.
Podia ver e ouvir o que ocorria ao meu re-
dor, e podia sentir as aflições que o meu es-
tado causava nos demais. E tinha ainda a
sensação de uma grande animação mental.
Estava certo de que chegara a minha hora, e
fremia de impaciência por ir-me de vez. E
não fui assaltado por temores, apreensões,
dúvidas ou remorsos nos momentos que
prenunciavam a minha partida da terra. Os
remorsos viriam mais tarde, mas os relatarei
oportunamente. Tudo quanto desejava era
ir-me para bem longe.

Repentinamente senti ímpetos de levantar-


me, porém, não houve qualquer sensação
física, da mesma forma como acontece nos
sonhos; se bem que sentisse a mente alerta,
meu corpo parecia opor-se a tal estado. Tão
23
logo senti esse definido estímulo para le-
vantar-me, percebi que já o tinha realizado.
Descobri, então, que todos os que me rode-
avam não se apercebiam de nada, pois não
procuraram auxiliar-me, nem tentaram im-
pedir-me que me levantasse. Voltei-me e
passei a observar o que sucedia. Meu corpo
material jazia sem vida, mas ali estava eu, o
eu real, vivo, e bem vivo. Fiquei contem-
plando ainda um ou dois minutos e logo a
idéia do que devia fazer a seguir penetrou
minha mente, mas acabara de constatar que
não poderia contar com o auxílio de nin-
guém. Via ainda claramente o quarto ao meu
redor, não obstante a névoa que o envolvia
totalmente. Examinei-me, a mim mesmo, a
fim de verificar como estaria agora vestido,
pois que me levantara de um leito de morte
e não poderia estar em condições de mover-
me para além do próprio quarto. Grande foi
minha surpresa ao notar. que vestia as rou-
pas habituais, exatamente as mesmas que*
usava quando me movimentava livremente |
24
pela casa. em boa saúde. Uma surpresa
aliás momentânea, pois que conjecturei
quais seriam as outras vestes que deveria
envergar depois. Certamente nenhuma des-
sas espécies de manto diáfano... Mantos
desse gênero são comumente ligados à idéia
convencional de anjos, e eu estava certo de
que não era um deles.

O conhecimento do mundo espiritual como


me fora possível apreender através de mi-
nhas próprias experiências, veio imediata-
mente em meu auxílio. Soube logo da mu-
dança que se operara em minha condição;
por outras palavras, fiquei sabendo que ha-
via morrido. Contudo, sabia ao mesmo tem-
po que estava vivo, isto é, que me havia li-
bertado da moléstia e me achava de pé, o-
lhando ao redor. Em momento algum per-
turbei-me, embora estivesse assaz interessa-
do em saber o que viria a seguir, pois sentia-
me na posse de todas as minhas faculdades
mentais, e realmente num estado físico nun-
ca antes experimentado.
25
Conquanto a narração de tais aconteci-
mentos tenha aqui tomado algum tempo,
pois desejo dar os maiores detalhes possí-
veis, na verdade tudo deve ter ocorrido em
não mais que alguns minutos do tempo ter-
restre.

Tão logo me vi em minha nova condição, e


tão rapidamente como tudo sucedeu, percebi
a meu lado um sacerdote ex-colega, cujo
passamento se dera alguns anos antes.
Cumprimentamo-nos afetuosamente e notei
que se vestia como eu. Novamente isso não
me pareceu estranho: se estivesse usando
roupas diferentes das minhas, então sim, eu
poderia pensar que algo estava errado, uma
vez que sempre o conhecera em trajos cleri-
cais. Expressou seu grande prazer em rever-
me, e de minha parte previ a junção de mui-
tos fios do enigma que se haviam rompido
com a sua morte.

Inicialmente, deixei-o falar; devia antes


acostumar-me com as novidades que se me
26
apresentavam. Deveis lembrar--vos que
eu havia abandonado um leito de morte e
que, lançando-me fora do corpo material,
deixara com ele a minha doença. A nova
sensação de bem-estar e libertação das ma-
zelas do corpo era tão agradável, que a
compreensão total do fenômeno deveria le-
var algum tempo. Meu velho amigo pareceu
compreender imediatamente que eu já esta-
va ciente da minha morte e que tudo ia bem.

Permiti-me acrescentar que nenhuma idéia


sobre tribunal de julgamento ou dia do juízo
me ocorrera durante aquele processo de
transição. Tudo era normal e natural demais
para que pudesse sugerir a terrível provação
ensinada pela religião ortodoxa, e à qual de-
veríamos nos submeter após a morte. Os
próprios conceitos de julgamento, céu e in-
ferno pareciam totalmente impossíveis. E-
ram, na verdade, uma fantasia, agora que eu
me encontrava vivo e bem vivo, dono de
minha verdadeira mente e vestido com as
roupas habituais, de pé, diante de um velho
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amigo que me saudava cordialmente e
mostrava tudo quanto se passava no outro
lado da vida, exteriorizando o seu prazer em
me ver, e ao qual eu retribuía. Tratava-se de
um dos melhores espíritos que conheci, tanto
ao tempo de vida terrena, como agora, que
me acolhia afetuosamente, como dois ami-
gos após longa separação. Tal fato bastava
para esclarecer o absurdo de minhas idéias
sobre um julgamento da alma. Ambos está-
vamos alegres, felizes, despreocupados, na-
turais, e eu aguardava, emocionado, toda a
revelação desse novo mundo, o qual nin-
guém melhor do que ele poderia descortinar-
me. Disse que eu me preparasse para inú-
meras e agradáveis surpresas e que havia
sido enviado para encontrar-se comigo à mi-
nha chegada. Como já conhecia o grau de
meus conhecimentos, sua tarefa seria, as-
sim, mais fácil.

Tão logo tentei falar, após o silêncio inicial


do encontro, verifiquei que me expressava
exatamente do mesmo modo como o fazia
28
quando materialmente vivo, isto é, usando
as cordas vocais. Mas não havia necessidade
de pensar para dizer o que quer que fosse;
nem mesmo cogitei nisso, apenas notei que
assim era. Então o meu amigo propôs que
saíssemos, desde que ali nada mais havia a
fazer, e que ele me conduziria a um aprazível
lugar preparado especialmente para mim.
Fez referência a um lugar, mas apressou-se
em acrescentar que na realidade eu ia para a
minha própria casa, onde me sentiria imedia-
tamente no lar. Não sabendo ainda como
agir, ou por outras palavras, como devia pro-
ceder em tais circunstâncias, deixei-me con-
duzir por suas mãos, fato que, como ele pró-
prio dissera, constituía precisamente a sua
missão.

Não pude resistir ao impulso de voltar-me e


olhar pela última vez o quarto onde ocorrera
o meu passamento. Continuava envolvido na
mesma névoa. Os que antes rodeavam o
meu leito já se tinham ido, e aproximei-me
então para contemplar a mim mesmo. Não
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me impressionei com o que vi; os restos
mortais do meu Eu material ostentavam uma
total serenidade. Meu amigo então sugeriu
que devíamos partir, o que fizemos em se-
guida.

Nesse momento o quarto se tornava aos


poucos mais enevoado até esvanecer-se de
minha vista, desaparecendo afinal. Até então
eu tinha usado minhas pernas, como sem-
pre, na nossa forma comum de andar, mas
em virtude da moléstia e suas conseqüências
necessitava de um período de descanso an-
tes de esforçar-me demasiado. Por isso, dis-
se o meu amigo que melhor seria não usar-
mos esse habitual meio de locomoção, isto é,
as pernas, e que eu segurasse com firmeza a
sua mão e não temesse o que quer que fos-
se. Poderia

)u não fechar os olhos, mas de qualquer


modo melhor seria para mim se os fechasse.
Segurei sua mão e deixei que ele fizesse o
resto. Imediatamente experimentei a sensa-
30
ção de flutuar, assim como acontece nos
sonhos dos vivos, se bem que eu flutuasse
de uma forma real e sem cuidados de segu-
rança pessoal. A velocidade parecia aumen-
tar à medida que o tempo passava, e eu ain-
da mantinha os olhos firmemente fechados.
É estranho que alguém possa realizar tais
coisas aqui e com tanta segurança. No plano
terreno, caso fossem possíveis condições
idênticas, quanta gente teria fechado os o-
lhos com toda a confiança? Aqui não havia
dúvidas de que tudo corria bem, não havia
temor, nada de mal poderia ocorrer, e além
do mais, o meu amigo tinha completo domí-
nio de tudo.

Após algum tempo nossa velocidade pareceu


afrouxar um pouco, e eu podia sentir algo
sólido sob os pés. Fui convidado a abrir os
olhos. Assim o fiz. Descortinei então o velho
lar em que vivi na terra; o meu velho lar...
mas com uma diferença: fora melhorado de
uma forma que ninguém teria podido fazer
em sua reprodução terrestre. Como logo me
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pareceu, a casa estava antes rejuvenesci-
da, do que restaurada, mas foram os jardins
à sua volta que mais me atraíram a atenção.

Esses jardins davam-me a impressão de ser


bastante extensos e estavam em perfeita
ordem e disposição. Dizendo isso não quero
dar a entender que eram iguais, quanto à
regularidade, aos jardins do plano terreno,
mas eram maravilhosamente cultivados e
conservados. Não havia crescimentos desor-
denados, nem folhagem e ervas daninhas
emaranhadas; pelo contrário, era a mais bela
profusão de flores dispostas de maneira a
mostrar uma perfeição absoluta. Ao exami-
ná-las mais de perto, devo dizer que jamais
vi outras semelhantes ou uma réplica na ter-
ra, das muitas que lá existem e em plena
florescência. Muitas por certo poderiam ser
perfeitamente iguais às terrenas, mas na
maior parte dos casos, pareceu-me o contrá-
rio. Não eram, entretanto, as flores em si e a
inacreditável sucessão de suas cores magni-
ficentes, que mais me chamaram a atenção,
32
mas sim, a atmosfera vital de eternidade
que elas exalavam por todas as direções.
Quem quer que se aproximasse de qualquer
grupo daquelas flores, ou mesmo de uma
que fosse, sentia fortes correntes de força
energética, as quais elevavam espiritualmen-
te a alma e lhe davam maior estímulo, ao
mesmo tempo que os perfumes celestiais
emanados eram de tal magnitude que ne-
nhuma alma quando materializada jamais os
havia sentido. Tratava-se de flores que vivi-
am e respiravam, e eram incorruptíveis, se-
gundo o meu amigo.

Outra característica que notei quando me


aproximei delas, era os sons musicais que as
envolviam, e cuja suave harmonia combinava
perfeitamente com as cores deslumbrantes.
Não sou suficientemente versado em música
para discorrer, tecnicamente, sobre tão belo
fenômeno, mas espero em ocasião oportuna
trazer alguém com conhecimentos da maté-
ria a fim de explicá-lo. Por ora, é bastante
dizer que esses sons musicais das flores es-
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tavam em precisa consonância com tudo
que eu já havia visto, — o que, entretanto,
era ainda muito pouco — e que, em toda
parte, eu via a harmonia perfeita.

Se já estava ciente do efeito revitalizador dos


jardins celestiais, crescia porém a minha an-
siedade de conhecer mais ainda acerca de
tudo aquilo. Assim, em companhia do meu
velho amigo, a quem fora confiado para ser
informado e guiado, caminhei pelas veredas
do jardim, pisei na estranha relva, flexível e
macia, como se andasse no ar, e tentei com-
preender que toda aquela extraordinária be-
leza fazia parte do meu próprio lar. Soberbas
árvores podiam ser divisadas, mas sem as
deformações das que existem na terra, e não
havia uniformidade nas espécies. Simples-
mente cresciam sob condições perfeitas, li-
vres dos ventos tempestuosos que curvam e
torcem os ramos mais tenros; livres dos ata-
ques de insetos e de outras causas que as
afligem no plano terreno. Do mesmo modo
que as flores, assim eram as árvores. Eram
34
eternas, incorruptíveis, cobertas de folhas,
numa grande profusão de matizes verdes,
eternamente emanando vida para todos os
que se aproximassem delas.

Sol brilhante; havia sim, uma luz cintilante


que penetrava por tudo, nunca, porém, em
plano horizontal. O meu amigo informou-me
que toda a luminosidade provinha do Doador
de toda luz, e que esta era essencialmente
divina, banhando e iluminando todo o mundo
do espírito, onde viviam aqueles que espiri-
tualmente possuíam olhos para vê-la.

Havia uma tépida e agradável temperatura


sempre constante O ar permanecia na sua
imobilidade, mas sentia-se uma aragem de
suave perfume — autêntico zéfiro — que não
alterava a fragrância da tepidez envolvente.
Àqueles que não apreciam perfumes de
qualquer natureza posso dizer: não vos de-
saponteis ao lerdes estas palavras, pois coi-
sas de que não gostais não vos acontecerão
aqui. De qualquer modo, esperai, advirto-
35
vos, e ireis sentir quão diferente do que
possais imaginar são estas coisas.

Venho revelando esses fatos com o máximo


de pormenores, porque estou certo de que
inúmeras pessoas muito têm indagado a res-
peito.

Fiquei surpreso por não ver muros, sebes ou


cercas; nada do que até então pude obser-
var delimitava o meu próprio jardim. Fui in-
formado de que não havia necessidade de
separações, porque cada um sabia, instinti-
vamente, mas com absoluta certeza, onde
sua propriedade terminava. Não havia, por-
tanto, intromissão de ninguém num jardim,
embora todos estivessem abertos a quem
quer que desejasse atravessá-los ou neles
demorar-se. Eu seria sinceramente bem re-
cebido em qualquer lugar que fosse, sem
receio de estar me intrometendo na intimi-
dade dos outros. Disseram-me ser essa a
regra aqui, e que eu não teria sentimentos
diferentes com respeito àqueles que passas-
36
sem pelo meu jardim. Sim, meus senti-
mentos naquele momento foram justamente
esses, pois desejei que todos viessem gozar
de sua beleza. Eu não possuía quaisquer no-
ções de propriedade pessoal, não obstante
saber que o jardim era meu para tê-lo e
mantê-lo. Era essa precisamente a atitude de
todos — propriedade e sociedade a um só
tempo.

Apreciando o belo estado de conservação


dos jardins e o cuidado que recebiam, inda-
guei de meu guia quem assídua-mente e
com tão esplêndidos resultados assim os
mantinha. Antes de me responder, sugeriu
que, como tinha eu chegado recentemente
às regiões espirituais, era aconselhável des-
cansar primeiro ou pelo menos não me fati-
gar muito com observações. Propôs, assim,
que deveríamos procurar um lugar aprazível
— usou as palavras num sentido apenas
comparativo, porque tudo era aprazível em
qualquer parte — onde nos sentaríamos,
quando então ele passaria a expor alguns
37
dos muitos problemas que se haviam a-
presentado no curto espaço de tempo da
minha nova condição.

Andamos, pois, até encontrar o aprazível


lugar sob os ramos de magnífica árvore, de
onde podíamos dominar grande parte da
campina, cuja exuberante verdura ondulava
ante os nossos olhos, estendendo-se ao lon-
ge. A paisagem era banhada por um belíssi-
mo resplendor celestial, e eu podia notar
inúmeras casas de vários tipos, pitoresca-
mente localizadas, como a minha, entre ár-
vores e jardins. Acomodamo-nos na relva
macia, e eu me estirei, como se deitasse
num finíssimo leito. Meu guia perguntou-me
se estava cansado. Eu não tinha a sensação
comum do cansaço terreno, mas sentia ainda
algo como a necessidade de repouso do cor-
po. Disse-me que essa necessidade era pro-
veniente da minha última doença, e que, se
quisesse, podia passar por um profundo so-
no. Naquele momento, entretanto, não achei
38
necessário dormir, e respondi-lhe preferir
que conversássemos.

O meu amigo começou dizendo:

— "Tudo quanto o homem semear, colherá".


Essas poucas palavras descrevem exatamen-
te o grande processo eterno pelo qual tudo
que aqui vês é a conseqüência de algo. Flo-
res, árvores, florestas, as casas, que são
também lares felizes de gente feliz — tudo é
o visível resultado da máxima: "Tudo quanto
o homem semear, colherá". Esta terra em
que estamos agora vivendo é a grande co-
lheita, as sementes do que plantamos na
esfera terrena. Todos os que aqui vivem ga-
nharam por si próprios esse direito através
de suas ações na terra.

Eu começava a perceber muitas coisas, prin-


cipalmente aquilo que mais de perto me pre-
ocupava, ou seja, a atitude inteiramente er-
rada da Religião sobre o mundo do espírito.
O fato de que ali estava deitado constituía a
39
mais completa refutação de tudo quanto
eu havia ensinado e sustentado durante o
meu ministério sacerdotal. Via se desfazerem
inúmeros volumes de ensinamentos ortodo-
xos, credos e doutrinas, porque nada signifi-
cavam, porque não diziam a verdade e por-
que não se relacionavam com o que quer
que fosse do eterno mundo espiritual do
Grande Criador e Mantenedor de tudo. Podia
ver agora com clareza o que antes vislum-
brara indistintamente, isto é, que a ortodoxia
é uma criação do homem e que o Universo é
uma dádiva de Deus.

Meu guia informou-me que de onde estáva-


mos eu poderia ver toda espécie de gente
em condições diversas, vivendo em seus la-
res; pessoas cujos pontos de vista religiosos
quando na terra também eram os mais di-
versos. Disse ainda que uma das grandes
características do mundo do espírito era as
almas serem exatamente as mesmas de
momentos antes da passagem para o mundo
espiritual. O arrependimento à hora da morte
40
em nada as beneficiava, visto que em sua
mor parte tais arrependimentos eram devi-
dos à covardia e ao medo daquilo que esta-
ria por acontecer, o medo do inferno eterno
criado pela Teologia — vantajosa arma do
arsenal eclesiástico e uma das que mais so-
frimentos têm causado, entre outras muitas
falsas doutrinas. Os credos, portanto, não
formam qualquer parte do mundo espiritual,
mas como as pessoas trazem para ele todas
as suas próprias características, cada crente
continua a praticar a sua religião até o ins-
tante em que sua mente se torne espiritual-
mente esclarecida. Temos aqui — informou-
me, e já então eu tinha visto por mim mes-
mo — comunidades inteiras ainda praticando
suas antigas religiões terrenas, com o fana-
tismo e os preconceitos de seus princípios,
não obstante apenas no aspecto religioso. A
ninguém prejudicam a não ser a si mesmas,
pois confinam-se em suas próprias crenças.
Não há contudo qualquer ação no sentido de
conversão religiosa.
41
Sendo assim, supus então que a minha
velha religião aqui também estaria represen-
tada. Estava. Os mesmos rituais, cerimônias,
velhas crenças, eram conduzidos com idênti-
co, porém mal-orientado fervor em seus
mesmos templos. Os membros dessas co-
munidades sabiam que tinham morrido mas
julgavam que parte de sua recompensa ce-
lestial seria a continuação das formas terre-
nas de culto religioso. Assim prosseguirão
até o instante em que despertem espiritual-
mente. Jamais se exerce pressão sobre essas
almas; sua ressurreição mental deve partir
delas próprias. Quando isto ocorre, experi-
mentam pela primeira vez o real sentido da
liberdade.

Meu guia prometeu-me que, se eu quisesse,


poderíamos visitar mais tarde alguns desses
agrupamentos religiosos, mas expúnhamos
de muito tempo, e aconselhou-me antes de
mais nada que me habituasse primeiro com
a nova vida. Até aqui continuava no ar a
pergunta que eu lhe fizera sobre a alma que
42
tão bondosa e esplendidamente havia ze-
lado por meu jardim, mas ele já tinha lido
meu pensamento e voltou ao assunto. Tanto
a casa como o jardim, disse-me, eram a
messe de meus esforços terrenos. Tendo
merecido o direito de possuí-los, eu mesmo
os havia construído com o auxílio de genero-
sas almas que se dedicam, em sua vida no
mundo do espírito, a praticar atos de bonda-
de em favor de seus semelhantes. Eram seu
trabalho e prazer a um só tempo. Freqüen-
temente, essas tarefas eram empreendidas e
levadas a efeito por aqueles que quando na
terra foram especialistas no ofício e que o
exerciam com satisfação. Aqui podiam conti-
nuar seus ofícios terrenos sob condições que
apenas o mundo do espírito estaria apto a
proporcionar. Tais trabalhos lhes traziam a
própria recompensa espiritual, e nenhum
pensamento de retribuição lhes vinha à men-
te. O desejo de servir aos outros é que os
preocupava.
43
Aquele que me havia auxiliado a compor
tão belo jardim era um amante da jardina-
gem quando na terra, e, como eu mesmo
podia ver, era um verdadeiro artista em seu
ofício. Mas, desde que o jardim fora criado,
já não era necessária a incessante luta para
sua conservação, como ocorre na terra. São
a constante decomposição, as tempestades,
os ventos e outras causas diversas que exi-
gem solícitas atenções aos jardins terrestres.
Aqui não há decomposição, e tudo que cres-
ce assim vive, da mesma forma como nós
existimos. Fui informado de que o jardim não
necessitaria de nenhum cuidado, na forma
usualmente entendida por nós, e que o nos-
so amigo jardineiro se encarregaria dele, se
eu quisesse. Longe de mim desejar apenas:
externei viva esperança de que ele tomasse
efetivamente a seu cargo a tarefa. Disse de
minha profunda gratidão pelo seu esplêndido
serviço e que esperava poder encontrá-lo
para expressar-lhe pessoalmente os meus
mais sinceros agradecimentos. Meu guia es-
44
clareceu-me que isto seria muito simples e
que se ainda não me encontrara com ele, era
porque eu havia chegado há pouco, e ele
não desejava apresentar-se até que me ins-
talasse em meu lar.

Minha mente voltou-se de novo à ocupação


que exerci na terra, isto é, a orientação diá-
ria dos serviços religiosos e outros deveres
de sacerdote. Desde que tal ocupação, pelo
menos no meu caso particular, já não era
mais necessária, fiquei intrigado para saber o
que o futuro me reservava. Meu amigo lem-
brou-me de novo que muito tempo havia
ainda para ponderar no assunto, e sugeriu
que eu devia descansar para depois acom-
panhá-lo em algumas viagens de observa-
ção. Muito havia para ver, coisas que iriam
me deixar atônito. Havia também numerosos
amigos que me aguardavam para um novo
encontro após tão longa separação. Conteve
ele a minha impaciência por iniciar logo as
visitas, dizendo que eu deveria descansar
primeiro e que nada melhor para isso do que
45
a minha própria casa. Segui-lhe o conse-
lho e para lá nos dirigimos.

Já esclareci que ao penetrar pela primeira


vez em meu lar observei ser ele semelhante
ao que eu possuía na terra, mas com algu-
mas diferenças. Logo que entrei, percebi i-
mediatamente as diversas alterações que
haviam sido introduzidas Eram principalmen-
te relativas à estrutura, modificações essas
que eu teria gostado de fazer mas que por
motivos vários, inclusive de base estrutural,
jamais pude levar a efeito. Não existem aqui
as dificuldades terrenas, e, por conseguinte,
encontrei neste meu lar espiritual, e numa
disposição familiar, tudo aquilo que desejei
na vida anterior. Os requisitos considerados
indispensáveis a uma casa terrena eram,
aqui, naturalmente, supérfluos; assim é o
caso das provisões de alimentos, para citar
apenas um exemplo: muitos outros podem
ser facilmente imaginados.
46
Enquanto atravessávamos as várias de-
pendências, eu ia observando as inúmeras
provas de consideração e bondade daqueles
que tão ativamente haviam trabalhado para
auxiliar-me na reconstrução do velho lar, na
nova condição. De pé no seu interior, fiquei
completamente ciente de sua permanência
em comparação com aquele outro que eu
deixara para trás. Mas era uma permanência
que eu sabia poder terminar no momento
em que eu quisesse. Tratava-se tão-só de
uma casa; era um porto espiritual, um re-
manso de paz, onde não existiam as habitu-
ais preocupações e responsabilidades do-
mésticas. O mobiliário era em grande parte
semelhante ao que adquirira para o seu simi-
lar na terra, não porque fosse particularmen-
te belo, mas porque eu o achara prático e
confortável, além de adequado às minhas
poucas exigências. A maioria dos pequenos
objetos de adorno estava em seus costumei-
ros lugares, e no todo a casa possuía aquele
ar evidente de ser habitada. Na verdade, eu
47
me sentia em casa. Na sala que anterior-
mente havia sido meu escritório, notei am-
plas estantes. A princípio, surpreendi-me
com o fato, mas refletindo melhor, não en-
contrei motivos para que, desde que tal casa
existia, não existissem também livros em seu
interior. Estava interessado em conhecer a
natureza de tais livros e iniciei assim um e-
xame minucioso. Entre eles, bem à vista,
descobri algumas das minhas próprias obras.
Ao deparar com elas, tive uma idéia nítida da
verdadeira razão pela qual lá se achavam.
Muitas continham as narrativas a que me
referi anteriormente, ou seja, o relato das
minhas experiências psíquicas, às quais pro-
curei dar um sentido religioso. Um livro em
especial parecia destacar-se em minha men-
te, e logo me certifiquei de que nunca deve-
ria tê-lo escrito. Era uma narrativa deturpada
em que os fatos, tais como os tinha visto na
realidade, recebiam um tratamento injusto e
mentiroso. Senti profundo remorso, e pela
primeira vez desde que chegara a este mun-
48
do, tinha motivos para me lamentar. Não
que me arrependesse de ter vindo, mas la-
mentava que, vendo a verdade diante de
meus olhos, eu a tivesse deliberadamente
evitado, para em seu lugar divulgar interpre-
tações falsas. E eu sabia que, enquanto meu
nome existisse, ou por outra, enquanto ti-
vesse valor comercial, aquele livro continua-
ria a ser reproduzido, lido e considerado co-
mo verdadeiro. Vinha-me a sensação desa-
gradável de que jamais poderia destruir o
que fizera.

Não havia qualquer censura a meu ato. Pelo


contrário, eu podia sentir uma nítida atmos-
fera de profunda simpatia. De onde provi-
nha, não o sabia; entretanto, era real, autên-
tica. Voltei-me para o amigo que durante a
minha inspeção e descoberta havia se man-
tido discreta e compreensivamente à parte, e
pedi-lhe auxílio. Recebi-o imediatamente.
Explicou-me que sabia perfeitamente o que
eu estava enfrentando em relação àquela
obra, mas que lhe era vedado referir-se a ela
49
antes que eu o descobrisse por mim mes-
mo. Uma vez que isso acontecera, e em vista
do meu pedido, podia ele agora ajudar-me.

Minha primeira pergunta foi sobre como po-


deria sanar o erro. Disse-me que de várias
maneiras, umas talvez mais difíceis, porém,
mais eficazes do que outras. Sugeri que eu
poderia voltar ao plano terrestre e lá difundir
a verdade sobre esta nova vida e sobre a
comunicação entre os dois mundos. Inúme-
ros o haviam tentado — respondeu-me — e
ainda tentavam, mas quantos eram acredita-
dos? Julgaria eu ser melhor sucedido? Com
toda a certeza os meus leitores jamais rece-
beriam ou dariam crédito a qualquer comuni-
cação minha. E não percebia eu, também,
que se me apresentasse a eles, imediata-
mente me iriam tomar pelo demônio?

— Permite-me — continuou — falar a respei-


to da comunicação com o mundo terrestre.
Que é possível, bem sabes que sim, mas
tens alguma noção sobre as dificuldades
50
dessa tarefa? Vamos supor que descubras
os meios de comunicar-te. O primeiro obstá-
culo a enfrentar seria a tua própria identifi-
cação. É bem provável que, ao dizeres quem
és, eles hesitem em aceitar o teu nome, sim-
plesmente por ter sido ele tão notável
enquanto eras vivo. Por mais importantes
que sejamos, ao passarmos para o plano
espiritual somos referidos na terra apenas no
tempo passado. Os livros que pudemos legar
são considerados mais importantes do que o
próprio autor, visto que para o mundo esta-
mos mortos, nossa voz humana deixou de
existir. E apesar de estarmos bem vivos, —
tanto para nós como para os outros aqui —
entre os mortais nada mais somos que lem-
branças, às vezes permanentes, às vezes
recordações que se desvanecem rápidas,
deixando meros nomes em sua esteira. Sa-
bemos, todavia, que estamos muito mais
vivos do que antes, se bem que a maioria na
terra considere que não podíamos estar mais
mortos.
51
Poderás então fornecer certo número de
informações, e isso é justo, contanto que
não te excedas, como inúmeras vezes tem
ocorrido. Satisfeitas estas exigências, que
virá depois? Desejarás explicar que estás
vivo e são. Se as pessoas com as quais esti-
veres em contato não forem meros amado-
res, nenhuma dúvida pairará sobre tuas de-
clarações. Mas se quiseres anunciar tais no-
vidades ao mundo em geral, por intermédio
dos meios usuais, vão acreditar na tua iden-
tidade só aqueles que já conhecem e prati-
cam a comunicação com o mundo do espíri-
to. Quanto aos demais, quem acreditará em
tua palavra? Ninguém, certamente, e muito
menos os teus antigos leitores. Dirão que
não és tu e sim um demônio. Outros, prova-
velmente, nem tomarão conhecimento de ti.
Um certo número de pessoas, sem dúvida,
iria imaginar que, por teres passado ao
mundo do espírito, já terias adquirido a mais
profunda sabedoria, e que tuas palavras
constituiriam declarações infalíveis. Estás
52
vendo, assim, algumas das dificuldades
que terás de enfrentar na divulgação da Ver-
dade entre aqueles que ainda vagam nas
sombras do mundo terreno.

As previsões de meu amigo desalentaram-


me sobremaneira; avaliei os inúmeros obstá-
culos, e fiquei convencido de que devia a-
bandonar o projeto por algum tempo. Con-
sultaríamos outros mais sábios do que nós, e
talvez me ocorresse alguma solução. Com o
passar do tempo, — falando em sentido ter-
reno — eu poderia também mudar esses
planos. Não devia, pois, afligir-me. Ainda
muito havia para ver e fazer, e muita experi-
ência para ser adquirida — o que seria valio-
so para mim, se resolvesse levar avante os
meus projetos. Meu guia aconselhou-me a
descansar, que ele ia retirar-se. Quando me
sentisse inteiramente repousado, bastava
dirigir--lhe os meus pensamentos e ele volta-
ria imediatamente. Deixei-me, pois, ficar
numa confortável poltrona e entrei em agra-
dável estado de sonolência; embora inteira-
53
mente consciente do que me rodeava,
sentia-me invadido por novas energias, que
fortaleciam todo o meu corpo. Era como se
me tornasse cada vez mais leve, dissipando-
se para sempre os últimos restos de minha
condição terrena. Por quanto tempo perma-
neci nesse estado não posso avaliar, mas
pouco a pouco um suave torpor invadiu-me,
e quando despertei foi com aquela disposi-
ção de saúde que na terra chamamos de
higidez. Lembrei-me a seguir das palavras do
guia e dirigi-lhe meu pensamento. Em pou-
cos segundos (do tempo terrestre), entrava
ele pela porta. Esse movimento instantâneo
surpreendeu-me bastante, o que o fez rir.
Explicou-me que na verdade tudo era muito
simples. O mundo espiritual é um mundo de
pensamentos: pensar é agir, e o pensamento
é Instantâneo. Se nos imaginarmos num de-
terminado lugar, para lá viajaremos com a
velocidade desse pensamento. Eu logo veria
ser esse o meio usual de locomoção e breve
seria capaz de utilizá-lo.
54
Meu guia logo notou a mudança operada
em mim e congratulou-se comigo porque me
refizera. Seria impossível explicar tão magní-
fica sensação de completo bem-estar e vita-
lidade. Quando vivemos no plano terrestre
estamos sempre, e por diversas maneiras,
sentindo o nosso corpo físico: pelo calor ou
pelo frio, pelo desconforto, fadiga, pelas mí-
nimas doenças e por inúmeros outros fatores
adversos. Aqui não há tais inconvenientes.
Por outro lado, não quero dizer que somos
insensíveis, imunes a influências externas;
nossas percepções são de ordem mental e o
nosso corpo espiritual é impenetrável a tudo
quanto seja destrutivo. Sentimos através da
mente e não de qualquer órgão físico dos
sentidos; nossas reações estão diretamente
ligadas aos pensamentos. Se sentimos frio,
em qualquer circunstância especial e defini-
da, tal sensação nos vem pela mente, nada
sofrendo o corpo espiritual. Nesta esfera de
existência tudo se harmoniza com os habi-
tantes: a temperatura, a paisagem, as mora-
55
dias, as águas dos rios e das fontes, e, o
que é mais importante, os próprios habitan-
tes. Não há, portanto, nada que possa pro-
vocar adversidades, desprazer ou desconfor-
to. Podemos nos esquecer completamente
do corpo e permitir que nossas mentes se-
jam absolutamente livres, e através delas
usufruir as belezas que elas mesmas ajuda-
ram a construir. E muitas vezes podemos nos
sentir tristes, — muitas vezes nos divertimos
— com aqueles que, ainda na terra, lançam
o ridículo e o desprezo sobre nossas infor-
mações. Que sabem eles, pobres diabos?
Nada! E que podem oferecer em substituição
às realidades do mundo do espírito? Nada,
pois nada sabem. Gostariam de nos privar de
nossos belos campos, flores e árvores, dos
nossos rios e lagos, nossas casas, nossos
amigos, trabalhos, prazeres e diversões. Para
quê? Qual a concepção que podem ter essas
acanhadas mentalidades de um mundo espi-
ritual? Pelas suas afirmações absurdas, ne-
nhuma. Transformar-nos em fantasmas, é o
56
que desejariam, fantasmas sem substância
nem inteligência, meramente subsistindo
num vago, sombrio e nebuloso estado, apar-
tados de tudo quanto é humano. Aqui, em
minha perfeita saúde, cheio de vitalidade, e
vivendo entre as maravilhas de um mundo
verdadeiramente real, do qual quero dar-lhes
apenas uma vaga idéia, sinto-me fortemente
impressionado pela imensa ignorância de-
monstrada por certas mentes terrenas, a
este respeito.

Chegara o momento, acreditei, em que deve-


ria conhecer algo desse esplêndido plano de
existência, e assim, acompanhado de meu
guia, partimos para aquilo que, no meu en-
tender, seria uma viagem de descobrimen-
tos. Aqueles que já percorreram o mundo à
procura de novas paisagens, compreenderão
como eu me sentia ao partir.

Para conseguir uma visão mais ampla, en-


caminhamo-nos a uma região elevada, de
onde um límpido panorama se descortinou
57
ao meus olhos. À nossa frente estendia-se
um campo interminável. Noutra direção via-
se o que parecia ser uma cidade de impo-
nentes edifícios. Deve-se ter presente que
aqui nem todos têm as mesmas predileções;
acontece como na terra, em que muitos pre-
ferem a cidade ao campo e vice-versa, e ou-
tros apreciam a ambos. Eu estava vivamente
interessado em saber como seria uma cidade
espiritual. Fácil era imaginar o campo, mas a
cidade sempre me pareceu essencialmente
obra terrena. Por outro lado, não me ocorria
uma objeção lógica a que o mundo espiritual
não pudesse também construir cidades. Meu
companheiro divertia-se muito com o meu
entusiasmo, na sua opinião igual ao de um
colegial. Não era a primeira vez, entretanto,
que encontrava tal entusiasmo. A maioria
das pessoas, ao chegar, é tomada de idênti-
cas emoções, o que proporciona aos nossos
amigos um especial prazer em nos acompa-
nhar.
58
Via-se à distância uma igreja aparente-
mente construída nas linhas usuais; decidi-
mos seguir naquela direção, observando ou-
tras coisas de passagem. Fomos por um ca-
minho que acompanhava em certos pontos
um riacho, cuja água cristalina brilhava à luz
do sol celestial. Ao correr, a água emitia no-
tas musicais, combinando-as numa rapsódia
das mais suaves sonoridades. Aproximamo-
nos da margem para que eu o pudesse ob-
servar mais de perto. Assemelhava-se a um
cristal líquido e, ao ser tocado pela luz, cinti-
lava com todas as cores do arco-íris. Mergu-
lhei um pouco a minha mão na água, certo
de que, como parecia, ela seria gelada. Qual
não foi a minha surpresa ao senti-la delicio-
samente tépida. Além disso, produzia um
efeito eletrizante, que se propagava da mão
por todo o braço. A sensação era estimulan-
te, e eu pude imaginar como seria se me
banhasse inteiramente nela. Meu amigo dis-
se que me sentiria revigorado, mas não ha-
via suficiente profundidade para uma imer-
59
são total. Não me faltaria oportunidade,
quando chegássemos a um curso maior. Ao
retirar a mão, verifiquei que a água escorria
em brilhantes gotas, deixando-a completa-
mente seca.

Retomamos a viagem e meu guia disse que


gostaria de me levar a visitar o proprietário
de uma casa, da qual nos aproximávamos.
Caminhamos por um artístico jardim de gra-
mados esmeradamente cuidados e chega-
mos até um homem sentado nas proximida-
des de um pomar. À nossa chegada ergueu-
se e recebeu meu amigo da maneira mais
cordial; fui então apresentado como um re-
cém-chegado. Soube que este senhor se or-
gulhava das frutas de seu pomar; a seguir,
convidou-me a prová-las. Parecia ele um
homem de meia-idade, embora pudesse ser
na realidade mais velho do que aparentava à
primeira vista. Aprendi então que tentar pre-
dizer as idades das pessoas deste mundo
seria tarefa difícil e até mesmo perigosa. É
necessário saber — e permitam-me divagar
60
um pouco — que a lei aqui é no sentido
de que, à medida que progredimos espiritu-
almente, vamos nos desfazendo daquela a-
parência idosa conhecida na terra. Perdemos
as rugas que o tempo e as preocupações
imprimem nos nossos semblantes, assim
como outras indicações do avanço da idade,
e tornamo-nos mais jovens à medida que
adquirimos mais experiência em sabedoria,
conhecimento e espiritualidade. Mas não di-
rei que possamos assumir um aspecto de
completa juventude, nem perder as caracte-
rísticas externas da personalidade. Isto seria
nos transformar num todo uniforme. O certo
é que retrocedemos ou adiantamo-nos — de
acordo com a nossa idade quando passamos
a espíritos — em relação àquilo que em geral
se conhece como a flor da idade.

Para resumir: nosso anfitrião introduziu-nos


no pomar, onde vi inúmeras árvores muito
bem cultivadas e carregadas de frutas. O-
lhou-me por um instante e conduziu-nos en-
tão a uma esplêndida árvore que se parecia
61
bastante com uma ameixeira. As frutas
eram perfeitas na forma, ricas em cor e pen-
diam em grandes cachos. Colheu algumas e
ofereceu-nas, assegurando que nos fariam
bem. Eram frescas ao tato e notavelmente
pecadas para o seu tamanho; o sabor, deli-
cioso, a polpa, macia, sem ser difícil nem
desagradável de tocar, e uma quantidade de
suco semelhante ao néctar, escorria delas.
Meus dois amigos observavam-me atenta-
mente enquanto eu comia umas ameixas,
ambos revelando uma expressão de jovial
expectativa. Sendo abundante o suco, eu
temia que escorresse sobre a minha roupa.
Escorria sim, mas não a manchava, o que
me maravilhou, provocando o riso de meus
amigos. Apressaram-se então a explicar que,
estando eu num mundo incorruptível, tudo
quanto não se aproveita é imediatamente
devolvido ao elemento de origem. O suco
das frutas que eu julgara escorrer sobre mim
voltara à árvore de onde proviera. Nosso
anfitrião informou-me que o tipo especial de
62
ameixa que eu acabara de comer era re-
comendado aos recém-chegados; facilitava a
restauração do espírito, especialmente se o
passamento se dera por moléstia. Observou,
entretanto, que eu não parecia ter sofrido
uma longa doença, e que, possivelmente, o
meu falecimento deveria ter sido algo repen-
tino, o que era a verdade. Eu estivera real-
mente muito pouco tempo doente.

As frutas daquele pomar não eram apenas


para os que necessitassem de algum trata-
mento após a morte física, mas estavam à
disposição de quem quer que os desejasse
comer pelo seu efeito estimulante. Disse-me
que se eu não possuísse árvores frutíferas,
ou mesmo que as tivesse, poderia servir-me
das suas, a qualquer hora.

— As frutas estão sempre no tempo — a-


crescentou — e jamais encontrarás uma ár-
vore sequer sem elas.
63
Respondendo à minha pergunta sobre
como eram cultivadas, declarou que, assim
como a inúmeras outras perguntas nestas
paragens, a resposta só poderia vir dos pla-
nos mais elevados e que, mesmo que a obti-
véssemos, havia grande probabilidade de só
a entendermos quando vivêssemos também
naqueles planos.

— Aceitamos as coisas como são e como


surgem — disse ele, — sem nada indagar,
pois formam elas um interminável estoque
provindo de uma interminável Fonte. Não há
realmente necessidade de aprofundar tais
assuntos, e a maioria aqui se satisfaz em
usufruir de tudo com os corações gratos.

Quanto às frutas, o nosso anfitrião acrescen-


tou que tudo quanto sabia era que, tão logo
eram colhidas, outras vinham substituí-las.
Nunca amadureciam demais, por serem per-
feitas, e, como nós, imperecíveis. Convidou-
nos a caminhar através do pomar onde vi-
mos uma grande variedade de frutas, na
64
maioria espécies conhecidas pelo homem,
e muitas também apenas imaginadas, por
intermédio de informações espirituais. Expe-
rimentei algumas de espécies desconhecidas;
seria impossível descrever seu delicioso sa-
bor, não há fruta terrestre que possa servir
de base para uma comparação. Somente
podemos dar indicações aos sentidos pela
comparação com algo já experimentado. Se
não tivermos tido essa experiência ficamos
completamente impossibilitados de transmitir
qualquer sensação nova; e em nenhum
campo esse fato pode ser melhor observado
que no do paladar.

Meu amigo explicou ao nosso cordial anfitri-


ão que ele estava me mostrando a terra em
que deveria viver desde então, ao que ele
renovou o convite para visitá-lo sempre que
o desejasse, e que não era preciso a sua
presença para que eu me servisse do pomar.
Após os agradecimentos, continuamos a
nossa jornada.
65
Voltamos ao caminho ao lado do ribeirão,
prosseguindo em direção da igreja. Notei
então que aquele pequeno curso de água ia
se alargando, até adquirir as dimensões de
um lago de proporções regulares. Viam-se
grupos de pessoas às margens e algumas se
banhando. O lago era cercado por árvores, e
havia muitas flores, de tal modo dispostas
que, embora obedecessem a certa ordem,
não davam contudo nenhuma idéia de pro-
priedade. Pertenciam a todos com direitos
iguais. Ninguém as maltratava. Algumas pes-
soas podiam ser vistas com ambas as mãos
em torno de algumas flores, em atitude aca-
riciante; maneiras assim extraordinárias des-
pertaram a minha curiosidade, e pedi a meu
guia uma explicação. Sua resposta foi levar-
me para perto de uma jovem, naquela atitu-
de estranha. Senti-me embaraçado pela in-
tromissão, porém me disseram: — "espera e
vê". Meu amigo curvou-se ao lado dela e foi
recebido com um sorriso e palavras de boas-
vindas. Concluí que eram velhos amigos, no
66
que me enganara. Realmente, como de-
pois me disseram, nunca se haviam visto
antes; simplesmente aqui não necessitamos
de apresentações formais; constituímos uma
grande e unida família. Depois de nos acos-
tumarmos com o novo ambiente e sistema
de vida, verificamos que nunca seremos in-
trometidos se pudermos ler com rapidez o
pensamento de uma pessoa que deseje um
período de isolamento. E ao vermos gente ao
ar livre podemos nos considerar bem-vindos
caso nos aproximemos para conversar.

Aquela jovem era, como eu, uma recém-


chegada e contou--nos como alguns amigos
lhe ensinaram a extrair das flores tudo quan-
to elas profusamente oferecem. Curvei-me
ao lado dela, que me fez uma demonstração
prática. Colocando as mãos em volta da flor
como a formar uma taça, eu poderia sentir
uma força magnética subir-me pelos braços.
Ao dirigir as mãos para uma bela flor, perce-
bi que ela se curvava no caule para mim! Fiz
como me ensinara, e incontinenti senti uma
67
corrente de vitalidade percorrer-me os
braços, enquanto um delicioso perfume se
exalava da flor. Advertiu-me a não colher as
flores, pois elas eram eternas, faziam parte
desta vida, como nós mesmos. Fiquei-lhe
grato pelo aviso, visto que seria a mais natu-
ral das ações apanhar flores que se viam em
tamanha profusão. Não acontecia o mesmo
com os frutos, que se destinavam a ser con-
sumidos. As flores eram decorativas, e colhê-
las seria como cortar as árvores frutíferas.
Entretanto, outras flores existiam para serem
colhidas. As que estava vendo agora serviam
apenas para oferecer e renovar a vitalidade.

Indaguei de minha amiga se acaso já expe-


rimentara as maravilhosas frutas, ao que me
respondeu afirmativamente.

O guia sugeriu que nos aproximássemos da


água e que se a jovem estivesse só, e qui-
sesse nos acompanhar, seria motivo de pra-
zer. Ela assentiu ao convite, e, assim, nós
três nos aproximamos do lago. Expliquei-lhe
68
que meu amigo era um habitante já afeito
a estas paragens e que me servia de guia e
conselheiro. Ela parecia rejubilar-se pela
nossa companhia, não que estivesse solitá-
ria, pois solidão é coisa inexistente nesta
região, mas por ter tido raros amigos en-
quanto viva, embora nunca tivesse sido indi-
ferente às penas, preocupações e dores dos
outros. Desde que se tornara espírito, havia
encontrado tantas almas bondosas de dispo-
sição semelhante à sua, que logo acreditara
fôssemos também. Forneci-lhe alguns por-
menores a meu respeito e como estivesse
ainda usando minha vestimenta terrena —
ou melhor, a sua equivalente — foi-lhe pos-
sível identificar-me com o que eu havia sido
profissionalmente. E como o meu amigo
também se vestisse da mesma maneira, ela
declarou, rindo, que se sentia a salvo em
nossas mãos!

Lembrei-me do que se dissera antes acerca


dos banhos, mas receei especificar o equi-
pamento necessário para tomá-los. Meu a-
69
migo, porém, tirou-me dessa situação de-
veras embaraçosa, referindo-se, ele mesmo,
ao assunto.

Tudo o que era necessário para gozar as de-


lícias de um banho era a água, só isso! Nada
mais simples: entrar na água exatamente
como estávamos. Nadássemos ou não, isso
pouco importava. Devo confessar que fiquei
estupefato com aquilo e, naturalmente, hesi-
tei um pouco. Entretanto, meu amigo entrou
calmamente no lago, ficando totalmente
submerso. Seu gesto nos encorajou e, se-
guindo o seu exemplo, nós também nos ati-
ramos na água.

O que eu esperava de tudo isso, não me


lembro. Pelo menos antecipava o efeito habi-
tual da água em idênticas circunstâncias na
terra.

Foi, pois, muito grande a minha surpresa e,


ao mesmo tempo, o meu alívio, quando veri-
fiquei que a água, mais do que um líquido
70
penetrante, era como que um manto mor-
no me envolvendo. A ação magnética da á-
gua era semelhante à do riacho em que mo-
lhara as mãos. Porém, aqui a força revigo-
rante envolvia o corpo, insuflando-lhe nova
vida. Era a água deliciosamente quente, sen-
do possível ficar de pé, flutuar ou afundar
completamente, isto é, abaixo da superfície,
sem que isso representasse qualquer perigo
ou incômodo. Se eu tivesse refletido, teria
logo verificado que isso era inevitável. O es-
pírito é indestrutível. Mas, além dessa influ-
ência, magnética, havia, proveniente da á-
gua, uma confiança dupla, como que uma
sensação afetiva, se assim se pode dizer.
Não é fácil dar uma idéia precisa desta expe-
riência, fundamentalmente espiritual. Que a
água era viva, não se podia duvidar. Irradia-
va sua bondade pelo contato e estendia sua
celestial influência a todos os que a usavam.
De minha parte, confesso que experimentei
uma exaltação espiritual, uma regeneração
vital, a tal ponto, que esqueci minha hesita-
71
ção inicial e o fato de estar inteiramente
vestido!

Minha mente estava livre de perturbação ao


lembrar-me de que, ao retirar a mão do ria-
cho, a água escorrera, deixando-a comple-
tamente seca. Estava, portanto, preparado
para o que se seguiu quando saímos do lago.
Ao emergirmos, a água escorria, deixando
minhas roupas como se encontravam antes.
A água havia penetrado o tecido como o ar
ou a atmosfera o fazem, porém sem deixar
qualquer sinal visível.

Mais uma observação a respeito da água:


era límpida como o cristal, e a luz, em cores
quase ofuscantes, se refletia em suas ondas.
Era excepcionalmente suave ao tato, e sua
leveza tinha a mesma qualidade da atmosfe-
ra, isto é, suportava tudo o que nela ou so-
bre ela se colocasse. Assim como é impossí-
vel aqui cair por acidente, o que pode acon-
tecer na terra, também o é afundar na água.
Todos os nossos movimentos refletem dire-
72
tamente as nossas mentes, e, assim, não
podemos nos machucar ou sofrer acidentes.
Receio que não consiga descrever alguns
destes fenômenos sem ir além do alcance de
mentalidades e experiências terrenas. So-
mente as testemunhas oculares podem ter
uma idéia precisa das maravilhas destas pa-
ragens.

Após curta caminhada, chegamos à igreja


que eu avistara à distância e que alimentava
o desejo de visitar. Tratava-se de um templo
de construção gótica, de tamanho médio,
semelhante às igrejas paroquiais da terra.
Estava situado em agradável recanto, que se
nos afigurava mais espaçoso em virtude de
não existirem grades ou muros demarcado-
res dos seus limites eclesiásticos. O revesti-
mento de pedra com que o templo foi cons-
truído tinha a frescura própria dos prédios
novos; mas, na verdade, ele existia há mui-
tos anos terrenos. Sua limpeza exterior esta-
va de acordo com todas as coisas daqui: não
há decadência. Não existe também aquele ar
73
enfumaçado que dá ao excursionista uma
impressão desoladora. Não havia, é claro,
um cemitério anexo. Apesar de muita gente
praticar ardorosamente suas religiões predi-
letas da terra, é evidente que, ao se erigir
um templo aqui, é desnecessário e inútil
construir também um cemitério.

À entrada havia o usual quadro para afixação


de avisos, mas onde se mencionava apenas
a natureza dos serviços da Igreja Estabeleci-
da. Não figurava ali o horário dos cultos, e
pus-me a refletir como uma organização des-
ta espécie poderia reunir-se se o tempo, co-
mo é conhecido no mundo, não tem existên-
cia. Aqui não há noite e dia, alternadamente,
pelos quais o tempo possa ser medido. É dia
perpétuo. O grande sol celestial brilha eter-
namente, como já disse. Não temos também
as muitas outras indicações do passar do
tempo, como por exemplo fome e fadiga.
Nem aquelas do envelhecer do corpo e do
embotamento das faculdades mentais.
74
Aqui não há o ciclo de primavera, outono
e inverno; em lugar deles gozamos a gloria
de eterno verão — e nunca nos cansamos
disso!

Como sempre, voltei-me para indagar de


meu amigo a respeito das reuniões de con-
gregações. Era muito simples, disse ele.
Quem estiver encarregado delas, tem apenas
que enviar seus pensamentos para a sua
congregação, e aqueles que desejam vir, se
reúnem. Não há necessidade de tocar os
sinos, pois a emissão do pensamento é mui-
to mais completa e exata. Os paroquianos
têm apenas que esperar até que os pensa-
mentos os alcancem para se congregarem.
Mas onde obtém o prelado a indicação de
que se aproxima a hora do culto? Essa ques-
tão, me disse ele, fazia surgir um problema
muito maior.

Com a ausência do tempo terreno no mundo


do espírito, nossas vidas são ordenadas por
acontecimentos, isto é, aqueles que são par-
75
te da nossa vida. Não me refiro às ocor-
rências incidentais, mas às que na terra são
consideradas acontecimentos periódicos.
Temos aqui muitos desses acontecimentos,
como espero demonstrar à medida que de-
senvolvo a narrativa, e ao fazê-lo verão co-
mo nós sabemos que a realização de certos
atos, individuais ou coletivamente, nos são
claramente lembrados. A igreja que agora
visitávamos havia estabelecido uma ordem
regular de serviços, como aqueles a que es-
tamos acostumados na terra. O prelado que
trabalhava como pastor desse estranho re-
banho sentiria, pelos seus deveres cotidianos
na terra, a aproximação do dia e hora usuais
em que os cultos eram mantidos. Seria, por
assim dizer, instintivo, e tornar-se-ia mais
acentuado com o hábito, até que a percep-
ção mental adquirisse absoluta regularidade,
como no plano terreno. Assim, a congrega-
ção, tem apenas que esperar o chamado de
seu ministro.
76
A tabuleta de avisos dava uma lista dos
serviços usuais vistos geralmente numa igre-
ja terrena da mesma denominação. Um ou
dois itens estavam entretanto visivelmente
ausentes, como os comunicados de casa-
mentos e batizados. A primeira omissão po-
dia-se compreender, e a última podia apenas
significar que o batismo é desnecessário,
visto que o batizado estaria no Céu — onde
se presume que esta igreja esteja situada.

Entramos e vimos um encantador edifício, de


desenho convencional. Havia belíssimos vi-
trais representando cenas da vida de santos,
através dos quais se espargia uma luz, vinda
de todos os lados da igreja e produzindo um
estranho efeito no ambiente, devido ao seu
colorido. Providências para aquecer o prédio
eram, é claro, supérfluas. Havia um esplên-
dido órgão numa das extremidades, e o al-
tar-mor era ricamente trabalhado. Fora isso,
havia certa simplicidade, que de maneira
alguma afetava a beleza geral da peça de
arquitetura. Havia sinais evidentes de cuida-
77
doso trato por toda parte. Sentamo-nos
um pouco, gozando a paz e a calma do lugar
e, tendo visto tudo que ali havia, retomamos
ao ar livre.

IV. LAR PARA REPOUSO

Ao caminharmos, pelo menos dois de nós


refletíamos sobre o que havíamos visto — e
a sua significação. Nossa jovem amiga, que
se chamava Rute, nos fez várias perguntas,
mas, esquivei-me de respondê-las, porquan-
to era também eu um recém-chegado. Edwin
— o nome do nosso amigo que até aqui omi-
ti — encarregar-se-ia de o fazer.

Rute nunca fora muito freqüentadora de i-


grejas enquanto viva, mas era uma alma
bondosa, como se podia ver, assim como era
fácil ver que a ausência da igreja não lhe
acarretara diferença no destino. Suas ações
a favor do próximo tinham contribuído mais
para o seu bem-estar espiritual do que toda
a exibição externa de religião, Assim como
78
eu, ela também se surpreendia de ver, em
espírito, a completa coleção de acessórios da
religião ortodoxa. Edwin disse-lhe que até
então havia ela visto apenas um exemplo, e
que havia muitos outros. Mas, tendo visto
um, era o mesmo que ver todos. Cada seita,
é claro, mantém seus próprios credos e for-
mulários, tal como na terra, com muito pou-
ca diferença, como acabávamos de ver.

Tal sonolência espiritual não é novidade no


reino dos espíritos. O mundo é o culpado
disso. As controvérsias religiosas são a base
de toda a ignorância e falta de conhecimento
que tanta gente traz para o mundo espiritu-
al, e, desde que a mente de tais pessoas é
teimosa e realmente incapaz de pensar por si
só, então, elas se mantêm acorrentadas a
suas estreitas opiniões, julgando-as verda-
deiras, até que um dia lhes vem o despertar
espiritual. É quando verificam que a escravi-
dão mental as retardava. E é lamentável que
a cada um que deixa para sempre essas
congregações mal-orientadas, outro substitu-
79
to apareça — até que chegue a hora de
toda a terra conhecer a verdade sobre o
mundo do espírito. Evidentemente aqui não
prejudicam a ninguém, visto que apenas es-
tão retardando o seu próprio progresso espi-
ritual. Compreendendo o que estão fazendo
a si próprios, dão o primeiro passo firme pa-
ra a frente e sua alegria é ilimitada. Compre-
enderão então o tempo que aparentemente
desperdiçaram.

Agora, é caso de se perguntar: desde que


com a aquisição da verdade e do conheci-
mento, essas extensões de religiões terrenas
ao mundo espiritual são desnecessárias, o
que devemos colocar em seu lugar? Isto po-
deria parecer uma condenação à adoração
comunal. — Absolutamente. Temos a nossa
adoração comunal aqui, mas ela é purificada
de todos os traços de credos sem significado,
de doutrinas e de dogmas. Adoramos o
Grande e Eterno Pai em verdade absoluta. |
E ninguém é forçado a crer cegamente — ou
declarar que o faz — em algo que é comple-
80
tamente incompreensível a qualquer men-
te. Aqui há muitas e muitas coisas que não
compreendemos — e levaria milhões de anos
antes de termos a mais leve sombra de en-
tendimento. Mas não nos pedem que com-
preendamos, mas sim que as aceitemos tal
como são. Isso não influi em nada no pro-
gresso de nossa alma. Poderemos progredir
mais e mais sem necessidade de pensar em
compreender.

Tais foram os assuntos discutidos — era Ed-


win que os expunha — enquanto caminhá-
vamos pelo maravilhoso céu de Deus. Rute
descobriu um imponente edifício, em terras
bem--arborizadas, que também despertou
minha curiosidade. Apelamos para o nosso
guia, e Edwin nos contou que era um lar pa-
ra repouso, destinado àqueles que chegas-
sem ao espírito depois de longa enfermidade
ou que haviam tido violento passamento.
Indagamos se seria possível dar uma espiada
lá dentro, sem parecermos bisbilhoteiros. ele
assegurou-nos que seria muito fácil, visto
81
que prestara serviços lá, e era portanto
persona grata. Além disso, tínhamos
suficiente simpatia para banirmos qualquer
idéia de que éramos intrometidos. Ao nos
aproximarmos vimos que o edifício não se
assemelhava em nada a um hospital,
qualquer que fosse a sua função. Construído
no estilo clássico, tinha dois ou três andares,
e era completamente aberto por todos os
lados. Isto é, não possuía janelas, tais como
as conhecemos na terra. Era de material
branco, mas imediatamente acima dele via-
se uma grande réstia de luz que envolvia a
casa toda numa surpreendente tonalidade
azul. Q raio era doador de vida — um raio
com poderes terapêuticos — mandado para
os recém-chegados que ainda não haviam
despertado. Quando completamente
restabelecidos para o mundo espiritual,
haveria um esplêndido despertar e eles
seriam apresentados à sua nova terra.

Notei que havia muitas pessoas sentadas nos


gramados ou passeando. Eram parentes e
82
amigos dos que estavam submetidos a
tratamento no lar e cujo despertar era imi-
nente. Embora, sem dúvida, pudessem ser
chamados no instante necessário, eles se-
guiam o velho instinto terreno e preferiam
esperar o feliz momento, ali por perto. Esta-
vam extremamente alegres e entusiasmados,
como se podia perceber pelas expressões
dos semblantes, e muitos foram os sorrisos
amistosos que recebemos ao passar entre
eles. Muitos também vinham ao nosso en-
contro para nos dar as boas-vindas julgando
que ali estávamos pelas mesmas razões. Ao
contar-lhes nossa real intenção, apressavam-
se a deixar-nos caminho livre.

Observei que muitas das pessoas que espe-


ravam nos jardins não estavam com suas
vestimentas terrenas, e supus que já fossem
espíritos há muito tempo. Mas não era esse
o caso, como explicou Edwin. Eles tinham o
direito de usar suas roupas de espírito em
virtude de serem agora habitantes perenes
do reino em que estávamos. E essas roupa-
83
gens eram eminentemente apropriadas
tanto ao lugar como à situação. Ê difícil des-
crevê-las porque depende de conseguirmos
ou não compará-las a algum tecido terreno.
Aí não há esses materiais, e toda aparência
externa é produzida não pela consistência do
tecido, mas pela espécie e grau de luz, que é
a essência do manto. Os que víamos agora
eram de vaporosa forma e compridos, e as
cores — azul e rosa de vários tons — pareci-
am entremear-se em toda a substância do
manto. Pareciam muito confortáveis, e, como
tudo aqui, não necessitam cuidados para
conservarem-se em perfeito estado, sendo
suficiente a própria espiritualidade do seu
portador.

Nós três estávamos ainda usando o estilo


mundano de vestimentas, e Edwin sugeriu
que, para os fins que tínhamos em vista, po-
deríamos mudá-las agora. Eu estava mais do
que disposto a aceitar qualquer sugestão
sua, e Rute também parecia ansiosa por ex-
84
perimentar essa mudança; mas o que nos
intrigava era como ela seria feita.

Possivelmente há pessoas na terra prontas a


acreditar que para sermos formalmente a-
presentados em roupagem espiritual seria
necessária uma cerimônia na presença de
um bom número de seres celestiais, vindos
para testemunhar a doação dessa recompen-
sa celestial. Apresso-me a dizer muito enfati-
camente que não foi isso que aconteceu.

O que realmente sucedeu foi o seguinte: as-


sim que expressei o desejo de desfazer-me
das roupas terrenas, elas se desvaneceram
— dissolvidas — e achei-me envolto em meu
especial manto espiritual, igual aos que via
em meu redor, O de Edwin também fora
mudado da mesma maneira, e notei que ir-
radiava mais luz do que o meu e de Rute;
ela, é desnecessário dizer, estava encantada
com esta nova manifestação do espírito. Meu
velho amigo, que já passara por tal experi-
ência, estava imperturbável; mas no meu
85
caso e no de Rute, tudo era novo, e no
entanto não sentimos o mais leve embaraço
ou acanhamento diante desta, por assim di-
zer, revolucionária alteração na aparência
externa. Pelo contrário, ela parecia-nos natu-
ral e de acordo com o nosso atual ambiente,
e muito mais ainda, quando entramos na
casa de repouso. Nada seria mais incongru-
ente do que aparências terrenas em tal mo-
radia, que em sua disposição interior e aco-
modações, era totalmente diferente do que
víramos na terra.

Ao entrarmos, Edwin foi recebido por al-


guém, como velho amigo. Explicou sua mis-
são e nossa presença ali, ao que nos deram
as boas-vindas e liberdade para observarmos
tudo o que quiséssemos.

Um vestíbulo externo conduzia-nos a um


outro, interno, de consideráveis dimensões.
O espaço que deveria ser destinado a janelas
era ocupado por altos pilares um pouco afas-
tados uns dos outros, sendo idêntica a dis-
86
posição nas quatro paredes. Era mínima a
decoração interior, mas não se suponha que
o aposento fosse frio como um quartel. Nada
disso. O chão era coberto de macio tapete
em sóbrios desenhos, e aqui e ali, nas pare-
des, via-se uma tapeçaria magnificamente
trabalhada. Ocupando todo o espaço do
chão, havia leitos extremamente confortáveis
e em cada um, um vulto deitado, imóvel e
aparentemente imerso em profundo sono.
Vários homens e mulheres moviam-se silen-
ciosamente ao redor, ocupados em observar
os vários leitos e seus ocupantes.

Notei, logo ao entrar no salão, que ficamos


sob a influência do raio azul, e seu efeito era
de renovação de energias e de tranqüilidade.
Outra coisa notável era a completa ausência
de qualquer idéia de instituição, com os ine-
vitáveis inconvenientes de tudo que é oficia-
lizado. Os que assistiam os adormecidos,
faziam-no, não com a atitude de quem se
desincumbe de uma tarefa a esmo, mas co-
mo se realizassem
87
um puro trabalho de amor e com alegria.
Era exatamente isso. O feliz despertar
daquelas almas adormecidas era uma alegria
repetida para eles, bem como para as pesso-
as que os tinham vindo ver.

Fiquei sabendo que todos os pacientes deste


salão tinham sofrido prolongadas doenças
antes do passamento. Logo após a morte,
eles são postos docemente em profundo so-
no. Em alguns casos o sono é imediato — ou
sem interrupção — à morte física. Longa do-
ença anterior à entrada no espírito tem um
efeito debilitante sobre a mente, que por seu
turno influencia o corpo espiritual. Este últi-
mo não é tão importante, mas a mente re-
quer absoluto descanso, de duração variável.
Cada caso é tratado individualmente, e, con-
seqüentemente reage a esse tratamento. J
Durante o estágio a mente repousa comple-
tamente. Não há sonhos desagradáveis, nem
febres ou delírios.
88
Enquanto observava esta perfeita manifes-
tação da Divina Providência, vieram-me à
idéia as absurdas noções terrenas de des-
canso eterno, sono da eternidade e muitas
outras concepções, igualmente errôneas, e
me pus a imaginar se este sono que agora
me era dado ver, não teria sido deturpado
por mentes terrenas, que o consideram um
sono eterno, para o qual passam todas as
almas ao dissolver-se, e lá esperam, por in-
findáveis anos, o terrível último dia — o te-
mido Dia do Julgamento. Aqui estava a refu-
tação visível de tão insensata crença.

Nenhum dos meus dois amigos tinha desper-


tado neste ou qualquer outro lar de descan-
so, disseram-me eles próprios. Como eu, não
tinham sofrido prolongada doença, e o fim
de suas vidas terrenas tinha vindo rápida e
agradavelmente.

Os pacientes em seus leitos pareciam em


paz. Observação constante era mantida, e
aos primeiros sinais de despertar da consci-
89
ência, outros auxiliares são chamados e
tudo corre às mil maravilhas. Alguns desper-
tam parcialmente e retornam à sonolência.
Outros sacodem o torpor, e é então que os
experientes espíritos que os assistem terão
sua tarefa mais difícil. Até esse momento, de
fato, foi só questão de vigilância e espera.
Em muitos casos, é necessário explicar ao
recém--desperto que ele morreu e está vivo.
Lembrar-se-ão geralmente da longa doença,
mas alguns desconhecem que passaram ao
espírito, e quando a verdade lhes é calma e
docemente explicada, eles freqüentemente
sentem desejos de voltar à terra, talvez aos
que os choram ou por quem eram responsá-
veis. Dizem-lhes que não podem voltar e que
outros com experiência tomarão conta dos
que os preocupam. O despertar assim, não é
feliz, comparado com os que acordam com-
pletamente ao par do que aconteceu. Fosse
a terra mais instruída, e isto seria mais co-
mum, e haveria menos desgostos para aque-
les que acordam.
90
O mundo terreno se julga muito adianta-
do, muito civilizado, mas tal opinião é fruto
da ignorância. O mundo terreno é considera-
do como de suma importância e o mundo
espiritual é olhado como algo vago e distan-
te. E quando finalmente uma alma aqui che-
ga é mais do que tempo de se começar a
preocupar. Até então não havia necessidade
de nos incomodarmos com esse assunto.
Essa é a atitude mental de milhares e milha-
res de almas encarnadas, e aqui, neste lar
de descanso, observamos quantas pessoas
despertam de seu sono espiritual. Vimos al-
mas bondosas e pacientes tentarem conven-
cer essas pessoas de que realmente morre-
ram. E este lar é apenas um, dos muitos em
que o mesmo serviço está sendo levado a
efeito, e tudo porque o mundo terreno é tão
mais superior em sabedoria!

Foi-nos mostrado outro salão similar, onde


havia pessoas cujo passamento tinha sido
repentino e violento. Esses casos eram ge-
ralmente mais difíceis do que os que acabá-
91
ramos de ver. O passamento súbito acres-
centava confusão a suas mentes. Em vez de
uma gradual transição, o corpo espiritual em
muitos casos é separado à força do corpo
físico, e precipitado no mundo dos espíritos.
O passamento foi tão repentino que lhes pa-
rece não haver solução de continuidade em
suas vidas. Essas pessoas são cuidadas rapi-
damente por grupos de almas que devotam
todo o seu tempo e energia a tal trabalho. E
agora, aqui, podíamos ver o resultado de tal
labor.

Asseguro-vos que não é uma visão agradável


a dessas pacientes almas lutarem mental-
mente — e às vezes quase fisicamente —
com pessoas que ignoram que estejam mor-
tas. É até triste, posso afirmá-lo, porque fui
testemunha. E quem é o culpado por tal es-
tado de coisas? Muitas dessas almas culpam-
se a si mesmas, depois de estarem aqui o
suficiente para apreciarem sua nova condi-
ção, ou culpam o mundo que deixaram re-
92
centemente, por tolerar tal cegueira e es-
tupidez.

Quando Edwin observou que já tínhamos


visto o suficiente, tanto Rute como eu parti-
mos sem lamentar. Deve-se lembrar que é-
ramos, ambos, recém-chegados e não tí-
nhamos ainda suficiente experiência para
suportar espetáculos que pudessem ser pe-
nosos. Por isso passamos novamente ao ar
livre, tomamos um caminho que beirava um
grande pomar semelhante, porém mais ex-
tenso, àquele onde me permitiram provar os
frutos celestiais. Estava bem à mão daqueles
que despertavam e, é claro, de qualquer ou-
tra pessoa que o quisesse usar.

Ocorreu-me que Edwin estava gastando mui-


to do seu tempo conosco, talvez com sacrifí-
cio de seu próprio trabalho. Mas disse-me ele
que o que fazia neste momento era, sob
muitos aspectos, o seu trabalho costumeiro
— ajudar as pessoas a acostumarem-se em
seu novo ambiente, assim como ajudar os
93
que começavam a desfazer-se de suas
velhas crenças religiosas e a afastar-se da
sufocante mentalidade das comunidades or-
todoxas. Folguei em saber disso, pois signifi-
cava que ele continuaria a ser o nosso cice-
rone.

Agora, aqui fora, surgiu a seguinte questão:


deveríamos continuar com os mantos espiri-
tuais, ou deveríamos retornar à nossa velha
indumentária? No tocante a Rute, nem quis
ouvir falar em tal, declarando-se perfeita-
mente satisfeita assim como estava, e ainda
nos perguntou se haveria roupas terrenas
melhores do que aquelas. Em face de tais
argumentos, submetemo-nos. Mas, e Edwin
e eu? Meu amigo havia retomado sua batina
terrestre apenas para me fazer companhia e
me deixar à vontade. Decidi então ficar como
estava — em trajos espirituais.

Em caminho conversávamos a respeito das


várias idéias terrenas referentes à aparência
pessoal dos espíritos. Rute mencionou a pa-
94
lavra asas, associando-a a seres angélicos
e imediatamente concordamos que tal idéia
era absolutamente absurda. Não poderia
haver meio de locomoção mais desajeitado e
solene do que esse. Creio que os artistas dos
tempos antigos são os maiores responsáveis
por esta noção tão diferente da realidade.
Presume-se que julgavam essencial aos espí-
ritos algum meio de locomoção, e que o mé-
todo terreno de usar pernas era mundano
demais para ser admitido, mesmo como re-
mota possibilidade. Não tendo nenhum co-
nhecimento sobre o poder do pensamento
aqui, e de sua ação direta nos nossos pró-
prios movimentos, eles recorriam ao único
meio de locomoção através do espaço, que
conheciam então — as asas. Será que ainda
há pessoas na terra que crêem realmente
que somos aparentados com os pássaros?

Não tínhamos ido muito longe, quando Ed-


win pensou que talvez gostássemos de ir à
cidade, que podíamos avistar não muito adi-
ante. Digo "não muito adiante", mas não se
95
deve pensar que a distância aqui tenha
algum significado. É evidente que não! O
que quis dizer é que a cidade estava sufici-
entemente perto, para a visitarmos sem fa-
zer qualquer desvio da nossa direção geral.
Rute e eu logo concordamos que gostaría-
mos de partir para lá, visto que a cidade es-
piritual seria uma nova revelação para nós.

Surgiu então a pergunta: devíamos andar ou


empregar um método mais rápido? Ambos
achávamos que seria interessante experi-
mentar o que o poder do pensamento pode
fazer, mas, como aconteceu anteriormente, e
em outras circunstâncias, não sabíamos de
que maneira pôr essas forças em ação. Ed-
win nos informou que uma vez conseguido
este simples processo de pensar, nunca mais
teríamos dificuldades no futuro. Em primeiro
lugar, era necessário ter confiança; e em
segundo, a nossa concentração de pensa-
mento não poderia ser feita sem vontade.
Para usar uma expressão terrena, "nós nos
desejamos" lá, e, lá nos achamos! No início
96
talvez seja necessário certo esforço cons-
ciente; mas depois, podemos mover-nos pa-
ra qualquer parte, quase sem pensar, pode-
se dizer! Voltamos aos métodos terrenos,
quando desejamos sentar-nos, andar, ou
executar ações já familiares e nem percebe-
mos qualquer indício de esforço para realizar
o menor dos nossos desejos. O pensamento
passa tão rapidamente pela nossa mente,
que nem nos damos conta dos muitos movi-
mentos musculares envolvidos nesse proces-
so: eles passam a ser uma segunda nature-
za. É assim precisamente o que acontece
aqui. Pensamos apenas que gostaríamos de
estar em tal lugar, e já estamos lá. Preciso, é
claro, esclarecer que nem todos os lugares
estão abertos a nós. Há muitos reinos onde
não nos é dado entrar, a não ser em circuns-
tâncias muitos especiais, e somente se o
nosso progresso o permitir. Isso entretanto,
não afeta o método de locomoção aqui, mas
meramente nos delimita certas direções bem
definidas.
97
Uma vez que desejávamos estar juntos,
perguntei a Edwin se não seria mais prático
os três terem o mesmo pensamento e fixar a
mente na mesma localidade. Ao que ele res-
pondeu haver vários fatores a serem obser-
vados nesse particular. Primeiro, era que,
sendo esta a nossa tentativa inicial de loco-
moção mental, ele ficaria de certa forma to-
mando conta de nós. Depois, deveríamos,
automaticamente permanecer em contacto
uns com os outros, visto que assim o tínha-
mos desejado. Esses dois fatos já eram ga-
rantia suficiente de uma chegada conjunta e
a salvo ao local do nosso destino. Quando
adquiríssemos suficiente prática nesses mé-
todos não haveria mais dificuldades.

Não nos devemos esquecer que o pensa-


mento é instantâneo, e não há possibilidade
de se perder em espaço ilimitado. Tive expe-
riência disso imediatamente após o meu fa-
lecimento, mas nessa ocasião eu me havia
movido relativamente devagar e com os o-
lhos firmemente fechados. Edwin sugeriu
98
então que, para gozarmos desse diverti-
mento agradável, tentássemos uma experi-
ência sozinhos. Assegurou-nos que nada de
mau nos adviria, em qualquer circunstância.
Propôs que Rute e eu nos projetássemos a
um pequeno agrupamento de árvores, cerca
de um quarto de milha distante — em medi-
das terrenas. Sentamo-nos na grama, a con-
templar o nosso objetivo, e Edwin disse-nos
que se ficássemos nervosos, poderíamos
dar-nos as mãos. Rute e eu devíamos ir sós,
enquanto ele permaneceria no gramado. Te-
ríamos apenas que nos imaginar ao pé da-
quelas árvores. Olhamo-nos divertidos, am-
bos imaginando o que iria acontecer, e ne-
nhum tomava a iniciativa. Estávamos assim
hesitantes, quando Edwin disse: "Parti!" Sua
exclamação deve ter fornecido o necessário
estímulo, pois peguei a mão de Rute, e logo
depois nos achamos de pé sob as árvores!

Olhamo-nos, se não com espanto, pelo me-


nos com algo muito semelhante. Lançando o
olhar para onde tínhamos deixado Edwin, lá
99
o vimos acenando com a mão. Foi então
que algo estranho aconteceu. Ambos vimos à
nossa frente, o que nos pareceu um clarão.
Não era ofuscante, nem nos amedrontou.
Apenas chamou a nossa atenção, como a-
contece com o sol ao surgir detrás das nu-
vens. Iluminou um pequeno espaço diante
dos nossos olhos e ficamos imóveis, cheios
de ansiedade pelo que iria acontecer. Então,
claramente, e sem sombra de dúvida, ouvi-
mos — ou com os ouvidos, ou com a mente,
não posso dizer — a voz de Edwin indagando
se havíamos gostado da breve viagem, e que
voltássemos como tínhamos vindo. Ambos
comentamos o que víramos, tentando de-
terminar se era realmente Edwin que havia
falado. Mal tínhamos demonstrado a nossa
perplexidade, e ouvimos outra vez a voz de
Edwin, assegurando que nos ouvira enquan-
to procurávamos esclarecer aquele fato! Fi-
camos tão jubilosos e admirados, que resol-
vemos voltar imediatamente para perto de
Edwin e exigir uma explicação. Repetimos o
100
processo, e lá nos achamos outra vez,
sentados ao lado do nosso amigo, que ria
feliz com a nossa estupefação.

Já ele se preparara para o ataque — e nós o


bombardeamos com perguntas — e contou
então, que nos reservara essa surpresa de
propósito. AH estava, disse ele, outro exem-
plo do pensamento concreto. Se nos pode-
mos mover pelo poder do pensamento, se-
gue-se que também poderemos enviar os
nossos pensamentos por si sós, livres de to-
da idéia de distância. Quando focalizamos os
nossos pensamentos em alguma pessoa no
mundo espiritual, sejam eles na forma de
mensagem definida, ou apenas de natureza
afetuosa, atingirão o seu objetivo, sem som-
bra de dúvida; é o que acontece no mundo
espiritual. Como acontece, não estou prepa-
rado para dizer. É mais uma das coisas que
aceitamos como são e nos rejubilamos com
elas.
101
Até aqui, tínhamos usado os órgãos da
fala para conversar com alguém. "Era quase
natural e não lhe demos maior importância.
Não tinha ocorrido a Rute ou a mim que
houvesse aqui um meio de comunicação à
distância. Não estávamos mais cerceados
pelas limitações terrenas, e no entanto até
agora não víramos nada que substituísse o
usual método de intercomunicação terrena.
Essa ausência total devia nos ter preparado
para o inesperado.

Apesar de podermos assim enviar os nossos


pensamentos, não se deve supor que a nos-
sa mente permaneça como um livro aberto
para todos lerem. Absolutamente. Podemos,
se quisermos, guardar deliberadamente os
nossos pensamentos para nós mesmos; se
os deixamos vagar ociosamente, então, sim,
poderão ser lidos por outrem. Uma das pri-
meiras coisas a compreender aqui, é que o
pensamento é concreto, pode criar e
construir, e o nosso imediato esforço, por-
tanto, é colocar os pensamentos sob controle
adequado. Mas, como tantas outras coisas
102
quado. Mas, como tantas outras coisas
aqui, podemos nos ajustar logo às novas
condições, se nos dispusermos a isso; e nun-
ca nos faltarão os mais dedicados auxiliares.
Estes já foram encontrados por mim e Rute,
para nosso grande alívio e gratidão.

A esta altura Rute já estava impaciente para


ir à cidade e insistiu com Edwin para lá nos
conduzir imediatamente. Desta forma, sem
mais delongas, erguemo-nos da grama e a
uma palavra do nosso guia, partimos.

Ao nos aproximarmos da cidade, foi possível


avaliar a sua enorme extensão. Nem preciso
dizer que era totalmente diversa, de tudo
que jamais víramos. Consistia de grande
número de majestosos edifícios, rodeados de
magníficos jardins e árvores, onde brilha-
vam, aqui e acolá, espelhos de água, límpida
como cristal, refletindo, além das cores já
conhecidas da terra, outras mil tonalidades
jamais vistas.
103
Nem se pode imaginar que esses jardins
tivessem a menor semelhança com os da
terra, que por melhores e mais belos que
sejam, ficam a perder de vista, em compara-
ção com esta riqueza de perfeito colorido, e
perfumes celestiais. Caminhar pelos grama-
dos em meio a tal profusão de beleza natu-
ral, nos deixava fascinados. Nunca pensara
que as belezas do campo, tais como as co-
nhecia, pudessem ser assim ultrapassadas.

Minha mente se transportara às ruas estrei-


tas e às calçadas apinhadas da terra; prédios
amontoados porque o espaço era valioso e
caro; o ar, pesado e poluído, pela grande
cadeia de tráfego; tinha pensado na pressa e
no tumulto, em toda a agitação da vida co-
mercial e na excitação de prazeres passagei-
ros. Não tinha a menor idéia de uma cidade
de beleza eterna, tão diferente de uma cida-
de terrena quanto a luz do dia o é da noite
escura. Viam-se largas ruas de gramados
verdes como esmeraldas, partindo, como os
raios de uma roda, do edifício, que era o
104
centro de toda a cidade. Um grande raio
de luz purificada descia sobre a cúpula e ins-
tintivamente sentimos, sem que Edwin o dis-
sesse, que neste templo podíamos erguer, à
Grande Fonte de todas as coisas, as nossas
graças, e que ali acharíamos nada menos
que a Glória de Deus na Verdade.

Comparados com as estruturas terrenas, os


edifícios não eram muito altos, mas apenas
extremamente amplos. É impossível descre-
ver de que materiais se compunham, por
serem essencialmente espirituais. A superfí-
cie é lisa como mármore, e tem a delicada
consistência e a transparência do alabastro,
ao mesmo tempo que cada prédio emite
uma corrente de luz da mais pálida tonalida-
de. Alguns eram esculpidos com desenhos de
folhagens e flores, outros, quase sem ador-
nos, usando como tal apenas seu estilo meio
clássico. Sobre tudo isso derramava-se inin-
terruptamente a luz celestial, de maneira que
não havia sombras em parte alguma.
105
Esta cidade, devotada ao cultivo do sa-
ber, ao estudo e prática das artes, e aos pra-
zeres de todo este reino, não é exclusividade
de ninguém,- mas livre para todos a goza-
rem, com iguais direitos. Aqui é possível
prosseguir qualquer das agradáveis e profí-
cuas ocupações começadas no plano terres-
tre. Aqui, também, muitas almas podem se
entregar a amenas diversões que lhes ti-
nham sido negadas por várias razões, en-
quanto encarnadas.

O primeiro departamento era dedicado à arte


da pintura. De grandes proporções, continha
uma longa galeria em cujas paredes eram
exibidas todas as grandes obras-primas co-
nhecidas do homem. Estavam dispostas de
tal maneira, que se poderia acompanhar ca-
da passo do progresso terreno, a começar da
Antigüidade, até os dias atuais. Todos os
estilos pictóricos, colhidos em todos os pon-
tos da terra, estavam aqui representados.
106
Grande número de pessoas se moviam
ao longo da galeria, muitos seguindo a pró-
pria fantasia. Mas havia grupos mais sérios,
atentos às palavras de experimentados mes-
tres, que apontavam as várias fases da histó-
ria da Arte, ilustrada nas paredes; e suas
explicações eram tão claras e interessantes
que ninguém podia deixar de as compreen-
der.

Reconheci muitas daquelas pinturas, pois


que víramos seus originais, nas galerias da
terra. Qual não foi a nossa surpresa quando
Edwin declarou que os que tínhamos visto na
terra não eram, absolutamente os originais.
Agora é que estávamos vendo pela primeira
vez os originais. Tínhamos visto na terra a-
penas reproduções, que, por sua vez, eram
deterioráveis sob a ação do tempo, do fogo,
da água, etc.

Mas aqui deparávamos com os resultados


diretos dos pensamentos do pintor, criados
no etéreo antes de ele transferir essas idéias
107
à tela. Podia-se observar muitos casos
em que a pintura terrena não correspondia
ao que o artista tinha em mente. Esforçava-
se por reproduzir sua concepção exata, mas
devido às limitações físicas, essa exata con-
cepção lhe escapava. Em alguns casos falta-
vam os pigmentos necessários, quando, ao
iniciar, o artista fora incapaz de achar ou
criar a exata tonalidade desejada. Mas, ape-
sar de incapaz fisicamente, sua mente sabia
precisamente o que ele desejava fazer. Havia
criado em seu espírito os resultados que a-
gora podíamos ver, ao passo que na tela
material havia falhado.

Essa foi a grande diferença observada nos


quadros, ao compará-los com os que tive
oportunidade de ver na terra. Outra grande
diversidade — e a mais importante — era o
fato de que todos esses quadros estavam
vivos. É impossível dar uma idéia disso; é
preciso ver, para poder compreender. Posso
apenas sugerir uma idéia. Os quadros, fos-
sem paisagens ou retratos, nunca eram pla-
108
nos, isto é, nunca pareciam pintados so-
bre uma tela, mas possuíam toda a perfeição
do relevo. 0 tema salientava-se quase como
se fosse um modelo - um modelo de onde se
pudessem apanhar todos os elementos que
constituem o tema de um quadro. Sentia-se
que as sombras eram verdadeiras sombras,
projetadas por verdadeiros objetos. As cores
brilhavam com vida, mesmo nas primeiras
obras anteriores ao verdadeiro progresso.

Veio-me à mente um problema, para cuja


solução naturalmente recorri a Edwin. Era o
seguinte: como seria indesejável e talvez
impraticável expor nas galerias todos os
quadros que emanassem do plano terrestre,
qualquer idéia de preferência baseada em
julgamento de outros não me parecia de a-
cordo com a lei espiritual. Neste caso, que
sistema seria usado para a seleção de pintu-
ras a serem expostas? Disseram-me que es-
sa era uma pergunta freqüente entre os visi-
tantes das galerias. A resposta é que, até
que um artista, bom ou mau, ou apenas me-
109
díocre, se ajuste à nossa vida, é despro-
vido de qualquer ilusão terrena – se alguma
vez a teve — a respeito de seu trabalho. Ge-
ralmente estranha timidez se manifesta, es-
timulada pela imensidão e a superlativa bele-
za deste reino. De maneira que no fim, o
problema é mais de escassez do que de su-
perabundância.

Quando pudemos contemplar os retratos de


tantos homens e mulheres, de fama univer-
sal, tivessem eles vivido em épocas longín-
quas ou nos dias presentes, eu e Rute expe-
rimentamos uma sensação estranha, ao pen-
sarmos que éramos agora habitantes do
mesmo mundo, e que, como nós, eles esta-
vam bem vivos, não eram apenas meras fi-
guras históricas das crônicas do mundo ter-
restre.

Em outras partes do mesmo departamento


havia salas onde os estudantes de arte podi-
am aprender tudo o que há para se apren-
der. A alegria desses estudantes, livres de
110
suas limitações corporais e terrenas, era
imensa. Aqui, a instrução é fácil, e a aquisi-
ção e aplicação do saber igualmente fáceis,
para os que desejam aprender. Desaparecem
todas as lutas do estudante para superar as
dificuldades terrenas da mente e das mãos,
e a marcha para a proficiência é, conseqüen-
temente, uniforme e rápida. A felicidade de
todos os estudantes que víamos, era conta-
giante, pois não há mais limites para os seus
esforços, desde que aquele espantalho da
vida terrena — o tempo que voa —- e todos
os pequenos empecilhos da existência foram
abandonados para sempre. É pois para se
admirar que dentro daqueles templos, bem
como em outros da cidade, os artistas este-
jam desfrutando das horas douradas de sua
recompensa espiritual?

Fazer um estudo prolongado dos quadros da


galeria seria muito exaustivo, além disso, no
momento, queríamos apenas ter uma visão
geral de tudo o que havia aqui; mais tarde,
se quiséssemos, poderíamos voltar e admirar
111
as coisas que mais nos agradaram. Assim
pensávamos os três. Não nos detivemos
pois, nas galerias, por muito tempo e acei-
tamos a sugestão de Edwin de passar para
outro imenso departamento.

Era o edifício de literatura, e continha todas


as obras dignas desse nome. Seu interior era
formado de salas, menores que as das pintu-
ras. Edwin conduziu-nos a um espaçoso re-
cinto, onde estavam as histórias de todas as
nações sobre a face da terra. Para qualquer
pessoa que tenha conhecimentos da história
terrestre, os volumes que enchem as prate-
leiras desta seção seriam altamente provei-
tosos. O leitor poderia ler pela primeira vez,
a verdade SL respeito da história de seu país.
Fingir e mentir é impossível, porque nada, a
não ser a verdade, pode ter entrada nestes
reinos.

Desde então voltei muitas vezes àquela bibli-


oteca e passei proveitoso tempo entre seus
inúmeros livros. Aprofundei-me particular-
112
mente em História e, o que vi espantou-
me. Naturalmente encontraria uma História
escrita da mesma maneira conhecida por
nós, mas havia uma diferença essencial: é
que agora eu teria pela frente toda a verda-
de acerca dos fatos históricos. Isto era evi-
dente, mas fiz outra descoberta que a princí-
pio me deixou atônito. Paralelamente às
simples citações de atos de pessoas notórias,
de estadistas em cujas mãos esteve o gover-
no de seus países, de reis à frente de seus
reinos, paralelamente a tais declarações, es-
tava a verdade, nua e crua, dos motivos que
governavam e sustentavam esses atos — a
verdade acima de qualquer dúvida. Muitos
desses motivos eram elevados, e muitos e-
ram completamente vis; uns eram mal-
interpretados e outros, deturpados. Grava-
dos indelevelmente nos anais do espírito,
estavam as verídicas narrativas de milhares e
milhares de seres humanos que, durante sua
jornada terrena haviam participado dos a-
contecimentos de seu país. Alguns eram ví-
113
timas de traição e vileza de outros; al-
guns também eram os causadores dessa
traição e vileza. Ninguém foi poupado ou
omitido. Lá estava tudo para se ver — a ver-
dade sem atenuantes, sem supressões. Os
arquivos não respeitavam ninguém, fosse rei
ou plebeu, prelado ou leigo. Os historiadores
tinham apenas registrado a história verídica,
tal como era. Não se recorreu a enfeites, —
nem a comentários. Ela falava por si só. E
fiquei profundamente grato por algo: que
essa verdade nos tivesse sido poupada até
agora, quando aqui estamos, agora, que
nossa mente, de certo modo, está preparada
para receber tais revelações.

Até aqui só me referi à história política, mas


aprofundei-me também na da igreja, e as
revelações nesse setor não foram muito me-
lhores. Eram de fato, piores, considerando-se
em Nome de quem tantas ações diabólicas
foram cometidas, e, por homens que, exter-
namente professando servir a Deus, eram
114
apenas instrumentos de outros tão bai-
xos quanto eles mesmos.

Edwin havia me prevenido disso, mas nunca


julgara a que ponto de veracidade chegariam
os fatos. Os supostos motivos apresentados
pelos nossos livros de história na terra esta-
vam bem longe dos verdadeiros.

Apesar desses volumes testemunharem con-


tra os perpetuadores de tantos feitos escu-
sos na História, também testemunhavam
ações nobres e elevadas. Não estavam lá
especificamente para atacar ou defender,
mas porque a literatura se tornou parte do
material da vida humana. Se há prazer em
ler, não deve haver então livros para esse
fim? Podem não ser exatamente iguais aos
livros terrenos, mas estão de acordo com
tudo o mais aqui.

Passamos através de muitas outras salas,


onde estavam, à disposição de quem quises-
se, obras sobre todo e qualquer assunto i-
115
maginável. E talvez um dos mais impor-
tantes assuntos fosse o que se chama de
ciência psíquica. Fiquei boquiaberto com a
riqueza da literatura sob essa. denominação.
Nas prateleiras havia livros negando a exis-
tência de um mundo espiritual e negando
também a realidade da volta do espírito.
Muitos desses autores tiveram desde então a
oportunidade de rever suas próprias obras —
mas com sentimentos bem diferentes! Eles
mesmos haviam se tornado testemunhas
vivas contra o conteúdo de seus próprios
livros.

Ficamos muito impressionados com as belís-


simas encadernações dos livros, com o mate-
rial em que eram impressos e com o estilo
da impressão. Pedi de novo informações a
Edwin e foi-me explicado que o processo de
reprodução de livros no mundo espiritual não
é o mesmo que no setor da pintura. Eu
mesmo vira como a verdade fora suprimida
naqueles volumes, ou com intenção delibe-
rada ou por verdadeira ignorância dos fatos.
116
No caso dos quadros o artista tinha dese-
jado retratar a verdade, mas fora incapaz de
o fazer, se bem que não por sua própria cul-
pa. Portanto, não perpetuou inverdades, pelo
contrário, sua mente tinha anotado o que
era absolutamente real. Um autor dificilmen-
te escreveria um livro com intenções diame-
tralmente opostas às que ele expressa.
Quem, pois, escreve um livro com as verda-
des, aqui no espírito? O seu próprio autor —
quando vem para o mundo espiritual. E ele
se sente feliz por poder fazê-lo. Fica sendo o
seu trabalho, e por meio dele pode ganhar a
melhoria de sua alma. Não terá dificuldades
em relação aos fatos, visto que eles, aqui,
estão em sua frente e prontos a serem regis-
trados, mas, desta vez, dentro da verdade.
Não há necessidade de dissimular, o que de
fato seria inútil.

Quanto à impressão de livros, não há na ter-


ra máquinas impressoras? É claro que sim! E
o mundo espiritual não pode estar menos
aparelhado a esse respeito do que os seres
117
terrestres, só que aqui os métodos são
totalmente diversos. Temos peritos que são
artistas no seu trabalho -e um trabalho que é
feito com amor. O método de reprodução
aqui é somente um processo mental, como
todo o resto, e o autor e impressor traba-
lham juntos em completa harmonia. Os livros
que resultam desta cooperação são verda-
deiras obras de arte, belíssimas criações que,
à parte o conteúdo literário, são encantado-
ras à vista. A encadernação é outro processo
de peritos, realizado também por artistas,
com materiais jamais encontrados sobre a
terra. Mas os livros assim produzidos não são
coisas mortas que requeiram uma concen-
tração de toda a mente sobre eles. Vivem
tanto quanto os quadros que vimos anteri-
ormente. Apanhar uma obra e começar a lê-
la significa também perceber com a mente —
num processo impossível na terra — todo o
fato narrado, seja ciência, história ou arte. O
livro, uma vez nas mãos do leitor, instanta-
neamente responde, quase da mesma ma-
118
neira como as flores ao nos aproximar-
mos delas. A intenção é diferente, é claro.

A imensa quantidade de livros que havia era


para o uso de todos, sem restrições, regras
impertinentes ou regulamentos. Tendo toda
essa riqueza de sabedoria à nossa volta, fi-
quei abismado com a minha própria ignorân-
cia, e Rute sentiu o mesmo. Edwin porém,
assegurou-nos que não nos devíamos assus-
tar com isso visto que tínhamos à frente toda
a eternidade. Essa lembrança foi confortado-
ra, pois era um fato de que sempre nos es-
quecíamos. Leva tempo para se perder aque-
la sensação de instabilidade, de transitório,
que associamos à vida terrena. Em conse-
qüência, julgamos que é necessário ver tudo,
o mais depressa possível, embora o fator
tempo tenha deixado de existir.

A esta altura Edwin achou que devia mostrar


a Rute algo que a interessasse em particular
e levou-nos, assim, ao departamento de te-
cidos. Era igualmente espaçoso, mas os
119
compartimentos eram de maiores pro-
porções do que aqueles que acabáramos de
ver. Aqui existe uma infinidade de belos ma-
teriais, assim como tecidos executados há
milhares de séculos, e dos quais pouca coisa
restou na terra. Era possível admirarmos en-
tão, tecidos sobre os quais lemos nas histó-
rias e crônicas, nas descrições de cerimônias
de gala, e em ocasiões festivas. E, por mais
que se falem da mudança de estilo e gostos
que se vêm sucedendo através das idades, o
mundo terreno tem perdido suas cores e
torna-se cada vez mais sombrio e melancóli-
co.

O colorido de muitos dos tecidos era sim-


plesmente soberbo, enquanto que os magní-
ficos desenhos nos revelaram artes há muito
desaparecidas da terra. Mesmo perecíveis na
terra, eles aqui são eternos. Novamente po-
díamos observar o progresso gradual conse-
guido no desenho e fabricação dos tecidos e
devemos admitir que, a julgar pelo que vía-
mos, esse progresso se verificou até certo
120
ponto, quando então se deu um movi-
mento de regressão. Falo, evidentemente, de
modo geral.

Pode-se pensar que o que víramos até então


não passava de museus celestiais, contendo,
é verdade, amostras magníficas, impossíveis
de serem encontradas na terra, o que não os
impedia de continuar a ser museus. Entre-
tanto, na terra, os museus são lugares bem
tristonhos. Têm aroma de bolor e preservati-
vos químicos, visto que os objetos devem ser
protegidos da deterioração e extinção. E pre-
cisam ser protegidos contra o próprio ho-
mem, por meio de insípidas redomas de vi-
dros. Ao passo que aqui não há restrições.
Todas as coisas dentro destas paredes são
livres e ao alcance de todas as mãos. Não
existe ar bolorento, mas sim, a beleza dos
objetos, que emitem sutis perfumes,
enquanto jorra de todos os lados a luz
celeste, para aumentar a glória das manufa-
turas dos homens. Não, estes não são mu-
seus, longe disso, são templos, nos quais
nós, espíritos, estamos cônscios das graças
121
estamos cônscios das graças eternas que
elevemos ao Senhor, por nos dar tão ilimita-
da felicidade, num mundo de que tantos na
terra negam a existência. Eles substituiriam
tudo isso com o quê? Não o sabem! Dizem
que há muitas e muitas belezas na terra, e
que nós no espírito nada temos! Talvez seja
outra das razões por que somos tão lamen-
tados quando passamos a espíritos: porque
deixamos para trás tudo que era lindo, para
entrar no nada — um vácuo celeste. Tudo
que é belo pertence, portanto, exclusivamen-
te ao mundo; a inteligência do homem nada
vale, quando ele aqui chega, pois que nada
há em que ocupá-la! Apenas vazio! Não nos
admiramos que as realidades e a imensa ri-
queza do mundo espiritual provoquem um
choque de revelação para aqueles que espe-
ravam uma eternidade do Nada celestial!

É essencial compreender que toda tarefa ou


ocupação dos habitantes destes reinos, é
perfeitamente voluntária, realizada apenas
pelo simples desejo de a fazer e nunca com
122
uma atitude de obrigação, "quer quei-
ram, quer não"! Não há coisas, como essa de
ser forçado a algum serviço! Nunca a má
vontade é sentida ou expressa. Mas isso não
quer dizer que se deseje o impossível. Po-
demos ver o resultado de uma ou outra a-
ção, — mas se nós não podemos, há outros
mais sábios que podem — e saberemos en-
tão, se devemos começar a nossa tarefa ou
suspendê-la por enquanto. Nunca nos faltam
conselho e ajuda. Podemos lembrar minha
própria sugestão, no início, de tentar uma
comunicação com a terra, para acertar al-
guns assuntos referentes à minha vida, ten-
do Edwin aconselhado que procurasse mais
tarde orientação a respeito. É pois a verdade
dizermos que o traço predominante aqui é o
desejo de fazer e de servir. Menciono isto
para que se compreenda bem o salão espe-
cial onde Edwin nos levou, depois do de te-
cidos.

Era, para todos os efeitos, uma escola, onde


as almas que não tiveram o bem terreno de
123
aprender, pudessem se equipar intelec-
tualmente.

Saber e aprender, educação ou erudição,


não representam valores espirituais, e a in-
capacidade de ler e escrever não significa
falta de qualidades. Mas quando uma alma
passa para esta vida, quando ela vê a gran-
de e larga estrada espiritual abrir-se-lhe à
frente, com oportunidades múltiplas, vê
também que o saber a ajudará no caminho
espiritual. Poderá não saber ler. Neste caso,
devem esses esplêndidos livros permanecer
para sempre fechados a alguém, agora que
tem a oportunidade de ler, conquanto lhe
falte habilidade? Talvez deva-se perguntar:
mas não disseram que não é preciso saber
ler no mundo espiritual? Não há aqui uma
espécie de percepção mental a ser colhida
dos livros, sem auxílio material de palavras
impressas? A mesma pergunta pode ser feita
a respeito de quadros e de tudo o mais, a-
qui. Por que a necessidade de algo tangível?
Se seguirmos esta linha de critério ela nos
124
levará até aquele estado de vacuidade
que acabei de mencionar.

O homem incapaz de ler sentirá, pela mente,


que há algo dentro do livro que tem nas
mãos, mas não ficará sabendo, instintiva-
mente, ou de outra maneira qualquer, o seu
conteúdo. O que sabe ler, se achará imedia-
tamente en rapport com as idéias que o au-
tor escreveu, e o livro, assim, se comunica
com aquele que o lê.

Não é necessário poder escrever, e muitos


que não o sabiam antes de chegar aqui, não
se deram ao trabalho de preencher essa la-
cuna.

Deparamos nesta escola com muitas almas


ocupadas em seus estudos e divertindo-se
bastante. Adquirir conhecimentos aqui não é
enfadonho, porque a memória trabalha per-
feitamente — isto é, infalivelmente — e os
poderes da percepção mental não são tolhi-
dos ou confinados por um cérebro físico.
125
Nossas faculdades de compreensão são
aguçadas e a expansão intelectual é firme e
certa. A escola é o lar das ambições realiza-
das, para a maioria dos estudantes. Conver-
sei com vários deles e cada um me contou
que estudava agora o que sempre ambicio-
nara na terra e cuja oportunidade lhe havia
sido "negada no mundo, por razões já bem
nossas conhecidas. Alguns não tiveram tem-
po, devido a atividades comerciais, ou então
a luta pela vida tinha absorvido os meios
necessários.

A escola era organizada muito confortavel-


mente e, é claro, não havia nem sombra de
regulamentos. Cada estudante seguia seu
curso independente de qualquer outra pes-
soa. Sentado confortavelmente, ou nos es-
plêndidos jardins, começava o que queria,
terminava, e, quanto mais se aprofundava
nos estudos, mais interessado e fascinado se
tornava. Posso falar disto por experiência
própria, visto que tanto estudei na enorme
biblioteca, desde que aqui cheguei.
126
Ao deixarmos a escola, Edwin sugeriu um
descanso à sombra das árvores, mas isso foi
apenas uma maneira de dizer, visto que aqui
não se sofre fadiga corporal. Entretanto, não
temos, infindavelmente, a mesma ocupação:
isto significaria monotonia, coisa que não há
aqui. Mas Edwin conhecia as emoções con-
traditórias que surgem nas mentes dos re-
cém--chegados, e assim fizemos uma pausa,
antes de novas explorações.

VI. VÁRIAS QUESTÕES RESPONDIDAS

Edwin nos contou que um grande número de


pessoas, assim que passam a espírito, sen-
tem arder dentro de si tamanho entusiasmo
ao lhes ser revelada a nova vida, que que-
rem voltar imediatamente à terra, para con-
tar ao mundo as maravilhas daqui. Explicou-
me ainda algumas das dificuldades que se
opunham à minha intenção de voltar tam-
bém.
127
Outra tendência muito natural é fazer
inúmeras perguntas a respeito desta vida em
geral, e notou que, neste particular, tanto
Rute como eu havíamos demonstrado uma
moderação fora do comum! Confessei entre-
tanto, que, já que tocara no assunto, havia
muita coisa que eu e Rute desejávamos sa-
ber, mas a dificuldade estava por onde co-
meçar.

Tínhamos deixado que os nossos passeios


apresentassem seus próprios problemas, pa-
ra serem solvidos por Edwin, mas havia con-
siderações de natureza geral que surgiam à
contemplação da terra espiritual como um
todo. Uma das primeiras que me vieram à
mente foi a extensão deste reino. Alongava-
se a perder de vista, e isto já por si era ma-
ravilhoso. Mas haveria um limite? Estendia-se
ele muito além do que os nossos olhos podi-
am alcançar? Se havia um fim, poderíamos
vê-lo com os próprios olhos?
128
Certamente que havia um limite, explicou
Edwin, e podíamos vê-lo a qualquer hora que
quiséssemos. Além deste, havia ainda outros
reinos. Cada pessoa, ao passar a espírito,
entrava no reino para o qual se preparara na
terra — a este apenas, e a nenhum outro. E
Edwin começou por descrever--nos esta terra
como a terra da grande colheita — a colheita
daquilo que cada um semeou na terra. Podí-
amos julgar por nós mesmos, se a colheita
era boa ou má. Descobriríamos que há mui-
tas infinitamente melhores, e outras piores.
Enfim, há outros reinos, muito mais belos do
que aquele em que estávamos agora viven-
do, felizes; reinos de infinita beleza onde só
poderemos penetrar quando alcançarmos
esse direito, quer como visitantes, quer co-
mo habitantes. Porém, apesar de não po-
dermos lá entrar, as almas gloriosas, seus
habitantes, podem vir a reinos de menor be-
leza celestial, e visitar-nos. Edwin já vira vá-
rias delas, e, esperávamos também fazê-lo.
Vinham freqüentemente, aqui, para dar con-
129
selhos, ajudar, conceder recompensas e
louvores; e não havia dúvida de que o meu
problema podia ser submetido à orientação
de uma dessas almas-mestres. Em certas
ocasiões, também, esses seres transcenden-
tais fazem visitas especiais, quando o reino
todo celebra um grande acontecimento, tal
como o Natal e a Páscoa, por exemplo. Rute
e eu ficamos surpresos com isto, visto ter-
mos julgado ambas as datas essencialmente
da terra. Mas era a maneira de celebrá-las e
não as festas em si, que são exclusivas da
terra. Nos reinos espirituais, tanto o Natal
como a Páscoa são considerados aniversá-
rios; o primeiro, do nascimento para o mun-
do terreno, o segundo, do nascimento para o
mundo espiritual. Neste reino as duas cele-
brações coincidem com as da terra, visto que
há um elo espiritual maior entre os dois
mundos, o que não aconteceria se as festivi-
dades fossem realizadas independentemente
de estação. Não é assim, entretanto, nos
130
reinos superiores onde leis de diferente
natureza estão agindo.

No plano terrestre fixou-se uma certa data


para o Natal, durante muitos séculos. A épo-
ca exata do primeiro Natal já se perdeu, e é
impossível determinar agora, com precisão,
quando se deu. Mesmo que fosse possível, é
tarde demais para fazer alterações, uma vez
que já se estabeleceram a tradição e a práti-
ca. A festividade da Páscoa é móvel — um
costume estúpido, visto que às vezes a data
escolhida não tem relação alguma com a
original. Não somos de maneira alguma de-
pendentes da terra nestes assuntos, mas
cooperamos com a terra em nossas celebra-
ções conjugadas. Os reinos superiores têm
suas razões boas para se afastarem dessa
ordem. Tais razões não nos dizem respeito,
até que passemos a esses elevados reinos.

Além destas duas festas pouco temos em


comum com a terra. As outras são em geral
eclesiásticas e sem significado espiritual, e
131
provêm de doutrinas religiosas sem apli-
cação no mundo dos espíritos.

A festa da Epifania, por exemplo, é baseada


numa colorida história, e era celebrada pelo
povo, nos velhos tempos, de maneira secular
e religiosa. Agora é apenas religiosa e de
pouquíssima importância aqui. A festa de
Pentecostes é outro exemplo da cegueira da
Igreja. O Espírito Santo — para usar a frase
da Igreja — tem descido e estará descendo
sobre todos os que são dignos de o receber.
E não numa ocasião específica, mas sempre.

Tanto eu como Rute estávamos muito inte-


ressados em saber como o Natal era cele-
brado nestes reinos, visto que na terra, além
de alguns serviços religiosos, a festa da Nati-
vidade se transformou num negócio secular;
seu característico principal era o excesso de
comidas e bebidas. Edwin nos contou que
em espírito podemos experimentar o mesmo
grau de felicidade que na terra, quando por
exemplo a felicidade é o resultado ou ex-
132
pressão de bondade, quando nossas fes-
tividades são misturadas com a lembrança
dos grandes dias que estamos celebrando.
Os que desejam, — e há muitos — podem
decorar suas casas com folhagens, como
foram acostumados na terra. Unimo-nos a
alegres companhias, e, se se considera que a
comemoração não estará completa sem ha-
ver algo para comer, por que não teríamos
também uma superabundância das mais per-
feitas frutas, de que já falei, para delícia dos
mais exigentes?

Mas falei apenas do lado mais pessoal da


festa; é nesta época que recebemos a visita
daqueles seres perfeitos das regiões superio-
res, onde está o Ser cujo nascimento feste-
jamos. E basta vermos essas belas almas
passarem, para nos sentirmos cheios de e-
xaltação espiritual, que perdura longo tem-
po, mesmo depois que elas voltam ao seu
alto reino.
133
Na Páscoa temos visitas similares, mas
há um muito mais alto grau de júbilo, porque
para nós a passagem para o mundo espiritu-
al, pela própria natureza das coisas, é de
maior significação. De fato, quando deixa-
mos o plano mundano tendemos a esquecer
o nosso aniversário terreno, e é novamente
por meio de ligações com a terra, se é que
as temos, que nos recordamos dele.

Detive-me um pouco neste assunto para ten-


tar mostrar que não vivemos num estado
febril de emoção religiosa por toda a eterni-
dade. Somos humanos, apesar de tantas
pessoas na terra julgarem o contrário. Tais
indivíduos estarão um dia nas nossas condi-
ções, e nada causa mais humildade do que
ver a realização daquilo que um dia foi a
nossa firme e decidida opinião.

Afastei-me um pouco do nosso primeiro tópi-


co, mas é que a nossa conversa vai de um
assunto a outro, sem nos apercebermos que
estamos distantes do início.
134
Mencionei apenas de passagem os reinos
superiores. E que dizer das esferas inferiores
a que Edwin se referiu, quando falei dos limi-
tes deste reinado? Podíamos visitá-las a
qualquer hora que desejássemos. Pode-se
sempre ir a reinos inferiores ao nosso, mas
nunca a um mais elevado. Mas não era a-
conselhável vagar por essas esferas baixas
sem guia capaz, ou antes de receber ensi-
namentos adequados. Antes de nos informar
melhor sobre esse assunto, Edwin aconse-
lhou-nos a conhecer primeiro a nossa agra-
dável terra.

E agora, vamos ao que constitui os limites


precisos deste reino. Estamos acostumados à
idéia da redondeza da terra e a ver diante
dos olhos o horizonte distante. Ao contem-
plar o mundo espiritual devemos abandonar
a idéia de distância que se pode calcular com
os olhos, visto que ela desaparece, pela ra-
pidez dos meios de locomoção. Qualquer
sugestão de planura terrestre é dissipada
135
pela quantidade de colinas e planícies
onduladas.

Sendo a atmosfera cristalina, nossa visão


não é limitada. Não somos obrigados a man-
ter os pés no chão. Assim como nos pode-
mos mover lateralmente, podemos fazê-lo
verticalmente, como Edwin nos disse. E isto
não nos tinha ainda ocorrido. Ainda estáva-
mos acostumados aos nossos hábitos e limi-
tações terrenas. Se podíamos afundar na
água sem perigo, mas até com prazer, en-
tão, também, poderíamos subir ao ar com a
mesma segurança e prazer. Rute não ex-
pressou desejo muito grande de o fazer —
por enquanto. Preferia esperar, disse ela, até
estar mais aclimatada. Eu também partilhava
seus sentimentos, o que divertiu muito o
nosso bom amigo.

Onde está o limite entre a terra e o mundo


espiritual? No momento em que faleci, como
devem lembrar-se, eu estava perfeitamente
consciente, e quando me ergui do leito em
136
resposta a um apelo fortíssimo, nesse
mesmo instante já me achava no mundo dos
espíritos. Os dois mundos devem, pois, se
interpenetrar. Mas ao afastar-me sob o apoio
e orientação de Edwin, não tinha noção de
estar me movendo em alguma direção defi-
nida. Movimento, certamente que havia. Ed-
win mais tarde me informou que eu passei
através das esferas inferiores — e desagra-
dáveis — mas que, devido a autoridade de
sua missão para ajudar-me a passar ao meu
reino, estávamos ambos protegidos de toda
e qualquer influência desagradável. Éramos,
de fato, completamente invisíveis a todos os
que não pertencessem ao nosso plano ou
aos mais altos.

A transição de um reino para outro é gradu-


al, tanto no que se refere à aparência exter-
na, como em outros aspectos, de maneira
que é difícil fixar em alguma localidade os
limites deles. Parecem fundir-se quase que
imperceptivelmente um no outro.
137
Edwin propôs agora que, a título de ilus-
tração prática, fôssemos ver um desses limi-
tes que tanto nos intrigavam. Assim coloca-
mo-nos sob sua orientação experiente, e
partimos.

Imediatamente nos achamos numa imensa


planície gramada, mas ambos notamos que a
grama aqui não era tão macia sob os pés; de
fato, à medida que avançávamos tornava-se
mais dura. O lindo verde-esmeralda desapa-
recia e tomava uma aparência de amarelo
sombrio, similar à grama terrestre depois de
ser escaldada pelo sol, quando lhe falta á-
gua. Não se viam flores, árvores ou habita-
ções, e tudo parecia triste e árido. Não havia
sinal de vida humana, e tudo parecia desa-
parecer debaixo dos nossos pés, ao mesmo
tempo que a grama desaparecia e pisávamos
solo seco e duro. Notamos também que a
temperatura havia caído consideravelmente.
Sumira todo o colorido belo e genial. Havia
no ar
138
umidade e frio que parecia grudarem-se
a nós e às nossas almas. A pobre Rute agar-
rava-se ao braço de Edwin, e eu não tenho
acanhamento de admitir que fiz o mesmo, e
com grande prazer. Rute tremia visivelmente
e parou de súbito, implorando que não fôs-
semos adiante. Edwin passou os braços ao
redor de nossos ombros assegurando-nos
que nada devíamos temer, visto que ele ti-
nha o poder de nos proteger. Entretanto, ele
podia bem ver a profunda depressão e o-
pressão que se apossara de nós, e, por isso,
docemente, fez-nos voltar, segurando-nos
pela cintura; e uma vez mais nos achamos
sentados sob as belas árvores, rodeados de
flores maravilhosas e envolvidos numa at-
mosfera morna, para bálsamo das nossas
aflições.

É supérfluo acrescentar que tanto eu como


Rute ficamos satisfeitos por estar de volta.
Tínhamos ido apenas ao limiar das esferas
inferiores, mas fora suficiente para nos dar
idéia do que havia além. Sabia que levaria
139
tempo antes de poder entrar lá, e pude
perceber a sabedoria dos conselhos de Ed-
win.

Como estávamos falando dos limites espiri-


tuais, apesar de termos suspenso temporari-
amente nossas explorações, não pude deixar
de indagar a respeito dos limites dos reinos
superiores. Sabia que nada de desagradável
podia haver em relação a eles e sugeri que,
à guisa de contraste e para apagar a nossa
enregeladora experiência anterior, pudésse-
mos talvez visitar a fronteira pela qual pas-
sam os nossos visitantes. Não tendo havido
objeções, partimos.

Achamo-nos de novo em gramados, mas


com notável diferença. A grama era infinita-
mente mais macia do que a do interior do
nosso reino. O verde era ainda mais brilhan-
te, as flores mais abundantes e a intensidade
de cores, perfume e poder vivificante, ultra-
passava tudo que jamais encontráramos. O
próprio ar parecia impregnado de tintas do
140
arco-íris. Havia poucas residências no
local, mas atrás de nós podiam-se vislumbrar
algumas das mais belas casas que jamais
víramos. Nelas viviam almas maravilhosas
que, apesar de nominalmente pertencerem
ao nosso próprio reino, estavam, em virtude
do seu progresso espiritual, de seus dons
particulares e trabalho, em contacto com os
reinos elevados, para os quais tinham inteira
autoridade e poder de passar, em várias o-
casiões. Edwin prometeu-nos voltar a esse
lugar, depois de termos visto a cidade, e lá
poderíamos discutir o meu trabalho futuro e
o de Rute. Tinha várias vezes indagado a
mim mesmo em que espécie de trabalho es-
piritual me ocuparia quando me familiarizas-
se com a nova vida e a nova terra.

Assim como sentíramos frio e opressão nas


fronteiras das esferas sombrias, sentíamos-
nos agora presas de tal êxtase que quase
não falávamos. Ao caminharmos, banhados
em esplendor, sentimos tamanha exaltação
que me veio à mente a descrição de Edwin,
141
das visitas dos seres dos reinos superio-
res, e eu quase pude sentir o que deveria
experimentar quando recebesse uma dessas
visitas. Ali, de pé, tinha-se o desesperado
desejo de lutar pelo progresso que nos daria
o direito de servir um daqueles habitantes da
esfera, a cujas portas agora estávamos.

Caminhamos um pouco mais, mas não pu-


demos ir muito longe. Não havia barreiras
visíveis, mas sentíamos que, se prosseguís-
semos, não poderíamos respirar. A atmosfe-
ra estava se tornando rarefeita, e tivemos
por fim que retroceder.

Podíamos ver muitas almas, envolvidas nas


mais tênues vestimentas, cujas cores suaves
nem pareciam pertencer-lhes, mas flutuar à
roda dos tecidos — se é que se podia cha-
má-los de tecidos. Os mais próximos sorri-
am-nos de maneira tão amistosa, que sabí-
amos não estarmos sendo intrusos. Alguns
até acenavam.
142
Meu amigo explicou que todos estavam a
par do nosso intuito e por isso não se apro-
ximavam, deixando-nos sozinhos gozar da-
quela experiência e absorver calmamente as
belezas e esplendores daquela terra limítro-
fe.

Afinal, relutantemente voltamos, e logo nos


achamos em nosso primitivo lugar, embaixo
das árvores. Sentíamo-nos mais leves depois
daquela visita, e tenho a certeza que até
.Edwin, há tanto tempo espírito, o sentia
também.

Por uns momentos não falamos, absortos em


nossos próprios pensamentos, e quando afi-
nal o fizemos foi para crivar o bom Edwin de
perguntas. Seria enfadonho enumerá-las, por
isso darei as suas respostas como um todo.

Primeiramente, o que se refere às esferas


inferiores, cujo limiar nos havia deprimido.
Visitei-as depois em companhia de Edwin e
Rute, e fiz excursões por lá, como fazemos
143
agora aqui. Portanto, não quero anteci-
par o que terei de relatar mais tarde.

Para visitar os planos inferiores é necessário


possuir — para nossa proteção — certos po-
deres ou símbolos, que Edwin nos mostrou
em seu poder. Tais lugares não são para os
meros curiosos, e ninguém faria a tolice de ir
lá sem um fim determinado. Os que o fazem
sem autorização, são logo mandados de vol-
ta por almas bondosas, cujo trabalho nessa
região é justamente desviar os outros dos
perigos. Ê verdade que não vimos ninguém
quando lá estivemos, mas, como nós, essas
almas caridosas movem-se rapidamente.

No limite dos reinos superiores não há ne-


cessidade de tais sentinelas, pois a lei natu-
ral impede-nos de o atravessar. Quando al-
guém de um plano inferior viaja para o alto,
é sempre munido de autorização, concedida
a ela ou à alma que lhe serve de guia. Neste
caso, tal autorização toma a forma de símbo-
los ou sinais, dados ao viajante, a quem será
144
sempre dedicada toda a assistência que
possa necessitar. Muitos desses símbolos
têm em si o poder de preservar o viajante
dos efeitos sobrenaturais da atmosfera espi-
ritual superior. Esta não afetaria a alma, é
claro, mas uma pessoa desprevenida nessas
regiões se acha na mesma situação de al-
guém na terra que enfrente a luz do sol o-
fuscante, depois de prolongada permanência
em completa escuridão. No caso do sol ter-
reno, porém, pode-se, depois de certo tem-
po, voltar ao normal mesmo sob a claridade
ofuscante, o que não acontece nos reinos
superiores. Aí não há tal poder de adapta-
ção. O efeito perturbador será contínuo.
Quando se tem de fazer uma viagem a esfe-
ras superiores é imprescindível, em muitos
casos, que um habitante destes reinos colo-
que um manto protetor sobre seu protegido,
da mesma maneira que Edwin, num plano
inferior, passou seus braços protetoramente
à nossa volta.
145
Isso é em substância o que Edwin nos
contou em resposta às múltiplas perguntas.

Sentíamo-nos agora suficientemente descan-


sados e acedemos ao convite de Edwin para
continuarmos nossa inspeção da cidade.

VII. A MÚSICA

Sendo a música um elemento vital no mundo


do espírito, não é de surpreender que um
edifício imponente fosse devotado à prática,
ao ensino e ao incentivo de toda espécie de
música. Assim era o departamento a que
Edwin nos conduziu a seguir.

Na terra, nunca me considerei um musicista,


num sentido ativo, mas apreciava essa arte,
sem entretanto a compreender bem. Ouvi
música vocal esplêndida durante breves es-
tadas em diferentes catedrais metropolita-
nas, e tinha escassa experiência de música
orquestral. Muito do que ouvi nesse depar-
tamento da música era novo para mim, e
146
outro tanto, era muito técnico. Desde
então aumentei consideravelmente os meus
pequenos conhecimentos, porque descobri
que quanto maior o conhecimento da músi-
ca, mais ele me ajudava a compreender fa-
tos da vida aqui, onde a música exerce papel
tão importante. Não digo que todas as cria-
turas espirituais devam tornar-se musicistas
para compreenderem a existência; essa im-
posição não estaria de acordo com as leis
naturais daqui. Mas a maioria dos indivíduos
tem algum inato instinto musical e encora-
jando-o serão mais felizes aqui. É isso, efeti-
vamente o que eu fiz. Rute já possuía certo
treino musical, e sentia-se por isso mais à
vontade neste grande colégio.

O templo da música seguia o mesmo amplo


sistema dos outros. A biblioteca continha
obras referentes à música bem como grande
quantidade de músicas escritas na terra dos
outros. A biblioteca continha obras referen-
tes à música, por compositores agora no
plano espiritual, ou por outros ainda sobre a
147
terra. O que aí é chamado obras-primas
estava bem representado naquelas pratelei-
ras, e é interessante observar que não havia
uma sequer que já não tivesse sido alterada
pelo autor ao se tornar espírito. As razões
desses melhoramentos, explicarei depois. A
biblioteca fornece a história completa da mú-
sica, desde os tempos mais remotos; e os
que sabem ler música — não necessariamen-
te executando-a, mas que estão familiariza-
dos com as notas impressas — podem ver os
grandes impulsos que a arte sofreu durante
a passagem dos anos.

O progresso foi na verdade lento, como em


outras artes, e formas excêntricas de expres-
são muitas vezes obstruíram o seu caminho.
É escusado dizer que esses problemas não
existem para o compositor em espírito, que
vai modificar a sua obra.

Ainda na biblioteca havia livros e obras musi-


cais que há muito desapareceram da terra,
ou então que são raros e fora do alcance
148
popular. O colecionador musical aqui a-
chará todas aquelas por que suspirava na
terra, e lhe haviam sido negada; aqui poderá
consultar livremente obras que, devido à sua
preciosidade, nunca lhe fora possível obter
na terra. Muitos compartimentos são reser-
vados para estudantes de música, em todos
os seus ramos, da teoria até a prática, sob a
orientação de mestres cujos nomes são co-
nhecidos em todo o mundo.

Pensarão alguns que tais pessoas famosas


nunca dedicariam o seu tempo ao ensino da
música para simples principiantes. Deve-se
lembrar que, como os pintores, os músicos
têm uma avaliação diferente para os frutos
de seus cérebros, depois que aqui chegam.
Como todos os demais, começam a ver as
coisas tais como são — inclusive suas com-
posições. Descobrem também que a música
do mundo espiritual é muito diferente, em
efeitos exteriores, da música realizada na
terra. Daí descobrirem que seu conhecimen-
to musical deve passar por mudanças radi-
149
cais antes que eles possam se expressar
musicalmente. Na música, pode-se dizer que
o mundo espiritual começa onde o terreno
acaba. Há leis musicais aqui que não têm
aplicação na terra, porque lá a música não
está suficientemente adiantada, porque o
mundo espiritual é do espírito, enquanto que
o mundo terreno é da matéria. Ê duvidoso
que o plano terrestre se torne um dia etéreo
bastante para poder ouvir muitas das formas
musicais destes reinos mais elevados. Tenta-
ram-se inovações, como me foi explicado,
mas o resultado além de bárbaro é infantil.
Os ouvidos terrenos não estão afinados para
a música, que é essencialmente dos reinos
espirituais. Por um estranho acaso, os terres-
tres têm tentado produzir esse tipo de músi-
ca espiritual, mas nunca conseguirão, até
que os tímpanos dos ainda encarnados so-
fram uma alteração fundamental.

Os inúmeros tipos de instrumentos musicais


tão familiares à gente da terra, existem no
colégio da música, onde os estudantes po-
150
dem aprender a executá-los. E aqui tam-
bém, em que a destreza manual é tão es-
sencial, a tarefa de ganhar proficiência não é
nem árdua nem cansativa, e é muito mais
rápida do que na terra. Ao adquirir o domínio
do instrumento, o estudante pode reunir-se
a uma das inúmeras orquestras existentes
aqui, ou pode limitar as suas audições ao
círculo de amigos. Não se deve estranhar
que os estudantes prefiram a primeira alter-
nativa, visto que podem produzir, em colabo-
ração com os colegas musicistas, o tangível
efeito da música em grande escala, quando
então muito mais pessoas podem usufruir
desses, efeitos. Ficamos novamente interes-
sados nos muitos instrumentos que não têm
similares no mundo. São, na maioria especi-
almente adaptados às formas musicais ex-
clusivas daqui, e são por esse motivo, muito
mais complicados. Tais instrumentos são
executados somente em conjunto com ou-
tros de sua categoria, e todos eles se desti-
nam, assim, a uma forma especial de músi-
151
ca. Para a música costumeira da terra,
são suficientes os instrumentos comuns.

Era natural que esse departamento tivesse


um salão de concertos. Era imenso, capaz de
acomodar confortavelmente muitos milhares
de espíritos. De forma circular, constituía-se
de poltronas que saíam do solo em fileiras
perfeitas. Não existe, é claro, real necessida-
de de tal salão ser coberto, mas algumas
práticas simplesmente seguem outras, nes-
tes reinos — como é o caso das nossas resi-
dências, por exemplo. Não as necessitamos,
na verdade, mas nos acostumamos a elas na
terra, e é natural que continuemos a tê-las
aqui.

Já observamos que o templo da música esta-


va em terrenos muito mais extensos que os
outros já vistos, e a razão nos foi explicada.
Na parte posterior do prédio estava o grande
centro de concertos, que consistia num vasto
anfiteatro, tal uma grande concha enterrada
abaixo do nível do chão, mas era tão grande
152
que sua profundidade era imperceptível.
Os lugares mais distantes dos executantes
estavam exatamente no nível da rua. Imedi-
atamente atrás desses lugares circundavam-
nos amontoados de flores das mais lindas
tonalidades, com um espaçoso gramado
mais além, enquanto que a área externa do
templo da música, ao ar livre, era cercada de
árvores magníficas e graciosas. Apesar dos
assentos se distribuírem num vasto espaço,
não se tinha a impressão de estar muito lon-
ge dos executantes, mesmo nos lugares mais
distantes. Deve ser lembrado que aqui nossa
visão não é tão restrita como na terra.

Edwin sugeriu-nos que ouvíssemos um con-


certo dos espíritos, e fez então uma estranha
proposta: que não tomássemos lugares no
anfiteatro mas sim, a uma certa distância
dele. A explicação disso viria assim que o
concerto começasse. Como deveria haver um
concerto dentro em pouco, seguimos sua
misteriosa sugestão, e sentamo-nos na gra-
ma, a considerável distância do anfiteatro.
153
Indaguei com os meus botões se poderí-
amos ouvir de tão longe, e nosso amigo as-
segurou-nos que sim. E de fato, fomos logo
cercados de outras pessoas, que sem dúvida,
tinham vindo para o mesmo fim. O lugar que
estivera vazio quando Edwin nos trouxe, es-
tava agora repleto de gente, passeando ou
sentada confortavelmente na grama. Era um
lugar delicioso, cheio de árvores e flores, e
além disso tínhamos pessoas agradáveis à
nossa volta, e eu nunca senti tanto e tão
intenso prazer como naquele momento. Es-
tava em perfeita saúde e perfeita felicidade,
ao lado de dois companheiros dos mais a-
gradáveis, livre das restrições impostas pelo
tempo e clima, ou de qualquer das outras
limitações comuns à vida terrestre.

Edwin nos pedia que caminhássemos até o


anfiteatro novamente, e observássemos os
assentos. Qual não foi o nosso espanto ao
ver a imensa sala completamente lotada,
quando, alguns minutos antes nem uma só
pessoa havia. Os músicos em seus postos
154
esperavam a entrada do regente, e era
óbvio que o concerto estava prestes a come-
çar. Voltamos para perto de Edwin e em res-
posta à nossa indagação de como o auditório
se enchera tão rapidamente, ele nos relem-
brou o método de reunir as congregações da
igreja que visitamos no começo.- No caso do
concerto, os organizadores precisavam ape-
nas enviar seus pensamentos ao povo em
geral, especialmente interessado nessas exe-
cuções, e ele logo se reunia. Assim que Rute
e eu mostrássemos interesse pelos concer-
tos, um elo se estabeleceria e sentiríamos
aqueles pensamentos nos atingirem, assim
que fossem emitidos.

Não podíamos, é claro, ver os executantes


de onde estávamos colocados, e por isso,
quando se fez um grande silêncio, ficamos
sabendo que o concerto ia começar. A or-
questra era composta de uns duzentos músi-
cos que tocavam instrumentos bem conheci-
dos na terra, por isso consegui apreciar o
que ouvia. Assim que a música começou,
155
pude notar uma acentuada diferença da
que eu me acostumara ouvir na terra. Os
sons eram iguais aos antigos, mas a qualida-
de do som era imensamente mais pura, o
equilíbrio e a harmonia perfeitos. A obra e-
xecutada era bem extensa e fui informado
que seria tocada sem interrupção.

O movimento de abertura era de natureza


suave, quanto ao volume de som, e notamos
que no instante em que a música começou,
pareceu erguer-se na direção da orquestra
uma luz brilhante, que flutuou, como uma
superfície plana, ao nível do lugares mais
altos, onde permaneceu, como uma cobertu-
ra iridescente do anfiteatro. Ao prosseguir a
música, esse amplo lençol de luz aumentou
em brilho e densidade, formando como que
uma firme base, para o que devia acontecer
a seguir. Tão atento estava eu nessa extra-
ordinária formação que mal posso dizer co-
mo era a música. Estava cônscio de seu som,
mas isso era tudo. Daí a pouco, a espaços
iguais, ao redor da circunferência do teatro,
156
quatro jatos de luz subiram até os céus
em longos raios delgados de luminosidade.
Permaneceram imóveis por um instante e
depois desceram vagarosamente, aumentan-
do de espessura à medida que desciam, até
que assumiram a aparência de quatro torres
circulares, cada uma terminada em cúpula,
de proporções perfeitas. Nesse meio tempo,
a área central de luz tinha se tornado mais
espessa ainda e estava começando a erguer-
se vagarosamente no formato de um dossel
imenso, cobrindo o teatro todo. Continuou a
subir até que parecia mais alta que as quatro
torres. Podia agora compreender por que
Edwin sugerira que nos sentássemos fora do
teatro; pude ver também por que os compo-
sitores se sentem impelidos a alterar suas
obras terrenas depois que passam a espíri-
tos. Os sons musicais emitidos pela orques-
tra estavam criando sobre suas cabeças esta
imensa forma de pensamento, e a forma e
perfeição da cúpula dependiam inteiramente
da pureza dos sons musicais, da pureza da
157
harmonia e da libertação de qualquer
dissonância. A forma da música deve ser
pura para produzir uma forma pura.

A esta altura a grande forma musical tinha


assumido o que parecia seu limite de altura,
e ficou estacionaria e firme. A música ainda
era ouvida, e de acordo com ela, a cúpula
mudava ora para um tom, ora para outro, e
muitas vezes para uma delicada mistura de
cores, segundo o tema ou o movimento da
música.

É difícil dar uma idéia adequada da beleza


desta maravilhosa estrutura musical. Sendo
o anfiteatro construído abaixo da superfície
da terra, nada era visível para o auditório,
nem os executantes, nem o próprio edifício,
e a cúpula de luz e cor parecia pousar no
mesmo solo firme em que nos achávamos. ,

Isto tomou pouco tempo para se descrever,


mas a formação musical levou tanto tempo
para formar-se quanto um concerto inteiro
158
na terra. Ao contrário da terra, onde a
música pode apenas ser ouvida, nós a tí-
nhamos visto, e estávamos inspirados não só
pela execução orquestral, mas pela beleza da
imensa forma criada pela influência espiritual
sobre aqueles que a presenciaram; podíamos
senti-la, apesar de estarmos fora do teatro.
O auditório lá dentro estava gozando de seu
esplendor e ainda do maior benefício dos
seus raios purificadores. Na próxima vez to-
maríamos lugar no imenso auditório.

A música chegou ao seu finale. As cores iri-


sadas continuavam a entrelaçar-se. Ficamos
imaginando quanto tempo duraria essa es-
trutura musical, e nos disseram que se des-
vaneceria mais ou menos com a mesma ra-
pidez do arco-íris — em alguns minutos. Tí-
nhamos ouvido uma composição extensa,
mas se várias peças curtas fossem executa-
das, o efeito e a duração seriam os mesmos,
embora as formas variassem de aspecto e
tamanho. Fosse a forma de maior duração,
uma nova forma se chocaria com a última, e
159
o resultado seria para os olhos o mesmo
que duas peças musicais diferentes e sepa-
radas seriam para os ouvidos.

O músico hábil pode planejar suas composi-


ções conhecendo as formas que os vários
sons melódicos e harmoniosos irão produzir.
Na verdade, ele pode construir magníficos
edifícios sobre o seu manuscrito musical,
sabendo exatamente qual seria o resultado,
quando a música fosse executada ou canta-
da. Por meio de cuidadoso ajustamento de
seus temas e harmonias, ele pode construir
uma forma tão imponente quanto uma cate-
dral gótica. Isto é um delicioso aspecto da
arte musical no espírito, e é considerada co-
mo arquitetura musical. O estudante estuda
música não só acusticamente, mas aprende-
rá a fazê-lo arquiteturalmente, e esta é uma
das facetas mais absorventes dos estudos.

O que tínhamos testemunhado fora produzi-


do numa escala de determinada magnitude;
o instrumentista individual ou o cantor pode
160
obter, em escala menor, suas próprias
formações musicais. Na verdade, seria im-
possível emitir qualquer forma de som musi-
cal sem a formação dessa arquitetura. Pode
não tomar uma forma definida como a que
víramos, pois isso requer mais experiência.

Não se deve imaginar entretanto, que com


todas essas galáxias de cor haja continua-
mente um pandemônio de música no mundo
espiritual. Os olhos não se cansam com a
riqueza de cores, logo por que se cansariam
os ouvidos, por causa dos doces sons que as
cores emitem? A resposta é negativa, porque
os sons estão em completo acordo com as
cores e a exata combinação de ambos é uma
perfeita harmonia.

Harmonia é a lei fundamental aqui. Não pode


haver conflito. Não digo que haja um estado
de perfeição, que só existe nos reinos supe-
riores. Se nós como indivíduos nos tornás-
semos mais perfeitos do que o reino em que
vivemos, então, ipso facto, nos tornaríamos
161
dignos de passar a um plano mais eleva-
do. Mas enquanto estamos onde estamos,
neste reino ou num mais elevado, vivemos
num estado de perfeição de acordo com os
limites desse plano.

Demorei-me mais nas nossas experiências


musicais, por causa da alta posição da músi-
ca em nossa vida no reino atual. A atitude de
muita gente quanto à música na terra, sofre
uma grande transformação quando chegam
ao espírito. A música é considerada por mui-
tos na terra, como um mero divertimento
agradável, um agradável complemento, mas,
de forma nenhuma, uma necessidade. Aqui,
ela é parte de nossa vida, não porque a fa-
çamos assim, mas porque é parte da exis-
tência naturalmente, como as flores, as árvo-
res, a grama e a água, as colinas e os vales.
É um elemento da natureza espiritual. Sem
ela, grande parte da alegria seria roubada de
nossa vida. Não é preciso tornarmo-nos mes-
tres em música para apreciar a riqueza de
162
sons e o maravilhoso colorido que nos
rodeiam.

Que choque para muita gente ao chegar a-


qui! E quão imensamente aliviados e conten-
tes ficam, ao descobrir como aqui é agradá-
vel, que não é um lugar assustador, que não
é um imenso templo de religião de hinos, e
que podem se sentir em casa, na nova habi-
tação. Quando tomam conhecimento disso,
muito se lembram de ter visto, uma vez ou
outra, descrições sobre esta vida, mas como
sendo material. E que alegria quando desco-
brem que ela é realmente assim! que aqui
nada é etéreo e imaterial! Os músicos que
ouvimos tocavam instrumentos reais e sóli-
dos e música verdadeira. O regente era uma
pessoa bem real, conduzindo a sua orquestra
com uma batuta bem material! Mas a bela
formação do pensamento musical não era
tão material quanto suas adjacências ou os
meios de a criar, assim como o arco-íris não
é tão material quanto a umidade e o sol que
o produzem.
163
Correndo o risco de me tornar enfado-
nho, voltei uma vez mais a esta estranha
ilusão de que o mundo em que estamos vi-
vendo agora é vago e sombrio. É esquisito
que alguns tentem sempre banir do mundo
do espírito cada árvore e cada flor, e os ou-
tros mil e um encantos. Há algo de conven-
cimento nisto — fazer coisas exclusivas do
mundo terreno. Ao mesmo tempo, se alguém
pensa que tais coisas não devam, existir no
mundo espiritual, então está livre para se
abster de tais gozos, indo para algum lugar
árido, onde suas suscetibilidades não sejam
ofendidas por objetos tão terra-a-terra como
árvores, flores (e até seres humanos, e lá ele
pode entregar-se ao estado beatífico de con-
templação, rodeado pelo nada, que ele su-
põe ser próprio do céu. Ninguém aqui é for-
çado a tarefas em ambiente que considere
desagradável. Há um defeito — entre outros
— que a Terra possui: o julgar-se superior a
qualquer outro mundo, especialmente o
mundo espiritual. Podemos nos rir agora,
164
embora a nossa alegria se transforme em
tristeza quando presenciamos a aflição das
almas que aqui chegam, e compreendem
que finalmente enfrentam a verdade eterna,
sem possibilidade de pergunta ou dúvida. É
então que a humildade se faz presente! mas
nunca censuramos, pois cada alma já traz
dentro de si a própria censura.

E o que tem isto a ver, direis, com as nossas


experiências musicais? Apenas o seguinte:
que após cada uma delas eu tive os mesmos
pensamentos, e quase as mesmas palavras
foram usadas para comentá-los com Rute e
Edwin. Rute sempre fez eco às minhas idéi-
as, e Edwin sempre concordava comigo, a-
pesar de nada mais ser novidade para ele; e
ainda assim, maravilhava-se com tudo aqui,
como todos fazemos, sejam recém-chegados
apenas, ou já antigos habitantes.

Ao caminharmos, depois do concerto, Edwin


nos apontou as moradias de muitos profes-
sores, que preferiam viver perto de seus lu-
165
gares de trabalho. Eram na maioria casas
despretensiosas e, de certa forma, era fácil
adivinhar a ocupação dos moradores, por
causa de vários sinais externos evidentes.

Edwin nos disse que seríamos sempre bem-


vindos se desejássemos visitar os mestres. A
exclusividade que necessariamente rodeia
tais pessoas na terra desaparece quando se
tornam espíritos. Todos os valores são dras-
ticamente alterados a esse respeito. Os mes-
tres não cessam seus estudos só porque es-
tão lecionando. Estão sempre investigando e
aprendendo, e transmitindo aos alunos o que
assimilaram. Alguns já passaram a reinos
superiores, mas ainda retêm seu interesse na
esfera anterior, e visitam-na continuadamen-
te — e a seus amigos — para prosseguirem
seu ensino.

Mas já gastamos muito tempo neste assunto


e Edwin está esperando para levar-nos a
outros lugares de importância na cidade.
166
VIII. PLANOS PARA TRABALHOS FUTUROS

Uma curta caminhada nos levou a um prédio


retangular que, segundo fomos informados,
era o departamento da ciência. Tanto minha
bela companheira como eu estávamos per-
plexos, sem saber de que forma a ciência, tal
como a compreendemos na terra, poderia ter
lugar no mundo espiritual. Entretanto, logo
iríamos aprender muitas coisas, e a principal
delas é que o mundo deve agradecer aos
espíritos todas as principais descobertas ci-
entíficas que têm sido feitas através dos sé-
culos.

Os laboratórios daqui estão muitas dezenas


de anos mais adiantados do que os da terra.
E levará anos antes que muitas descobertas
revolucionárias possam ser enviadas para a
terra, por causa do seu insuficiente progres-
so.

Nem Rute nem eu tínhamos muita inclinação


para ciência ou engenharia, e Edwin, conhe-
167
cedor de nossos gostos, propôs que de-
dicássemos apenas uns momentos a esta
seção.

Aqui todos os campos de investigação cientí-


fica, e de engenharia, estudo e descobertas,
são incentivados e podiam-se ver também
muitos daqueles homens cujos nomes se
tornaram famosos, e que, passando a espíri-
tos continuaram suas atividades com os co-
legas de ciência, e desta vez manejando
completas e imensas fontes de recursos.
Neste edifício podem eles resolver os misté-
rios que os intrigavam na terra. E não exis-
tem mais coisas desagradáveis, como a riva-
lidade pessoal. Não precisam mais fazer no-
me profissional e muitas desvantagens mate-
riais são abandonadas para sempre. Segue-
se que com tal reunião de sábios, com tais
recursos à sua disposição, os resultados de-
vem ser evidentemente grandes. Em idades
passadas todas as descobertas que marca-
ram época vieram do mundo espiritual. De si
próprio, em carne e osso, o homem pode
168
fazer muito pouco. Muita gente se con-
tenta em considerar o mundo auto-
suficiente. Mas não o é! O cientista é funda-
mentalmente um homem de visão; ela pode
ser limitada mas existe, não obstante. E nos-
sos próprios cientistas do espírito podem — e
o fazem — impressionar seus colegas com o
fruto de suas investigações. Nos casos em
que há dois homens trabalhando no mesmo
problema, aquele que já é espírito estará
muito mais adiantado que o seu confrade
ainda da terra. Uma sugestão do primeiro é
freqüentemente o bastante para pôr o se-
gundo na pista certa, e o resultado é uma
descoberta, para benefício da Humanidade.

Contudo, se em muitas circunstâncias a Hu-


manidade é tão favorecida, em muitas ou-
tras, dores e tribulações lhe advêm, pela
perversão diabólica daquelas descobertas.
Todas foram enviadas do mundo espiritual
para vantagem e progresso do homem. Se,
porém, mentes pervertidas usam essas
mesmas descobertas para a destruição do
169
homem este só a si mesmo deve culpar.
É por isso que afirmei que a terra ainda não
progrediu o suficiente para receber mais al-
gumas dessas esplêndidas invenções aqui
aperfeiçoadas. Estão prontas a serem usa-
das, mas se fossem enviadas à terra em seu
atual estado de espírito, elas seriam detur-
padas por pessoas inescrupulosas.

O povo da terra tem obrigação de cuidar que


os modernos inventos sejam empregados
unicamente para seu bem espiritual e mate-
rial. Quando chegar a hora em que verdadei-
ro progresso espiritual for alcançado, então,
o plano terrestre pode esperar uma avalan-
che de novas invenções e descobertas, pro-
veniente dos engenheiros e cientistas do
mundo do espírito. Mas a terra tem um longo
e doloroso caminho a trilhar antes dessa ho-
ra. Enquanto isso, o trabalho dos nossos ci-
entistas continua.

Nós, do espírito, não necessitamos das mui-


tas invenções do plano terrestre. Creio já ter
170
dito que nossas leis são totalmente diver-
sas das do mundo. Não achamos utilidade
para as invenções que aumentarão a veloci-
dade de locomoção. Nosso próprio método
de transporte é tão rápido quanto o pensa-
mento. Não temos necessidade de poupar a
vida, porque somos indestrutíveis. Não te-
mos necessidade de centenas de invenções
que tornam a vida mais fácil, mais segura,
mais confortável e aprazível, porque a nossa
vida já é tudo isso, e mais ainda. Mas neste
templo da ciência, muitos e muitos homens
devotados estavam trabalhando para o
melhoramento do plano terrestre, por meio
de suas pesquisas, e lamentavam que nem
tudo ainda pudesse ser dado à terra por não
ser seguro fazê-lo.

Foi-nos permitido ver o progresso que tem


sido feito nos transportes, e ficamos atônitos
ante o adiantamento que se tem alcançado.
Mas isso não é nada, comparado com o que
está para vir. Quando o homem exerce sua
vontade na direção certa, não há limites para
171
os enormes benefícios que ganhará em
progresso material, mas este precisa cami-
nhar a par com o progresso espiritual.

E até então não será permitido que eles pos-


suam as inúmeras invenções prontas para
serem enviadas.

Em geral as pessoas da terra são muito tei-


mosas. Ressentem-se de qualquer invasão
em seus terrenos, ou naquilo que presunço-
samente chamam suas reservas. Quando
qualquer pesquisa de nossos cientistas é
comunicada à terra, nunca pretendemos que
ela seja monopolizada por alguns, com a
exclusão de todos os outros. Os que assim
fizeram terão de pagar um alto preço por
este breve período de prosperidade. Nem se
pretendeu também que os dois mundos — o
nosso e o vosso — ficassem como estão ago-
ra, tão distantes em contato e idéias. Dia
virá em que os nossos dois mundos serão
intimamente entrelaçados, quando a comu-
nicação entre ambos for um fato corriqueiro
172
da vida, e quando a grande riqueza de
recursos do mundo espiritual estiver aberta
ao mundo terreno, para uso e benefício de
toda a raça humana.

A visão de tanta atividade por parte de meus


companheiros de reino, tinha-me feito pen-
sar a respeito de meu próprio futuro, e que
forma tomaria. Não tinha ainda opinião defi-
nida sobre o assunto, por isso expus minha
dificuldade a Edwin. Rute, ao que parece,
estava preocupada com o mesmo problema,
sentíamo-nos, ambos, pela primeira vez des-
de a chegada, um pouco inquietos. Nosso
velho amigo não ficou nada surpreso por nos
ver dessa forma. Era uma sensação comum
a todos, mais tarde ou mais cedo, o anseio
de estar fazendo algo para o bem do próxi-
mo. Edwin assegurou-nos que continuaría-
mos em nossas explorações indefinidamente
se assim o desejássemos, e que ninguém
criticaria ou comentaria as nossas ações.
Seria tratado como assunto de nosso único
interesse. Sentíamos, porém, que gostaría-
173
mos de resolver a questão do nosso futu-
ro trabalho, e apelamos para a orientação do
nosso bom amigo. Sugeriu ele que fôssemos
aos limites dos reinos superiores, onde, de-
veis estar lembrados, ele próprio havia decla-
rado ser possível resolver esse assunto. As-
sim deixamos o edifício da ciência e nos a-
chamos nos arredores do nosso reino.

Fomos conduzidos a uma belíssima casa, que


pela aparência era muito mais iluminada do
que as outras situadas mais para o interior. A
atmosfera era mais rarefeita e creio que es-
távamos mais ou menos no mesmo lugar da
nossa primeira visita aos limites. Edwin con-
duziu-nos para dentro, com toda a liberdade,
e nos deu as boas-vindas.

Assim que entrei compreendi instintivamente


que ele nos levara à sua própria casa. Ê es-
tranho mas nunca havíamos perguntado on-
de era e ele propositadamente manteve nos-
sas mentes afastadas desse assunto. Rute
ficou encantada com tudo o que viu e ralhou
174
com ele por não nos ter falado dela mais
cedo. Era uma construção inteiramente de
pedra, e apesar de ser meio nua à vista, e-
manava certa amizade de cada canto. As
salas não eram grandes, mas apropriadas às
necessidades de Edwin. Havia muitas cadei-
ras confortáveis e estantes de livros bem
fornecidas. "Mas a sensação de calma e paz
que dela se recebia é que nos chamou a a-
tenção.

Edwin fez sentar e ficar à vontade. Não havia


pressa e podíamos discutir o nosso problema
com calma. Já de começo admiti francamen-
te não ter idéia do que poderia fazer. En-
quanto na terra tinha tido sorte de seguir
minhas inclinações, e por conseguinte era
muito ocupado. Mas o meu trabalho termina-
ra — pelo menos num aspecto — quando
minha vida terminou. Edwin propôs então se
eu gostaria de me unir a ele em seu trabalho
relacionado com os recém-chegados que,
como nós, se achavam incapazes ainda de
compreender a verdade da mudança por que
175
tinham passado, e da irrealidade de tanta
coisa de suas religiões.

Apesar de gostar muito da proposta de meu


amigo não me sentia competente para reali-
zar tal trabalho, | ao que

Edwin refutou minhas objeções. Eu trabalha-


ria com ele, pelo menos no começo, e quan-
do me acostumasse ao trabalho, poderia
continuar sozinho se quisesse. Falando com
experiência, Edwin disse que duas ou mais
pessoas — e aqui lançou o olhar para Rute
— podiam ser de mais ajuda a um indivíduo
do que este trabalhando completamente só.
O peso dos números parecia exercer grande
poder de convicção sobre aqueles que se
mostrassem particularmente teimosos em
apegar-se às suas convicções terrenas. Uma
vez que Edwin achava que eu lhe seria útil,
tive prazer em unir minhas forças às deles.
Rute ofereceu-se também para trabalhar
com ele, dependendo é claro de^sua apro-
vação. Havia muita coisa, disse Edwin ao
176
aceitar, que uma moça pode fazer, e nós
três trabalhando em tão completa harmonia
e amizade, poderíamos realizar bastante.
Fiquei contente que Rute se unisse a nós,
visto que assim nosso feliz grupo não seria
desfeito.

Havia, entretanto, outro assunto em minha


mente, e referia-se a um livro especial que
desejaria não ter escrito na terra. Não que a
idéia dele me tornasse infeliz, mas queria
livrar-me dela. Sem dúvida que o meu novo
trabalho me traria eventualmente aquela
completa paz de espírito, mas ainda assim
gostaria de tratar do assunto de uma manei-
ra mais direta. Edwin sabia o que eu estava
querendo, e lembrou-me o que antes já ha-
via dito a respeito das dificuldades de comu-
nicação com a terra. Mas ele também havia
mencionado que podíamos pedir orientação
ao plano mais elevado: Se eu ainda quisesse
tentar a comunicação poderíamos pedir con-
selhos agora, e assim acomodar a questão
do meu trabalho no futuro.
177
Edwin deixou-nos então e retirou-se para
outro aposento. Mal tinha conversado um
pouco com Rute, quando ele voltou acompa-
nhado de um homem cujo aspecto logo me
fez compreender que tinha vindo de um pla-
no mais elevado, em resposta ao chamado
de Edwin. Não parecia nosso compatriota, e,
de fato, mais tarde vim a saber que era e-
gípcio. Falava a nossa língua perfeitamente.
Edwin apresentou-nos e explicou o meu de-
sejo e as possíveis dificuldades em realizá-lo.

Nosso visitante tinha forte personalidade, e


dava uma impressão de calma e placidez.

Sentamo-nos confortavelmente e o egípcio


fez algumas considerações. Se, disse ele, eu
acreditava firmemente que voltando ao plano
terrestre para falar, pudesse remediar essa
situação que me causava remorsos, então
ele faria tudo para me auxiliar neste empre-
endimento. Só me seria possível, entretanto,
fazer o que queria, dentro de alguns anos.
Nesse ínterim eu devia aceitar apenas a sua
178
afirmação de que um dia eu me poderia
comunicar, e aceitei a promessa. Se tivesse
paciência, tudo seria como desejava. Eu de-
veria deixar o assunto em suas mãos e tudo
correria bem. O tempo — para usar uma ex-
pressão da terra — logo passaria, e certos
acontecimentos, enquanto isso, abririam
mais caminho e forneceriam a ambicionada
oportunidade.

Deveis vos lembrar que eu estava querendo


desfazer algo que desejava nunca ter feito.
Era uma tarefa que não podia ser realizada
num momento. O que escrevera nunca po-
deria apagar, mas poderia aliviar a minha
mente, dizendo a verdade como a conheço
agora àqueles ainda no plano terrestre.

O bondoso egípcio ergueu-se e apertou-nos


as mãos. Felicitou-nos pela maneira como
nos acostumáramos às novas condições de
vida, desejou-nos alegria em nosso novo
trabalho, e finalmente repetiu-me a promes-
sa de que meus desejos íntimos seriam reali-
179
zados. Tentei expressar minha gratidão
pelo seu auxílio, mas nem me quis ouvir e
com um aceno de mão, partiu. Ainda conti-
nuamos discutindo nossos planos, que eu
desejava logo iniciar.

Não se deve julgar que fazíamos parte de


uma campanha para converter as pessoas,
no sentido que os terrenos dão a essa pala-
vra. Longe disso. Não interferimos nas cren-
ças de cada um, nem em seus pontos de
vista: só damos nossas opiniões quando pe-
didas ou quando vemos que podem ser de
alguma utilidade. Nem gastamos o nosso
tempo por aí a evangelizar as pessoas. Mas
chega uma hora em que um desassossego
espiritual se manifesta no homem cuja alma
esteve comprimida e restringida por idéias
erradas, de tal forma, que ele se vê na con-
tingência de se voltar para o caminho certo.

Muitas pessoas não se conformam com o


fato de que, ao passarem da terra para cá,
sofreram a morte do corpo físico. Resoluta-
180
mente não querem acreditar que são o
que no mundo chamam de mortos. Sentem
vagamente que houve alguma mudança,
mas em que consiste, não sabem. Alguns,
depois de explicações — e até demonstra-
ções — chegam a avaliar o que realmente
aconteceu, outros são teimosos e só se con-
vencem depois de prolongados argumentos.
Neste último caso somos às vezes obrigados
a abandonar essas almas por algum tempo,
para permitir-lhes uma ligeira contemplação
do próprio caminho. Sabemos que seremos
imediatamente procurados, assim que senti-
rem o poder dos nossos argumentos. Em
muitos aspectos é trabalho cansativo, apesar
de eu usar a palavra cansativo em seu senti-
do terreno.

Rute e eu estávamos mais do que gratos a


Edwin pela sua ajuda em nossos casos, e eu,
também ao egípcio, pela excelente perspec-
tiva de me comunicar com a terra. Em vista
de nossas decisões de cooperar com Edwin
em seu trabalho, ele sugeriu que, como ha-
181
víamos visto um pouco — e muito pouco
até — do nosso reino, poderíamos agora
proveitosamente fazer uma visita aos reinos
sombrios. Rute e eu concordamos, acrescen-
tando que tínhamos agora suficiente auto-
confiança para suportar qualquer coisa de
natureza desagradável que nos fosse mos-
trada. Estaríamos, é claro, sob a imediata
proteção e guia do nosso velho amigo. É es-
cusado dizer que sem ela não tentaríamos ir,
mesmo que nos fosse permitido.

Deixamos a bela casa de Edwin, atravessa-


mos rapidamente o nosso próprio reino, e de
novo nos achamos nas fronteiras dos reinos
inferiores. Edwin nos avisou que sentiríamos
aquela sensação de frio, mas com algum
esforço podíamos expeli-la. Colocou-se entre
nós, e Rute e eu nos apoiamos em seus bra-
ços. ele se voltou para nos olhar, e ficou a-
parentemente satisfeito com o que viu. Ao
olhar para Rute notei que suas vestes, bem
como as de Edwin, haviam tomado uma to-
nalidade cinza, e vi também que as minhas
182
tinham passado por igual alteração. Isto
nos deixou perplexos, mas o nosso amigo
explicou que este esmaecer de cores era a-
penas uma lei natural, e não significava que
perdêssemos o que já havíamos ganho. Essa
lei era para que não chamássemos a atenção
em lugares estranhos, nem levássemos a luz
do nosso reino para aqueles planos obscu-
ros, onde poderia cegar os seus habitantes.

Caminhávamos ao longo de terreno árido. A


terra era dura e o verde das árvores desapa-
recera. O céu era sombrio e plúmbeo, e a
temperatura tinha caído consideravelmente,
mas podíamos sentir um calor interno, que a
combatia. Diante de nós, víamos apenas
uma grande massa de neblina, que se aden-
sava cada vez mais à medida que avançá-
vamos, até que nos sentimos envolvidos por
ela. Rodopiava à nossa volta e parecia es-
magar-nos. De repente surgiu da neblina
uma figura, que avançou em nossa direção.
Ao reconhecer Edwin, acolheu-o com cordia-
lidade, e este nos apresentou, contando das
183
nossas intenções. ele disse que se uniria
a nós e talvez nos fosse de alguma utilidade,
e aceitamos prontamente a oferta. Retoma-
mos a jornada e depois de passarmos nova-
mente pelo nevoeiro, este começou a clarear
um pouco e por fim desvaneceu-se. Podía-
mos agora ver claramente o nosso novo am-
biente. A paisagem era extremamente árida,
com apenas uma habitação aqui e acolá, e
assim mesmo de ínfima categoria. Ao nos
aproximarmos de uma delas, pudemos exa-
miná-la. Era pequena e baixa, inteiramente
desprovida de ornamentos e pouco convida-
tiva. Tinha até certo aspecto sinistro, apesar
de sua simplicidade, e parecia nos repelir à
medida que nos aproximávamos. Não havia
sinal de vida nas janelas ou ao redor dela.
Não havia jardins em suas adjacências; ela
existia por si só, solitária e tristonha. Edwin e
o nosso novo amigo evidentemente conheci-
am bem o seu morador, porque ao chegar à
porta da frente, Edwin deu
184
uma rápida batida e, sem esperar respos-
ta, entrou, fazendo-nos sinal para o seguir-
mos. Ao fazê-lo, achamo-nos na mais pobre
espécie de moradia. Pouca mobília, ve essa
de ínfima categoria. Dir-se-ia à primeira vista
que a pobreza reinava aqui, e qualquer pes-
soa ficaria naturalmente penalizada e incli-
nada a oferecer auxílio. Mas aos nossos o-
lhos a pobreza era da alma, e a esqualidez,
do espírito; e apesar de causar piedade, era
uma piedade de outra espécie, para a qual o
auxílio material de nada adianta. O frio pare-
cia maior ainda, lá dentro, e nos disseram
que ele provinha do próprio dono da casa.

Passamos a um quarto dos fundos e encon-


tramos o seu único ocupante sentado numa
cadeira. Não fez menção de se levantar ou
nos dar as boas-vindas. Rute e eu ficamos
para trás enquanto os outros dois se adian-
tavam para falar ao nosso pouco acolhedor
anfitrião. Era um homem de meia-idade. Ti-
nha um certo quê de prosperidade em deca-
dência e as roupas que usava eram mal cui-
185
dadas. Recebeu a mim e a Rute de so-
brecenho carregado e não falou imediata-
mente, mas quando o fez, foi para esbrave-
jar conosco incoerentemente e consegui
compreender que se julgava vítima de uma
injustiça. Edwin disse-lhe cruamente que era
tolice, porque não há injustiça no mundo do
espírito. Uma argumentação acalorada se
seguiu, ou pelo menos por parte dele, visto
que Edwin conservou-se calmo e ponderado
e na verdade maravilhosamente bondoso.
Muitas vezes ele olhou para Rute, cujo rosto
suave parecia iluminar o quarto sombrio, e
eu também dirigi meu olhar para ela, que
agarrada ao meu braço, se mostrava imper-
turbável.

Por fim ele se acalmou e pareceu mais tratá-


vel, mantendo com Edwin uma conversa par-
ticular. Por fim disse a Edwin que iria pensar
no assunto, e que se ele o quisesse visitar
outra vez, com seus amigos, 'podia fazê-lo.
Ao dizer isso ergueu-se de sua cadeira, a-
companhou-nos até a porta e reparei que
186
estava quase afável. Era como se esti-
vesse relutando em se tornar cortês. Ficou à
porta nos observando até nos perder de vis-
ta.

Edwin parecia contente com a visita e nos


deu alguns particulares a respeito desse es-
tranho personagem. Fora um homem bem
sucedido nos negócios, e era espírito havia já
alguns anos. Não pensava em mais nada a
não ser nos negócios, e sempre achou que
qualquer meio justificava seus fins, contanto
que fossem legais. Era impiedoso com os
outros e dava à eficiência a estatura de um
deus. Em sua casa tudo e todos eram-lhe
subservientes. Dava generosamente esmolas
quando disso era provável retirar alguma
vantagem e crédito. Apoiava sua religião e
sua igreja com vigor, regularidade e fervor.
Sentia-se um ornamento da igreja e era mui-
to estimado por seus correligionários. Ajuda-
va na construção, e uma capela foi batizada
com o nome do seu doador. Mas pelo que
Edwin pôde aquilatar, nunca tinha praticado
187
uma ação decente e desinteressada em
toda a sua vida.

E agora suas lamentações eram que, depois


de ter tido vida tão exemplar — a seus olhos
— fosse condenado a ambiente tão esquáli-
do. Recusava-se a reconhecer que ele pró-
prio se condenara, e não podia culpar nin-
guém, a não ser ele mesmo.

Queixava-se de que a Igreja o enganara,


visto que sua generosidade fora aceita, e
acreditava por isso que seus donativos pesa-
riam na balança do Além. Não podia perce-
ber que o que importa é o motivo, e que um
estado de espírito feliz não pode ser com-
prado. Um pequeno serviço, voluntária e ge-
nerosamente feito por um mortal, constrói
um maior edifício em espírito, à glória de
Deus, do que grandes somas gastas em ar-
gamassa e pedra clericais erigidas à glória do
homem.
188
O atual estado de espírito daquele ho-
mem era a ira, tanto maior porque nunca lhe
havia sido negado nada na terra. Não estava
acostumado a circunstâncias tão ínfimas co-
mo aquelas em que vivia. Suas dificuldades
eram acrescidas pela circunstância de não
saber a quem culpar. Esperando uma alta
recompensa, tinha sido lançado às profunde-
zas. Não tinha feito verdadeiros amigos. Pa-
recia não haver aconselhar. Edwin havia ten-
tado argumentar, mas de nada adiantara.
Recebia poucas visitas, porque as repelia, e
apesar de Edwin o ir ver freqüentemente,
sua atitude era sempre a mesma — sólida
aderência ao senso de injustiça.

Mas desde a última visita, na companhia de


nós três, já havia alguns sintomas de uma
mudança próxima. A princípio não eram evi-
dentes, mas ao aproximar-se o fim de nossa
visita ele tinha dado mostra de ceder nessa
atitude. E Edwin tinha a certeza que era mais
devido à presença de Rute do que aos seus
argumentos. Acreditava firmemente que se o
189
fôssemos ver no caminho de volta das
nossas explorações, já o acharíamos em dis-
posição diferente. Estava ainda relutante em
admitir que a culpa era sua, mas a perseve-
rança faz maravilhas.

Rute ficara naturalmente contente por ser


tão cedo, de alguma utilidade, apesar de
afirmar que se alguma coisa fizera, fora a de
ser simples espectadora! Edwin porém lhe
fez ver que, se não fizera alguma ação ex-
terna, mostrara entretanto uma sincera pie-
dade e simpatia por aquele homem infeliz.
Isso explicava os freqüentes olhares dele em
sua direção. Sentira sua consideração e isso
lhe fizera bem, embora não o soubesse ain-
da.

Este foi o nosso primeiro contato com os de-


safortunados das esferas inferiores, e me
estendi um pouco nos pormenores. Fi-lo
porque foi uma espécie de introdução para o
nosso futuro trabalho. Por enquanto, entre-
190
tanto, nada deveríamos fazer nesses pla-
nos além de observações.

Nós quatro retornamos à nossa jornada. Não


havia caminho para se andar, e o solo estava
se tornando de formação rochosa. A luz de-
saparecia velozmente de um céu pesado e
negro. Não havia vivalma, nem casas, nem
sinais de vida. Os arredores todos estavam
vazios, e incolores, e parecíamos vagar num
outro mundo. Mal podíamos ver, à nossa
frente, algo com a aparência de casas, e pa-
ra lá nos encaminhamos.

O terreno era agora de rochas e nada mais,


e viam-se aqui e acolá pessoas sentadas, de
cabeça baixa, aparentemente inanimadas,
mas na realidade mergulhadas em desespero
e tristeza. Não reparavam em nós ao pas-
sarmos, e logo alcançamos as habitações
divisadas de longe.

IX. Os DOMÍNIOS SOMBRIOS


191
A certa distância podia-se notar que a-
quelas habitações não passavam de cortiços.
Era uma desolação vê-las, e mais ainda era
pensar que elas eram os frutos da vida dos
homens sobre a terra. Não entramos em ne-
nhum dos casebres — já eram bastante re-
pulsivos por fora, e de nada adiantaria irmos
aos seus interiores. Em vez disso, Edwin nos
forneceu alguns detalhes.

Alguns dos habitantes, disse ele, viviam ali,


ou em suas redondezas, ano após ano, —
como é contado o tempo na terra. Eles pró-
prios não tinham noção de tempo, e sua e-
xistência era uma interminável continuidade
de escuridão, e por sua própria culpa. Muitas
almas caridosas tinham entrado naqueles
reinos para tentar efetuar uma salvação das
sombras. Algumas tinham sido bem sucedi-
das, outras não. O sucesso depende não do
salvador, mas do que se procura salvar. Se
este não demonstra uma centelha de luz em
sua mente, nem desejo de dar um passo à
192
frente na estrada espiritual, então, nada,
literalmente nada, se pode fazer!

A necessidade deve vir de dentro da própria


alma caída. E quão profundamente algumas
caíram. Nunca se deve supor que aquelas
que pelo julgamento terreno hajam falhado
espiritualmente são as que mais baixo caí-
ram. Muitas não fracassaram: na verdade,
são almas dignas, cuja esplêndida recom-
pensa as aguarda aqui. Por outro lado, há
aquelas cuja vida terrena foi espiritualmente
horrível, apesar de exteriormente sublime,
cuja missão religiosa designada por um cola-
rinho romano foi tomada como sinônimo de
espiritualidade da alma. Tais pessoas zomba-
ram de Deus através de uma vida santarrona
na terra, onde viveram uma existência de
exibição de bondade e santidade. Aqui são
mostradas como realmente são. Mas o Deus
que ludibriaram durante tanto tempo não
castiga. Elas mesmas ficam encarregadas
disso.
193
As pessoas que habitam essas enxovias
que víamos, não são necessariamente aque-
las que na terra cometeram algum crime aos
olhos terrenos. Havia muitas pessoas que,
sem fazerem o mal, nunca tinham feito o
bem a um único mortal sobre a terra. Pesso-
as que vivem inteiramente para si, sem pen-
sar nos outros. Tais almas vivem martelando
a mesma tecla de que não fizeram mal a
ninguém. Mas fizeram-no a si próprias.

Assim como os reinos superiores tinham cri-


ado todas aquelas belezas, os moradores
destes planos inferiores tinham edificado as
condições atrozes de sua vida espiritual. Não
havia luz, nem calor, nem vegetação, nem
beleza. Mas há esperança — esperança de
que uma alma possa progredir. Está ao al-
cance de cada uma, e nada a impede, a não
ser ela própria. Poderá levar infindáveis anos
para subir espiritualmente uma polegada,
mas é um passo na direção certa.
194
Inevitavelmente pensei na doutrina da
maldição eterna, tão ao gosto das religiões
ortodoxas, e dos fogos sempiternos do assim
chamado inferno. Se este lugar em que está-
vamos então pode ser chamado inferno, — e
sem dúvida o seria pelos teólogos — não há
contudo evidência nenhuma de fogo ou calor
de qualquer espécie. Pelo contrário, nada
havia a não ser uma atmosfera fria e depri-
mente. A espiritualidade significa calor no
mundo espiritual; a falta de espiritualidade
significa frieza. A doutrina fantástica do fogo
do inferno — que queima mas nunca conso-
me — é uma das mais absurdamente estúpi-
das e ignorantes inventada pelos menos es-
clarecidos homens da igreja.

Quem a inventou ninguém sabe, mas ainda é


sustentada rigorosamente como doutrina da
igreja. O menor contato com a vida espiritual
revela instantaneamente a sua completa im-
possibilidade, porque é contra as próprias
leis da existência.
195
Isto quanto ao seu sentido literal. E que
dizer da chocante blasfêmia que acarreta?

Quando Edwin, Rute e eu estávamos na ter-


ra, nos incitavam a acreditar que Deus, o Pai
do Universo, castiga, realmente castiga as
pessoas condenando-as a arder no fogo do
inferno por toda a eternidade. Nunca houve
mais grosseira falsificação desse Deus que os
ortodoxos dizem adorar. As igrejas — de
qualquer denominação — fabricaram uma
monstruosa concepção do Pai Eterno do Céu.
Fizeram d'ele, de um lado, uma montanha de
corrupção, gastando enormes somas de di-
nheiro para erguer igrejas e capelas em Sua
glória fingindo uma humilde contrição porque
o ofenderam, professando temê-lo, — a ele
que é todo amor! Por outro lado, temos o
quadro de um Deus que, sem a menor com-
punção, atira pobres almas humanas ao fogo
eterno, que é inextinguível.

É-nos ensinado pedir piedade a Deus. O


Deus da igreja é um Deus de mutáveis dis-
196
posições. Precisa ser continuamente a-
placado. Não é de maneira alguma certo
que, tendo-se pedido piedade, possamos
consegui-la. ele deve ser temido, porque po-
de desencadear Sua vingança a qualquer
momento, e não sabemos quando nos atingi-
rá. É vingativo e não perdoa. Recomenda
trivialidades que estão anexas às doutrinas
da igreja, e dogmas que imediatamente
revelam, não uma grande, mas uma bem
ínfima mentalidade. fez os portais da
Salvação tão estreitos, que poucas,
pouquíssimas almas poderão passar por ele.
Construiu na terra uma vasta organização
conhecida como a Igreja que é a única
depositária da verdade espiritual — uma
organização que praticamente nada conhece
da vida no mundo espiritual e no entanto
ousa decretar leis às almas encarnadas, e
ousa dizer o que vai pela mente do Grande
Pai Universal, e ousa desacreditar Seu nome
atribuindo-lhe qualidades que ele não pode
possuir. Que sabem essas mentes tolas,
mesquinhas, do Grande Todo Poderoso Deus
197
Todo Poderoso Deus do Amor? Reparem
nisso — de Amor! Depois, pensem de novo
em todos os horrores que enumerei, e con-
templem isto: um Céu onde tudo é beleza,
maior do que a mente do homem encarnado
pode compreender; um céu cujo minúsculo
fragmento tentei descrever, onde tudo é paz,
e boa vontade, e amor entre os companhei-
ros mortais. Tudo isso é criado pelos habi-
tantes desses reinos, e é confirmado pelo Pai
do Céu em Seu amor por toda a Humanida-
de.

E que dizer dos planos inferiores, esses luga-


res sombrios que hora visitávamos? É o pró-
prio fato de os estarmos visitando que me
levou a falar deste modo, porque aqui na
escuridão estou perfeitamente cônscio da
grande realidade da vida eterna, e de que as
altas esferas do céu estão ao alcance de to-
da alma mortal, nascida ou por nascer sobre
a terra. As potencialidades da progressão
são ilimitadas, e são o direito de toda alma.
Deus não condena ninguém. O homem se
198
condena a si próprio, mas não eterna-
mente: depende dele mesmo, quando se
deverá mover para a frente espiritualmente.
Cada espírito odeia o reino inferior por causa
da infelicidade que lá existe — por nenhuma
outra razão. É por isso que temos aqui gran-
des organizações, destinadas a ajudar essas
almas que o habitam a se erguerem até a
luz. E esse trabalho continuará através de
eras infindáveis, até que toda alma seja tra-
zida daqueles lugares horríveis, quando en-
tão tudo ficará como o Pai do Universo dese-
ja.

Esta, receio, foi uma longa digressão, por


isso voltemos às nossas viagens. Devem
lembrar-se dos muitos perfumes celestiais
que mencionei, oriundos das flores e que
flutuam pelo ar. Aqui nestas regiões sombri-
as é o oposto. Nossas narinas eram assalta-
das pelos mais horríveis odores, que lembra-
vam a decomposição da carne no mundo
terrestre. Eram nauseantes e eu temia serem
mais fortes do que pudéssemos suportar, eu
199
e Rute, mas Edwin nos disse para os tra-
tarmos da mesma maneira que o frio, sim-
plesmente fechando-lhes a mente; assim
ignoraríamos a sua existência. Apressamo-
nos a fazê-lo, e com sucesso. Não é apenas
a santidade que exala odores.

Nas viagens pelo nosso reino podíamos go-


zar de todas as suas inúmeras belezas e en-
cantos, bem como da convivência feliz de
seus habitantes. Aqui nestes sombrios reinos
tudo é triste e desolado. A própria luz, tênue,
lança uma névoa sobre toda a região. Ocasi-
onalmente podíamos ver de relance os rostos
de alguns infelizes que passavam por nós.
Alguns eram inequivocamente maus, mos-
trando a vida de vício que haviam levado
sobre a terra; alguns revelavam o avarento,
o miserável, a besta humana. Havia aqui
pessoas de quase todas as categorias soci-
ais, desde os tempos presentes até as eras
mais remotas. £ aqui encontrei uma relação
com nomes que se podiam ler nas histórias
verídicas das nações, na biblioteca que haví-
200
amos visitado em nosso reino. Tanto Ed-
win como o seu amigo nos disseram que fi-
caríamos estupefatos com a lista de nomes,
bem conhecidos na História, de pessoas que
estavam enfurnadas nessas pestilentas regi-
ões — homens que haviam perpetrado vis e
maldosos atos em nome da religião sagrada,
ou em favor de seus próprios desprezíveis
interesses materiais. Muitos desses infelizes
estavam incomunicáveis, e assim ficariam —
talvez por infindos séculos — até que por
vontade e esforço próprios, eles se moves-
sem, por pouco que fosse, na direção da luz
do progresso espiritual.

Podíamos ver, ao caminharmos, bandos in-


teiros de almas aparentemente enlouqueci-
das, a caminho de intentos maléficos. Seus
corpos apresentavam externamente as mais
horripilantes e repulsivas deformidades, o
absoluto reflexo de suas mentes malsãs.
Muitos pareciam velhos, mas me disseram
que apesar de estarem ali há muitos séculos,
não era tanto a passagem dos anos que as-
201
sim os desfigurava, mas sim a maldade
de suas mentes.

Nas esferas superiores a beleza da mente


rejuvenesce os traços, varre os sinais de cui-
dados terrenos, preocupações e penas, e
apresenta aos olhos esse estado de desen-
volvimento físico que se costuma designar
como flor da idade.

Os múltiplos sons que se ouviam estavam de


acordo com o ambiente; desde o roufenho
riso louco até aos gritos de alguma alma em
tormento. Uma ou duas vezes dirigiu-se a
nós uma alma corajosa que lá se achava na
sua tarefa de ajudar aqueles aflitos mortais.
Ficaram contentes em nos ver e poder falar-
nos. Podiam ver-nos na escuridão e nós a
elas, mas éramos todos invisíveis para os
demais, devido à proteção de que vínhamos
munidos ao entrar nesses reinos sombrios.
No nosso caso, era Edwin que cuidava de
nós coletivamente como recém-chegados,
mas os que trabalham na salvação dos infeli-
202
zes, dispõem cada um de seu próprio
meio de proteção.

Se algum prelado — ou teólogo — pudesse


ver as coisas que eu, Rute e Edwin víamos,
nunca mais diria que Deus, o Pai de Amor,
possa condenar algum mortal a tais horrores.
Mesmo o padre vendo estas paragens não
condenaria ninguém a viver nelas.

Quanto mais víamos no reino das sombras


mais compreendíamos quão fantástico é o
ensinamento ortodoxo da igreja à qual eu
pertencia quando na terra: que o lugar que
se chama inferno eterno é governado pelo
Príncipe das Trevas, cujo único fito é prender
as almas em suas garras, e que não há sal-
vação depois que se entra em seu reino. Se-
rá que há realmente uma entidade como
esse Príncipe das Trevas? Poderia haver,
sim, uma alma infinitamente pior do que as
outras, e que seria considerada o Rei do Mal.
Edwin nos contou que não existe qualquer
evidência de tal personagem. Entidades das
203
esferas superiores tinham viajado por
toda parte aqui, sem descobrir tal ser. Tam-
bém os sábios afirmam positivamente não
conhecerem a existência de tal coisa. Indubi-
tavelmente há os que, coletivamente, são
bem piores do que seus colegas das som-
bras. A idéia de que um Rei das Trevas exis-
ta, e cuja função direta é oposta à do Rei do
Céu, é estúpida, primitiva e bárbara. O Dia-
bo, como indivíduo solitário, não existe, mas
uma alma má pode ser um diabo, e, nesse
caso, há inúmeros diabos. É esta fraternida-
de, de acordo com os ensinamentos da igre-
ja ortodoxa, que constitui o único elemento
do regresso do espírito.

Podemos nos dar ao luxo de rir de tais ab-


surdos. Temos senso de humor, e nos diver-
te às vezes ouvir algum padre ignorante,
espiritualmente cego, protestando conhecer
as coisas do espírito, as quais, na realidade,
ele desconhece totalmente. Os povos do es-
pírito têm costas largas, e podem suportar o
204
peso de tais tolices sem experimentar
nada a não ser piedade, por almas tão ce-
gas.

Não é minha intenção entrar em pormenores


a respeito dessas esferas sombrias. Pelo me-
nos por enquanto. O método de a igreja as-
sustar pessoas não é o método do mundo
espiritual. Preferimos nos deter nas belezas
do mundo espiritual e tentar mostrar algo
das glórias que esperam cada alma que ter-
mina sua vida na terra. Depende de cada
uma, individualmente, o possuí-las mais cedo
ou mais tarde.

Fizemos uma pequena consulta e achamos


que gostaríamos de voltar aos nossos reinos.
Voltamos assim das sombras, atravessando
rapidamente as névoas e uma vez mais nos
achamos em nosso reino celestial, envolvidos
em seu ar cálido. Achei que era tempo de
dar uma olhadela em minha casa, mas como
não desejava me separar de Rute e Edwin,
pedi-lhes que me acompanhassem. Ela ainda
205
não vira o meu lar, que muitas vezes se
havia perguntado como seria. E achei que
algumas frutas do pomar, seriam bem--
vindas, depois daquela nossa jornada.

Tudo na casa estava em perfeita ordem, co-


mo se alguém cuidasse dela permanente-
mente. Rute expressou sua admiração por
tudo o que viu e felicitou-me pela escolha.

Ao inquirir quem era responsável pela boa


ordem da casa durante a minha ausência,
Edwin respondeu-me com outra pergunta: —
Que há aqui para perturbar-lhe a ordem?
Não existe pó porque não há destruição de
forma alguma. Não há sujeira porque em
espírito não pode existir tal coisa. As obriga-
ções domésticas tão conhecidas e enfado-
nhas na terra, são aqui inexistentes. A ne-
cessidade de prover nosso corpo com ali-
mento foi esquecida quando deixamos de ser
um corpo físico. Os adornos do lar, tais como
tapeçarias e cortinas, nunca necessitavam de
ser removidos, visto que aqui nada fenece.
206
Duram até que os queiramos trocar por
outros. Assim, o que resta para exigir o nos-
so cuidado? Temos apenas que sair de nos-
sas casas deixando todas as portas e janelas
abertas — não há fechaduras — e podemos
voltar quando bem quisermos, encontrando
tudo como deixamos.

Podemos achar alguma diferença, alguma


melhoria. Podemos descobrir, por exemplo,
que enquanto estivemos fora algum amigo
nos deixou um mimo, flores talvez, ou qual-
quer outro sinal de amizade. Rute vagueara
por toda a casa, só; como aqui não temos
formalidades estúpidas, disse-lhe que ficasse
à vontade. O estilo antigo da arquitetura a-
traía a sua natureza artística, e ela absorvia-
se nos painéis e esculturas de madeiras do
passado. Daí a pouco atingiu a minha biblio-
teca e ficou interessada em ver minhas pró-
prias obras na estante. Um livro em especial
a atraiu e o estava folheando quando entrei.
O título já por si revelava-lhe muito, disse
ela; pude então sentir sobre mim a força de
207
toda sua simpatia; e como ela conhecia a
minha grande ambição, ofereceu-me toda
ajuda possível para a sua realização.

Assim que completou a inspeção da casa,


reunimo-nos na sala de estar e Rute indagou
de Edwin uma coisa que já havia me ocorri-
do: havia um mar algures? Se havia lagos e
rios, talvez devesse haver um oceano. A res-
posta encheu-a de alegria: é claro que havia
um mar, e muito bonito. Rute insistiu em vê-
lo e para lá nos dirigimos, sob a orientação
de Edwin.

Em breve caminhávamos ao longo de um


maravilhoso trecho de campo aberto reco-
berto de grama, como um tapete de veludo
verde sob nossos pés. Não havia árvores,
mas havia muitos agrupamentos de arbus-
tos, e é claro, uma profusão de flores por
toda parte. Por fim subimos a uma pequena
elevação e senti que o mar devia estar além
dela. De fato, ali terminava o prado e logo
em seguida estendia-se o mais lindo pano-
208
rama que se pode imaginar. Nunca tí-
nhamos contemplado um mar tão maravilho-
so. A coloração era o mais perfeito reflexo do
céu acima dele, e além disso, em cada onda-
zinha rebrilhavam miríades de tonalidades do
arco-íris. A superfície da água era calma,
mas não uma calma desprovida de vida. Aqui
não há coisas tais como água estagnada ou
sem vida.

De onde estávamos, podiam-se ver ilhas de


considerável tamanho, ilhas que nos pareci-
am bem atraentes e que devíamos visitar.
Abaixo de nós estendia-se esplêndida faixa
de praia e havia muita gente sentada à beira
da água, mas nem sombra de multidões se
acotovelando. Flutuando sobre a água, al-
guns, bem perto de nós, outros mais distan-
tes, estavam os mais lindos barcos — mas
não creio estar-lhes fazendo justiça ao cha-
má-los barcos. Navio seria mais apropriado.
Ao perguntar a Edwin quem poderia possuir
tão belas embarcações, ele me respondeu
que nós também as poderíamos possuir, se
209
as desejássemos. Os proprietários não
tinham outra moradia a não ser os barcos,
onde podiam passar o ano todo, visto que
aqui o verão é eterno.

Uma pequena descida por um caminho tor-


tuoso nos levou à praia. Edwin informou-nos
que era um mar sem marés e não muito pro-
fundo, em comparação com o do mundo ter-
restre. Não existindo tempestades aqui, a
água é sempre plácida e, como as outras
águas deste reino, é de temperatura sempre
morna e não oferece aos banhistas nenhuma
sensação de frio. Banhar-se nessas águas é
experimentar uma perfeita manifestação de
força espiritual. A areia em que caminháva-
mos não tinha características desagradáveis
como as da terra. Não era cansativo andar
sobre ela, e apesar de ter a aparência co-
mum, era macia ao tato. De fato, esta pecu-
liaridade fazia-a semelhante a um gramado
bem tratado, tão unidos são
210
os seus grãos. Pegamos alguns punhados
dessa areia e deixamo-la correr entre os de-
dos; ficamos surpresos ao sentir que não
deixava as mãos ásperas, mas parecia mais
um pó macio. Era um dos mais estranhos
fenômenos que já encontráramos, mas Ed-
win observou que era apenas porque aqui
nós tínhamos feito um exame mais minucio-
so do que das outras coisas. Se fôssemos
fazer isso com tudo que vemos, com a terra
sobre que caminhamos, com a substância de
que é feita a nossa casa, ou com os milhares
de outros objetos que podem formar o mun-
do do espírito, viveríamos em constante es-
tado de surpresa. E mesmo assim ter-se-ia
revelado aos nossos olhos uma pequena i-
déia — apenas uma pequeníssima idéia — da
magnitude da Grande Mente — da Maior
Mente do Universo — que mantém este e
todos os outros mundos. Realmente, quando
os cientistas da terra aqui vêm viver, desco-
brem um mundo completamente novo, no
qual têm que começar novas pesquisas. Não
211
perderam contudo aquela grande experi-
ência terrena. E que alegria ao compararem
seus dados em companhia de seus colegas,
ao catalogarem novos conhecimentos, traba-
lharem em benefício de novas descobertas.

Depois de apalparmos a areia quisemos


mergulhar nossas mãos no mar. Rute espe-
rava sentir gosto de sal, mas sua surpresa foi
grande ao verificar que tal não era verdade.
Era mar apenas no nome, devido à quanti-
dade de areia, e às características das terras
adjacentes. Sob todos os outros aspectos
assemelhava-se aos ribeirões e aos lagos. Na
aparência geral o efeito de conjunto era in-
teiramente diverso do oceano da terra, devi-
do, entre outras coisas, ao fato de não haver
sol para dar-lhe apenas um quarto de luz e
causar-lhe aquelas mutações de aspectos
quando ele muda de direção. Aqui a luz é
espalhada uniformemente, de uma fonte
central, que é imutável e constante. Temos
dia perpétuo, mas isso não quer dizer que
essa imobilidade se torne monótona. Há va-
212
riações o tempo todo; mudanças de co-
res, com que o homem jamais sonhara, e
que só os olhos espirituais podem apreciar,
por serem olhos psíquicos.

Desejávamos muito visitar uma das ilhas que


se viam ao longe, e Rute achou que seria
uma experiência agradável viajar pelo mar
numa daquelas esplêndidas embarcações
próximas da praia. Surgiu a dificuldade de
como poderiam ser usadas, uma vez que
eram particulares; mas Edwin, ao ver a ansi-
edade de Rute, lembrou que um deles per-
tencia a um amigo. Mesmo que assim não
fosse seríamos bem-vindos a qualquer um,
bastando nos apresentar a quem se achasse
a bordo — isto se quiséssemos respeitar essa
formalidade. Edwin chamou nossa atenção
para um belo iate ancorado perto da praia.
Era de linhas graciosas, e prometia ser veloz
e possante.

Em resposta à mensagem de Edwin, enviada


através das águas, recebemos imediato con-
213
vite para subirmos a bordo, o que fize-
mos sem perda de tempo. Fomos recebidos
com grande alegria pelo proprietário que nos
levou a conhecer sua esposa. Ela era encan-
tadora e podia-se ver que ambos formavam
um par ideal. Sabedores de que éramos re-
cém--chegados estavam ansiosos por nos
mostrar o barco.

Às primeiras observações reparamos que


faltavam muitos dos aparelhos e partes es-
senciais aos barcos da terra. Coisas indispen-
sáveis, como a âncora, por exemplo. Não
havendo ventos, correntes ou marés, nas
águas espirituais, uma âncora é supérflua,
apesar de nos dizerem que alguns proprietá-
rios de barcos as possuem apenas como or-
namento, sem o qual não acham suas em-
barcações completas. Havia enorme espaço
no tombadilho, e uma copiosa provisão de
confortáveis cadeiras. Embaixo, salões bem
decorados. Mas Rute estava desapontada
por não ter deparado com nenhuma evidên-
cia de força motriz para impelir a embarca-
214
ção, e naturalmente concluiu que o iate
era incapaz de movimento independente. Eu
partilhava seu desapontamento, mas Edwin
tinha um brilho malicioso no olhar, o que já
me devia ter feito ver que aqui as coisas não
são como na terra. Nosso anfitrião. tinha
captado nossos pensamentos e imediata-
mente nos levou à casa do leme. Qual não
foi nosso espanto ao ver que estávamos nos
afastando da praia, lenta e suavemente! Os
outros riam alegremente do nosso embaraço,
e corremos para a amurada para vermos o
movimento na água. Não havia engano, es-
távamos de fato em movimento, e aumen-
tando a velocidade à medida que avançáva-
mos. Retornamos à casa do leme e solicita-
mos a explicação imediata daquele aparente
passe de mágica.

X. UMA VISITA

Nosso hospedeiro nos contou que o poder do


pensamento é quase ilimitado no mundo dos
espíritos, e que quanto maior o esforço de
215
concentração de idéias, maiores os resul-
tados.

Nossos meios de locomoção pessoal são fei-


tos através de pensamentos, e podemos a-
plicar esses mesmos métodos ao que o
mundo chama de objetos inanimados. É cla-
ro que nestes reinos nada é inanimado, e por
isso nossos pensamentos podem ter uma
influência direta sobre as inúmeras coisas
que compõem o mundo espiritual. As embar-
cações podem flutuar e mover-se sobre as
águas; elas são animadas pela força viva que
anima todas as coisas aqui e, se desejamos
mover-nos sobre a água, temos apenas que
focalizar nossa mente nessa direção, com
essa intenção, e nossos pensamentos produ-
zem o resultado desejado de movimento.
Poderíamos, se desejássemos, pedir aos a-
migos cientistas que nos fornecessem es-
plêndidas máquinas geradoras de força mo-
triz, e eles teriam prazer em nos atender.
Mas teríamos então que focalizar nossos
pensamentos sobre a máquina, para fazê-la
216
gerar a necessária força. Por que, pois,
fazer todos esses rodeios para produzir o
mesmo resultado, quando podemos fazê-lo
diretamente e com a mesma eficiência?

Mas não se deve concluir disso que alguém


possa mover um barco através das águas, só
com o pensar. Isso requer, como tantas ou-
tras coisas, a sabedoria necessária, sua apli-
cação em linhas bem ordenadas e a prática
da arte. A aptidão natural ajuda muito nes-
ses casos, e nosso anfitrião nos disse que em
pouco tempo dominou a questão. Uma vez
atingida essa habilidade, sentimos uma e-
norme sensação de poder bem aplicado, e
não apenas de poder, mas de poder de pen-
samento, de maneira única e talvez inacredi-
tável. Perfeito como tudo o mais neste reino,
o movimento de um objeto tão grande como
este barco ilustra e aumenta a maravilha da
vida espiritual. Nosso anfitrião explicou que •
isto era apenas seu ponto de vista pessoal, e
não devia ser tomado como axioma. Seu en-
217
tusiasmo era aumentado pelo seu amor à
água e aos navios.

Notamos que ele manobrava o barco da ma-


neira usual, com um leme operado por uma
roda do tombadilho. Já achava bastante ter
que prover a força para mover o barco. Se o
desejasse poderia combinar as duas ações
em uma só.

Mas preferia o velho método de guiar à mão,


pelo prazer que o trabalho físico lhe propor-
cionava. Uma vez dado o movimento ao na-
vio, podia esquecer-se disso até desejar pa-
rar. Ao simples desejo de parar, fosse repen-
tina ou gradualmente, o barco parava imedi-
atamente, e sem perigo algum de acidentes,
que não podem existir nestas paragens.

Enquanto ele nos explicava isto a mim e a


Rute, Edwin estava entretido em conversar
com a esposa do hospedeiro. Nossa veloci-
dade havia aumentado até um andamento
estável, e movíamo-nos na direção de uma
218
das ilhas. O iate deslocava-se sem oscila-
ção, mas podia se perceber o movimento das
águas, enquanto as ondas apartadas pela
quilha produziam os mais harmoniosos sons,
e as mais belas tonalidades surgiam da água
agitada. Observamos que na nossa esteira a
água rapidamente voltava à posição antiga,
não deixando sinais de que tivéssemos pas-
sado por ela.

Rute ficou simplesmente extasiada e correu


para nossa hospedeira, no ardor de suas no-
vas experiências. Esta, que compreendia
bem o entusiasmo da jovem amiga, partilha-
va seu contentamento. Apesar de nada aqui
lhe ser novidade, ela disse que nunca deixa-
va de se admirar, mesmo familiarizada com o
navio-lar, com as gloriosas belezas e praze-
res dispensados aos moradores das terras
espirituais.

Estávamos então suficientemente próximos


da ilha para poder vê-la completamente, e o
barco alterou seu ramo para bordejá-la. De-
219
pois de assim navegar por algum tempo,
entramos numa pequena baía que formava
um pitoresco porto natural.

A ilha correspondeu à nossa expectativa em


beleza cênica. Não havia muitas habitações;
as que podiam ser vistas eram apenas resi-
dências de verão. Mas a principal caracterís-
tica do lugar era a quantidade de árvores,
nenhuma alta, mas todas de vigoroso desen-
volvimento. Viam-se nos galhos os mais be-
los pássaros, cuja plumagem era uma orgia
de cores. Alguns voavam, outros passeavam
majestosamente pelo chão. E não se atemo-
rizavam conosco. Acompanhavam-nos se
estivéssemos andando; e se estendíamos os
braços, os menores se empoleiravam nos
dedos. Pareciam conhecer-nos, e saber que
seria absolutamente impossível que os mal-
tratássemos. Não tinham que viver em cons-
tante busca de alimentos nem se defender
contra o que na terra seriam os seus inimi-
gos naturais. Eram, como nós, parte do
220
mundo eterno do espírito, gozando sua
vida eterna, como nós o fazíamos.

Os pássaros de mais colorida plumagem e-


ram evidentemente da espécie que vive na
floresta tropical, e raramente vistos, até che-
garmos ao mundo espiritual. Pela perfeita
adaptação de temperatura podiam eles viver
tão bem quanto os de aparência menos es-
petacular. E, em grande harmonia, cantavam
e chilreavam, numa verdadeira sinfonia.
Nunca se ouvira tamanha exaltação sonora:
cada som se confundia, de maneira extraor-
dinária, com todos os outros; e mesmo as-
sim, não eram estridentes embora o canto
de alguns passarinhos fosse bastante alto.
Mas o que mais nos embevecia era a amiza-
de pura e verdadeira que demonstravam em
relação a nós — fato inédito, pois na terra os
pássaros vivem, pode-se dizer, num mundo
diferente do dos homens. Aqui, porém, todos
pertencíamos a um só mundo livre, e a com-
preensão entre nós e os pássaros era recí-
proca. Quando lhes falávamos sentíamos que
221
compreendiam o que dizíamos, da mes-
ma sutil maneira que nós podíamos compre-
ender o que eles diziam.

Nossos amigos, é claro, já haviam passado


por tudo isso anteriormente, mas para mim e
Rute, era uma nova e maravilhosa experiên-
cia. Quando ponderei sobre essa questão, vi
que, se tivesse raciocinado logo perguntaria:
por que haveria Deus de criar pássaros e
coisas belas apenas para uso da terra? E por
que fazê-los sempre perecíveis? Deveriam
ser negadas ao grande mundo do espírito as
coisas belas que a terra desfruta? Tínhamos
a resposta diante dos olhos. É próprio da
presunção e auto-importância do homem
pensar que a beleza seja criada para seu
exclusivo prazer na terra. Julga ele ter o mo-
nopólio da beleza. Quando morre, desperta
para o fato de que na realidade nunca viu
ainda quão grande pode ser a beleza, e tor-
na-se então humilde e silencioso, talvez pela
primeira vez na vida. Ê uma lição salutar, o
222
despertar do espírito, e acredite, meu
amigo, às vezes é um choque para muita
gente.

A profusão de cores de todos os pássaros à


nossa volta era demais para ser vista de uma
só vez. Ultrapassa qualquer descrição, e se-
ríamos incapazes de dá-la. Passeamos atra-
vés de bosques deliciosos, passamos por
murmurantes riachos, através de clareiras de
veludo verde, como num verdadeiro reino
encantado. Encontramos no caminho várias
pessoas, que ao ver-nos cumprimentavam-
nos amistosamente. Mostravam-se felizes
entre os pássaros. Disseram-nos que esta
parte da ilha era dedicada exclusivamente
aos pássaros, e que nenhuma outra forma
de vida animal se intrometia aqui. Não por-
que seja perigoso — isso é impossível — mas
porque as aves são mais felizes com a pró-
pria espécie.

Afinal retornamos ao iate e fizemo-nos ao


mar de novo. Estávamos curiosos para saber
223
onde nosso anfitrião havia adquirido seu
lar flutuante. Tal engenho náutico requer
peritos para planejá-lo e outros tantos para
construí-lo. Disse--nos ele que um barco de-
pendia das mesmas condições que nossas
casas espirituais, ou qualquer outro edifício.
O requisito é que ganhemos o direito de pos-
suí-lo. Isso já sabíamos. O que acontece po-
rém às pessoas que na terra desenhavam e
construíam botes, como meio de vida ou
como passatempo? Neste último caso princi-
palmente, eles teriam que abandonar suas
tarefas prediletas? Não, aqui todos têm mei-
os e motivos para continuá-las, quer por pra-
zer, quer por trabalho.

A arte de construir uma embarcação é alta-


mente técnica, e os métodos do mundo espi-
ritual, diferentes dos da terra, precisam ser
dominados. Mesmo que adquiramos o direito
de possuir, no mundo espiritual, teremos
sempre o auxílio dos amigos na construção
do edifício atual. Podemos criar em nossas
mentes, quando na terra, o formato daquilo
224
que ambicionamos ter — uma casa, um
jardim, ou o que quer que seja. Será então
um pensamento-forma, e será convertido
naquilo que desejamos, com o auxílio de pe-
ritos.

Nossa volta foi tão aprazível quanto a ida.


Quando chegamos à terra, nosso anfitrião
nos fez um convite para irmos visitá-lo a
bordo, sempre que o desejássemos.

Quando caminhávamos pela praia, Edwin nos


fez lembrar do grande prédio no centro da
cidade, dizendo-nos que em breve haveria
uma visita dos planos superiores, e por isso
grande concentração se formaria no templo
que terminava em cúpula. Gostaríamos de ir
com ele? Não era de forma nenhuma um ato
específico de adoração a esse visitante. Coi-
sas como adoração não requerem esforço
consciente (vêm espontaneamente do cora-
ção) mas o nosso visitante traria consigo não
só sua própria radiação, como a radiação das
esferas celestiais que ele honrava. Imedia-
225
tamente expressamos o desejo de acom-
panhar Edwin, visto que não nos aventurarí-
amos a ir sós; e além disso estávamos sob a
direção do nosso amigo.

Ao longo da larga avenida arborizada, nota-


mos que fazíamos parte de um grande nú-
mero de pessoas que caminhavam numa
mesma direção e aparentemente com as
mesmas intenções. É estranho, mas não ha-
via a confusão própria das grandes aglome-
rações terrenas. Era uma sensação extraor-
dinária, que Rute compartilhava comigo.
Temíamos o costumeiro empurrar e acotove-
lar das multidões na terra, mas logo caímos
em nós e nos rimos de que pudéssemos ter
tido aqui tal idéia, por um momento sequer.
Sentimos que tudo estava em perfeita or-
dem, que todos sabiam o que fazer e aonde
ir. Sentimos que nos aguardavam, pelo apoio
que lhes daríamos, e que boas-vindas pesso-
ais nos esperavam. Não era isto suficiente
para afastar toda sensação de inquietação e
desconforto?
226
Havia, além disso, uma unidade de pen-
samento entre nós, que não é possível na
terra, mesmo entre aqueles que têm as
mesmas crenças religiosas. Que religião exis-
te em que todos os adeptos são inteiramente
da mesma opinião? Nenhuma. Acha-se es-
sencial na terra que, para dar graças ao Ente

Supremo, ou para adorá-lo, deve haver um


ritual complexo, formulários e cerimônias dos
quais há tanta diversidade de opiniões,
quantas são as religiões.

Aqui temos templos onde podemos receber


os grandes mensageiros dos reinos superio-
res, lugares apropriados para receber os re-
presentantes do nosso Pai, e de onde esses
mensageiros podem enviar graças e petições
à Grande Nascente de tudo. Não adoramos
cegamente como na terra.

Ao aproximarmo-nos do templo já podíamos


nos sentir carregados de força espiritual.
Edwin nos contou que isso acontecia sempre,
227
porque o imenso poder trazido pelos al-
tos visitantes permanecia intacto dentro de
um amplo círculo ao redor do templo. Era
por esta razão que ele se achava isolado,
sem outras construções nas proximidades.
Apenas jardins o rodeavam — um mar de
flores, estendendo-se a perder de vista, e
apresentando tal abundância de cores bri-
lhantes, como a terra jamais pôde ver. E de
tudo emanavam os mais celestiais sons de
música e os mais delicados perfumes, cujo
efeito era a mais pura exaltação de espírito.
Sentimo-nos elevados acima de nós mesmos,
e num outro mundo.

O edifício em si era magnífico e grandioso.


Parecia feito do mais fino cristal, mas não
era transparente. Pilares maciços brilhavam
ao sol, ao mesmo tempo que as esculturas
cintilantes espargiam por toda parte miríades
de reflexos brilhantes. Nunca julguei possível
haver semelhantes brilhos, porque as super-
fícies polidas não só refletiam a luz comum,
228
mas emanava delas também uma luz
espiritual.

Edwin conduziu-nos aos lugares que deviam


ser nossos, e que já nos pareciam familiares,
como alguma poltrona predileta em nosso
lar.

Acima de nós erguia-se a cúpula enorme, de


ouro, maravilhosamente trabalhada, que re-
fletia as cores das outras partes do edifício.
Mas o foco das atenções era o santuário de
mármore — palavra que uso, na falta de me-
lhor — no fim do templo. Tinha um balaus-
trada baixa com uma saída central no topo
de uma escada que conduzia ao solo. Podi-
am-se ouvir notas musicais, mas de onde
vinham, eu não sabia. Não se viam músicos,
mas a melodia era evidentemente produzida
por uma grande orquestra — de cordas so-
mente.

O santuário, que era de dimensões espaço-


sas, estava repleto de seres dos planos supe-
229
riores, com exceção de um espaço no
centro, que eu supunha reservado ao nosso
visitante. Estávamos todos sentados, e con-
versava-se calmamente. Dali a pouco aper-
cebemo-nos da presença da majestosa figura
de um homem de cabelos cor de azeviche,
seguido de perto — para grande surpresa
minha — pelo bondoso egípcio que encontrá-
ramos na casa de Edwin. Para aqueles que já
haviam testemunhado tais visitas, a chegada
de ambos foi a indicação da vinda da alta
personalidade, e portanto todos se puseram
de pé. Então, perante nossos olhos, apare-
ceu primeiro uma luz, que poderíamos dizer
ofuscante; mas, concentrando o olhar, ime-
diatamente nos acostumamos a ela, sem
sentir desconforto. Na verdade, como desco-
bri mais tarde, a luz é que se adaptava a
nós, isto é, diminuía de intensidade de acor-
do com nosso reino. Nas extremidades era
quase dourada, tornando-se mais brilhante à
medida que se aproximava do centro. E no
meio, vagarosamente, ela tomou a forma do
230
nosso visitante. Ao ganhar corpo podía-
mos ver que era um homem de aparência
jovem, — juventude espiritual — mas sabía-
mos que ele arcava com os três atributos de
Sabedoria, Conhecimento e Pureza. Seu
semblante irradiava transcendente beleza, os
cabelos eram dourados, e em torno de sua
cabeça brilhava um diadema de luz. Suas
vestimentas eram da mais diáfana qualidade,
e consistia em alva túnica bordada com uma
larga barra dourada, enquanto dos ombros
caía um manto de azul cerúleo, preso no pei-
to por uma grande pérola rósea. Seus movi-
mentos eram majestosos ao erguer os bra-
ços para nos abençoar. Permanecemos de pé
e silenciosos, enquanto nossos pensamentos
se elevavam para Aquele que nos enviava
tão maravilhoso ser. Enviamos graças e peti-
ções. Para mim, eu tinha um pedido a fazer,
e fi-lo.

Não me é possível descrever a exaltação de


espírito que eu sentia na presença, embora
distante, daquele nosso hóspede. Não sei
231
quanto tempo eu pude permanecer na-
quele templo sem sentir a esmagadora cons-
ciência de que eu era muito, muito ínfimo,
na escala da evolução espiritual. E no entan-
to eu sabia que ele me enviava, como a to-
dos, pensamentos de encorajamento, de boa
esperança, de bondade no mais alto grau, o
que me fez sentir que nunca devia desespe-
rar de atingir o reino espiritual mais elevado,
e que havia útil trabalho para eu prestar aos
homens.

Com uma bênção final aquele resplendente


ser desapareceu de nossas vistas.

Permanecemos sentados um pouco, e gra-


dualmente o templo começou a esvaziar-se.
Eu não sentia vontade de me mover e Edwin
disse que podíamos ficar quanto quisésse-
mos. O recinto estava, portanto, quase vazi-
o, quando vi o egípcio se aproximar de nós.
Cumprimentou-nos efusivamente e pediu-me
para o acompanhar, visto que me queria a-
presentar ao seu Mestre. Agradeci-lhe o inte-
232
resse, e qual não foi o meu espanto
quando me conduziu à presença do homem
com quem estava no santuário. Só o vira de
meu lugar, mas perto dele podia admirar um
par de olhos negros coruscantes que combi-
navam com seus cabelos, e que eram mais
acentuados pelo contraste com a palidez de
sua cútis. As cores de sua vestimenta eram
azul, branco e ouro, e apesar de serem de
qualidade superior, não tinham a intensidade
das do visitante principal. Tive a impressão
de estar na presença de um homem muito
sábio, o que era verdade, e também de
grande senso de humor. É preciso nunca se
esquecer de que graça e humor não são, e
nunca serão, prerrogativa dos habitantes da
terra, embora muitos queiram reclamar para
si o seu monopólio, e negar nossa alegria
jovial. Continuaremos a rir, a despeito da
possível desaprovação deles.)

O amável egípcio apresentou-me a seu mes-


tre, e este me tomou a mão e sorriu de tal
maneira que afastou de mim, completamen-
233
te, qualquer acanhamento. Na verdade
ele irradiava autoconfiança e nos deixava
inteiramente à vontade. Podia-se chamá-lo,
sem desrespeito, de perfeito anfitrião. Quan-
do me falou, sua voz era agradavelmente
modulada e suave. Suas palavras me enche-
ram de alegria e ao mesmo tempo de espan-
to: — "Meu bem-amado Mestre, que acabais
de ver, me manda dizer que vossa oração foi
atendida, e vossos desejos realizados. Não
temais, porque aqui as promessas feitas são
sempre cumpridas". Disse-me então que me
seria pedido um certo tempo de espera, por-
que era necessário que uma corrente de a-
contecimentos tivesse lugar antes de as exa-
tas circunstâncias serem realizadas. O tempo
logo passaria, e enquanto isso eu podia con-
tinuar meu trabalho com os amigos. Se al-
guma vez desejasse conselhos, meu bom
amigo Edwin poderia visitar o amigo egípcio,
cujas orientações estariam ao meu dispor.
Deu-me, então, sua bênção, e achei-me so-
zinho, só com meus pensamentos, e com a
234
recordação duradoura da fragrância ce-
lestial do nosso resplendente visitante.

Reuni-me a Rute e Edwin, a quem contei da


minha felicidade. Ambos rejubilaram-se às
minhas boas notícias. Sentia agora vontade
de voltar à minha casa, e perguntei a eles se
me acompanhariam. Para lá nos dirigimos, e
fomos diretos à biblioteca. Numa das prate-
leiras havia um livro especial que eu escreve-
ra ainda na terra, e que desejaria nunca ter
escrito. Removi o volume da prateleira, dei-
xando o espaço vazio. De acordo com a mi-
nha oração eu deveria preencher aquele es-
paço com outro livro, escrito depois de ser
espírito, o produto de minha mente após ter
visto a verdade.

De braços dados, caminhamos para o enso-


larado jardim — e para o celestial sol da e-
ternidade.
235

SEGUNDA PARTE

UM MUNDO DESCONHECIDO

I. As FLORES

Depois de ter passado a espírito, uma das


minhas primeiras experiências foi a consciên-
cia de uma sensação de tristeza, não minha,
porque me sentia supinamente feliz, mas dos
outros, e ficava intrigado por saber de onde
provinha.

Edwin me contou que essa tristeza se eleva-


va do mundo terreno, e era causada pela dor
do meu passamento. Logo cessou, entretan-
to, e ele me informou que o esquecimento já
principiava a chegar. Esta experiência só,
meu bom amigo, é de molde a produzir sen-
timentos de humildade, se não existia antes.

Eu, asseguro-lhes, dava pouca importância à


popularidade. A descoberta, portanto, de que
a minha memória se apagava rapidamente
236
das mentes de pessoas da terra, não me
magoou nem um pouco. Eu havia escrito e
pregado para que fizessem o bem, e esse,
via agora, era microscópico. Disseram-me
que muitas pessoas que estavam nas graças
do público quando vivas, descobriram, quan-
do se desfizeram de seus corpos, que a fama
e o prestígio não os acompanharam ao mun-
do espiritual. Desaparecera a admiração que
havia sido sua experiência diária. Natural-
mente que entristecera essas pessoas o dei-
xar para trás sua importância e isso dava-
lhes uma sensação de solidão, tanto mais
que, além disso, o mundo rapidamente se
esquecia delas.

Minha própria reputação terrena não fora


muito grande, mas conseguira certa posição
entre meus correligionários.

Minha transição fora calma e pacífica, e sem


circunstâncias inesperadas. Não foi um golpe
ter que deixar o mundo. Não tivera ligações
a não ser com meu trabalho. Edwin me falou
237
a respeito de outros cuja morte foi ex-
tremamente infeliz, e cujo estado espiritual à
chegada aqui era mais infeliz ainda. Muitos,
que eram grandes na terra, se acharam di-
minuídos em espírito. E muitos, desconheci-
dos na terra, aqui se viram espiritualmente
tão famosos que ficaram estupefatos. Não
são todos, de maneira nenhuma, que estão
destinados aos belos reinos do sol e verão
eternos.

Já lhes dei uma idéia dos reinos da obscuri-


dade e semi-obscuridade, onde tudo é árido
e triste, onde habitam as almas que podem
se elevar acima das trevas, se assim o dese-
jarem e lutarem. Existem muitos que passam
sua eternidade visitando essas obscuras re-
giões, para tentar arrancar esses infelizes à
sua miséria, e pô-los no caminho da luz e do
progresso espiritual.

É meu privilégio ir com Edwin e Rute a essas


regiões além da névoa que as separa da luz.
Não tenho a intenção de os levar ainda a
238
essas regiões de miséria e infelicidade.
Mais tarde espero contar-lhes algumas das
minhas experiências. Por enquanto há outros
e mais agradáveis assuntos de que prefiro
falar.

Há muitas almas no plano terrestre que ten-


tam aprofundar os inúmeros mistérios da
vida. Propõem teorias das mais diversas,
tentando explicar isso ou aquilo, teorias que
com o correr do tempo podem vir a constituir
grandes verdades. Algumas dessas hipóteses
são tão remotas da verdade como é possível
imaginar, outras, são meramente tolices.
Mas há também pessoas que recusam pen-
sar por si sós e que firmemente mantêm a
crença de que enquanto são encarnadas não
precisam saber coisa alguma da vida que
está à sua espera. Afirmam que não é inten-
ção de Deus que saibam tais coisas, e que
quando chegarmos a espíritos saberemos
tudo.
239
Há dois extremos de idéias — as dos teo-
ristas e as dos partidários da porta fechada.
Ambas as escolas recebem duros golpes,
quando entram nas terras espirituais para
todo o sempre. Indivíduos com estranhas
teorias, vêem-nas demolidas pelo simples
fato de encararem agora a absoluta verdade.
Descobrem que a vida no espírito não é tão
complexa como diziam. Em muitos casos é
bem mais simples do que na terra, porque
não temos os problemas que constantemen-
te preocupam e afligem os terrenos, proble-
mas de religião e política, por exemplo, que
através dos tempos têm causado revoluções
sociais que ainda têm repercussão no mundo
terreno do momento presente.

O estudante de ciências ocultas está arrisca-


do a cair em erros, tanto como o estudante
de assuntos religiosos. ele faz afirmativas tão
dogmáticas quanto as que emanam da reli-
gião ortodoxa, afirmações essas que estão
bem longe da verdade.
240
O período em que vivi no mundo espiri-
tual é nada — absolutamente nada — em
comparação com algumas das grandes almas
com quem tive o privilégio de falar. Mas elas
mostraram-me algo das suas vastas reservas
de conhecimentos, coisas que minha mente
era incapaz de compreender. De resto, eu —
assim como milhões de outros — estou per-
feitamente satisfeito em esperar pelo dia em
que minha inteligência esteja suficientemen-
te adiantada para receber as maiores verda-
des.

Um assunto que causa alguma perplexidade


refere-se às flores que temos no mundo dos
espíritos. Alguns dirão: por que flores? Qual
o seu significado ou fim? Têm elas alguma
significação simbólica?

Façamos a mesma pergunta aos terrestres


referente às flores que crescem na terra.
Têm elas algum significado simbólico? A res-
posta a ambas é Não! As flores são dadas m
241
à terra para auxiliar a embelezá-la e para
deleite e encantamento daqueles que as ad-
miram. O fato de que elas servem outros fins
úteis é mais uma razão para a sua existên-
cia. As flores são essencialmente belas, ali-
mentadas pelo Supremo Criador, dadas a
nós como um dom precioso, exibindo-nos
sua coloração, seus formatos, e perfumes,
numa expressão infinitesimal da Grande
Mente. Vocês têm esta glória no plano ter-
restre. Teremos nós que .ser privados delas
no mundo espiritual porque são consideradas
terrenas ou porque nenhum significado pro-
fundo e abstruso pode ser dado à sua exis-
tência?

Temos aqui as mais lindas flores, algumas,


como as familiares e queridas da terra, ou-
tras, conhecidas apenas no mundo espiritual,
mas todas são soberbas, são a alegria perpé-
tua daqueles a quem elas rodeiam. São cria-
ções divinas, cada uma exalando o puro háli-
to espiritual e sustentadas pelo seu Criador e
por nós todos, pelo amor que lhe ofertamos.
242
Se não as quiséssemos — suposição im-
possível — elas seriam varridas da terra. E
que teríamos em seu lugar? E quem fornece-
ria a riqueza de cores que vem delas?

Quando somos apresentados pela primeira


vez às flores e árvores, a toda a sua luxuri-
ante natureza espiritual, percebemos imedia-
tamente algo que a natureza terrena nunca
pareceu possuir, isto é, uma inteligência ine-
rente dentro de todas as coisas que crescem.
As flores terrenas, apesar de vivas, não se
manifestam imediatamente quando nos po-
mos em contato com elas. Mas aqui é dife-
rente. As flores espirituais são imperecíveis e
isso deveria imediatamente sugerir que há
mais do que vida dentro delas. São parte da
imensa corrente de vida que flui diretamente
d'ele. Essa corrente nunca cessa nem diminui
e é, além disso, continuamente alimentada
pela admiração e amor que nós, gratamente,
lhes dedicamos. Não podemos deixar de ficar
maravilhados, quando seguramos a mais
minúscula flor entre as mãos e sentimos ta-
243
manho influxo de poder magnético, tanta
força revigorante, tal refortalecimento de
todo o nosso ser, e quando ficamos sabendo,
em verdade, que essas forças reanimadoras
nos vêm diretamente da Fonte de todos os
bens. Não, não há outro significado por de-
trás das flores espirituais além daquela bele-
za exprimida pelo Pai do Universo, e, por
certo, isso é bastante. ele não deu nenhum
estranho simbolismo às suas criações impe-
cáveis. Por que o faríamos nós?

A maioria das flores não se devem apanhar.


Isso é destruí-las, é destruir o contato direto
com o Criador. É possível colhê-las, certa-
mente; nenhuma calamidade desastrosa nos
advém por isso. Mas quem quer que as apa-
nhe certamente o lamentará profundamente.
Pensem em algum pequeno objeto que pos-
suam e prezem acima de tudo, e pensem
depois em destruí-lo deliberadamente. Cau-
saria extrema tristeza fazê-lo, embora a per-
da pudesse ser insignificante. Tal seria sua
244
emoção quando impensadamente destru-
ísse flores que não devem ser apanhadas.

Mas há flores, e muitas, expressamente para


serem colhidas, e muitos o fazem, levando-
as para suas casas como fazemos na terra, e
pelas mesmas razões.

Essas flores apanhadas sobrevivem por


quanto tempo quisermos conservá-las.
Quando nosso interesse por elas começa a
desvanecer, rapidamente se desintegram.
Não haverá restos murchos desagradáveis à
vista, porque não pode haver morte na terra
da vida eterna. Simplesmente notamos que
nossas flores desapareceram e podemos tro-
cá-las então por outras, se o desejarmos.

II. O SOLO

Para se ter uma idéia adequada do solo so-


bre o qual caminhamos, e no qual se erguem
nossas casas e edifícios, precisam-se varrer
da mente todas as concepções mundanas.
245
Em primeiro lugar, não temos estradas
como são conhecidas na terra. Temos largas
ruas em nossas cidades, mas não são pavi-
mentadas com substância composta que lhes
dê dureza e durabilidade para suportar o
movimento constante de tráfego. Não temos
trânsito, e nossas estradas são cobertas da
mais espessa grama, tão macia ao pisar co-
mo um canteiro de musgo fresco. É nesse
tapete que caminhamos. A grama nunca vai
além do estabelecido para uma boa orna-
mentação e no entanto ela continua viva.
Mantém-se sempre no mesmo nível prático,
perfeita para caminhar e perfeita na aparên-
cia.

Nos lugares em que caminhos menores são


necessários, e onde a grama não seria ade-
quada, vê-se então a pavimentação costu-
meira do mundo terreno, mas de material
diferente. Pode-se dizer que é de pedra,
sem, porém, a característica cor cinza opaca.
Parece muito com alabastro, de que a maio-
ria dos prédios são construídos. As cores va-
246
riam, mas todas possuem delicados tons
pastel.

Como sobre a grama, é muito agradável an-


dar sobre a pedra, embora, naturalmente,
não seja esta tão macia. Mas existe aí certa
propriedade, certa elasticidade, se assim po-
demos dizer, algo como a consistência mole
de algumas madeiras terrenas utilizadas para
os assoalhos. Esta é a única maneira de dar
uma idéia sobre a diferença entre a pedra
terrena e a pedra espiritual.

Não há, é claro, qualquer descoloração feia


na superfície dos calçamentos. Conservam
sempre sua beleza inicial. Muitas vezes os
pavimentos revelam um emaranhado de
magníficos desenhos formados pelo uso de
diferentes materiais coloridos e que combi-
nam harmoniosamente com o ambiente.

Ao aproximarmo-nos dos limites dos reinos


superiores, o chão se torna mais translúcido
e parece perder a aparência sólida, apesar
247
de continuar a ser sólido ainda. Mas ao
aproximarmo-nos dos reinos inferiores, os
pavimentos tornam-se de aparência pesada,
começam a perder a antiga cor até ficarem
opacos e plúmbeos, e parecem-nos de ex-
trema solidez, quase como o granito terreno.

À volta de nossas casas temos gramados e


árvores entremeados de caminhos de pedra,
semelhante à que acabei de descrever. Terra
nua, porém, vê-se muito pouco ou nenhuma.

Na verdade não me lembro de ter visto al-


gum terreno baldio, porque aqui não há des-
leixo, indiferença ou indolência.

Quando ganhamos o direito de possuir nosso


lar espiritual, passamos a ter também dentro
de nós o constante desejo de manter e me-
lhorar sua beleza. E isso não é muito difícil
de realizar visto que a beleza responde e
floresce de acordo com a apreciação que se
faz dela. Quanto mais atenção e reconheci-
mento lhe dermos maior será sua resposta; a
248
beleza espiritual não é abstrata mas uma
força real e viva.

A vista de meu lar é de campos verdejantes,


casas encantadoras situadas entre aprazíveis
bosques e jardins, e com uma vista longín-
qua da cidade. Mas em parte alguma se vê-
em terras áridas ou nuas. Cada polegada que
se vê é cuidada, de maneira que a paisagem
toda é um deslumbramento de cor, desde o
brilhante verde-esmeralda da grama, até as
multicoloridas flores dos jardins, coroando
todo o azul celestial acima de nós.

Perguntamo-nos de que é composto o solo


no qual as flores e árvores estão crescendo
— é alguma espécie diferente de terra? O
solo existe, é claro, mas não tem o mesmo
conteúdo mineral que constitui o solo terre-
no, porque é preciso compreender que a vi-
da aqui deriva diretamente da Grande Fonte.
O solo varia na cor e densidade em diferen-
tes localidades da mesma maneira que na
terra. Não a investiguei pormenorizadamen-
249
te, mas posso entretanto dar uma pe-
quena idéia de sua aparência e característi-
cas. Em primeiro lugar, ela é perfeitamente
seca — não pude achar nenhum traço de
umidade. Descobri que escorre por entre os
dedos da mesma maneira que a areia. Sua
cor varia mas nunca se aproxima da pesada
cor escura do solo terreno. Em alguns luga-
res é de formação granular mais fina, en-
quanto noutros é mais grossa — isto é, rela-
tivamente.

Uma das propriedades inesperadas deste


solo é o fato que, embora possa correr macia
e livremente pela mão, quando não tocado
permanece inteiramente ligado, suportando
tão firmemente quanto a terra comum tudo
quanto é cultivado nela.

A cor da terra é governada pela cor da vida


botânica que nutre. Mas aqui também não
há especial significado, nem profunda razão
simbólica para este estado de coisas. Sim-
plesmente a cor do solo é complemento da
250
cor das flores e árvores, e o resultado é,
como não podia deixar de ser, de inspiradora
harmonia.

Certamente que este mundo do espírito não


é constituído de uma série de profundos e
complexos mistérios, explicáveis apenas a
alguns. Há mistérios, sim, como os há no
plano terrestre. E assim como lá existem
grandes cérebros que podem solver esses
problemas, aqui também os há, e muito
maiores, que podem dar explicações, desde
que nossos intelectos estejam prontos para
recebê-las e compreendê-las.

Mas muita gente na terra acredita sincera-


mente que nós no espírito vivemos em con-
tínuo estado de fervorosa emoção religiosa,
e que cada forma e grau de atividade pesso-
al, cada átomo de que é composto o grande
mundo espiritual, deve ter algum significado
devocional e piedoso. Tal idéia é tola e muito
aquém da verdade. Procure através do mun-
do terreno: é capaz, de encontrar idéias as-
251
sim tão absurdas ligadas à multiplicidade
da vida que jaz dentro dele? Não há signifi-
cado religioso num maravilhoso pôr do sol.
Por que haveriam nossas flores espirituais de
ter qualquer outra razão de existir senão a
que eu já dei, isto é, um magnífico dom do
nosso Pai, para nosso maior gozo e felicida-
de?

Há ainda muitos outros na terra que solene-


mente afirmam, como uma cláusula de fé,
que o paraíso, como o chamam, será um
contínuo cantar de hinos e cânticos espiritu-
ais. Nada seria mais fantástico. O mundo
espiritual é um mundo de atividade, não de
indolência, um mundo de utilidade e não um
mundo inútil. Há sempre uma razão sã e um
fim para tudo. Nem a razão nem o fim po-
dem ser visíveis a todos desde o começo,
mas isso não altera a verdade.

O tédio não tem lugar aqui. Miríades de tare-


fas a serem executadas — e miríades de al-
mas para executá-las — mas há sempre lu-
252
gar para mais uma, e será sempre assim.
Não vivemos nós num inundo ilimitado?

Não vivemos num país que tem aparência de


um Eterno Domingo! Na verdade, Domingo
não tem lugar nem razão de ser neste plano
de coisas. Não temos necessidade de sermos
forçados a nos lembrar do Grande Pai do
Universo, dedicando-lhe um dia especial e
esquecendo-o o resto da semana. Não temos
semana. Entre nós é dia eterno, e nossas
mentes estão sempre inteiramente cônscias
d'ele, e podemos ver Sua mão e Sua mente
em tudo que nos rodeia.

Desviei-me um pouco do que me propunha


contar-lhes mas é imperativo dar ênfase a
certos aspectos da minha narrativa, porque
muitas almas na terra ficam chocadas ao
saber que o mundo espiritual é um mundo
sólido e substancial, com pessoas reais e
vivas. Eles acham que é material demais, e
tanto como o mundo terreno; na verdade
está distante dele apenas um passo, com sua
253
paisagem e sol espirituais, suas casas e
edifícios, rios e lagos, e habitados por gente
sensível, por seres inteligentes!

Esta não é a terra do descanso eterno. Há


descanso bastante para aqueles que dele
necessitam, mas quando o repouso lhes de-
volveu o vigor e saúde, volta-lhes o desejo
de realizar algo de sensato e útil, e não fal-
tam as oportunidades.

Mas voltemos às características do solo espi-


ritual.

Ao aproximarmo-nos das regiões escuras, o


solo, como descrevi, perde sua qualidade
granular e sua cor. Torna-se espesso, pesa-
do e úmido, até que finalmente dá lugar in-
teiramente a pedras e depois a rochas. A
pouca grama que existe é amarela e cha-
muscada.

Ao chegarmos perto dos reinos mais eleva-


dos as partículas do solo tornam-se mais fi-
254
nas, as cores mais delicadas, com aspec-
to translúcido. Maior grau de maciez é ime-
diatamente observado debaixo de nossos
pés, assim que nos aproximamos dos um-
brais desses reinos.

Observada de perto, a terra revela qualida-


des de uma quase jóia, tanto em cor como
em forma. As partículas

nunca são mal formadas, mas observam um


plano geométrico definido. Rute e eu mergu-
lhamos nossas mãos no chão deixando que a
terra escorresse por entre nossos dedos, em
suave corrente. Ao cair produzia sons musi-
cais dos mais doces, como se estivesse cain-
do sobre algum minúsculo instrumento musi-
cal, fazendo as teclas produzirem ondas so-
noras.

Um ouvido apurado poderá captar muitos


sons musicais nas praias terrestres, rio avan-
çar e retroceder das ondas sobre a areia,
mas não é necessário ouvido aguçado para
255
ouvir essas ricas harmonias, f quando é o
solo espiritual que as produz.

Os sons emitidos desta maneira variam tanto


quanto as cores e os elementos que os pro-
duzem. Estão lá para serem ouvidos e po-
dem ser produzidos por aquela simples ação
que descrevi.

Como se realiza isso, direis vós?

Cor e som — isto é som musical — são ter-


mos interrelacionados. Produzir cor é produ-
zir também som musical. Executar um ins-
trumento musical, ou cantar, é criar cor, e
cada criação é governada e limitada pela
habilidade e proficiência do instrumentista ou
cantor. Uma virtuose quando toca seu ins-
trumento está criando sobre si mesmo as
mais lindas formas-pensamento musicais,
que variam em cores e matizes de sombra,
de acordo com a música executada. Um can-
tor pode criar semelhante efeito em relação
à pureza da voz e à qualidade da música. A
256
forma-pensamento, por conseguinte, não
é muito ampla. É uma forma em miniatura.
Entretanto, uma grande orquestra ou um
coral, podem construir uma imensa forma,
governada, certamente, pela mesma lei.

A forma-pensamento musical não produz,


em si, nenhum som. É o resultado de sons, e
é, por assim dizer, uma unidade independen-
te. Embora a música possa produzir a cor, e
a cor possa produzir a música, cada uma
delas está restringida a uma forma resultan-
te. Não há uma alternância, constante, in-
terminável ou que diminua gradualmente,
entre cor e som.

Não se deve imaginar que com a vasta galá-


xia de cores, das milhares de fontes no
mundo espiritual, nossos ouvidos sejam
constantemente assaltados por sons musi-
cais; que vivamos, de fato, em uma eterni-
dade de música soando e ressoando sem
parar. Há poucas mentes — se as houver —
que pudessem suportar tal pletora contínua
257
de som por mais belo que fosse. Suspira-
ríamos por paz e sossego, nosso céu deixaria
de ser céu. Não, a música existe, mas é in-
teiramente da nossa vontade ouvi-la ou não.
Podemos nos isolar completamente de todo
som, ou nos abrir inteiramente aos sons, u
ainda, ouvir apenas aquilo que nos apraz.

Há ocasiões na terra em que podemos ouvir


acordes distantes de música sem sermos
incomodados por eles; pelo contrário, acha-
mo-los agradáveis e calmantes. Assim tam-
bém é aqui no espírito. Mas há uma grande
diferença entre os nossos dois mundos —
nossas potencialidades para a música eleva-
da são muito maiores do que a daqueles so-
bre a terra. A mente de uma pessoa espiritu-
al cujo amor à música é profundo, ouvi-la-á
naturalmente mais do que uma pessoa que
não a aprecia.

Voltemos à experiência que eu e Rute fize-


mos com o olo. Ambos temos grande prazer
em ouvir música, ela mais ainda do que eu,
258
visto que foi educada para a arte musical
e tem portanto um poder mais profundo de
apreciar e compreender a técnica musical.
Como já disse, assim que o solo deixa nossos
dedos podem-se ouvir encantadores sons
emitidos por ele. Outra pessoa realizando a
mesma ação, mas sem possuir a mesma
susceptibilidade musical, mal ouviria qual-
quer som. As flores, tudo que cresce, res-
pondem imediatamente àqueles que as a-
mam e apreciam. A música que eles emitem
existe precisamente sob a mesma lei.

Seria terrível imaginar que o mundo espiritu-


al fosse um imenso pandemônio musical,
continuando incessantemente, inevitavel-
mente, e em todas as ocasiões, noras e luga-
res possíveis. Não! - o mundo espiritual é
organizado em linhas melhores do que essas.

Há pessoas na terra que têm a habilidade de


se isolar mentalmente de seu ambiente de
tal maneira que podem se abstrair de todos
os sons, por mais intensos. Este estado de
259
alheamento completo serve de analogia
— um pouco elementar — do efeito que po-
demos produzir em nós mesmos em espírito,
com a exclusão de sons que não desejamos
ouvir. Ao contrário do mundo terreno, não
precisamos usar de grande força de concen-
tração. É apenas outro processo de pensar,
assim como usamos nossas mentes para nos
locomovermos, e depois de um breve estágio
em espírito, cedo podemos realizar essas
variadas funções mentais sem qualquer es-
forço aparente. São parte de nossa própria
natureza e estamos apenas aplicando, sem
as limitações e restrições da terra, métodos
mentais simples de aplicar. Na terra nossos
corpos físicos, num pesado mundo físico,
impediam similares processos mentais de
produzir qualquer resultado físico. No mundo
espiritual somos livres, e essas ações men-
tais mostram um instantâneo e direto resul-
tado, seja para nos movermos com a rapidez
do pensamento, seja para nos abstrairmos
260
de qualquer aspecto ou som que não
desejamos experimentar.

Por outro lado, podemos — e o fazemos —


abrir nossas mentes e absorver os inúmeros
sons maravilhosos que se erguem à nossa
volta. Podemos abrir nossas mentes — ou
fechá-las ~ aos muitos deleites que a natu-
reza nos prodigaliza para nossa felicidade e
contentamento. Eles agem sobre a mente
como tônico, mas não nos são impostos:
apenas os tomamos se desejarmos. Deve-
mos ter em mente que as regiões espirituais
são baseadas na lei e na ordem. Mas a lei
nunca é opressiva nem cansativa, porque a
mesma lei e ordem ajudam a prover as in-
contáveis belezas e maravilhas deste reino
celestial.

III. MÉTODOS DE CONSTRUÇÃO

Ao menos importantes, entre as característi-


cas físicas ao reino em que eu vivo, são os
numerosos edifícios devotados ao processo
261
de aprendizagem e fomentação das artes
conhecidas no plano terrestre. Estes magnífi-
cos edifícios apresentam todos os sinais de
eternidade. Os materiais de que são constru-
ídos são imperecíveis. As superfícies de pe-
dra são tão limpas e frescas como no dia em
que foram erguidas. Nada há para as poluir,
nenhuma atmosfera carregada de fumaça
para corroê-las, nem ventos e chuvas para
desgastar as obras de decoração externa. Os
materiais de que são feitos pertencem ao
mundo espiritual e portanto têm uma beleza
que não é terrena.

Apesar de essas esplêndidas mansões do


saber terem toda a aparência de estabilida-
de, poderiam ser demolidas se fossem consi-
deradas dispensáveis, e isso já tem aconte-
cido. Alguns edifícios foram removidos e ou-
tros tomaram seu lugar.

O mundo espiritual não é estático. É sempre


vibrante de vida e movimento. Contemplem,
por um momento, as condições normais do
262
mundo terreno, com as constantes mu-
danças que sempre ocorrem — a gradual
reconstrução de cidades, a alteração do cam-
po. Algumas dessas mudanças nem sempre
foram consideradas melhoramentos. Contudo
são feitas e o processo é estimado como
progresso. Que dizer então do mundo espiri-
tual? Não haverá mudanças no mundo em
que vivo? Certamente que sim!

Não "evoluímos com os tempos" propriamen-


te — para usar uma frase da terra — porque
estamos sempre muito adiante dos tempos.
E precisamos estar, para fazer face às pesa-
das exigências impostas a nós pelo mundo
terreno.

Tomemos um exemplo específico — apenas


um.

Quando o mundo terreno progride em civili-


zação os métodos de guerra tornam-se mais
e mais devastadores e completos. Em lugar
de centenas de mortos em batalhas como
263
nos velhos tempos, o morticínio agora é
contado em centenas de milhares. Cada uma
dessas almas acabou com a sua vida terrena,
— mas não com as conseqüências dela — e
em muitos casos o mundo também acabou
com elas. O indivíduo pode sobreviver como
uma memória para aqueles que acabou de
deixar; sua presença física foi-se. Mas sua
presença espiritual permanece inalterável
entre nós. O mundo terreno passou-o para
nós, muitas vezes sem se importar com o
que lhe aconteceu. ele deixará para traz a-
queles que amou e que o amaram, mas o
mundo terreno nada pode fazer por ele —
assim pensam — nem por aqueles que o
pranteiam. Nós, no mundo espiritual, é que
teremos que cuidar dessa alma. |

Entre nós não podemos alijar essa responsa-


bilidade para outros ombros, pois aqui enca-
ramos a estrita realidade.

O mundo em sua ignorância cega, atira cen-


tenas de milhares de almas ao nosso reino,
264
mas aqueles que habitam as regiões su-
periores estão a par, bem antes de aconte-
cer, do que ocorre no plano terrestre, e um
fiat é ordenado aos mais próximos reinos da
terra a fim de que se preparem para o que
vai acontecer.

Essas calamidades do mundo requerem a


construção de mais e mais mansões de re-
pouso no mundo espiritual. Essa é a ocasião
—talvez a maior — para as mudanças que
estão constantemente ocorrendo aqui. Mas
há outras ainda, e mais agradáveis.

Às vezes um grande número de almas ex-


pressa o desejo de ampliar uma dessas man-
sões do aprendizado. Não há nenhuma difi-
culdade em aceder a tal desejo, visto que
não é egoísta, visto que ela estará lá para
todos usarem e gozarem.

Em resposta a uma questão que propus a


Edwin, ele me contou que uma nova ala de-
veria ser acrescentada à
265
grande biblioteca, onde passei tantos
momentos agradáveis e proveitosos desde
que me transformara em espírito. Foi-nos
sugerido que talvez Rute e eu gostássemos
de testemunhar o erguimento de um edifício
espiritual.

Havia já grande número de pessoas reunidas


quando chegamos, e com o mesmo propósi-
to que lá nos levara; enquanto esperávamos
o início das operações, Edwin nos deu alguns
pormenores preliminares.

Assim que se deseja algum novo edifício, o


governante do reino é consultado. Desta
grande alma e de outras similares em caráter
espiritual e capacidade só falarei mais tarde.
Conhecendo, como conhece, tão profunda-
mente os desejos e necessidades de todos
os do, seu reino, nunca houve o caso em
que algum novo edifício fosse pedido para o
uso de todos, sem ser atendido.
266
O governante então transmite o pedido
aos seus superiores em autoridade, que, por
seu turno, o transmitem a outros mais ele-
vados.

Reunimo-nos então no templo central da


cidade, onde somos recebidos por aquele
cuja palavra é lei, a grande alma, que há
muitos anos terrestres tornou minha comuni-
cação com o mundo terreno possível.

Ora, esse processo aparentemente complica-


do, de transmitir nosso pedido de um para
outro, pode sugerir à mente os tortuosos
métodos da burocracia com suas delongas e
adiamentos.

O método pode parecer semelhante, mas o


tempo gasto é uma coisa muito diferente.
Não é exagerado dizer que no espaço de
alguns minutos terrenos, nossos pedidos já
são feitos, e a permissão -- acompanhada de
uma bênção — é concedida. Nessas ocasiões
267
é que temos razões para nos rejubilar-
mos, e o fazemos com grande prazer.

O passo seguinte é consultar um arquiteto,


e, como se pode imaginar, temos um núme-
ro inesgotável que nos pode auxiliar. Traba-
lham pela mera alegria que lhes advém da
criação de algum grandioso edifício a ser
usado para o bem de seus concidadãos. Es-
ses bons homens trabalham e colaboram de
uma maneira que seria quase impossível so-
bre a terra. Aqui não são tolhidos pela ética
profissional, ou limitados pela mesquinhez da
inveja. Cada um tem mais alegria e orgulho
de servir do que o outro, e nunca há discór-
dias e choques no esforço de introduzir ou
impor idéias individuais, em prejuízo das dos
outros. Direis talvez que tal unidade comple-
ta está longe e acima da natureza humana e
que tais pessoas não seriam humanas se não
discordassem ou por qualquer outra maneira
mostrassem sua individualidade.
268
Antes de rejeitardes meu argumento co-
mo altamente improvável ou de me acusar-
des de pintar um quadro de perfeição impos-
sível a não ser nos mais elevados reinos,
deixai-me expor o simples fato de que dis-
córdia a respeito de assuntos como agora
discutimos não poderia existir nestes planos
que ora habito. E se ainda insistirdes que isto
é impossível, eu declaro que Não: é perfei-
tamente natural. Quaisquer dons que pos-
samos possuir em espírito, são parte da es-
sência deste reino, onde não temos idéias
presunçosas sobre o poder ou a excelência
desses dons. Reconhecemo-los e com humil-
dade, sem convencimento, despretensiosa-
mente e sem egoísmo, gratos pela oportuni-
dade de trabalhar, con amore, com nossos
colegas ao serviço do Grande Inspirador.

É isto, em substância, o que um dos grandes


arquitetos me disse em referência a seu pró-
prio trabalho.
269
Depois de os planos de novos edifícios
serem traçados com orientação do governan-
te do reino, há uma reunião dos empreitei-
ros-mestres. Estes eram na maioria pedreiros
na terra, e continuam a exercer suas ativida-
des aqui. Fazem-no é claro, porque o traba-
lho lhes agrada como* acontecia quando
eram encarnados, e aqui têm condições im-
pecáveis nas quais podem prosseguir o seu
trabalho. Fazem-no com a grande liberdade
de ação que lhes era negada na terra, mas
que aqui é a sua herança. Outros que não
eram pedreiros de profissão, aprenderam
aqui os métodos espirituais de construção e,
pela pura alegria de o fazer, dão valiosa aju-
da a colegas mais experimentados.

Os pedreiros são as únicas pessoas ligadas à


construção, visto que os edifícios espirituais
não requerem tantas minúcias como os da
terra, tais como iluminação e aquecimento.
Nossa luz provém de grande fonte central de
luz e o calor é uma das características do
reino.
270
O acréscimo que estava sendo feito à
biblioteca consistia em um anexo e não era
de grandes proporções. Nossa biblioteca tem
pelo menos um traço em comum com as ter-
restres. Vem a época em que a quantidade
de livros excede o espaço em que abrigá-los
e, no nosso caso, o excesso tende a ser mai-
or, porque não só temos cópias dos livros
terrenos em nossas estantes, mas também
volumes escritos apenas em espírito. Incluí-
dos entre eles há obras referentes à vida
espiritual, aos fatos da vida aqui, e ensina-
mentos espirituais escritos por autoridades
que possuem conhecimentos infalíveis sobre
o assunto, e que pertencem às esferas supe-
riores.

O edifício deste anexo não era portanto, o


que se chamaria um esforço maior, e reque-
ria o auxílio de apenas alguns trabalhadores.
Era simples no traçado, consistindo de dois
ou três salões de tamanho médio.
271
Estávamos mais ou menos perto do gru-
po de arquitetos e pedreiros, encabeçados
pelo legislador do reino. Notei que todos ti-
nham a aparência de extrema felicidade e
alegria, e as piadas circulavam no meio deste
grupo jovial.

Era estranho para mim e Rute — e Edwin já


o notara antes — pensar que um edifício ia
ser erguido dali a pouco, porque desde mi-
nha chegada ao mundo espiritual eu não vira
sinais de qualquer movimento de construção
em parte alguma. Todos os edifícios e tem-
plos já estavam construídos e nunca me o-
correu que precisassem de mais algum. Pen-
sando um pouco, é claro, veríamos que as
casas espirituais estão sempre sendo cons-
truídas, enquanto outras são demolidas des-
de que não sejam mais necessárias. As man-
sões do saber pareciam tão permanentes aos
meus olhos inexperientes, tão completas,
que nunca imaginara fosse necessário fazer-
lhes acréscimos.
272
Por fim, houve sinais de que se aproxi-
mava o início.

Deve-se lembrar que o ato de construir no


mundo espiritual é essencialmente uma ope-
ração de pensamento. Não é de surpreender,
portanto, que eu diga que não se via por ali
a usual confusão de apetrechos ligados às
contrações terrenas, os andaimes, cimento,
tijolos e vários outros objetos familiares. Es-
távamos para testemunhar, de fato, um ato
de criação — criação pelo pensamento — e
como tal não há necessidade de equipamen-
to físico.

O governante do reino deu alguns passos à


frente e de costas para nós, mas olhando
para o local onde se iria erguer a nova ala,
pronunciou uma breve mas apropriada ora-
ção. Em linguagem simples pediu auxílio ao
Grande Criador para a obra que iria ser inici-
ada.
273
Sua breve prece trouxe imediata respos-
ta, na forma de um vivido raio de luz que
desceu sobre ele e os que se reuniam à vol-
ta. Assim que isto se deu os arquitetos e pe-
dreiros se moveram para perto dele.

Todos os olhos se voltaram para o espaço


vazio ao lado do edifício principal, e para o
qual se dirigia um segundo raio de luz que
emanava do governante e dos pedreiros. Ao
atingir o espaço vazio o raio de luz formou
um tapete coruscante sobre o solo. Este au-
mentou gradualmente de intensidade, largu-
ra e altura, mas parecia que ainda lhe faltava
algo de substancial. Era idêntico em cor ao
edifício principal, mas era apenas isso por
enquanto.

Lentamente a forma ganhou volume até al-


cançar a altura requerida. Podíamos ver ago-
ra que combinava exatamente com a estru-
tura original, até nos menores ornamentos
esculpidos. |j
274
Enquanto estava neste ponto, os arquite-
tos aproximaram-se e examinaram-na deta-
lhadamente. Podíamos vê-los andando á
dentro e finalmente desapareceram de nos-
sas vistas, por um curto espaço de tempo,
até que voltaram ao governante com a de-
claração de que tudo estava em ordem.

Agora o raio de luz descendente tornou-se


muito mais intenso. Podia-se perceber que a
forma meio nebulosa, agora adquiria uma
inequívoca aparência de solidez, à medida
que a concentração de pensamentos acres-
centava camada sobre camada de progressi-
va densidade sobre o simulacrum.

Pelo que pude observar, parecia caber ao


governante fornecer a cada pedreiro a quan-
tidade de força requerida pela sua tarefa. ele
na verdade agia como agente distribuidor da
força magnética que descia sobre ele. Esta
se dividia em um número de raios de dife-
rentes cores e intensidade, que correspon-
dem ao apelo direto ao Grande Arquiteto.
275
Não havia o menor sinal perceptível de
falhas ou diminuição na aplicação da subs-
tância-pensamento. Os pedreiros pareciam
trabalhar em completa unanimidade de con-
centração, ao mesmo tempo que o edifício
atingia sua total solidez com notável grau de
igualdade.

Depois do que me pareceu um curto espaço


de tempo, o prédio cessou de adquirir mais
intensidade, os raios foram interrompidos, e
eis perante nós a ala terminada, perfeita em
todos os detalhes, uma exata réplica do edi-
fício principal, belíssimo em cor e forma, e
digno do alto fim a que seria devotado.

Aproximamo-nos para examinar de perto os


resultados do feito que acabara de ser reali-
zado. Passamos nossas mãos sobre a macia
superfície para convencermo-nos de que era
realmente sólido. Rute e eu não éramos os
únicos a fazer tal coisa, visto que havia ou-
tras pessoas que testemunhavam isso pela
276
primeira vez, e com igual surpresa e es-
panto.

O processo que regula a construção de nos-


sas casas particulares e bangalôs difere um
pouco do que agora acabei de descrever. O
requisito indispensável para se possuir uma
casa espiritual é o direito de possuí-la, um
direito que é ganho unicamente pela espécie
de vida que levamos quando encarnados, e
por nosso progresso espiritual depois da
transição para este mundo. Uma vez ganho
esse direito, nada nos impede de ter tal resi-
dência, se o desejarmos.

Diz-se muitas vezes que construímos nossos


lares espirituais durante nossas vidas na ter-
ra — ou depois. Isto num sentido mais am-
plo. O que conseguimos foi o direito de cons-
truir, porque demanda um perito a constru-
ção de uma casa que justifique o seu nome.
Minha própria casa foi construída durante
minha vida terrena por construtores tão efi-
277
cientes quanto aqueles que ajudaram a
construir o anexo da biblioteca.

Quando raiar o dia em que pelo progresso


espiritual eu me veja obrigado a prosseguir,
deixarei minha casa. Mas dependerá de mim
o deixá-la para outros ou demoli-la. É cos-
tume, disseram-me, doá-la ao governante do
reino que poderá dela dispor em favor de
outros à sua escolha.

IV. TEMPO E ESPAÇO

Julga-se em geral na terra que no mundo


espiritual nem o tempo nem o espaço exis-
tem, mas isso é um erro. Temo-los ambos,
mas nossa concepção sobre eles difere da
terrena.

Às vezes usamos a expressão antes da auro-


ra do tempo para dar a idéia da passagem
dos eons do tempo, mas não temos idéia do
que está realmente sugerido por essa frase.
278
No plano terrestre a medida do tempo
tem sua origem na revolução do globo sobre
seu eixo, dando a divisão do tempo conheci-
do como noite e dia. A invenção de relógios
e calendários nos deu meios convenientes,
de medir o tempo, ao alcance de todos.

No mundo espiritual não temos relógios ou


outros engenhos mecânicos para indicar a
passagem do tempo. Seria a coisa mais sim-
ples no mundo espiritual os cientistas nos
presentearem com alguns, se isso fosse ne-
cessário. Mas não é. Não temos estações,
nem a alternância de luz e escuridão como
indicações externas do tempo, e além disso,
não temos aqueles lembretes físicos comuns
aos mortais, da fome e sede, e fadiga, além
do envelhecer do corpo. Para quê, pois, terí-
amos necessidade da marcação do tempo?

Temos duas concepções do tempo, uma das


quais, como na terra, é puramente relativa.
Cinco minutos, digamos, de agudo sofrimen-
to sentido pelo corpo físico afetará a mente
279
de tal maneira que os momentos passa-
geiros parecerão uma eternidade. Mas cinco
minutos de intensa alegria e felicidade desfi-
larão com a rapidez de um segundo.

Aqueles dentre nós que vivem nos reinos de


felicidade e verão perpétuo não terão motivo
para achar que o tempo não passa.

Nos reinos sombrios acontece exatamente o


contrário. O período de escuridão parecerá
interminável àqueles que aí vivem. Por mais
que tais almas anseiem pela vinda da luz,
ela, no entanto, jamais vem. Eles é que de-
vem dar o primeiro passo em direção à luz
que os espera nos reinos mais elevados. Um
período de existência dentro das regiões es-
curas, que não vai além de um ano ou dois
do tempo terreno, parecerá uma eternidade
para os sofredores.

Se, normalmente, não temos os meios usuais


de medir o tempo porque não os necessita-
mos, podemos — e o fazemos — voltar a ter
280
contato com a terra onde nos podemos
certificar da exata hora do dia, ano, etc.

Algumas pessoas, que de outro modo não o


fariam, voltaram à terra com o simples intui-
to de satisfazer sua curiosidade quanto ao
número de anos que haviam estado no mun-
do espiritual. Falei com alguns que fizeram
esta jornada, e todos ficavam atônitos ao
descobrir os muitos anos que se passaram
desde sua transição.

Falando por mim, eu achei que o tempo pas-


sava rapidamente, mas sempre soube, atra-
vés de todo esse período, qual era o ano da
Era Cristã. Em meu caso a razão era que me
fora prometido um dia me comunicar com o
mundo terreno. Tinha, portanto, observado
com agudo interesse, a concatenação dos
eventos que conduziriam, entre outras coi-
sas, à realização do meu desejo.

Edwin, que me recebeu no limiar do mundo


espiritual, e me conduziu ao meu novo lar,
281
também estava ao corrente do passar
dos anos, porque ele, por seu lado, estivera
me observando.

Poder-se-á julgar que o tempo não tem mui-


ta influência além do mundo terrestre, mas
isso não é bem verdade.

Todos os acontecimentos terrestres referen-


tes a indivíduos ou nações estão sujeitos ou
governados pelo tempo. E no ponto em que
esses eventos atingem o mundo espiritual,
nós no espírito também sofremos a influên-
cia do tempo. Tomemos a festa do Natal
como o exemplo mais fácil. Celebramos esta
festividade ao mesmo tempo que na terra.
Se o dia 25 de dezembro é a data correta
historicamente, isso não vem ao caso. O que
importa é que as duas celebrações, a vossa e
a nossa, são sincronizadas e periódicas.

Em tempos .normais na terra, essa época do


ano dá lugar a uma grande onda de bondade
e boa vontade. Muitas pessoas, esquecidas
282
em outras ocasiões, lembram-se § de
seus amigos e parentes já falecidos e lhes
enviam pensamentos que nós no espírito
ficamos felizes de receber e retribuir. A cele-
bração do Natal é sempre precedida por
pensamentos de agradável antecipação. Se
nada mais houvesse para nos guiar, eles a-
penas seriam suficientes para nos lembrar
que a época festiva se aproxima.

Este exemplo particular do Natal mostra que


não dependemos inteiramente do plano ter-
restre para sabermos da aproximação das
festividades. Nestas ocasiões somos sempre
visitados por grandes almas, e se falhassem
todos os outros meios, este seria infalível
para indicar a passagem do tempo.

Os que estão em constante contato com a


terra conhecem é claro, o dia, mês e ano em
que estamos. Sabemos também as horas
exatas. Não há dificuldades nem mistérios.
Quando descemos às vossas condições po-
demos fazer uso dos muitos meios emprega-
283
dos por vós — e o que pode ser mais
simples? — Não precisamos, porém, como
regra, estar constantemente atentos ao dia e
hora exatos, ou então tomar conhecimento
deles. Quando cooperamos ativamente con-
vosco, os vossos pensamentos em direção a
nós são indicação suficiente de que decorreu
um certo momento, enquanto nos pusemos
a trabalhar ou conversar. Tais pensamentos
são tudo de que necessitamos. É na natureza
comum das coisas em espírito que, falando
de maneira geral, podemos perder todo sen-
tido de continuidade temporal, nos espaços
medidos como conheceis. Deixamos que tu-
do permaneça assim até que tenhamos de
fazer algo que exija atitude diferente. Quan-
do antecipamos a chegada de algum parente
ou amigo ao mundo espiritual, é para o e-
vento que lançamos o pensamento, e não
para o ano em que ele vai ocorrer.

Cito-vos aqui simples fatos do conhecimento


derivado da minha própria experiência, e o
284
que falei, portanto, deveis aplicar estri-
tamente ao reino em que vivo.

Dos reinos superiores nada conheço direta-


mente, e o cabedal de informações que reco-
lhi das conversas com os seus habitantes
tem sido governado e limitado pela minha
capacidade de compreensão. Tudo o que
posso dizer, pois, sobre o tempo nas esferas
superiores é que nesses elevados estados
atingimos reinos onde o conhecimento, entre
muitos outros atributos, é de uma ordem
muito mais elevada. Os personagens desses
reinos é que me espantam mais com a exati-
dão de sua previsão de acontecimentos que
têm lugar no plano terrestre. Seus métodos
para adquirir essas informações estão além
de nossa compreensão. É suficiente lembrar
que isso é assim mesmo, e que o tempo, em
conseqüência, não é limitado aos reinos de
um não menos exaltado estado de progresso
espiritual.
285
Quando chegamos ao assunto sobre o
espaço descobrimos que, geralmente falan-
do, nós somos governados, até um certo
ponto, pelas mesmas leis do plano terrestre.
Temos a eternidade do tempo, e temos tam-
bém a infinidade do espaço.

O espaço deve existir no mundo espiritual.


Tomemos meu reino por exemplo. De pé à
janela de um dos aposentos do andar de
cima, eu podia alongar a vista por distâncias
infindas onde se espalham casas e imponen-
tes edifícios. À distância eu podia ver a cida-
de com muito mais prédios. Espalhados por
todo o amplo panorama há bosques, vales,
rios, jardins, e pomares, e todos eles ocu-
pam espaço, exatamente como na terra. Ca-
da um preenche o seu espaço reservado. E
eu sei, ao olhar da minha janela, que além
do alcance da minha vista, muito além ainda,
há mais e mais reinos que constituem a infi-
nidade de espaço. Sei que posso viajar inin-
terruptamente através de enormes áreas de
espaço, áreas muito maiores do que o mun-
286
do terrestre triplicado,* ou ainda maio-
res. Eu ainda não atravessei senão uma fra-
ção da extensão completa do meu reino,
mas posso fazê-lo quando bem o entender.
Disseram-me os amigos dos reinos superio-
res que eu poderia mesmo ir àqueles esta-
dos, se o desejasse. Ser-me-iam dadas faci-
lidades e o manto protetor necessários para
tal jornada, de maneira que, potencialmente,
meu campo de movimento é gigantesco.

Olhado por olhos terrenos somente, essa


imensa região estaria, é claro, fora do alcan-
ce da maioria das pessoas, visto que o mo-
vimento através de tais distâncias na terra,
seria dependente dos meios de transporte,
assim como de outros fatores. Mil milhas de
espaço terrestre é uma distância bem consi-
derável, e requer muito tempo se meios de
transporte mais vagarosos são usados. Mes-
mo pelo mais rápido método, um certo tem-
po deve passar antes de se chegar ao térmi-
no dessa jornada de mil milhas. Mas no
mundo espiritual o pensamento altera toda a
287
situação. Temos espaço, e temos certo
conhecimento do tempo em relação a ele. O
pensamento pode anular o tempo em sua
relação com o espaço, mas não pode anular
o espaço.

Posso estar em minha casa e imaginar que


gostaria de ir à biblioteca na cidade que divi-
so a milhas de distância. Nem bem a idéia
passou com precisão pela minha mente e eu
já me acho — se o desejar — perante as es-
tantes que desejo consultar. Fiz o meu corpo
espiritual — e esse é o único que possuo! —
viajar através do espaço com a rapidez do
pensamento, e isso equivale a ser instantâ-
neo. E que fiz eu? Cobri o espaço intermedi-
ário instantaneamente, mas ele ainda aí
permanece com todas as coisas que contém,
apesar de eu não tomar conhecimento do
tempo ou da passagem do tempo.

Quando completei a minha visita à biblioteca


encontrei na escadaria alguns amigos que
sugeriram irmos até à casa de um deles.
288
Com essa agradável idéia em mente, de-
cidimos passear através dos jardins e bos-
ques. A casa fica a certa distância, mas isso
não importa, porque nunca sofremos de fa-
diga física. Caminhamos juntos, conversan-
do, felizes, e depois de um certo tempo che-
gamos à casa do meu amigo, depois de per-
correr o caminho a pé. O tempo — em seu
sentido espiritual — e o espaço são relativos,
como também o são no mundo terrestre.
Mas a nossa concepção deles difere da vossa
— sendo que esta é restringida pelas consi-
derações terrenas do amanhecer e anoitecer,
e pelos vários modos de transitar. Nós aqui
temos o dia interminável, e podemos cami-
nhar vagarosamente a pé ou transportarmo-
nos instantaneamente pelo pensamento. No
mundo espiritual o tempo pode parar. E po-
demos restaurar nossa sensação de tempo
descansando calmamente ou caminhando.
Mas quando recebemos os vossos pensa-
mentos do mundo, dizendo-nos que estais
289
prontos para vir a nós, uma vez mais
ficamos cientes da passagem do tempo ter-
restre.

E deveis admitir que invariavelmente somos


pontuais em nossos encontros com os seres
terrestres!

V. POSIÇÃO GEOGRÁFICA

Qual é a posição geográfica do mundo espiri-


tual em relação ao mundo terrestre? Muita
gente perguntou isso em diferentes épocas
— e eu me incluo entre esses muitos!

Isso leva a mais uma questão referente à


disposição de outros reinos além daqueles de
que escrevi acima.

Já disse como, ao chegar ao ponto crítico em


que jazia em meu leito de morte, senti por
fim um desejo ardente de me erguer e, ao
ceder a esse desejo fi-lo facilmente e com
sucesso. Nesse caso particular a linha de
290
demarcação era muito tênue entre a mi-
nha vida terrena e o começo da espiritual,
porque eu estava de pleno poder dos meus
sentidos, e consciente. A própria transição de
um mundo para o outro era perceptível. Mas
posso resumir mais ainda, relembrando que
houve um momento em que as sensações
físicas de minha ultima doença me deixaram
subitamente, e em lugar delas me envolvi
numa deliciosa sensação de calma corporal e
paz de espírito. Senti vontade de respirar
profundamente e o fiz. O impulso de erguer-
me do leito, e o desaparecimento de todas
as sensações físicas, marcaram o instante da
morte física e o nascimento para a vida espi-
ritual.

Mas quando isso se deu, eu ainda estava em


meu quarto na terra, e, portanto, parte pelo
menos do mundo espiritual teve de interpe-
netrar o mundo terrestre. Esta experiência
vos dará um ponto de partida para nossas
explorações geográficas.
291
O evento seguinte da minha transição,
foi a chegada de meu bom amigo Edwin e o
nosso encontro depois de um bom número
de anos. O encontro teve lugar aparente-
mente em meu quarto. Depois de nos ter-
mos cumprimentado e proseado por algum
tempo, Edwin propôs que partíssemos do
atual ambiente, que, nessas circunstâncias,
era ligeiramente tristonho. Pegou-me pelo
braço, ordenou-me que fechasse os olhos, e
senti-me mover suavemente através do es-
paço. Não tive percepção clara da direção,
apenas senti que estava viajando, mas se
era para baixo, para cima ou horizontalmen-
te, impossível dizer. Nossa velocidade au-
mentou e finalmente me ordenaram que a-
brisse os olhos e achei-me diante do meu lar
espiritual.

Desde aquele dia aprendi muitas coisas, e


uma das primeiras lições foi a arte de loco-
moção própria por outros meios sem ser o
andar. Há aqui imensas distâncias a percor-
rer e às vezes precisamos cobri-las rapida-
292
mente, e o fazemos pelo poder do pen-
samento que já descrevi. Mas o que mais me
intrigou a princípio, foi o fato de que quando
me movia através do espaço, com maior ve-
locidade do que o andar, descobri que não
tinha senso de direção, mas apenas de mo-
vimento. Se preferia fechar os olhos enquan-
to viajava com velocidade moderada, eu a-
penas não via a paisagem, ou o que quer
que seja que me rodeasse. Não se deve i-
maginar que é possível perder-se o caminho.
Isso seria absurdo! A ausência do senso de
direção não interfere em absoluto com o
nosso pensamento inicial de locomoção. Uma
vez determinada a viagem para um certo
lugar, pomos nossos pensamentos em fun-
ção e eles, por sua vez, põem nossos corpos
espirituais em movimentos. Podia-se quase
dizer que não se precisa pensar! Já falei com
outras pessoas a esse respeito e compara-
mos nossas notas, o que é comum logo que
se chega aqui. Descobri que é normal a to-
dos essa ausência de percepção direcional
293
quando nos movemos rapidamente. É
evidente que quando viajamos instantanea-
mente, não há tempo para se observar qual-
quer objeto.

Notemos que dar uma precisa localização ao


mundo espiritual em relação ao terreno é
muito difícil. Na verdade, duvido que algum
recém-chegado aqui tenha arriscado adivi-
nhar sua posição geográfica. Mas há cente-
nas de pessoas que nem se preocupam com
tal coisa. Quebraram todos os liames com o
mundo terreno e sabem apenas que estão
vivos espiritualmente, mas quanto à posição
em que se acham no universo, nem se dão
ao trabalho de imaginar. Mas nosso caso é
diferente. Eu estou em ativa comunicação
com a terra, e creio que seria de interesse
tentar dar uma idéia exata onde estão situa-
das as terras espirituais.

O mundo espiritual está dividido em esferas


ou reinos. Essas duas palavras passaram a
ser correntes entre a maioria daqueles que
294
na terra conhecem e praticam a comuni-
cação com o nosso mundo. Ao falar-vos as-
sim, usei as palavras acima, suficientes para
o nosso fim.

A essas esferas foram dados números, por


alguns estudantes, e vão desde o primeiro,
que é o mais baixo, até o sétimo, que é o
mais alto. Ê costume entre nós seguir este
sistema de numeração. A idéia, segundo me
disseram, teve origem aqui entre nós, e é
um método conveniente de dar informações
de nossa posição na escada da evolução es-
piritual.

As esferas do mundo do espírito estão colo-


cadas numa série de zonas formando um
número de círculos concêntricos à volta da
terra. Esses círculos alcançam o espaço infi-
nito e estão invisivelmente ligados com o
mundo terrestre na sua evolução menor so-
bre seu eixo, e é claro, em maior revolução à
volta do sol. O sol não tem qualquer influên-
cia sobre o mundo espiritual. Não tomamos
295
conhecimento dele, visto que é puramen-
te material.

Um exemplo de círculos concêntricos nos é


dado quando nos dizem que um visitante de
uma esfera mais elevada vai descer a nós.
Ele está relativamente acima de nós, tanto
espiritual como espacialmente.

Os reinos inferiores da escuridão estão situ-


ados perto da terra, e penetram na sua parte
mais baixa. Foi através desta que passei com
Edwin quando ele me veio buscar para o
meu lar espiritual, e foi por essa razão que
me recomendou mantivesse os olhos fecha-
dos até que me ordenasse abri-los. Eu esta-
va suficientemente alerta — até mesmo de-
mais, porque estava plenamente consciente
— ou teria visto algo dos horrores que a ter-
ra lançou a essas zonas escuras.

Sendo o mundo espiritual constituído de cír-


culos concêntricos, e com a terra aproxima-
damente no centro, as esferas são subdividi-
296
das lateralmente para se corresponderem
largamente com as várias nações da terra,
cada subdivisão estando situada imediata-
mente sobre sua nação irmã. Quando se
considera a enorme variedade de tempera-
mentos nacionais e características distribuí-
das através do plano terrestre, não é de sur-
preender que os povos de cada nação dese-
jem gravitar para aqueles de sua própria es-
pécie no mundo espiritual; a escolha indivi-
dual, é claro, é livre e aberta para todas as
almas: elas podem viver em qualquer parte
que lhes agrade de seu próprio reino. Não há
fronteiras territoriais físicas aqui para separar
as nações. Os povos fazem suas próprias
fronteiras invisíveis com temperamentos e
costumes, mas os membros de todas as na-
ções da terra têm liberdade de se misturar
no mundo espiritual e de gozar relações so-
ciais irrestritas. A questão da linguagem não
oferece dificuldade porque não somos obri-
gados a falar alto. Podemos transmitir nos-
sos pensamentos uns aos outros com a intei-
297
ra certeza de que eles serão recebidos
pela pessoa a quem nos dirigimos mental-
mente. Assim, as línguas não constituem
barreiras. Cada uma das subdivisões nacio-
nais do mundo espiritual leva as característi-
cas de sua réplica terrena. Mas isso é natu-
ral. Meu próprio lar está situado em cercani-
as que me são familiares e que são uma có-
pia de meu lar terreno na aparência geral. As
redondezas não são uma réplica exata das
da terra, mas o que quero dizer é que meu
lar espiritual está localizado no tipo de cam-
po com o qual eu e meus amigos estamos
acostumados.

Esta divisão das nações se estende apenas a


um certo número de reinos. Além deles a
nacionalidade cessa de existir. Lá retemos
apenas nossas diferenças exteriores e visí-
veis, tais como a cor da pele, seja ela amare-
la, negra ou branca. Deixamos de ser côns-
cios da nacionalidade como somos na terra.
Nossos lares não têm mais uma aparência
298
nacional definida, mas partilham do espí-
rito puro.

Deveis recordar-vos como, ao construir o


anexo da biblioteca, eu vos apresentei o go-
vernante do reino. Cada reino tem tal perso-
nagem, apesar do termo governante não ser
apropriado, visto que dá azo a interpretações
erradas. Seria melhor e muito mais exato
dizer que ele preside o reino.

Apesar de cada reino ter seu governante,


todos eles pertencem a um plano mais ele-
vado do que aquele que presidem.

Esta posição requer altos atributos por parte


de seu ocupante, e ela somente pode ser
ocupada por aqueles que já estão há muito
tempo no mundo espiritual. Grande
espiritualidade apenas não é suficiente, se o
fosse haveria muitas almas que poderiam
ocupar tal cargo com distinção. Mas um
governante precisa possuir muito
conhecimento e experiência da humanidade
e além disso deve ser capaz sempre de
299
capaz sempre de exercer sábia discrição
ao lidar com os variados assuntos que se lhe
deparam. E toda essa experiência e sabedo-
ria, compreensão e simpatia estão sempre à
disposição dos habitantes de seu reino, ao
mesmo tempo que a bondade e infinita paci-
ência estão sempre em evidência. Esta gran-
de alma é sempre acessível a quem .quer
que o deseje consultar ou lhe traga seus
problemas para solução.

Temos os nossos problemas, como vós na


terra, apesar de nossos problemas serem
muito diferentes dos vossos. Os nossos nun-
ca são daquela natureza aflitiva e
preocupante dos da terra. Falando por mim
mesmo, meu primeiro problema, logo depois
da transição, foi como acertar o que eu con-
siderava um erro que fizera quando encar-
nado. Havia escrito um livro em que tratava
a verdade da comunicação com o mundo
terreno com grande injustiça. Quando falei
com Edwin a esse respeito, ele — sem eu o
saber — havia procurado o conselho do
reinante, e o resultado foi que outra grande
300
tado foi que outra grande alma viera dis-
cutir o assunto comigo, e oferecer-me ajuda
e conselhos nessa dificuldade. Foi o conhe-
cimento em primeira instância dos meus ne-
gócios pelo governante que eventualmente
trouxe um final feliz à minha confusão.

Pode-se ver por isso que o conhecimento do


governante em relação ao povo que preside
é vasto. Para que não se julgue que é hu-
manamente impossível a uma mente possuir
conhecimento dos afazeres de tanta gente
que deve haver em um reino, basta compre-
ender que a mente humana é limitada em
seu raio de ação pelo cérebro físico. No
mundo espiritual não o temos a prejudicar-
nos, e nossas mentes são inteira e comple-
tamente capazes de reter todo conhecimento
que nos vem. Não esquecemos as coisas que
se aprendem no mundo espiritual, sejam elas
lições espirituais ou simples fatos. Mas leva
tempo, como se costuma dizer, a aprender,
e é por isso que os governantes passam mui-
tos e muitos milhares de anos no mundo
301
espiritual, antes de serem colocados à
testa do governo. Porque os governantes
têm que guiar e dirigir os povos, e ajudá-los
em seu trabalho, e unir-se a eles nas horas
de recreação, ser-lhes uma inspiração e agir
sob todos os sentidos como um devotado
pai. Não há infelicidade nestes planos, pela
simples razão de que seria impossível, com
tais almas aqui prontas a afastar todos os
percalços.

Cada esfera é completamente invisível a to-


dos os habitantes das suas inferiores, e isso
pelo menos é que forma os nossos limites.

Quando viajamos .para os planos inferiores


vemos o terreno gradualmente degenerar.
Mas ao aproximarmo-nos dos reinos mais
elevados acontece o oposto: vê-se a terra à
nossa volta tornar-se mais etérea, mais pura,
e isso forma uma barreira natural para aque-
les entre nós que ainda não progrediram su-
ficientemente para se tornarem habitantes
desse reino.
302
Ora, eu já contei como os reinos se colo-
cam, uns acima dos outros. Como, então, se
passa de um para o outro, seja acima ou
abaixo? Deve haver algum ou alguns pontos
em cada reino onde exista uma sensível in-
clinação para um, e um distinto declive para
o outro. Apesar de parecer simples, é esse
exatamente o caso.

Não é difícil imaginar talvez uma gradual


descida a regiões menos salubres. Podemos
lembrar nossas experiências terrenas e cer-
tos lugares rochosos que visitamos, de piso
traiçoeiro, conduzindo a escuras cavernas,
frias, úmidas, e pouco convidativas, onde
podíamos imaginar toda espécie de coisas
horríveis nos aguardando na escuridão. Po-
demos então lembrar que acima de nós, a-
pesar de longe da vista, brilha o sol, espa-
lhando calor e luz sobre a terra, enquanto
que nós parecemos estar completamente em
outro mundo. Poderemos vaguear por essas
grutas subterrâneas até nos perdermos da
terra acima de nós. Mas sabemos que há
303
uma saída pelo menos, se a pudermos
achar e perseverarmos em nossos esforços
para escalar o perigoso caminho.

Se começamos nossa vida espiritual nos mais


baixos recessos deste quadro terreno das
cavernas subterrâneas, podemos ver como
cada um dos reinos é ligado com o reino i-
mediatamente acima dele.

A analogia terrena é, logicamente, muito e-


lementar, mas o processo e o princípio são
os mesmos. No espírito, a transição de um
reino para o outro é literal — tão literal
quanto o passar de uma caverna escura para
o sol lá em cima, tão literal quanto caminhar
de um aposento para outro em sua casa.

Para passar do reino onde estou ao próximo


mais elevado, me acharei andando suave-
mente ao longo de um chão em aclive. Ao
adiantar-me verei e sentirei todos os incon-
fundíveis sinais de um reino de maior refi-
namento espiritual. Chegará o ponto em que
304
não poderei avançar mais sem
desconforto
forto espiritual.
espiritual.
Se cometesse
Se cometesse
a tolice deaten-
tar desafiar essa lei, descobriria no fim que
não poderia dar nem mais um passo sem
passar por sensações que não me seria pos-
sível suportar. Nada poderia ver à minha
frente, somente atrás. Mas estejamos nós
num desses limites ou bem dentro dos nos-
sos limites, há um certo trecho na ponte en-
tre os reinos onde o reino mais alto se torna
invisível a olhos menos espirituais. Assim
como certos raios de luz são invisíveis a o-
lhos terrenos, e certos sons e notas musicais
são inaudíveis a ouvidos mortais, assim tam-
bém os reinos mais elevados são invisíveis
aos habitantes inferiores.

E a razão é que cada reino possui uma vibra-


ção de maior intensidade do que o seu infe-
rior, e é portanto invisível e inaudível aos
que vivem abaixo.

Vemos assim que outra lei natural opera pa-


ra o nosso próprio bem.
305

Há uma belíssima e brilhante esfera no


mundo espiritual, a que foi dado o título pito-
resco de Verão Eterno.

As regiões escuras podem ser chamadas de


Inverno Eterno, a não ser pelo fato de que o
inverno terreno possui uma grandiosidade
toda sua; enquanto que tudo é abominável
nas camadas inferiores do mundo espiritual.

Até aqui mencionei apenas de leve essas


regiões, levando--vos apenas ao seu limiar;
mas com Edwin e Rute já cheguei a penetrar
profundamente nelas.

Não é assunto agradável, mas me foi


aconselhado que se devem apresentar os
fatos não com intenção de assustar as
pessoas — não é esse o método nem o alvo
do mundo espiritual — mas para mostrar que
tais lugares existem unicamente pela virtude
de uma lei inexorável, a lei da causa e efeito,
a colheita espiritual que procede da se-
menteira terrena; para mostrar que escapar
306
terrena; para mostrar que escapar à jus-
tiça no mundo é o mesmo que achar justiça
estrita e impiedosa no mundo espiritual.

Ao caminharmos lentamente de nossos pró-


prios reinos para aquelas terras sombrias,
acharemos uma gradual deterioração surgir
na paisagem. As flores escasseiam e são
subnutridas, dando a aparência de que lutam
pela existência. A grama é ressequida e ama-
rela até que finalmente desaparece por com-
pleto para ser substituída por áridas rochas.
A luz diminui continuamente até ficarmos em
terras cinzentas e vem então a escuridão —
profunda, negra e impenetrável; mas impe-
netrável apenas para os que são espiritual-
mente cegos. Visitantes de planos superiores
podem ver nessa obscuridade sem serem
vistos pelos habitantes, a não ser que seja
vitalmente necessário revelar sua presença.

Nossas visitas nos levaram ao que creio ser o


mais ínfimo plano da existência humana.
307
Começamos a descida passando através
de um cinturão de névoa no trecho onde o
solo se tornou árido e duro. A luz diminuiu
rapidamente e as moradias eram cada vez
mais raras, e não se via vivalma. Grandes
trechos de rochas se estendiam à nossa fren-
te e a estrada que seguíamos era rude e
cheia de precipícios. Agora a escuridão já
nos envolvia, mas podíamos ver ainda nosso
ambiente perfeitamente. É uma experiência
bem estranha esta de enxergar no escuro, e
quando se passa por ela pela primeira vez
sentimos um ar de irrealidade, mas na ver-
dade é bem real.

Ao descermos pelas rochas eu podia sentir e


ver o limo horrível que cobria a sua superfí-
cie, de cor verde e malcheirosa. Não havia, é
claro, perigo de cairmos. Isso seria impossí-
vel a qualquer dos habitantes desses luga-
res.

Depois de viajarmos sempre para baixo pelo


que me pareceu um longo tempo — calculo
308
que deve ter sido uma milha pelas medi-
das terrestres — achamo-nos numa cratera
gigantesca de muitas milhas de circunferên-
cia, cujos lados ameaçadores e traiçoeiros se
erguiam bem alto acima de nós.

Toda a área era pontilhada de imensas ro-


chas, como se alguma enorme avalanche ou
cataclismo as tivesse arrancado da borda
superior e atirado às profundezas, para lá se
espalharem formando cavernas e túneis.

Em nossa atual posição estávamos bem aci-


ma desse mar de rochas e podíamos ver
surgir delas uma nuvem sombria de vapor
venenoso, como um vulcão a ponto de en-
trar em erupção. Não estivéssemos nós bem
protegidos e sua emanação nos seria sufo-
cante e mortal. Como estávamos, sentíamo-
nos perfeitamente a salvo, mas podíamos
perceber com nossas faculdades intuitivas o
grau de malignidade do ambiente. Vagamen-
te, pudemos ver através do miasma, o que
parecia serem seres humanos, rastejando
309
como animais pela superfície das rochas.
Não podíamos crer fossem pessoas, mas
Edwin nos assegurou que um dia já foram
homens na terra, andando, respirando e ca-
minhando como nós. | Mas viveram uma vi-
da de impureza espiritual e pela morte física,
haviam passado à sua verdadeira habitação,
de acordo com seu estado de espírito.

O vapor ascendente parecia envolvê-los nu-


ma mortalha que os escondia um pouco aos
nossos olhos.

Como eu havia expressado o desejo de ser


levado por Edwin aonde quer que ele achas-
se de bom proveito para os meus fins, e co-
mo eu sabia que seria capaz de suportar
quaisquer visões, aproximamo-nos de algu-
mas dessas criaturas de horror. Rute nos
acompanhava e, não é necessário dizê-lo,
nunca lhe seria permitido fazê-lo se não fos-
se do conhecimento geral que ela estava
apta a enfrentar os aspectos mais horrendos
com coragem e autodomínio. Na verdade,
310
fiquei admirado da sua atitude e até re-
conhecido por ter sua companhia.

Aproximamo-nos de uma das formas sub-


humanas que jazia sobre umas das rochas. O
que restava de suas roupas podia ser facil-
mente dispensado, visto que consistia ape-
nas de imundos trapos, através de cujos ras-
gões se via a carne com aparência inanima-
da. Os membros eram tão magros que se
esperava que a pele se rasgasse sobre os
ossos salientes. Mãos em formato de garras
de aves de rapina mostravam unhas incri-
velmente crescidas. A face desse monstro
nem era humana, tão deformada e horrível.
Os olhos eram pequenos e penetrantes, mas
a boca era, ao contrário, enorme e repug-
nante, com grossos lábios que salientavam o
queixo prognático, e mal escondiam dentes
quase caninos.

Fitamos longamente esse destroço humano,


e imaginamos que ações terrenas o haviam
reduzido a esse estado de degeneração.
311
Edwin, já experimentado em tais espetá-
culos, nos disse que com o tempo ganharía-
mos prática em nossos trabalhos e podería-
mos ler nos rostos e formas dessas criaturas
o que as havia transformado em frangalhos.
Não haveria necessidade de abordá-las para
decifrar a história de sua vida porque ela
estava gravada em seus semblantes. A apa-
rência também nos avisaria se necessitavam
auxílio ou se estavam satisfeitos com o pre-
sente estado de coisas.

O objeto que agora contemplávamos, disse


Edwin, não valia a nossa simpatia, pois que
estava ainda imerso em sua iniqüidade, e
obviamente não mostrava o menor sinal de
arrependimento por sua vida anterior. Estava
muito estonteado com a perda de sua ener-
gia física para compreender o que havia a-
contecido. Suas feições mostravam que, da-
da a oportunidade, ele continuaria as práti-
cas infames que aqui o haviam lançado. Que
já estava há várias centenas de anos no
mundo espiritual, podia-se ver pelos restos
312
esfarrapados de sua roupa que indicava
pertencer a eras passadas. Cada crime co-
metido contra outros tinha revertido contra
ele, e enfrentava agora, como já o vinha fa-
zendo há centenas de anos, a recordação
indelével de todos os males que perpetrara
contra seus semelhantes. Quando na terra,
usara de falsos argumentos para administrar
a justiça, mas essa nada mais fora que uma
paródia, e agora é que ele estava vendo o
que é de fato a verdadeira justiça. Não só
encarava continuamente a sua vida passada
de maldades, mas as feições de suas inúme-
ras vítimas estavam sempre perante seus
olhos. Nunca poderá esquecer; terá sempre
que recordar. E sua condição é agravada
pela raiva de se sentir como animal numa
jaula.

Nosso grupo de três não conseguia sentir o


menor vestígio de pena por esse monstro
desumano. ele recebia sua paga, nada mais
nada menos. ele se julgara, se condenara, e
agora sofria o castigo que merecia e que
313
quisera. Aqui não havia o caso de um
Deus vingador infringindo castigo sobre um
pecador. Este, ali estava de fato, mas era a
manifestação visível das causas e efeitos. A
causa era sua vida terrena e o efeito, sua
vida espiritual.

Tivéssemos vislumbrado o menor raio de luz


— aquela luz verdadeira que se vê — que é
um sinal inconfundível de vibração espiritual
interna, poderíamos ter feito algo por ele.
Mas tal como era, nada podíamos fazer a
não ser esperar que um dia esse ser horrível
pedisse por auxílio com sinceridade. Seu
chamado seria então atendido sem falta.

Afastamo-nos e Edwin nos conduziu através


de uma abertura para terreno mais ou me-
nos nivelado. Pudemos ver de repente que
essa parte da cratera era mais densamente
habitada — se é que se podia usar o termo
habitantes para aquela espécie de gente. Os
habitantes estavam ocupados de diversas
maneiras: alguns sentavam-se sobre peque-
314
nas pedras e pareciam conspirar, mas
que diabólicos planos, era impossível dizer.
Outros, em pequenos grupos, infringiam i-
nomináveis torturas aos seres mais fracos da
sua espécie, que de alguma maneira lhes
havia caído nas mãos. Seus gritos eram in-
suportáveis, e por isso fechamos os ouvidos
a eles. Seus membros incrivelmente defor-
mados, e em alguns casos os rostos e cabe-
ças, haviam retrocedido a meras caricaturas
de configurações humanas. Outros eram vis-
tos estendidos no solo como se exaustos de
suportar torturas, ou de as infringir, antes de
reunir forças para recomeçar suas barbari-
dades.

Intercaladas por essa enorme área horrível,


havia lagoas de uma espécie de líquido, que
parecia grosso e viscoso, e incrivelmente
imundo, como de fato era. Edwin nos contou
que a fedentina que emanava dos charcos
estava de acordo com tudo o mais aqui e
aconselhou-nos a não prová-las, e seguimos
o seu conselho à risca.
315
Ficamos horrorizados de ver sinais de
vida em alguns dos charcos e adivinhamos
sem ele nos contar, que freqüentemente os
habitantes escorregavam e ali caíam. Não
podem se afogar porque são indestrutíveis
como nós.

Testemunhamos toda espécie de bestialida-


des e baixezas, barbaridades e crueldades,
como não podíamos suportar. Não é minha
intenção nem desejo dar uma descrição de-
talhada do que vimos. Não tínhamos, de fa-
to, alcançado a profundeza do poço, mas já
lhes dei suficientes pormenores do que se
encontra no reino das sombras.

E agora perguntais: como acontece tudo is-


so? Como se permite que tais lugares exis-
tam? Talvez o assunto se esclareça quando
eu disser que cada alma que vive nesses

lugares horríveis, já viveu na terra. A idéia é


horrível mas a verdade não se pode alterar.
Não pensem que exagerei minha breve des-
316
crição dessas regiões, pois asseguro que
não o fiz. Na verdade, nem carreguei nas
tintas. Essas regiões existem em virtude das
mesmas leis que governam os estados de
beleza e felicidade.

A beleza do mundo espiritual é externa e


visível expressão do progresso espiritual e
seus habitantes. Quando tivermos ganho o
direito de possuir coisas belas, elas nos serão
dadas através do poder criador. Assim po-
demos dizer que nós criamos a nós mesmos.
Beleza de mente e ação, nada podem produ-
zir a não ser beleza, e daí termos flores de
beleza celestial, árvores, rios, e mares de
pura e cristalina água, magníficos prédios
para a alegria e gozo de todos nós, e nossos
lares individuais onde nos podemos rodear
com ainda mais beleza, e gozar as delícias
do feliz convívio com nossos iguais.

Mas a fealdade da mente e da ação nada


pode produzir a não ser fealdade. As semen-
tes de horror semeadas no plano terrestre
317
inevitavelmente conduzirão à colheita de
horrores no mundo espiritual. Esses reinos
escuros foram construídos pelas pessoas da
terra, assim como elas construíram os reinos
de beleza.

Nenhuma alma é forçada a entrar nos reinos


escuros ou nos da beleza. Somos um grupo
unido e extremamente feliz e vivemos juntos
em completa harmonia. Ninguém poderia,
portanto, se sentir deslocado.

Os habitantes dos reinos de escuridão, se


condenaram, por suas vidas na terra, ao es-
tado em que agora se acham. É a lei inevitá-
vel da causa e efeito, tão certo como a noite
seguir-se ao dia na terra. De que adianta
implorar piedade? O mundo do espírito é um
mundo de estrita justiça, uma justiça com
que não se pode brincar e de que todos nós
nos servimos. Justiça inflexível e piedade não
se podem misturar. Por mais sincera e intei-
ramente que possamos perdoar o mal que
nos foi feito, a piedade não nos é dispensada
318
no mundo espiritual. Cada má ação deve
ser debitada à pessoa que a cometeu. É um
assunto pessoal que deve ser resolvido sozi-
nho, assim como a morte do corpo físico de-
ve ser enfrentada a sós. Ninguém o pode
fazer por nós, mas cada alma que habita
nestas terríveis regiões escuras tem dentro
de si mesma o poder de se elevar da sordi-
dez até a luz. Precisa fazer esse esforço indi-
vidual por si só; precisa trabalhar pela pró-
pria redenção. Ninguém a substitui. Cada
palmo do caminho é arduamente ganho e
não há piedade aguardando-a no fim, mas
severa justiça.

Mas a oportunidade dourada da recuperação


espiritual está pronta a esperá-la. Ela tem
que mostrar sincero desejo de se adiantar
uma fração de polegada na direção do reino
da luz que está acima dela, e lá achará um
sem-número de amigos desconhecidos, que
a auxiliarão a ganhar a herança a que tem
direito, mas que na sua loucura jogou fora.
319
VII. PRIMEIRAS IMPRESSÕES

Achar-se de repente transformado em habi-


tante permanente do mundo espiritual, é
uma experiência espantosa.

Por mais que se leia a respeito das condições


de vida no mundo espiritual, ainda resta um
número ilimitável de surpresas para cada
alma.

Aqueles que voltaram à terra para contar


sobre nossa nova vida, enfrentam a dificul-
dade de descrever em termos terrenos o que
é essencialmente espiritual. Nossas descri-
ções têm que ficar aquém da realidade. E
difícil imaginar uma concepção de beleza
maior do que aquelas que já experimenta-
mos na terra. Aumentai cem vezes essas
belezas e ainda estaremos muito longe da
verdadeira avaliação.

Surge, portanto, em nosso cérebro a questão


seguinte: o que nos impressionou mais forte
320
e agradavelmente ao chegarmos aqui
pela primeira vez, e quais foram as primeiras
impressões?

Permiti-me colocar-me como repórter e en-


trevistar nossos velhos amigos, Edwin e Ru-
te. Ele e eu, como devem se lembrar, éra-
mos sacerdotes quando na terra. Edwin não
tinha o menor conhecimento a respeito do
assunto volta do espírito, além daquele que
eu tentava dar-lhe através das minhas pró-
prias experiências. ele era um dos poucos
que realmente se condoía de mim em mi-
nhas dificuldades psíquicas, e um dos poucos
que não me atirava em rosto os ensinamen-
tos ortodoxos. Mais tarde me disse que se
alegrava bastante por não o ter feito. Quan-
do ainda na terra, a vida futura era um com-
pleto mistério para ele, como deve ser para
muitos outros. Conformava-se naturalmente
com as normas da igreja, obedecia os seus
mandamentos, realizava seus deveres e, co-
mo depois admitiu com franqueza, esperava
pelo melhor — fosse o que fosse.
321
Mas sua vida terrena não consistiu uni-
camente de exercícios religiosos; ele havia
ajudado muita gente em todas as ocasiões
em que o auxílio era necessário; esse servi-
ço, tão obscuramente realizado, ajudou-o
imensamente quando chegou a hora de dei-
xar o mundo. Essas boas ações o transporta-
ram à terra da beleza e eterna luz.

Suas primeiras impressões ao despertar no


mundo espiritual foram — para usar suas
próprias palavras — de grande emoção. ele
havia imaginado, talvez subconscientemente,
algo de vago e enevoado e onde haveria
muita reza. Ao despertar achou-se num
mundo de inexprimível beleza, com toda a
glória da natureza terrena, expurgada da sua
materialidade, já refinada e eterizada, com
enormes riquezas à volta dele. Ver a pureza
cristalina de rios e ribeirões, o encanto das
residências e a grandiosidade dos templos e
das casas de ensino; achar-se no meio de
tais glórias sem noção do que lhe estava re-
servado, era lançar dúvidas sobre a veraci-
322
dade de seus olhos. ele não podia acredi-
tar que não estava no meio de algum belo
mas fantástico sonho, do qual logo desperta-
ria para se achar no seu velho ambiente.
Achou que devia relatar o sonho quando vol-
tasse à consciência. Considerou como seria
esse sonho recebido: belo, mas apenas um
sonho.

Ele havia visto como um sonho tudo que se


passara antes, e tudo que o conduzira até
àquele ponto; e como se achara, ao desper-
tar, num confortável leito, numa encantadora
casa, sentado ao lado do velho amigo, que
se desincumbia da mesma tarefa que Edwin
agora realizava comigo.

Seu amigo conduziu-o para fora a fim de ver


o novo mundo e aí surgiu sua maior dificul-
dade — convencer Edwin que ele havia mor-
rido e no entanto ainda vivia. A princípio ele
tomou seu amigo e suas explicações como
parte do mesmo sonho, e aguardava ansio-
samente que algo acontecesse para inter-
323
rompê-lo e voltar à consciência terrena.
Edwin confessa que custou a se convencer,
mas que seu amigo fora infinitamente paci-
ente com ele.

No momento em que ele teve a certeza de


que estava real, verdadeira e permanente-
mente no mundo espiritual, seu coração não
podia conceber maior alegria e ele começou
a fazer o que eu mais tarde fiz na companhia
de Rute — viajar através das terras da nova
vida com a deliciosa liberdade de corpo e
alma que é a própria essência da vida espiri-
tual nestes reinos.

O que mais impressionou Rute ao despertar


no espírito foi a profusão de cores. Sua tran-
sição fora plácida e havia conseqüentemente
despertado, depois de breve sono, calma e
suavemente. Como aconteceu com Edwin,
viu-se numa encantadora casa, pequena,
asseada e funcional e toda sua. Um velho
amigo se achava ao seu lado, pronto a aju-
324
dá-la nas inevitáveis perplexidades que
acompanham tantos despertares.

Rute é reservada por natureza, especialmen-


te no que se refere a si mesma. No caso de
Edwin, eu sabia tanto a respeito de sua vida,
que era fácil decifrá-lo; Rute, porém, eu não
a havia visto antes de nos encontrarmos à
beira do lago.

Depois de muita persuasão consegui arran-


car dela um ou dois pormenores de sua vida
terrena.

Nunca fora muito de ir a igreja, não porque a


desprezasse, mas porque suas opiniões a
respeito do depois não combinavam com o
que sua igreja ensinava. Ela via que se exigia
muita fé, e se davam poucos fatos, e já ha-
via encontrado tantos aborrecimentos e afli-
ções na vida cotidiana de tanta gente, que
sentia instintivamente que o vago, mas meio
aterrador quadro do mundo que viria, o ter-
rível Dia do Juízo constantemente afirmado
325
perante seus olhos, estava errado. A ên-
fase posta sobre a palavra pecador, com a
condenação por atacado de todo o mundo,
ela também achava errado. Não era tola,
declarou, para acreditar que todos somos
santos, mas ao mesmo tempo nem todos
somos pecadores. De muitas pessoas que
conhecia, não podia lembrar nenhuma que
pudesse ser estigmatizada e condenada no
sentido religioso. Onde, portanto, iriam parar
todos depois de morrer?

Ela nunca se poderia imaginar julgando e


condenando essas almas, como pecadoras.
Seria absurdo imaginar, acrescentou Rute,
que ela pudesse ser mais caridosa do que
Deus. Por isso construíra para si própria uma
fé simples — uma prática que os teólogos
diriam, de imediato, perigosa e que não deve
ser encorajada. Falariam do perigo em que
sua alma imortal se encontraria ao abrigar
tais idéias. Mas Rute nem por um instante
achou que sua alma se achava em perigo.
Na verdade continuou a viver sua vida de
326
acordo com os ditames de sua natureza
meiga, ajudando os outros em sua vida diá-
ria, e trazendo um pouco de sol à vida árida
dos seus semelhantes. E estava firmemente
convencida de que quando sua hora chegas-
se ela levaria para a nova vida a afeição de
seus muitos amigos.

Não temia a morte física, nem podia imagi-


ná-la como a experiência aterradora que tan-
ta gente antecipa e teme. Não tinha base
para essa crença, e sentia-se,' assim, atraída
pela experiência da morte intuitivamente.

À parte as cores maravilhosas de que se a-


chou rodeada, o que mais impressionou Rute
foi a espantosa claridade da atmosfera. Nada
semelhante havia na terra. A atmosfera era
tão livre do mínimo traço de névoa, que a
enorme gama de cores era duplamente viva.
Rute possuía um dom para as cores e tivera
considerável treino musical quando ainda na
terra.
327
Quando passou a espírito, essas duas
qualidades combinadas, a cor e a música da
nova terra, haviam-na deslumbrado com to-
da a sua soberba beleza.

A princípio mal podia crer em seus sentidos,


mas seus amigos tinham logo explicado o
que acontecera, e como tinha poucas idéias
fixas sobre a vida futura, assim também ti-
nha pouco a desaprender. Mas, disse ela,
levou muitos dias antes de absorver e com-
preender inteiramente todas as maravilhas à
sua volta. Depois de ter compreendido o sig-
nificado de sua nova vida, e que toda a eter-
nidade jazia à sua frente, pôde então refrear
o seu entusiasmo e levar as coisas com mais
calma.

Foi no processo desse último estado que nos


encontramos pela primeira vez.

Uma vez, quando nós três discutíamos agra-


davelmente toda sorte de coisas, vimos su-
bindo o jardim, em que nos encontrávamos,
328
uma figura que Edwin e eu conhecíamos
bem. Havia sido nosso superior eclesiástico
ainda na terra, e era conhecido como um
príncipe da igreja. Ainda estava paramentado
como de costume, e como todos nós concor-
damos depois, ao comparar opiniões, essas
roupagens estavam plenamente de acordo
com o lugar e as circunstâncias. O estilo e
colorido das roupagens pareciam se harmo-
nizar com tudo à nossa volta. Nada de ana-
crônico havia nela, e como tinha inteira li-
berdade de usar suas roupas aqui, assim o
fazia, não por causa da anterior posição e-
clesiástica, mas devido ao longo hábito, e
porque ele sentia que assim ajudava a au-
mentar a colorida beleza de sua nova habita-
ção.

Agora, apesar de sua alta posição ter sido


mantida com distinção na terra, ela não tinha
eco no mundo espiritual, mas não obstante
era bem conhecido aqui, de nome e de
329
reputação. Isso contribuía para que ele
mantivesse suas roupas coloridas. Mas a de-
ferência que sua posição sempre provocava
na terra, ele a havia rejeitado ao chegar a-
qui. Fora muito amado quando encarnado e
é natural que aqueles que o conheciam con-
tinuassem a mostrar-lhe o mesmo respeito.
Respeito é uma coisa, porque todos nos res-
peitamos aqui, mas deferência é outra coisa
completamente diferente. ele logo descobriu
isso, como nos disse com sua inata humilda-
de.

Nosso primeiro encontro nos levou a outros,


e em muitas ocasiões uniu-se a Edwin, a Ru-
te e a mim, quando nos encontrávamos no
jardim ou saíamos. Foi durante uma dessas
peregrinações juntos que pedi ao nosso anti-
go superior que nos esboçasse suas primei-
ras impressões do mundo espiritual.

O que o impressionou mais fortemente foi


não somente a beleza e imensidade do mun-
do espiritual, mas a relação entre ele e a
330
vida deixada para trás. Primeiro veio a
sensação quase esmagadora de ter desper-
diçado sua vida anterior em futilidades, irre-
levâncias e grande número de inúteis forma-
lidades. Mas alguns amigos vieram em seu
socorro intelectualmente e asseguraram-lhe
que esse tempo não fora perdido, apesar de
sua vida ter sido cercada pela pompa e ceri-
monial de seu cargo. Por mais que esses fa-
tores fossem preponderantes, ele não havia
se deixado absorver por eles e dessa refle-
xão agora tirava muito consolo.

Mas o que achou mais perturbador mental-


mente foi a nulidade das doutrinas que havia
mantido e que agora via caírem em ruínas a
seus pés. Mas aqui novamente achou amigos
que o guiaram. E o fizeram de uma maneira
simples e direta, que atrairia sua mente ávi-
da, como por exemplo: esquecer os ensina-
mentos religiosos da vida terrena e pôr-se a
par da lei da vida espiritual. Abandonar as
velhas e aceitar as novas. ele tinha feito isso
e com completo sucesso. Varreu de sua
331
mente o que não tinha base na verdade
e fez a agradável descoberta de que, final-
mente, gozava de absoluta liberdade espiri-
tual. Achou muito mais fácil obedecer às leis
do mundo espiritual do que aos mandamen-
tos da igreja e era agradável libertar-se das
formalidades de sua anterior posição. Podia
afinal voltar a falar livremente deixando de
se prender à palavra da Igreja.

Em resumo, disse ele, considerava sua maior


impressão a completa sensação de liberdade
tanto da mente como do corpo, liberdade
essa aumentada pelo contraste com a au-
sência dela no mundo terreno.

VIII. RECREAÇÕES

Já usei esta palavra uma ou duas vezes, mas


não dei pormenores a respeito deste impor-
tante assunto.

A mera sugestão de divertimento aqui, deve


ser um choque desagradável para certas
332
mentalidades. Essas pensarão imediata-
mente nos muitos e variados esportes e pas-
satempos útil e agradavelmente gozados na
terra. Transplantar coisas tão fundamentais
como essas para um mundo de puro espírito
seria inconcebível talvez, porque a idéia é
forçada e artificial, e porque o mundo espiri-
tual deve ser considerado como um estado
mais alto, isto é, um estado em que deixa-
remos para trás todos os nossos hábitos ter-
renos e viveremos perpetuamente numa
condição de êxtase, voltados somente àque-
las coisas imateriais e vagas que nossa reli-
gião insinuava serem a recompensa dos
bons.

Fazer tais suposições a respeito desta vida é


sugerir que ao nos tornarmos espíritos, es-
tamos na presença de Deus e, portanto, tudo
que seja remotamente sugestivo de costu-
mes terrenos deve ser banido, por ser pouco
santificado.
333
Tal idéia é, evidentemente, uma tolice,
visto que Deus não está mais perto de nós
aqui do que na terra. Somos nós que esta-
mos mais próximos dele, porque, entre ou-
tras coisas, podemos ver mais claramente a
Mão Divina neste plano e a expressão de sua
Mente. Isso, porém, é um assunto mais pro-
fundo e que não nos cabe analisar agora.

Muitos de nós acham a recreação em outra


forma de trabalho. Neste mundo não sofre-
mos fadiga corporal nem mental, mas conti-
nuar sempre em nossas ocupações ininter-
ruptamente acabaria por produzir sentimento
de insatisfação e inquietação. Nosso poder
de aplicação a qualquer tarefa é imensa, mas
ao mesmo tempo delimitamos com uma níti-
da linha o nosso período de trabalho, e não
vamos além. Trocamos nossa presente tarefa
por outra forma de trabalho, podemos parar
de trabalhar por completo, e passar o tempo
reclinados em nossos lares ou em qualquer
outro lugar; podemos nos ocupar em estu-
334
dos ou gozar das abundantes recreações
que existem nestes reinos.

Quando interrompemos o nosso trabalho por


um momento, dá-se o mesmo que na terra.
Que fazeis para vos divertir? Deveis sentir
necessidade de descanso físico, e portanto
vos inclinais à recreação intelectual. Assim
também aqui. Esse tipo de recreação, que
pode assumir diversas formas, é amplamente
fornecida pelos centros de estudo, visto que
o estudo pode, em si, ser uma distração.

Rute e eu já passamos muitas horas na bibli-


oteca e na sala de artes, mas já houve inú-
meras ocasiões em que sentimos necessida-
de de algo mais violento, e fomos até a prai-
a, tomamos uma daquelas belas embarca-
ções, e fomos visitar uma ilha.

Já contei como nossos barcos são impulsio-


nados puramente pelo processo de pensa-
mento, e já disse como se leva pouco tempo
para se tornar proficiente na arte de aplicar
335
tal propulsão. Essa proficiência é alcan-
çada finalmente, mas podemos atestar o
nosso progresso e receber auxílio valioso em
nossos esforços, tomando parte em competi-
ções aquáticas.

Deve-se notar a grande diferença entre as


competições no plano terrestre e aqui. Aqui,
temos a certeza de que a rivalidade é pura-
mente amistosa. Não há qualquer lucro, a-
lém da experiência e a aquisição de maior
perícia, e não há prêmios a disputar e a ga-
nhar. No final de cada corrida teremos certe-
za de que nos ajudaram a adquirir mais ex-
periência no manejo da embarcação.

Uma espécie de diversão que aqui desfruta


considerável favor é a representação dramá-
tica de diferentes espécies.

Temos belos teatros situados nos arredores,


e os arquitetos que os desenharam, fizeram-
no com o mesmo cuidado meticuloso usado
em tudo aqui, e o resultado, como sempre,
336
revela o grau de ativa cooperação que
existe entre os artesãos. A guarnição interior
é feita por exímios artistas do Edifício das
Fábricas; os jardins de fora mostram o mes-
mo cuidado devotado de sempre. O resulta-
do está tão longe de um teatro terreno
quanto se possa imaginar.

Há pessoas na terra que desaprovam intei-


ramente os teatros e tudo que se relaciona
com eles. Em muitos casos essa aversão é o
resultado da educação religiosa. Não posso
alterar a verdade para me pôr de acordo
com as opiniões religiosas de certas pessoas.
Falo de coisas de que tive provas, juntamen-
te com milhares de pessoas, e o fato de ha-
ver uma violenta desaprovação por parte de
terrenos contra o que descrevi como perten-
cente ao mundo espiritual, de modo algum
prova que tais fatos não existam e muito
menos que minhas afirmações são falsas. A
minha posição de observador é incompara-
velmente superior à deles, porque deixei o
mundo terreno e tornei-me habitante do es-
337
piritual. Se nossas descrições do mundo
que ora habito mudassem de acordo com
cada gosto individual ou cada preconceito
sobre o que possa ser o mundo do espírito,
teríamos que interromper a cada instante
para fazer descrições, visto que, após tantas
interferências elas estariam já sem valor. E
uma vez que eu não vá transmitir nenhuma
falsa impressão ao dizer isso, deixai-me a-
crescentar que, quem quer que demonstras-
se desagrado a certas recreações, jamais
seria chamado a participar delas. Outra ob-
servação semelhante, é que poderemos en-
contrar essas pessoas morando em peque-
nas comunidades à parte, a salvo de qual-
quer espécie de coisas terrenas e vivendo no
lugar que elas sempre pensaram ser o paraí-
so. Tenho visto dessas pessoas, e não faz
muito tempo, geralmente antes de deixarem
o seu lar-paraíso em direção de um paraíso
mais perfeito, maior, que é o trabalho da
Suprema Mente,
338
Cada teatro neste reino é-nos conhecido
pelo tipo de peça que apresenta. As peças
em si são completamente diferentes daque-
las a que nos acostumaram na terra. Não
temos nada de sórdido, e os autores não
insistem em atormentar suas platéias. Po-
dem-se ver muitas peças onde problemas
sociais são debatidos, mas ao contrário das
terrenas, aqui damos uma solução a cada
problema — o que às vezes a cegueira dos
terrenos impede de ver;

Podemos ver comédias em que, asseguro-


lhes, o riso é muito mais intenso e espontâ-
neo do que na terra. No espírito podemos
nos dar ao luxo de rir de coisas que, quando
encarnados, tínhamos de encarar com serie-
dade.

Já testemunhamos grandes desfiles históri-


cos mostrando os grandes momentos de
uma nação, e vimos a história como foi re-
almente e não fantasiosamente escrita nos
livros. Mas certamente o mais impressionan-
339
te, e ao mesmo tempo o mais interessan-
te, é estar presente a esses desfiles onde os
participantes originais revivem os aconteci-
mentos em que se envolveram. Essas repre-
sentações estão entre as mais procuradas
aqui, e não há auditório mais atento e apai-
xonado que os atores que durante suas vidas
terrenas, representaram os papéis dos tipos
famosos que agora vêem em carne e osso.

Em tais espetáculos os incidentes baixos e


mais sórdidos são omitidos inteiramente,
pois seriam repugnantes à assistência. Nem
são mostradas cenas onde haja batalhas,
violência e morticínio.

A princípio sentimos uma sensação estranha


ao depararmos com os portadores de nomes
famosos do mundo, mas aos poucos nos a-
costumamos, e isso se torna parte de nossa
existência normal.

A mais notável diferença entre os dois mun-


dos no que se refere a distrações, é criada
340
pelas nossas condições espaciais. Não
temos necessidade de fazer exercício corpo-
ral, vigoroso e também não necessitamos de
ar livre. Nossos corpos espirituais estão sem-
pre em perfeitas condições; não sofremos
distúrbios de espécie alguma e o ar penetra
em todos os recantos de nossos lares e edifí-
cios onde retém completamente a sua pure-
za. Seria impossível tornar-se viciado ou con-
taminado. É de esperar portanto que nossas
recreações sejam mais do lado mental do
que do físico.

Como a maioria dos jogos ao ar livre no


mundo terreno requerem o uso de uma bola,
deve-se observar que aqui, onde as leis de
gravidade agem de maneira diferente, tudo
que significasse impelir uma bola por meio
de batidas, redundaria em uma inutilidade.

No plano terrestre a perícia em jogos é ad-


quirida pelo domínio da mente sobre os
músculos do corpo, quando este está em
condições de saúde perfeita. Mas aqui esta-
341
mos sempre em forma, e nossos múscu-
los estão sempre sob completo controle de
nossas mentes. A eficiência é rapidamente
assimilada, seja para tocar um instrumento
musical, pintar um quadro ou qualquer outra
especialização que requeira o uso dos mem-
bros. Poder-se-á ver portanto que a maioria
dos jogos comuns não teria razão de ser a-
qui.

Deve-se lembrar que o exterior ou interior é


exatamente o mesmo para nós. Não temos
mudanças de temperatura. O grande sol cen-
tral brilha eternamente e faz sempre um de-
licioso calor. Nunca sentimos necessidade de
uma rápida marcha para melhorar a circula-
ção do sangue. Nossos lares e casas não são
necessidades, mas adições a uma vida já
agradável. Acharemos muitas pessoas aqui
que não possuem lares, porque não o que-
rem, visto que há sempre sol, e a temperatu-
ra é eternamente agradável. Nunca ficam
doentes ou com fome, ou com necessidade
de coisa alguma.
342
Deve-se lembrar que os pontos de vista
mudam completamente ao chegar aqui. O
que considerávamos muito importante em
vida, aqui achamos de menor importância e
muito de nossos antigos jogos terrenos nos
parecem meio triviais e insossos, em compa-
ração com as nossas forças mentais gran-
demente aumentadas. O fato de que pode-
mos nos mover através do espaço instanta-
neamente é bastante para fazer nossas anti-
gas proezas atléticas parecerem insignifican-
tes. Nossas recreações pertencem mais à
mente e nunca sentimos necessidade de
despender energias supérfluas, porque nossa
energia está sempre em nível constante com
nossas necessidades. Descobrimos que te-
mos muito a aprender, e o aprendizado é em
si um prazer tão grande que não precisamos
da variedade de esportes que a terra precisa.
Temos infinita música para ouvir, tantas ma-
ravilhas a descobrir, tanto trabalho agradável
a fazer, que não há motivo para lamentar a
escassez de esportes terrenos e passatem-
343
pos no mundo espiritual. Ao lado da a-
bundância de coisas absorventes a serem
feitas e vistas, as recreações terrenas pare-
cem meras\ trivialidades.

IX. Pessoa Espiritual

Como nos sentimos ao tornarmo-nos espíri-


tos? Essa é uma questão já suscitada em
mentes de muita gente. Se, ao contrário,
perguntássemos: como se sentem as pesso-
as da Terra?, estaríamos inclinados a res-
ponder que a pergunta é meio tola, porque
tendo sido encarnados já deveríamos saber.
Mas antes de ser afastada a questão, vamos
ver o que se pode dar como resposta.

Antes de mais nada consideremos o corpo


físico. ele sofre fadiga, pelo que é necessário
ter descanso; sente fome e sede e deve ser
provido de alimento e bebida; ele pode so-
frer tormentos e dores por meio de uma
grande variedade de doenças; pode perder
seus membros através de acidentes ou por
344
outras causas. Os sentidos podem tornar-
se embotados pela idade ou acidentes, po-
dem causar a perda da vista ou da audição;
ou então o corpo físico pode vir ao mundo
privado de algum sentido ou incapaz de fa-
lar. O cérebro físico pode ser afetado tor-
nando-nos incapazes de ações sadias e, con-
seqüentemente, temos que ser cuidados por
outros.

Que tenebroso quadro, direis! Assim é, mas


qualquer um pode ser vítima de pelo menos
uma infelicidade, dessa lista de limitações
que mencionei. Pelo menos três são comuns
a toda alma na terra — a fome, a sede e a
fadiga.

Agora eliminemos completa e inteiramente


cada uma dessas incapacidades; excluamos
infalivelmente e para sempre suas causas, e
teremos a idéia do que significa ser uma
pessoa espiritual.
345
Quando eu estava na terra sofri alguns
dos padecimentos comuns a nós, sofrimen-
tos que não são sérios e devemos encarar
como naturais: dores pequenas que conse-
guimos suportar. Além dessas dores, estava
cônscio de meu corpo físico pela manifesta-
ção da fome, sede, e fadiga. A doença final
— a mais séria — foi demais para o pobre
corpo e sobreveio a minha transição. Imedia-
tamente senti o que é ser uma criatura do
espírito.

Ao deparar com Edwin sentia-me fisicamente


um gigante, apesar do fato de que acabava
de deixar um leito de doença. Com o passar
do tempo senti-me melhor ainda. Não tinha
a mínima sombra de dor e sentia-me leve
como se na verdade não tivesse corpo al-
gum. Minha mente estava completamente
alerta e eu me dava conta de meus membros
somente quando precisava mover-me, apa-
rentemente sem nenhuma das ações muscu-
lares que me eram até então familiares. É
muito difícil explicar essa sensação de perfei-
346
ta saúde, porque é uma coisa impossível
na terra, e portanto não há nada com que eu
possa traçar uma comparação ou formar
uma analogia. Esse estado pertence ao espí-
rito apenas, e desafia por completo qualquer
descrição em termos terrestres. Deve ser
experimentado, e isso é impossível até que
nos encontremos aqui.

Já disse que minha mente estava alerta mas


isso não diz tudo. Descobri que minha mente
era um verdadeiro depósito de fatos referen-
tes à minha vida passada. Cada ação que eu
realizara e cada palavra emitida, cada im-
pressão recebida, cada fato sobre que eu
lesse, cada incidente testemunhado, tudo
isso descobri estar indelevelmente registrado
em meu subconsciente. E isso é comum a
toda pessoa espiritual que já teve vida en-
carnada.

Não julguem que somos continuamente as-


sombrados por uma louca fantasmagoria de
uma miscelânea de idéias e impressões. Se-
347
ria um verdadeiro pesadelo. Não. Nossas
mentes são como uma biografia completa da
vida terrena, onde está anotado cada por-
menor referente a nós mesmos, arrumado
em ordem e onde não se omite coisa algu-
ma. O livro está fechado, mas está ali, sem-
pre à mão, para consultarmos e meramente
recordarmos os incidentes, se o desejarmos.

A descrição que vos dei dessa especial me-


mória da alma, traz à tona outras leis, como
já tentei mostrar. Não estou preparado para
explicar como, apenas posso dizer o que a-
contece.

Essa memória enciclopédica de que somos


dotados, não é difícil de compreender quan-
do nos detemos para considerar nossa me-
mória média na terra. Não se é continua-
mente incomodado pelos incidentes de toda
a nossa vida, mas eles estão simplesmente à
mão para se recordar, querendo. Um inci-
dente desencadeará uma corrente de pen-
samentos em que a memória participará. Às
348
vezes não se pode solicitar o que há na
memória, mas no mundo espiritual isso é
imediatamente possível, sem esforço e sem
falhas. O subconsciente nunca esquece e
assim nosso passado se torna censura ou
não, de acordo com a nossa vida terrena. As
anotações sobre as placas da verdadeira
mente não podem ser apagadas. Lá estão
para todo o sempre, sem necessariamente
nos perseguir, porque nessas anotações es-
tão também as boas ações, os bons pensa-
mentos e tudo de que possamos justamente
nos orgulhar. E se estão escritas em caracte-
res maiores e mais enfeitadas do que os fa-
tos que lamentamos, tanto melhor.

É claro que quando estamos no mundo espi-


ritual, nossas memórias são persistentemen-
te retentivas. Quando fazemos um curso de
estudos sobre qualquer assunto, vemos que
aprendemos facilmente e rapidamente por-
que estamos livres das limitações que o cor-
po físico impõe à mente. Se estamos adqui-
rindo conhecimentos, reteremos esses co-
349
nhecimentos, sem dúvida nenhuma. Se
nos estamos aperfeiçoando em algo que re-
quer destreza manual, veremos que nossos
corpos espirituais respondem aos impulsos
de nossas mentes, imediata e exatamente.
Aprender a pintar um quadro ou tocar algum
instrumento musical, para mencionar apenas
duas atividades comuns, são tarefas que le-
vam apenas uma fração do tempo que nos
tomariam quando ainda encarnados. Ao a-
prender a fazer um jardim espiritual ou a
construir uma casa, veremos que a perícia
exigida é atingida com igual facilidade e ra-
pidez; isto é, tanto quanto nos permitir nos-
sa inteligência. Porque não somos dotados
de aguda inteligência no momento em que
nos desfazemos do corpo físico. Se assim
fosse, estes reinos seriam habitados por su-
per-homens e supermulheres, e na verdade
está longe disso! Mas a nossa inteligência
pode ser aumentada; isso é parte do nosso
progresso. A mente tem ilimitados recursos
para expansão intelectual e melhoria, por
350
mais atrasados que possamos ser quan-
do aqui chegamos. E o nosso progresso inte-
lectual se adiantará certa e firmemente, de
acordo com o nosso desejo ou prazer de o
fazer, sob a orientação de capazes mestres
de todos os ramos de ciências. E ao longo de
todos os estudos seremos assistidos por nos-
sas memórias infalivelmente receptivas. Não
há esquecimento.

Agora passemos ao corpo espiritual em si.


ele é, geralmente falando, a réplica do corpo
terreno. Quando chegamos aqui, somos re-
conhecidamente nós mesmos. Mas deixamos
para trás todas as nossas incapacidades físi-
cas. Temos membros, vista e audição, e to-
dos os outros sentidos funcionando perfei-
tamente. Na verdade os cinco sentidos, co-
mo os chamamos na terra, tornam-se vários
graus mais agudos quando desencarnamos.
Qualquer supernormal ou anormal condição
do corpo físico, tal como excessiva gordura e
magreza, desaparece quando chegamos a
estas paragens.
351
Há uma fase em nossas vidas na terra
que se chama a flor da idade. É nessa dire-
ção que todos nós nos encaminhamos. Aque-
les que são idosos, ao passarem a espírito,
voltarão a esse período. Outros que são jo-
vens se adiantam até essa fase, e todos nós
preservamos as nossas naturais característi-
cas que nunca nos abandonarão. Mas desco-
brimos que muitos traços menores, que po-
demos muito bem dispensar, são eliminados
juntamente com nossos corpos físicos — cer-
tas irregularidades do corpo com que te-
nhamos nascido, ou que nos advieram com o
correr dos anos. Quantos de nós, gostaria eu
de saber, não terão alguma sugestão a fazer
no sentido de melhorar nosso corpo, se fosse
possível.

Já vos disse como as árvores aqui crescem


em absoluta perfeição — direitas e limpas,
bem formadas porque não há tempestades
ou ventos para lhes curvar os jovens galhos
e deformá-los. O corpo espiritual está sujeito
à mesma coisa. As tempestades da vida po-
352
dem distorcer o corpo, e se essa vida foi
espiritualmente feia o corpo espiritual será
similarmente torcido. Mas se a vida terrena
foi sã, o corpo espiritual será corresponden-
temente são. Há muitas belas almas habi-
tando um corpo terreno disforme, assim co-
mo há almas más dentro de corpos bem
formados. Mas no mundo espiritual se revela
a verdade a respeito de todos.

Como é a aparência anatômica do espírito,


perguntareis? É exatamente a mesma que a
vossa da terra. Temos músculos, nervos,
ossos, mas não são da terra, são puramente
do espírito. Não sofremos indisposições —
isso seria impossível aqui. Portanto nossos
corpos não requerem cuidados constantes
para se manterem em boa saúde. Aqui ela é
sempre perfeita, porque temos um grau de
vibração tão elevado que gérmens causado-
res de doenças não podem entrar. Subnutri-
ção, no sentido em que é conhecida na terra,
não existe aqui. Mas subnutrição espiritual,
isto é, da alma, certamente existe.
353
Será estranho pensar que um corpo espi-
ritual possua cabelos e unhas? Como queríeis
que fôssemos? Não seríamos repugnantes
sem os traços anatômicos usuais? Isto pare-
ce uma afirmação elementar, mas é às vezes
necessário dar voz ao elementar.

Como é o corpo espiritual coberto? Muita


gente, para não dizer a maioria, desperta
nestes reinos, vestida com a cópia das ves-
timentas que usava na terra na época de sua
transição. É razoável que isso aconteça por-
que tal vestimenta é costumeira, especial-
mente quando a pessoa não tem previsão
das condições do mundo espiritual. E assim
permanece até que o queira. Seus amigos
lhe dirão do seu verdadeiro estado de ser, e
ela poderá assim mudar a roupa, se o dese-
jar. Muitos se alegram de o fazer, visto que o
antigo estilo usado na terra lhes parece triste
e sem cor nestes risonhos reinos. Não demo-
rei muito a pôr de lado o meu velho hábito
religioso, visto que o preto é sombrio demais
para esta galáxia de cores.
354
Ás vestimentas espirituais variam tanto
quanto variam os reinos. Parece sempre ha-
ver alguma sutil diferença entre as roupas de
um espírito e de outro, tanto na cor como na
forma, de maneira que há uma variedade
infinita tanto na cor como na forma.

Todas as roupas espirituais são compridas


quase até os pés. São suficientemente lar-
gas, de modo que caem em pregas graciosas
e estas pregas é que oferecem os mais lin-
dos matizes de cores e luzes. Seria impossí-
vel dar uma idéia do que são.

Vêem-se muitas pessoas usando uma faixa


ou cinto à cintura, às vezes de fazenda, ou-
tras de rendas de ouro ou prata. Em qual-
quer dos casos, constituem recompensas por
serviços prestados. São geralmente adorna-
das com as mais belas pedras preciosas, de
vários formatos, e montadas em engastes
maravilhosos. Os entes superiores são vistos
usando os mais magníficos diademas, tão
brilhantes como os cintos. Aqueles que per-
355
tencem a graus inferiores podem usar tal
adorno mas de formas menos imponentes.

Há uma grande riqueza de sabedoria espiri-


tual atrás de cada adorno, mas um fato pre-
cisa ficar bem claro: tais enfeites precisam
ser conseguidos. Os prêmios são dados ape-
nas por mérito.

Podemos usar o que quisermos nos pés, e a


maioria prefere usar algo que os proteja e
geralmente é um sapato leve ou sandália. Já
vi inúmeras pessoas que preferem andar
descalças. Isso não provoca comentários
porque é natural e comum.

O material que usamos nas roupas não é


transparente como alguns julgam. É bem
compacto. E a razão pela qual não é transpa-
rente é que nossa roupa possui o mesmo
grau vibracional que o possuidor. Quanto
mais alto progredimos maior se torna esse
grau, e, conseqüentemente, os moradores
dessas elevadas esferas adquirem uma incrí-
356
vel fragilidade no espírito e nas roupas.
Essa transparência é mais visível a nós do
que a eles, isto é, externamente visível, pela
mesma razão que uma luz pequena parecerá
mais luminosa em virtude da escuridão rei-
nante em volta. Quando se aumenta a luz
mil vezes, — como é o caso dos planos supe-
riores — o contraste é incomensuravelmente
maior.

Raramente usamos cobertura para a cabeça.


Não recordo ter visto nenhum por aqui pois
não necessitamos proteção contra os ele-
mentos.

Creio já terdes concluído a esta altura que


ser uma pessoa espiritual pode ser algo bem
agradável.

Em minhas andanças pelos reinos da luz ain-


da não encontrei um único indivíduo que
quisesse trocar esta bela vida por aquela
velha da terra.
357
Experto crede!

X. A ESFERA DAS CRIANÇAS

Uma das inúmeras perguntas que fiz a Edwin


logo após minha chegada referia-se ao des-
tino dado às crianças que passavam a espíri-
to.

Há um período de nossa vida terrena a que


estamos acostumados a chamar Flor da ida-
de. Há uma também aqui, e é na direção
desse período que todas as almas ou voltam
ou se adiantam, conforme a idade em que
tem lugar seu passamento. Quanto tempo
leva, depende inteiramente delas, visto que
é apenas uma questão de progresso espiri-
tual e desenvolvimento, apesar, de que para
os jovens este período seja geralmente mais
curto. Aqueles que passam a espírito depois
da flor da idade, sejam eles idosos ou de
meia-idade, tornar-se-ão mais jovens na a-
parência apesar de amadurecerem espiritu-
almente. Não se deve concluir com isso que
358
nós todos chegamos a um nível estático
de vulgar uniformidade. Externamente pare-
cemos jovens: perdemos aqueles sinais que
a passagem dos anos causa e que tanto nos
perturbam quando mortais. Mas nossas men-
tes tornam-se mais velhas ao ganharmos
conhecimento e sabedoria e maior espiritua-
lidade, e essas qualidades da mente são ma-
nifestas a todos com quem entramos em
contato.

Quando visitamos o templo da cidade, e, à


distância, vimos o radiante visitante que vié-
ramos honrar, ele apresentava o aspecto
perfeito e eterno da juventude. No entanto o
grau de sabedoria e espiritualidade que di-
fundia e que podíamos sentir com nossas
mentes, era avassaladoramente grande. A-
contece o mesmo, em vários graus, com a-
queles que vêm dos mais altos planos para
nos visitar. Se, portanto, verificamos este
rejuvenescimento de pessoas adultas, o que
se dará com as almas dos que morreram
crianças ou dos que morreram ao nascer?
359
A resposta é que crescem como o fariam
na terra. Mas às crianças daqui — de todas
as idades — é dado um tratamento e cuida-
do que nunca seria possível na terra.

A criança cuja mente ainda não está comple-


tamente formada e não está contaminada
pelos contatos terrenos, ao passar a espírito
acha-se num reino de extrema beleza, presi-
dido por almas igualmente belas. O reino
destas crianças chama-se o berçário do céu
e quem quer que tenha a fortuna de visitá-lo
sabe que não há termo mais adequado. E foi
em resposta à minha pergunta que Edwin
propôs levar Rute e eu para o conhecermos.

Encaminhamo-nos para o limite entre os rei-


nos superiores e o nosso, e voltamo-nos na
direção da casa de Edwin. Já podíamos sentir
a atmosfera rarefeita, embora não o bastan-
te para nos causar desconforto. Notei que
essa atmosfera tinha
360
bem mais cor do que as profundezas do
reino. Era como se um grande número de
focos luminosos se encontrassem e espa-
lhassem seus largos raios por toda a paisa-
gem. Esses raios de luz estavam sempre em
movimento, entrelaçando-se e produzindo as
mais delicadas misturas de cores com suces-
sivos arco-íris. Eram extremamente repou-
santes e também cheios de vitalidade, e,
como pareceu a Rute e a mim, de alegria e
despreocupação. Tristeza e infelicidade, sen-
tíamos ser inteiramente impossível aqui.

O campo era mais verde, as árvores não tão


altas mas bem formadas como todas as ou-
tras aqui.

Depois de algum tempo a atmosfera clareou


e, sem os raios coloridos já era mais seme-
lhante à nossa. Mas havia uma estranha e
sutil diferença que intrigava o visitante na
sua primeira visita, e derivava, como nos
disse Edwin, da espiritualidade das crianças
que aqui vivem. Algo como isso se encontra
361
quando se tem o privilégio de viajar por
reinos mais elevados. É quase como se hou-
vesse maior grau de beleza no ar, à parte o
notável efeito de elevação da mente.

Vimos vários esplêndidos edifícios ao cami-


nharmos pela grama macia. Não eram muito
altos mas largos e extensos, e todos agrada-
velmente situados entre jardins floridos.

Flores, é desnecessário dizer, cresciam em


abundância nos canteiros artísticos e em
grandes agrupamentos nas encostas e sob
as árvores. Já expliquei, a respeito das flo-
res, que suas semelhantes da terra crescem
por si mesmas, e que as próprias do mundo
do espírito acham-se separadas das primei-
ras. Dissemos que não há significação espe-
cial nesta segregação, mas que ela existe
para mostrar simplesmente a distinção entre
duas classes de flores: a espiritual e a terre-
na. Tão belas quanto na terra são as. flores
que aqui crescem, e não pode haver compa-
ração com as que pertencem ao espírito. E
362
aqui ainda estamos limitados pela expe-
riência terrena ao descrevermos suas bele-
zas. Não são de cores mais ricas do que as
da terra, mas a conformação e folhagem são
de beleza sem paralelo, pois não conhece-
mos nenhum exemplo na terra que lhe possa
servir de comparação. Mas não se deve su-
por que essas magníficas flores sejam de
estufas. Longe disso. A superabundância de-
las, aliada à força e variedade de seus per-
fumes imediatamente afastaria a idéia de
raridade. Não houve nenhum caso em que o
cultivo da beleza de uma flor prejudicasse o
seu perfume. Todas possuem a qualidade
comum a todas as coisas que crescem aqui,
ou seja, a de verter força energética não só
através de seu aroma, mas também através
do contato pessoal. Já experimentei segurar
uma flor com as mãos em forma de concha
— Rute assim me instruiu — e senti uma
corrente de força vital fluir para os meus
braços.
363
Podiam-se também ver deliciosos reser-
vatórios de água e lagoas, em cuja superfície
floresciam as mais belas flores aquáticas.
Noutra direção viam-se uma série de lagos
maiores, com inúmeros barquinhos vogando
serenamente.

Os prédios leiam construídos de uma subs-


tância semelhante ao alabastro, e de tonali-
dades as mais delicadas; o estilo da arquite-
tura lembrava os de nossa própria esfera.

Mas o que nos provocou maior surpresa foi o


ver, confundidas no meio dos bosques, as
mais engraçadas casinhas de campo, tais
como costumamos ver em livros de fadas.
Havia minúsculas casas de vigas recurvas,
telhados vermelhos e janelas de minúsculos
vidros, e cada uma com o seu encantador
jardim ao redor.

Pode-se pensar que o mundo espiritual tenha


se inspirado na terra, nessas criações fanta-
sistas para a alegria das crianças, mas não
364
foi o caso. Na verdade, toda essa con-
cepção de casas em miniatura emanou do
próprio mundo espiritual. Qualquer artista
que tenha recebido nossa impressão original,
perdeu-a na terra através dos anos. Esse
artista é conhecido aqui, onde vai continuar
sua obra na esfera das crianças.

Essas casinhas eram grandes o bastante pa-


ra permitir a entrada de um adulto sem bater
a cabeça. Para as crianças pareciam ser de
tamanho exato, e elas não tinham a impres-
são de se perderem lá dentro. Por essa
mesma razão é que todos

os grandes edifícios aqui não são muito al-


tos. Não os construindo muito altos nem de
salas grandes demais, estavam de acordo
com seus pequenos habitantes, que assim
não se sentiam diminuídos por eles.

Grande número de crianças vivem nessas


minúsculas habitações, cada uma presidida
por uma criança mais velha, perfeitamente
365
capaz de enfrentar qualquer situação que
surja entre os habitantes.

Ao andarmos víamos grupos de crianças feli-


zes, algumas jogando, outras sentadas na
grama enquanto uma professora lia para
elas. Outras ouviam atentamente as explica-
ções sobre flores numa aula de botânica.
Mas era uma botânica muito diferente da da
terra, no que se refere às flores essencial-
mente espirituais.

Edwin levou-nos a uma das professoras e


explicou-lhe a razão de nossa visita. Imedia-
tamente nos deram as boas--vindas e a pro-
fessora teve a bondade de responder a al-
gumas perguntas. Seu entusiasmo pelo tra-
balho aumentava o prazer de nos contar o
que desejássemos. Ela estava aqui havia um
bom número de anos. Como tivera filhos na
terra e como se interessasse muito por cri-
anças resolveu encarregar-se desse trabalho.
366
Nem era necessário dizer quão admira-
velmente ela se desincumbia desta tarefa.
Irradiando encanto e confiança, bondade e
alegria, ela atraía todas as crianças, compre-
endia a mente infantil, já que na verdade era
quase uma criança grande.

Possuía amplo conhecimento das mais inte-


ressantes coisas, especialmente das que a-
traem as crianças; tinha uma fonte inesgotá-
vel de histórias, e, o que é mais importante,
mostrava-se a pessoa mais feliz que já vi até
hoje.

Nesta esfera, nos disseram, há crianças de


todas as idades, desde o bebê, cuja existên-
cia na terra não foi além de alguns minutos
ou que nem chegou a ter existência própria,
ao jovem de dezesseis ou dezessete anos.

Acontece freqüentemente que as crianças,


ao crescerem, permanecem na mesma esfe-
ra e elas mesmas se tornam professores por
367
algum tempo, ou até que seu trabalho as
leve a outros lugares.

E os pais? Foram eles alguma vez os profes-


sores de seus próprios filhos? Raramente ou
nunca, segundo nos disse nosso informante.
É uma prática que raras vezes dá certo, visto
que o pai estaria inclinado a favorecer o seu
próprio filho e poderia haver embaraços. Os
mestres são sempre almas de grande experi-
ência, e não há muitos pais na terra que se-
riam capazes de orientar a educação do espí-
rito infantil imediatamente após o passamen-
to.

Se os professores foram pais ou não no pla-


no terrestre, eles aqui têm de submeter-se a
um extenso curso antes de se julgarem ap-
tos a preencher o cargo de mestre de crian-
ças, para manter os rígidos padrões de tra-
balho.
368
O trabalho não é árduo, a julgar pelo
padrão terreno, mas exige uma multiplicida-
de de atributos especiais.

O crescimento mental e físico da criança no


mundo espiritual é mais rápido do que no
mundo terrestre. Vós vos lembrais da reten-
ção da memória de que já vos falei? Ela co-
meça assim que a mente seja capaz de a-
prender algo, e isso acontece bem cedo. A
aparente precocidade é perfeitamente natu-
ral, porque a mente jovem absorve conheci-
mentos facilmente. O temperamento é cui-
dadosamente estudado pelas linhas espiritu-
ais e as crianças são treinadas primeiro a
respeito de assuntos espirituais e depois é
que são instruídas acerca do mundo.

O governante do reino age, em geral, in loco


parentis, e todas as crianças, na verdade, o
consideram como pai. O ensino das crianças
é muito vasto. Elas aprendem a ler, mas
muitas das disciplinas do curriculum terreno
são omitidas como supérfluas.
369
Ao crescer, as crianças podem escolher
sozinhas o tipo de trabalho que prefiram e,
especializando-se, tornam-se perfeitamente
aptas para desenvolver a atividade escolhida.
Algumas, por exemplo, preferem voltar à
terra temporariamente para trabalhar no e-
xercício das comunicações e se tornam alta-
mente eficientes. Tais visitas têm a vanta-
gem de aumentar suas experiências, apro-
fundando sua compreensão das atribuições e
prazeres dos seres encarnados.

Surge sempre esta pergunta na mente de


pessoas da terra, com referência a crianças
que já morreram: "Poderemos nós reconhe-
cer nossos filhos quando chegarmos ao
mundo espiritual?', A resposta é um enfático
sim, fora de qualquer dúvida. — "Mas como?
se eles cresceram no mundo espiritual e lon-
ge de nossas vistas?"

Para responder, é necessário conhecer um


pouco mais a respeito de nós mesmos.
370
Deveis saber que, quando dormimos, o
espírito se retira temporariamente do corpo
físico, se bem que permaneça ligado a ele
por um fio magnético. Esta ligação é o fio da
vida entre o espírito e o corpo. O espírito,
assim liberto, ou permanece nas vizinhanças
do corpo ou gravitará para a esfera que seus
atos terrenos lhe terão dado direito de fre-
qüentar. O espírito passa, portanto, parte da
sua existência em terras espirituais. E é nes-
tas visitas que encontramos parentes e ami-
gos que morreram antes de nós; é também
nessas visitas que os pais podem encontrar
seus filhos, e assim observar seu crescimen-
to. Na maioria dos casos os pais não podem
penetrar na esfera dos próprios filhos, mas
há inúmeros lugares onde tais encontros po-
dem ocorrer. Lembrando o que eu disse so-
bre a retenção da memória subconsciente,
vereis que, em tais casos não pode haver
problema para reconhecer um filho, porque o
pai viu o filho e observou seu crescimento da
371
mesma maneira que o teria feito se a
criança permanecesse na terra.

Deve haver, é claro, suficientes laços afetivos


entre os dois, do contrário esta lei não fun-
ciona. Onde eles não existem, a conclusão é
óbvia. O laço de afeição e interesse deve
também existir entre todas as relações hu-
manas no mundo espiritual, seja entre mari-
do e mulher, pai e filho ou entre amigos.
Sem ele é problemático que as pessoas se
encontrem, a não ser ocasional e fortuita-
mente.

O reino das crianças é uma cidade em si,


contendo tudo que grandes mentes, inspira-
das pela Mente Suprema, podem fornecer
para o bem-estar, conforto, educação, prazer
e felicidade de seus jovens habitantes. Os
templos do saber estão equipados com todo
o necessário para a difusão do saber, daque-
les que não o possuem ainda no menor grau,
e que portanto precisam começar pelo co-
meço. Isto se refere a crianças que morre-
372
ram muito cedo. Crianças que deixam o
mundo nos seus primeiros anos continuarão
seus estudos onde os largaram, eliminando
todos os que não lhes serão de utilidade fu-
tura, e acrescentando os espiritualmente ne-
cessários. Assim que alcançam idade ade-
quada podem escolher seu futuro e estudar
de acordo com suas preferências. E elas têm,
como era de esperar, as mesmas oportuni-
dades, os mesmos direitos à herança espiri-
tual, como os temos todos, velhos ou novos.

E todos fixamos o mesmo alvo — a felicidade


perfeita e perpétua.

XI. OCUPAÇÕES

O mundo espiritual é não só uma terra de


oportunidades idênticas para todos, mas es-
sas oportunidades são de uma escala tão
vasta que nenhuma pessoa encarnada pode
ter a menor idéia de sua magnitude. Oportu-
nidades para quê? — perguntareis. Para o
bom, o útil e o interessante trabalho. Espero
373
que, a esta altura, já tenha feito notar
que o mundo espiritual não é uma terra de
ociosidade, um lugar onde seus habitantes
passam a existência numa atmosfera de su-
per-êxtase religioso, oferecendo formalmente
louvores e orações ao Grande Trono, numa
corrente ininterrupta. Há uma corrente, com
certeza, mas de maneira muito diferente.
Surge dos corações de todos que estão feli-
zes e gratos por se acharem aqui.

Quero tentar dar uma leve idéia da imensa


variedade de ocupações a que podemos nos
dedicar aqui.

Vossos pensamentos se voltarão imediata-


mente para as muitas modalidades de ocu-
pações do mundo, mas atrás delas há sem-
pre a necessidade urgente de se ganhar a
vida, de prover o corpo físico com comida e
bebida, roupa e habitação de alguma quali-
dade. Bem, já sabeis que essas considera-
ções não existem entre nós, visto que ali-
mento e bebida não são necessários, assim
374
como roupas e habitações. Conforme
foram nossas vidas na terra, assim serão
nossas roupas e domicílios quando aqui che-
gamos. Não temos, pois, necessidade física
de trabalho, mas sim, mental, e por causa
disso o trabalho é um prazer aqui.

Imaginemo-nos num mundo onde ninguém


trabalha para viver, mas onde todos traba-
lham pela pura alegria de fazer algo útil aos
outros. Imaginai isso e começareis a com-
preender algo da nossa vida.

Muitas ocupações não têm razão de ser nes-


tes reinos. Embora úteis e necessários, per-
tencem a um período essencialmente terreno
da vida. O que acontece então às pessoas
que as praticam? Descobrirão imediatamente
que deixaram suas vocações terrenas para
trás porque a necessidade de subsistência
física não mais existe, e em lugar disso tais
pessoas sentem-se gloriosamente livres para
se ocuparem em algum novo trabalho. Não
precisam mais indagar do que são capazes:
375
logo acharão algo que lhes atrairá a a-
tenção e interesse. E não demorarão muito a
se unir a seus companheiros para aprende-
rem alguma ocupação nova.

Até aqui só me referi ao trabalho abstrata-


mente. Sejamos mais específicos, conside-
rando alguns dos seus aspectos físicos, e
para isso vamos à cidade.

Em caminho atravessamos belíssimos jardins


que foram algum tempo desenhados e cria-
dos. Aqui, digamos, está o primeiro meio de
atividade. Milhões de pessoas na terra amam
os jardins e o seu trato. Que poderia haver
de melhor do que continuar aqui com seu
trabalho, fora das exigências físicas, livres e
despreocupadas, e com os inesgotáveis re-
cursos do mundo espiritual às suas ordens?
Podem parar quando bem entendem e reto-
mar o trabalho quando desejam, visto que
não há ninguém para impor-lhes sua vonta-
de. E qual é o resultado? Felicidade para si
próprios, porque ao criarem uma bela obra
376
de arte horticultura eles aumentaram a
beleza de um lugar já belíssimo, e assim
trouxeram felicidade aos seus semelhantes.
Assim continuam sua tarefa, alterando, re-
formando, planejando, embelezando, cons-
truindo e sempre adquirindo mais e mais
perícia. Assim continuam até que desejem
mudar de trabalho, ou até que seu progresso
espiritual os leve para novos campos.

Agora vejamos o templo da música, e que


atividade podemos achar lá. Alguém, é claro,
tinha que planejar, e outros tinham que
construir o templo, propriamente. Já falei a
respeito da construção do anexo da bibliote-
ca. Em todas as construções grandes o mé-
todo seguido é o mesmo, mas aqui ele tem
de ser aprendido, e a obra de arquitetos e
construtores, com seus vários assistentes
técnicos, está entre uma das mais importan-
tes do mundo espiritual. Toda espécie de
atividade está aberta a qualquer um que
goste dela. Mas é surpreendente ver quão
rapidamente se ganha eficiência pelo estímu-
377
lo da vontade. A vontade de fazer é
transformada em habilidade de fazer em
muito pouco tempo.

Na seção de música temos bibliotecas onde


os alunos se ocupam em seus estudos. A
maioria está aprendendo a ser musicista, isto
é, aprendendo a tocar um ou mais instru-
mentos. E alguém tem que fornecer-lhe os
necessários instrumentos, por isso os fabri-
cantes de instrumentos da terra se acham à
vontade em sua arte, se desejam continuar a
exercê-la. Bem, agora podemos observar
que uma existência inteira passada na terra
a exercer uma especialidade seria mais do
que suficiente para a maioria, e que retomar
essa mesma atividade, com sua interminável
rotina seria a última coisa que se desejaria.
Mas lembrai-vos do que já disse acerca da
liberdade nestas paragens, e o fato de que
ninguém é obrigado, nem por força das cir-
cunstâncias, nem por mera
378
necessidade de subsistência, a fazer
qualquer trabalho no mundo espiritual. Lem-
brai-vos de que todo trabalho é voluntário,
por simples amor e orgulho de criar algo, e
pelo desejo de ser útil a outros habitantes do
reino.

Incidentalmente, devo mencionar que não é


imperativo adquirir um instrumento musical
por intermédio do templo da música. Qual-
quer pessoa o pode fabricar para uma outra
que o necessite. Em muitas casas há — e
não como mero ornamento — um belo piano
construído por mãos destras que aprende-
ram os métodos espirituais da criação. Essas
coisas não se podem criar, são recompensas
espirituais. Seria inútil tentar possuir aquilo a
que não temos direito.

Antes de prosseguirmos, olhemos a bibliote-


ca. Aqui há partituras musicais aos milhares,
juntamente com vários solos para instrumen-
tistas. A maioria das grandes orquestras ob-
têm suas músicas do templo da música. Têm
379
liberdade de pedi-las emprestado sempre
que o desejar, mas alguém tem que duplicar
as partes musicais. E essa é outra importan-
te e produtiva ocupação. Os bibliotecários
que cuidam das músicas, e que atendem às
necessidades do público, preenchem outra
tarefa útil. E assim, os pormenores podem
ser multiplicados, indo da pessoa que apenas
ama a música àquelas que são instrumentis-
tas e regentes.

Na seção de tecidos, dá-se o mesmo. A


qualquer momento que desejar, posso jun-
tar-me aos estudantes que aprendem a tecer
os mais encantadores tecidos. Acontece, po-
rém, que meu interesse está noutro setor, e
minhas visitas aqui são puramente de recrei-
o. Rute entretanto, passa certo tempo estu-
dando e já é perita em tapeçaria. É para ela,
em parte estudo e ocupação, em parte, re-
creação. Já teceu algumas belas tapeçarias,
das quais Edwin e eu possuímos duas belís-
simas, em nossas paredes. Pode-se obter
qualquer material que se deseja, ou, como
380
no caso da música, pode-se pedir a al-
gum artesão para fazer o que se deseja.
Nunca se ouve uma recusa, nem se tem de
esperar longo tempo para receber o que se
quer.

Bem, dei apenas uns dois ou três exemplos


do que é possível a uma pessoa fazer aqui.
Há outros milhares, que formam um grande
campo de atividades. Imaginai os médicos
que aqui continuam sua obra. Não que ne-
cessitemos deles como tais, mas porque aqui
podem trabalhar com colegas que investigam
as causas das doenças e moléstias na terra,
e podem ajudar a aliviá-las. Muito médico
espiritual já guiou a mão de um cirurgião da
terra enquanto este realiza uma operação. O
médico terreno provavelmente nem se dá
conta do fato, e ridicularizaria qualquer insi-
nuação de que está recebendo auxilio de
uma fonte desconhecida. O médico espiritual
contenta-se em auxiliar, sem reconhecimento
algum do auxiliado. É o resultado final que
lhe interessa e não o crédito. Em tais casos,
381
o médico da terra faz interessantes des-
cobertas, ao chegar finalmente ao mundo
espiritual.

Os cientistas também continuam suas pes-


quisas ao chegar aqui. Qualquer que seja o
ramo de ciência que lhes interesse, aqui a-
charão mais do que o suficiente para ocupar
sua atenção por bastante tempo. Assim tam-
bém, o engenheiro e muitos outros. Na reali-
dade, seria impossível, ou pelo menos um
tanto enfadonho talvez, percorrer a longa
lista de ocupações já tão conhecidas da ter-
ra. Mas por ora podeis ter uma idéia do que
pode oferecer o mundo do espírito. Tudo o
que temos em nossas galerias, em nossas
casas, em nossos edifícios e jardins, tem de
ser feito, ser modelado, ou criado — e isso
exige alguém que o faça. A necessidade é
constante e o suprimento constante, e será
sempre assim.
382
Há, porém, outra seção da indústria vi-
talmente necessária e inerente ao mundo
espiritual.

A porcentagem de pessoas que chegam aqui


sem conhecimento de sua nova vida e do
mundo espiritual é baixa, deploravelmente
baixa. Todas essas inúmeras almas precisam
ser ajudadas e sua perplexidade, cuidada.
Esse é o tipo de trabalho em que Edwin, Ru-
te e eu estamos ocupados e que atrai muitos
ministros de Deus.

Nas mansões de repouso há enfermeiras e


médicos para tratar daqueles cuja última
enfermidade na terra foi longa e dolorosa, ou
cujo passamento foi violento e repentino. Há
muitas dessas casas que são um monumento
perene de vergonha para o mundo. É certo
que a morte possa ser repentina e violenta
— isso é inevitável no presente — mas é
uma vergonha para a terra que tantas almas
aqui cheguem inteiramente ignorantes do
que lhes virá no após. Esses lugares de re-
383
pouso se multiplicaram consideravelmen-
te desde que aqui cheguei; em conseqüência
disso houve necessidade de mais enfermei-
ras e médicos.

Como tal trabalho pertence exclusivamente


ao mundo espiritual, temos escolas especiais
para aqueles que, gostando dessa atividade,
desejam se aperfeiçoar. Ali, eles aprenderão
muito do que se refere ao tratamento cientí-
fico do corpo em si e da mente espiritual.
Adquirem um conhecimento geral dos cami-
nhos da vida espiritual, ao mesmo tempo
que têm de transmiti-lo a pessoas que ge-
ralmente nada sabem do seu novo estado.
Eles terão que aprender os fatos da inter-
comunicação entre o nosso mundo e o vos-
so. É surpreendente ver quantas pessoas
que aqui chegam querem voltar correndo,
para contar aos que ficaram, a grande des-
coberta de estarem em outro mundo.

Muitos requerem um longo repouso após a


morte. Essas almas, cuja atenção está sem-
384
pre dividida por igual entre a terra e o
espírito, exigem uma alta proporção de saber
espiritual, assim como tato e discrição por
parte das enfermeiras e médicos.

Ao mencionar uma ocupação não quero pre-


judicar outra, nem fazer crer que os que a-
cabei de mencionar tenham precedência so-
bre os outros. Escolhi uma ou duas por te-
rem a aparência tão material e para subli-
nhar o que já tentei demonstrar repetida-
mente — que vivemos num mundo prático
onde nos ocupamos em tarefas úteis e indi-
viduais, e não passamos o tempo todo num
êxtase de religiosidade, perpetua-mente i-
mersos em meditação.

Mas que dizer das pessoas que nunca fize-


ram algo útil durante a vida? Tudo que posso
dizer é que tal pessoa não chegará até estas
paragens até ter merecido a entrada por
meio de trabalho.
385
Fazer relação de todas as atividades seria
longo demais e exaustivo. Na verdade, fico
com a mente tolhida só em pensar em con-
tar tal número, por causa da minha incapaci-
dade de fazer justiça a todas. Nas esferas
científicas de puro labor, milhares e milhares
de pessoas dedicam-se, muito felizes, ou às
provas dos segredos da terra, ou às investi-
gações dos do mundo espiritual.

Ciência e engenharia sendo co-aliadas, têm


feito longínquas descobertas e aperfeiçoado
inventos. Esses não são para nós, mas para
vós — quando chegar o tempo, e isso ainda
não é agora. A terra tem dado pobres evi-
dências do que se tem feito por ela no mun-
do espiritual. O homem tem usado sua von-
tade livremente, mas aplica-a na direção er-
rada, o que por fim acarreta a sua destrui-
ção. A mente do homem está apenas na in-
fância, e uma criança torna-se perigosa se
tem livre uso do que a pode destruir. Daí ser
mantido oculto muito que lhe pode ser pre-
judicial, até o dia em que alcançar maior de-
386
senvolvimento. O dia virá certamente, e
uma avalanche de novas invenções se des-
pencará sobre o vosso mundo.

Nesse meio tempo, o trabalho constituído de


pesquisas, investigações, descobertas e in-
venções continua: é um trabalho que absor-
ve muita gente. Nada quebra a ordem roti-
neira das nossas atividades. E enquanto elas
continuam, podemos nos afastar um pouco,
para descansar ou para seguir outra linha de
trabalho. Não temos disputas, nem transtor-
nos domésticos, nem rivalidades para produ-
zir insatisfação ou desagrado. O mais humil-
de de nós sente que seu trabalho significa
algo, por mais modesto que pareça ao lado
de outros aparentemente mais importantes.
No mundo espiritual, trabalhar é ser profun-
damente feliz pelas inúmeras razões, que já
vos citei.

Não há ninguém aqui que não confirme mi-


nhas palavras com todo o coração e sem
reservas!
387
XII. Gente Famosa

Deixar o mundo e fixar residência permanen-


te no mundo espiritual não é tão grande
transformação como muitas pessoas poderi-
am imaginar. Ê verdade que para muitos,
todos os laços terrenos são cortados, mas
quando passamos para o mundo espiritual
encontramos novamente aqueles parentes e
amigos que morreram antes de nós. Nesse
ponto iniciamos um novo capítulo em nossa
existência, completamente à parte, numa
vida nova, que começa com a entrada no
mundo do espírito.

Os encontros com parentes e amigos são


algo que precisa ser experimentado a fim de
que se possa apreender o completo signifi-
cado e alegria da reunião. Tais encontros
tomam lugar onde há simpatia mútua e afe-
to. Não consideraremos outra coisa por ora.
Esses encontros continuarão por algum tem-
po depois da chegada do novo morador. É
natural que na novidade, tanto do ambiente
388
como das condições, se perca grande
tempo na troca de opiniões, e em ouvir tudo
a respeito do que se passou na vida espiritu-
al daqueles que nos precederam na morte.
Eventualmente chegará a hora em que o
recém--chegado começará a considerar so-
bre o que fazer em sua vida espiritual.

Bem, poder-se-ia dizer que na terra a maio-


ria de nós possui uma dupla existência — a
vida do lar e a dos negócios ou ocupações.
Nesta, associamo-nos talvez com um grupo
inteiramente diferente. É natural, portanto,
que aqui também aconteça isso. O cientista,
por exemplo, encontrará primeiro suas liga-
ções familiares. Quando se tocar no assunto
de trabalho ele se achará entre seus velhos
colegas que aqui o precederam, e logo se
verá em casa e se sentirá encantado ao sa-
ber das pesquisas científicas que se exibem
na sua frente. O mesmo se dá com o pintor,
o músico, o escritor, o engenheiro, o médico,
o jardineiro, o pedreiro, ou o homem que
tecia tapetes para uma fábrica, para mencio-
389
nar apenas uma fração das inúmeras
ocupações, tanto da terra como do espírito.
Ver-se-á então que a pergunta que intriga
muita gente — "Que fim tiveram as pessoas
famosas?" — está praticamente respondida.

A fama no mundo espiritual é enormemente


diversa da do mundo terreno. A celebridade
espiritual se consegue unicamente de uma
maneira — em serviço a outros. Parece até
simples demais, mas é assim mesmo e nada
o pode alterar. Se os personagens famosos
residirão ou não nos reinos de luz imediata-
mente após sua morte, depende só deles. A
lei se aplica a todos, sem levar em conta a
posição terrena.

Uma certa curiosidade referente ao destino


de pessoas bem conhecidas na terra, é natu-
ral, pois é bastante o mero fato de terem
sido famosas. Mas nada desperta mais curio-
sidade do que as celebridades da História.
Onde estão aqueles mestres da sabedoria,
aqueles nomes tão familiares dos livros de
390
História? Devem estar algures. Grande
número deles se encontra nos reinos escu-
ros, onde estão já há séculos e onde prova-
velmente continuarão por outros tantos. Ou-
tros estão nos reinos de luz e beleza porque
suas nobres vidas sobre a terra mereceram
esse prêmio. Mas há muitos e muitos que se
acharão dentro daqueles reinos intermediá-
rios que já tentei descrever.

Darei um exemplo para o qual reuni alguns


pormenores. Refere-se ao passamento de
um personagem real. Tomei este exemplo
porque, apesar de extremo, demonstra mais
claramente do que qualquer outro os princí-
pios que governam a vida em geral.

Neste caso em particular já sabíamos de an-


temão que esse personagem estava para
chegar. Seus compatriotas naturalmente es-
tavam interessados no que ia acontecer. A
própria família, como todas daqui, estava
aguardando sua chegada. Uma curta enfer-
midade ocasionou seu passamento, e assim
391
que este se deu, ele foi trazido para a
casa de sua mãe, que já tinha tudo pronto. A
casa nada tem de excepcional, é igual a tan-
tas outras daqui. A notícia de que ele ia che-
gar se espalhou. Não houve júbilo universal
como se daria na terra, mas sim uma felici-
dade como a que se sente à chegada de
qualquer ente querido. E ali ele permaneceu
por algum tempo, gozando a liberdade de
ação e simplicidade de vida que lhe fora ne-
gada na terra. Inúmeros conhecidos já vie-
ram indagar dele, mas não o viram ainda.
Houve uma enorme reunião da família e as-
sim que se achou suficientemente repousa-
do, saiu a ver as maravilhas da nova vida.

Reteve em grande parte sua antiga e costu-


meira aparência pessoal. Os sinais de doença
e cansaço mental e corporal tinham desapa-
recido e ele parecia muitos anos mais jovem.
Quando passeava foi reconhecido pelo que
havia sido e respeitaram-no, mas foi ainda
mais honrado e homenageado pelo que era
agora.
392
Direis agora que assim que ele encontrou
seus compatriotas estes poderiam talvez ter
manifestado algum embaraço e uma vaga
desconfiança, tal como aconteceria no plano
terrestre. Mas durante o período de recupe-
ração muito lhe foi explicado a respeito das
condições de vida, seus métodos, suas leis e
costumes agradáveis. Tais revelações o en-
cheram de felicidade, pois sabia que tão logo
deixasse o retiro da casa de sua mãe, ele o
poderia fazer com a liberdade só achada nas
paragens espirituais, onde os habitantes o
considerariam apenas um homem simples,
desejoso de se reunir a seus irmãos de felici-
dade. Sabia que seria tratado como igual.
Quando, portanto, em companhia de mem-
bros da família, andou por estes reinos numa
viagem de descoberta, não sentiu em si nem
nos outros qualquer sentimento de descon-
forto mental. Ninguém se referia à sua posi-
ção terrena a menos que ele próprio o fizes-
se, e assim não havia suspeita de propósitos
inquisitoriais, ou curiosidade ignorante.
393
Podereis pensar que alguém que já ocu-
pou tão elevada posição na terra provocaria
nas mentes de outrem idéias de pena, diante
de tamanha mudança de posição. Mas tais
sentimentos não são desejados nem permiti-
dos nestes reinos, pela simples razão de que
não há ocasião para tal. Deixamos para trás
nossa importância terrena e não nos referi-
mos a ela senão para mostrar, pelas nossas
próprias experiências, aos ainda encarnados,
o que se deve evitar. Não revivemos nossas
memórias com o intuito de autoglorificação
ou para impressionar os ouvintes. Eles, na
realidade, não se impressionariam e reco-
nhecemos que é apenas o valor espiritual
que vale. Perspectivas e pontos de vista se
alteram completamente ao chegar aqui. Por
mais poderosos que fôssemos na terra, é o
valor espiritual que nos dá o direito a um
lugar no mundo espiritual, e são as ações de
nossa vida, sem considerar a posição social,
que nos darão nossa futura colocação. A po-
sição é esquecida, mas ações e pensamentos
394
são testemunhas por nós ou contra nós,
e assim tornamo-nos nossos próprios juizes.

Não é difícil ver que, quando aquele perso-


nagem real chegou ao mundo espiritual, co-
mo outros de sua família antes dele, não
teve que enfrentar dificuldades ou situações
embaraçosas. Pelo contrário, toda situação
parecia simplificar-se e dar a sua própria so-
lução.

Bem, o que se dá com este personagem a-


plica-se igualmente a todos os que foram
famosos na terra. Mas como reage diante
disso um cientista famoso, digamos, ou um
compositor, ou pintor? São nomes famosos e
quando temos ocasião de nos referirmos a
eles usamos os nomes pelos quais eram co-
nhecidos. Aqui, no mundo espiritual, prefe-
rem não ser chamados de mestres ou gê-
nios. Seus nomes, por mais famosos que
tenham sido, não querem dizer mais nada, e
eles severamente repudiam tudo o que,
mesmo remotamente, se aproxime da adora-
395
ção de heróis que a terra costumava lhes
conceder. São apenas um de nós, e como tal
são tratados.

A lei de causa e efeito sempre existiu no


mundo do espírito, e a ela estão sujeitas,
tanto as almas das pessoas que viveram
obscuramente na terra, quanto as daquelas
que foram mundialmente famosas. Nestes
reinos, qualquer um está sujeito, cedo ou
tarde, a encontrar pessoas cujos nomes são
famosos na terra. Essa gente célebre, po-
rém, não tem nenhum apego ao mundo ter-
reno. Deixaram-no para trás, e muitos dos
que passaram para cá há milhares de anos
estão felizes por não terem ocasião de re-
lembrar sua vida na terra. Sofreram tão vio-
lenta transição que agora ficam satisfeitos
em considerar apenas o presente, e deixa-
ram a marca do passado fora da memória.

As pessoas da terra poderão achar estranho


caminhar por aqui, misturando-se a pessoas
que viveram há centenas de anos atrás. É
396
um encontro do passado com o presente
eterno; mas para nós não é estranho, ape-
nas para os recém--chegados. A discrição é
algo que aprendemos cedo a usar, e está em
nós nunca bisbilhotar os fatos e circunstân-
cias da vida de outras pessoas. Isso não im-
pede que se discuta a nossa vida anterior,
mas só se a iniciativa partir da pessoa que se
tem em vista. Se ela quiser falar a alguém
sobre sua vida terrena sempre encontrará
ouvidos pacientes e compreensivos.

Estais vendo, pois, que nossa vida terrena é


estritamente nossa. A discrição que temos é
universal — demonstramo-la e recebemo-la.
E qualquer que tenha sido a nossa posição
formal na terra, nestes reinos somos unidos
espiritualmente, intelectualmente, tempera-
mentalmente, e nessas características hu-
manas, tanto em nossos gostos como des-
gostos. Somos um só; atingimos o mesmo
estado e o mesmo plano de existência. Cada
novo rosto que entra nestes reinos recebe a
397
mesma acolhida cordial, sem qualquer
referência ao que era na terra.

Poder-se-á encontrar muita gente famosa,


em toda parte, e entregue a toda espécie de
ocupação. Todos são acessíveis sem formali-
dades de qualquer espécie.

Não há necessidade de apresentações a ho-


mens e mulheres que foram famosos. Seus
dons estão à disposição de todos. Os gran-
des, que atingiram essa grandeza por meio
do gênio, se consideram apenas os humildes
seres de uma vasta organização. Todos lu-
tam pelo mesmo propósito, isto é, progresso
e desenvolvimento espiritual. Ficam reconhe-
cidos por qualquer ajuda em direção a esse
objetivo e sentem-se felizes por dá-la o má-
ximo possível.

As riquezas e honrarias da terra parecem


vulgares e baratas em comparação com as
riquezas e honras que estão prontas a serem
ganhas aqui. E estão ao inteiro alcance de
398
cada alma no instante em que aqui che-
ga. São seu direito de nascença, de que nin-
guém a pode privar. A grandeza terrena po-
de parecer muito tangível quando estamos
no meio dela. Mas descobrimos ao morrer
como a grandeza espiritual é concreta e
permanente. Nossa proeminência terrena
desvanece-se ao chegarmos, e ficamos sen-
do o que valemos, e não o que fomos.

Vários personagens famosos me têm falado


do seu despertar no mundo espiritual, e me
disseram do choque da revelação de verem-
se pela primeira vez como realmente eram.

Mas muitas vezes a grandeza da posição ter-


rena anda a par com a grandeza da alma e
assim o progresso espiritual e desenvolvi-
mento continuam sem intermissão para todo
o sempre.

XIII. Organização
399
Já deveis ter compreendido que o mundo
espiritual é um vasto lugar e, com isso em
mente, podereis concluir que ele possui uma
organização administrativa proporcional às
suas exigências. |É exato, mas nossas ne-
cessidades não são como as vossas. Entre
vós, o mundo corrupto está em constante
guerra com a decadência material e a dege-
neração. Mas isso não acontece em nosso
incorruptível mundo, onde não temos nem
um nem outro. O nosso estado está bem
longe da Utopia em qualidade. Mas é um
estado em que o pensamento é seu elemen-
to básico.

Já contei como, ao ver meu jardim espiritual


pela primeira vez, me admirei de sua ordem
e excelente conservação, e me perguntei
quem seria o responsável por isso. Edwin me
disse que isso quase não requeria esforço na
manutenção. Queria dizer que, desde que
meu desejo de ter um jardim permanecesse
inalterável, e enquanto eu tivesse afeição
pelas flores, gramas e árvores, o jardim res-
400
ponderia aos meus pensamentos e flo-
resceria. Se eu desejasse alterar o arranjo
dos canteiros, podia facilmente pedir a um
técnico que viesse me auxiliar, o que ele fa-
ria com todo o gosto. Isto quanto ao jardim.
Minha casa é governada pelas mesmas leis.
E é assim com todos os jardins e casas da-
qui.

Os pensamentos reunidos de todos os habi-


tantes do reino manterão tudo que cresce
dentro dele. É quando chegamos à cidade e
viajamos através de seus edifícios que essa
organização se torna mais evidente.

No salão da música, por exemplo, achamos


muitos estudantes absorvidos pelos estudos,
outros em pesquisas musicais, rebuscando
antigos livros, outros arranjando músicas
para concertos, consultando obras e discu-
tindo-as com os compositores. Há muitos
mestres, gente capaz de nos prestar toda a
assistência e fornecer solução a nossos pro-
blemas.
401
Nominalmente o governante do reino é o
reitor de todos os departamentos e as deci-
sões maiores são tomadas por ele, mas no-
meia gente competente e dá-lhe carta bran-
ca em suas decisões.

Cada departamento tem seu chefe direto,


mas não se deve imaginar que é oficial, ina-
tingível e oculto dos olhos de todos, visto
apenas em ocasiões relativamente raras. É
exatamente o oposto. Está sempre por ali,
dando as boas--vindas a qualquer um que
apareça, como aprendiz ou como mero apre-
ciador da música.

Já contei como continuamos o nosso traba-


lho por um período em que desfrutamos pra-
zer ou utilidade. No momento em que senti-
mos necessidade de mudar de trabalho, vol-
tamo-nos para qualquer outro. Os trabalha-
dores dessas casas de estudo não são dife-
rentes de outros nesse aspecto. De vez em
quando necessitam mudança e divertimento
e assim são revezados. Alguns se retiram e
402
outros tomam seus lugares. Não preci-
samos temer que ao procurar um determi-
nado especialista não o encontremos. Tere-
mos todo o auxílio que necessitarmos, e se
for preciso consultar o que está ausente, um
instantâneo pensamento responderá a nossa
pergunta, ou com igual rapidez podemos
visitar sua casa.

Muita gente que trabalha nesses departa-


mentos estão aí há muitos anos. Tão devo-
tados são a seu trabalho que, apesar de te-
rem progredido e virtualmente pertencerem
a esferas superiores, preferem permanecer
onde estão. Podem afastar-se de tempo em
tempo para sua própria esfera, mas voltam
para retomar suas tarefas. Chegará o mo-
mento em que abandonarão, de todo, seu
cargo para residir permanentemente em sua
própria esfera, e então, outros igualmente
capazes tomarão seus lugares. E isto aplica-
se a todos os setores. O trabalho funciona
incessantemente: os trabalhadores descan-
sam e trocam de lugar, mas o trabalho não
403
cessa. O ritmo do trabalho pode variar,
como aí na terra. Quando temos grandes
celebrações e festivais, durante os quais so-
mos honrados pela presença de visitantes de
outras esferas superiores, acontece que
grande numero de pessoas estarão presen-
tes, e nesse tempo haverá uma apreciável
diminuição das atividades.

Nas alas de descanso porém os médicos e


enfermeiras estão sempre de plantão, apesar
do que estiver acontecendo noutros pontos
da esfera. Sua devoção ao dever é imedia-
tamente premiada, porque durante as festi-
vidades os ilustres visitantes dos reinos su-
periores fazem visitas especiais aos sanató-
rios de descanso, onde cumprimentam pes-
soalmente cada um dos membros do pesso-
al.

Toda essa administração pertence ao mundo


espiritual, a ele só. Há outros serviços que
abrangem os dois mundos juntos, o nosso e
o vosso. Tal como por exemplo a chegada ou
404
próxima chegada de uma alma a estas
paragens. A regra é que todas as almas ao
chegar aqui terão seu quinhão de atenção.
Depende delas quanta terão. Algumas estão
tão afundadas moralmente que afastam
qualquer aproximação que possa ser afetiva.
Não consideraremos estas por enquanto,
mas somente as destinadas à luz.

Sem antecipar o que desejo dizer a respeito


da inter--relação entre o mundo terreno e o
espiritual, podemos, por nossos objetivos
atuais, examinar o problema da transição,
que afeta grande número de pessoas aqui.

Suponhamos que vós mesmos estejais no


mundo espiritual, e que além de saberdes a
verdade sobre a comunicação com a terra,
não tendes experiência dos laços existentes
entre os dois mundos. Tereis deixado, supo-
nhamos, para trás um amigo por quem tí-
nheis e ainda tendes uma profunda afeição,
e gostaríeis de saber se ele virá residir per-
manentemente no mundo espiritual.
405
Uma vez ou outra recebestes seus pen-
samentos de afeição erguendo-se da terra,
pelo que ficou visto que ele não vos esque-
ceu. Nunca tentastes vos comunicar com ele
porque sabeis que ele não gostaria. É possí-
vel saber exatamente quando ele se reunirá
ao mundo espiritual? E como? A resposta a
esta pergunta revela a existência de uma das
grandes organizações destas terras.

Na cidade há um imenso edifício que exerce


a função de escritório de pesquisas. Aqui,
uma enorme quantidade de pessoas está
pronta a responder a toda sorte de pergun-
tas que surgirem tanto dos recém-chegados,
como dos moradores antigos. Ocasionalmen-
te necessitamos uma solução para algum
problema.

Podemos consultar amigos sobre o assunto,


mas descobrimos que eles estão tão mal-
informados quanto nós. Poderíamos, é claro,
apelar a algum personagem superior e rece-
beríamos todo o auxílio necessitado. Mas
406
eles têm seu trabalho a fazer e hesita-
mos em perturbá-los. Assim, levamos nossos
problemas a este grande edifício da cidade.
Entre seus importantes deveres está o de
guardar o registro dos recém-chegados, o
que é um útil serviço e muita vantagem é
conseguida por muita gente. Mais importante
ainda é o de saber de antemão aqueles que
virão paira cá.

A informação é sempre precisa e infalível. É


coligida por meio de um complicado processo
de transmissão de pensamento.

Em tempos normais na terra quando os pen-


samentos mantêm um nível estável, já é i-
nestimável, mas em tempo de guerra, quan-
do as almas aqui chegam aos milhares, as
vantagens desse serviço são incalculáveis.
Amigo pode encontrar amigo e juntos podem
se unir para ajudar outros.

O pressentimento dos acontecimentos terres-


tres, tanto nacionais como particulares, per-
407
tence a certa classe de seres espirituais,
que por sua vez transmitem esse conheci-
mento a outros, e estes a outros ainda, e
assim por diante. Entre os primeiros a rece-
ber o pré-conhecimento de uma guerra estão
os lares para descanso. O escritório de pes-
quisas também será informado.

Se estais ansiosos por saber quando o vosso


amigo virá aqui morar, vosso primeiro passo
será ir a esse escritório. Tudo o que há a
fazer é dar o nome de vosso amigo, e pedi-
rão que focalizeis vossa atenção sobre ele
para estabelecer o necessário elo de pensa-
mento. Quando isto foi feito, pedirão que
espereis um curto espaço de tempo (pelo
vosso tempo serão apenas alguns minutos).
As forças necessárias serão postas em ação
com espantosa rapidez, e sereis presenteado
com a hora exata da chegada do vosso ami-
go.

A organização que existe por detrás deste


serviço deverá dar uma idéia da vastidão de
408
todo o departamento de auxílio e pesqui-
sa. Há muitos outros. Este mesmo edifício
abriga pessoas que podem fornecer respos-
tas a inúmeras perguntas que surgem na
mente dos recém-chegados. E abriga e em-
prega milhares de pessoas úteis e felizes.
Muitos pedem para trabalhar ali, mas é ne-
cessário ter primeiro algum treino, pois que,
por mais apropriados que sejam nossos atri-
butos, exige-se conhecimento perfeito em
qualquer departamento em que desejemos
trabalhar.

Passemos agora ao departamento da ciência.


Há inúmeras pessoas que possuem inteligên-
cia mecânica e que seguem como profissão
um dos ramos da engenharia. As oportuni-
dades nesse campo são vastíssimas e tal tra-
balho é levado a efeito sob condições seme-
lhantes a qualquer outro trabalho — sem
restrição, livremente, e com as fontes ines-
gotáveis e a perfeita administração do mun-
do espiritual a apoiá-los. Esta modalidade de
trabalho atrai milhares de pessoas, jovens e
409
velhos. Todos os grandes cientistas e
engenheiros continuam suas investigações e
pesquisas apoiados por grande número de
entusiásticos auxiliares de todas as classes.

A maioria de nós, aqui, se contenta com um


tipo de trabalho. Por mais pequeno que seja
esse trabalho, é-lhe

dado valor. E cada forma de trabalho tem


sua organização separada, onde tudo desliza
com suavidade.

Não se deve concluir daí que somos infalí-


veis. Isso seria uma estimativa errada, mas
sabemos que quaisquer que sejam os erros,
podemos ter a certeza de que os superiores
virão em nosso auxílio para corrigir o erro.
Nunca somos surpreendidos por ineficiência,
mas os erros são considerados como boas
lições para nós. Mas nem por isso seremos
descuidados, porque temos o nosso orgulho
natural no trabalho, que nos instiga a fazer
sempre o melhor possível — sem erros.
410
Para conseguir dar uma idéia mais ou
menos clara da organização administrativa
do mundo espiritual, teríamos que fazer um
trabalho gigantesco e muito além do meu
poder descritivo, sem contar com a impossi-
bilidade de se pôr em linguagem material o
que só pode ser entendido por um habitante
daqui.

Talvez um dos traços mais característicos da


vida no mundo espiritual é que a organiza-
ção da vida é tão perfeita que não há som-
bra de pressa e confusão, apesar de poder-
mos realizar ações de natureza material com
a rapidez do pensamento. Isto é uma segun-
da natureza para nós, e mal a notamos.

É uma quase bravata da terra declarar que


alcançou a era da velocidade. Em compara-
ção com a nossa rapidez de movimento, vós
quase não vos moveis! Esperai até estar aqui
e então sabereis o que é velocidade e o que
é verdadeira eficiência e organização.
411
Nada existe semelhante na terra.

XIV. INFLUENCIA DO ESPÍRITO

É hábito da maioria dos homens considerar o


mundo terreno e o mundo espiritual como
dois planos à parte, separados e distintos.
Consideram os dois mundos como indepen-
dentes um do outro, um desconhecendo o
outro. Que o mundo espiritual possa ter al-
guma influência sobre a terra, para vanta-
gem desta, está demonstrado ser falso, pelo
estado de completa desordem que existe
pelo mundo inteiro.

Há outra corrente de pensamento integrada


por aqueles que fizeram um estudo superfi-
cial do que chamam Ocultismo. Essas pesso-
as acreditam que, sendo a terra muito terre-
na, e o mundo espiritual muito elevado, os
dois mundos estão automaticamente impedi-
dos de fazerem intercomunicação.
412
Ambas as idéias são indubitavelmente
erradas. Os dois mundos estão em constante
e direta comunicação e estamos bem ao par
do que está ocorrendo na terra em todos os
tempos. Nem por um minuto digo que todos
nós sabemos do que se está passando aí.
Alguns dentre nós estão em comunicação
com a terra porque ligados aos seus negó-
cios particulares. Enquanto o restante, que
não tem mais interesse na terra desde que a
deixou, fica ignorante de muitas coisas a ela
ligadas. Os sábios dos reinos superiores es-
tão de posse de todo o conhecimento que
transpira a respeito da terra.

Gostaria de indicar um ou dois canais através


dos quais a influência do espírito é exercida
sobre a terra.

Primeiro, tomemos essa influência de uma


maneira pessoal.

A toda alma que nasceu ou está para nascer


sobre a terra, foi concedido um guia espiri-
413
tual. Em eras passadas algo dessa idéia
deve ter passado pela mente dos antigos
homens da igreja, visto que adotaram a idéia
piedosa de darem a cada pessoa um anjo da
guarda.

Os anjos já se introduziram na arte contem-


porânea, onde artistas os desenham como
personagens vestidos de roupas alvas e su-
portando nos ombros um par de enormes
asas. Essa concepção sugere uma grande
separação entre o anjo da guarda e a alma
que ele deve guardar. O primeiro não pode-
ria, por assim dizer, aproximar-se demais do
protegido,

por causa da sua extrema espiritualidade e


da repulsiva grosseria do homem terreno.

Deixemos esta ficção do cérebro do artista e


passemos a algo mais prático.

Os guias do espírito constituem uma das


principais ordens em toda a organização e
414
administração do mundo espiritual. Eles
habitam um reino particular e lá vivem há
séculos. São escolhidos entre todas as na-
cionalidades; muitos entre os orientais e en-
tre os índios norte-americanos também, visto
que é comum esses povos serem dotados de
poderes psíquicos.

O guia principal é escolhido, para cada indi-


víduo na terra, de conformidade com um
plano fixo. A maioria dos guias são seme-
lhantes em temperamento a seus protegidos,
mas o que é mais importante é que aqueles
compreendem e desculpam as fraquezas de
seus protegidos. Muitos, na verdade, tive-
ram-nas quando encarnados, e por isso po-
dem ajudá-los mais a lutar contra as mes-
mas.

Grande número dos que praticam a comuni-


cação com o mundo espiritual já encontra-
ram seus guias espirituais. Grande parte dos
guias espirituais fazem seu trabalho sem que
os protegidos estejam a par, o que torna sua
415
tarefa mais pesada e difícil. Mas ainda há
outros cuja vida sobre a terra toma pratica-
mente impossível a seus guias aproximarem-
se. Entristece-os naturalmente vê-los fazer
tolices e erros, e, devido ao espesso muro de
impenetrável materialismo que constroem ao
seu redor, esses guias são obrigados a ficar
afastados. Tais almas, quando chegam ao
mundo espiritual, despertam para a realiza-
ção do que perderam durante suas vidas. Em
tais casos o trabalho do guia não será intei-
ramente vão, porque mesmo nas piores al-
mas há uma ocasião, embora transitória,
quando a consciência fala, e é usualmente o
guia espiritual que implanta os melhores
pensamentos dentro do cérebro.

Nem por um momento se deve pensar que a


influência do guia viola a expressão da livre
vontade. Se, sobre a terra, vedes alguém dar
um passo em falso no meio do trânsito,

o fato de que estendestes a mão para impe-


di-lo não significa que lhe impusestes vossa
416
vontade. Um guia espiritual tentará dar
conselhos quando estes podem chegar até
seu protegido; tentará guiá-lo na direção
certa, unicamente para seu próprio bem, e
compete ao protegido aceitar ou rejeitá-la.
Se rejeitá-la, só pode culpar a si mesmo dos
desastres ou aborrecimentos que venham a
sobrecarregá-lo. Ao mesmo tempo, o guia
espiritual não existe para viver a vida do seu
encarregado. Este mesmo precisa fazê-lo.

Tornou-se um hábito entre certa classe de


pessoas da terra ridicularizaria instituição dos
guias espirituais. Virá o tempo em que eles
amargamente lamentarão sua loucura, esse
dia será aquele em que encontrarão o seu
guia, que sabe muito mais a respeito da vi-
da. Nós, do mundo espiritual podemos igno-
rar tais caçoadas, porque sabemos que che-
gará o dia inevitavelmente em que eles virão
para cá, e grande será o remorso — e em
muitos casos as lamentações — daqueles
que em suas supostas sabedor ias foram tão
tolos.
417
À parte os guias espirituais, há outra pro-
lífica fonte de influências que deriva do
mundo espiritual. Já disse, por exemplo, co-
mo as mãos terrenas dos médicos podem ser
guiadas, ao realizar uma operação, pelas
mãos espirituais. Em muitos outros planos da
vida a inspiração é levada dessa maneira. O
homem encarnado pouco pode fazer de per
si, e ele é o primeiro a compreendê-lo quan-
do vem morar aqui. O homem pode realizar
certas ações mecânicas com precisão, pode
pintar um quadro, pode tocar um instrumen-
to, pode manejar máquinas, mas todas as
maiores descobertas são obras do mundo
espiritual. Se o homem, usando a livre von-
tade, pretende pôr suas invenções a serviço
de maus fins, então pode receber o crédito
das calamidades que se seguirão. A inspira-
ção devotada a boas causas vem do mundo
do espírito, e de nenhum outro lugar. Se for
para o bem da Humanidade a fonte é igual-
mente boa, se a inspiração não vem para
bem dela, então sua fonte é indubitavelmen-
418
te ruim. O homem tem em suas mãos a
escolha da fonte em que beberá — boa ou
má.

Estareis lembrados de como contei que uma


pessoa é exatamente a mesma do ponto de
vista espiritual imediatamente depois da
morte. Nenhuma mudança instantânea se
dará para transformar uma existência terre-
na de má em boa.

Uma igreja ortodoxa é de opinião que aque-


les que voltam ao plano terrestre e fazem
sua presença notada, são demônios! É pena
que a igreja seja tão cega, pois pode se dizer
que estão tentando — sem resultado — aba-
far as forças do bem, enquanto ignoram as
forças do mal. Se encorajassem as boas for-
ças a virem a eles, breve as forças do mal se
poriam em fuga. As igrejas, sejam elas quais
forem, sofrem de infinita ignorância. Através
das eras, até o presente, continuaram seu
cego caminho, ignorantes, disseminando fan-
tásticos ensinamentos em lugar da verdade,
419
e abrindo caminho, por meio da ignorân-
cia, para as forças do mal operarem.

Um ministro da igreja realiza serviços e mis-


sas prescritas pela sua crença e abafa toda
inspiração, agarrando-se a dogmas e credos
inteiramente falsos. Se fosse interrogado a
respeito do assunto responderia que crê na
inspiração. No final das contas ele acharia
menos trabalhoso pedir emprestado as idéias
religiosas de qualquer outra pessoa encarna-
da e confiar em sua própria esperteza para
qualquer idéia original. Mas sugerir que o
mundo espiritual não tenha qualquer influên-
cia, a não ser perniciosa, sobre o mundo ter-
reno, seria totalmente contra seus princípios.

É um estranho hábito que têm os terrenos


de crer que são sempre as forças do mal que
tentam influenciar o mundo. Às forças do
mal são atribuídos poderes negados às do
bem. Por quê? E por que têm as igrejas me-
do mortal de mexer com os espíritos como
advertem em qualquer livro que recomen-
420
dam? Eles ignoram, e apontam um dedo
de censura para a suposta mulher de Endor.

O mundo espiritual trabalha constantemente


para fazer sua presença, força e poder senti-
dos no mundo inteiro, não só a respeito de
questões pessoais, mas para o bem de na-
ções e da política internacional. Mas tão pou-
co se pode fazer, porque em geral a porta
está fechada aos mais altos seres do mundo
espiritual, cujo alcance de visão e cuja sabe-
doria, compreensão e conhecimento, são
vastos. Pensei nos males que podiam ser
varridos da face da terra sob a orientação
imensamente apta de sábios professores do
mundo espiritual. É possível dizer que não há
problema sobre a terra que não possa ser
solvido pela ajuda, conselho, e experiência
dos seres que acabei de mencionar. Mas isso
envolveria uma coisa — uma implícita adesão
a tudo que aconselhassem ou advogassem.
Muitos líderes, seja nos negócios do governo
de nações, seja em idéias religiosas, que já
estão no mundo espiritual, enchem-se de
421
pena quando olham para trás, para as
oportunidades desperdiçadas de fazer mu-
danças radicais para a melhoria de seus
compatriotas. Confessarão que tinham em
mente a idéia — não sabendo ainda que ela
havia sido semeada pelo guia espiritual —
mas que tinham permitido ser demovidas de
suas boas intenções. Essas almas lamentam
o estado a que se degradou a Humanidade.
Esta, na verdade, permitiu às forças do mal
que ditassem ordens. Mas tais forças, tão
queridas pelas igrejas, têm aparecido de di-
reções diferentes daquelas que as igrejas
alegam como suas origens. Os homens que
praticam a comunhão conosco, a sério, e que
gozam de felizes encontros com os mestres e
amigos das esferas superiores são acusados
de lidar com o demônio. Isso é tolice. Os
verdadeiros diabos estão muitos ocupados
em outros lugares, em lugares onde podem
produzir melhores resultados.

Direis que minha opinião é pessimista, que


realmente, no final das contas, o mundo não
422
é tão mau como o descrevo. É verdade,
mas só porque conseguimos enviar à terra
uma ou duas de nossas idéias e preceitos.
Mas pode-se dizer que a despeito da desor-
dem universal, se retirássemos toda a nossa
influência, a terra ficaria em pouco tempo
reduzida a um completo estado de caos e
barbarismo. A razão é que o homem julga
que pode caminhar muito bem sem nós.
Tem o convencimento de imaginar que não
requer ajuda de qualquer fonte. Quanto à-
quela do mundo espiritual, nem é bom pen-
sar. Se há um tal lugar como o mundo espiri-
tual, é bom começar a pensar nele quando
alguém chegar aqui. Por enquanto, os ho-
mens são tão superiores que sabem tudo, e
podem cuidar de seus negócios perfeitamen-
te, sem a ajuda das sombras do mundo espi-
ritual. E quando chegam a um lugar que an-
tes desprezaram, vêem sua própria peque-
nez e a do mundo que deixaram. Mas por
pequeno que seja o mundo, o homem ainda
necessita ajuda para conduzir seus proble-
423
mas — e essa é outra descoberta que faz
ao chegar aqui.

O mundo terreno é lindo e a vida nele podia


ser bela, mas o homem se interpõe e impede
que isso se dê. O mundo espiritual é infini-
tamente mais belo. Já tentei dar-vos uma
idéia dele. Mas vosso mundo nos parece es-
curo e tentamos dar-vos um pouco de luz.
Tentamos fazer nossa presença conhecida,
nossa influência sentida. Nossa influência é
grande, mas ainda tem que ser aumentada.
Quando isso acontecer, vereis como pode ser
a vida na terra. Mas até lá, ainda falta muito
e muito.

XV. Os Reinos Superiores

Já vos falei em várias ocasiões, das esferas


superiores. Há duas maneiras e somente
duas, de penetrar nessas alturas. A primeira,
é por meio de nosso desenvolvimento e pro-
gresso espiritual. A segunda, é por convite
especial de algum morador dessas regiões.
424
Qualquer outra maneira é-nos vedada
por invisíveis barreiras de impenetrabilidade
espiritual.

Gostaria de vos falar sobre um convite espe-


cial que recebemos para visitar esses reinos
elevados.

Estávamos sentados numa das salas térreas


de minha casa, de onde podíamos ver com
perfeição todas as belezas ao redor. Através
de uma brilhante e colorida paisagem, podia-
se ver a cidade à distância, tão claramente
como se estivéssemos perto. Edwin e eu
conversávamos enquanto Rute, sentada ao
piano, tocava algo agradável, que parecia
harmonizar-se, não só com nosso ambiente,
mas também com nossa disposição.

Rute ainda não se recuperara de sua inicial


surpresa ao ver um piano em sua casa. Ela
era uma virtuose na vida terrena, e nos des-
creveu o momento emocionante em que se
sentou ao seu instrumento espiritual, como o
425
chamou, e tirou o primeiro acorde. Disse
que ficou espantada porque o tom do seu
piano era algo que nunca pudera imaginar,
tão perfeito em qualidade e de sonoridade
ilimitável. Sua surpresa não terminou aqui,
porém. Descobriu que sua destreza tinha
aumentado cem vezes ao abandonar o corpo
físico, mas que conservara a sua técnica ter-
restre. Descobriu ainda que as mãos desliza-
vam ao longo do teclado, sem o menor es-
forço, e que sua memória era como se tives-
se a música aberta perante os olhos.

Neste momento ela enchia o ar com doces


sons, auxiliando-nos a descansar, pois haví-
amos concluído uma pesada tarefa durante o
curso de nossa obra. Nós três trabalhávamos
juntos e ainda o fazemos — e geralmente
descansamos e nos divertimos juntos. Na
verdade, Rute e Edwin passam mais tempo
em minha casa do que na deles.

De repente, Rute parou de tocar e correu


para a porta. Espantados, seguimo-la e fica-
426
mos surpresos ao ver duas maravilhosas
personagens atravessando o gramado. Uma
era o egípcio que me dera tão bons conse-
lhos ao chegar aqui, e se interessara tanto
pelo meu bem-estar. O outro era seu Mestre,
que tinha acompanhado o grande visitante
celestial, naquela ocasião, no templo.

O Mestre do egípcio era um homem de cabe-


los negros como o azeviche, combinando
com um par de olhos que traía grande senso
de humor e alegria. Ficamos logo sabendo
que era caldeu.

Adiantamo-nos para recebê-los e eles de-


monstraram todo o prazer nessa visita.

Conversamos sobre vários assuntos e Rute


foi persuadida a terminar a peça que tocava
quando tinham chegado. No final, depois de
a elogiarem, o caldeu abordou o assunto que
o trouxera.
427
Vinha trazer o convite da Grande Alma —
em honra de quem nós nos tínhamos con-
gregado naquele dia — para uma visita em
seu lar das esferas superiores.

Nós três guardamos silêncio por um momen-


to. Rute e eu não sabíamos o que dizer para
exprimir a gratidão de receber tão grande
privilégio. Edwin veio em nosso auxílio e agiu
como nosso intérprete. O caldeu estava di-
vertido com o nosso embaraço e apressou-se
a assegurar-nos que nada tínhamos a temer.
O que mais nos preocupava, creio, ou me-
lhor, nos intrigava, era a razão do convite, e
como iríamos chegar até lá. De fato, nem
sabíamos onde era o lar. Quanto à nossa
primeira pergunta, o caldeu disse que se en-
carregava de nos fazer chegar ao nosso des-
tino. Tentamos expressar nossos sentimen-
tos em palavras, sem o conseguirmos, pelo
menos quanto a mim. Creio que Rute e Ed-
win tiveram mais sucesso. Creio sinceramen-
te que o caldeu é a criatura mais alegre des-
tas paragens. Menciono isto porque parece
428
haver uma idéia em algumas mentes de
que quanto mais alta a personagem do espí-
rito tanto mais séria deve ser. Tal idéia é
inteiramente falsa, acontece justamente o
contrário. Alegria sã vem do coração e não
ofende ninguém, não é usada em detrimento
de ninguém, e tal alegria é encorajada e a-
ceita no mundo espiritual. Não há nenhuma
inscrição gravada nos portais destes reinos
como: "Abandonai toda a alegria para aqui
entrar!"

Edwin indagou de quando deveríamos em-


preender a jornada e o caldeu replicou que
ele e seu amigo egípcio haviam vindo para
nos levar agora. Eu estava calmo — todos
estávamos — na ignorância do processo de
se fazer tal viagem, mas o caldeu logo as-
sumiu o comando, ordenando-nos para irmos
embora. E fomos em direção aos limites dos
nossos reinos.

Ao caminharmos através de bosques e pra-


dos, perguntei ao egípcio se ele me podia
429
dizer algo sobre o grande ser que íamos
visitar. O que me contou foi muito pouco,
apesar de eu ter certeza de que sabia muito
mais do que revelou. Provavelmente eu não
entenderia o que me poderia adiantar, e ele
reteve mais informações.

O ilustre personagem na direção de cuja ca-


sa nos encaminhávamos, era conhecido de
vista por todas as almas. Seu desejo era uma
ordem, sua palavra, lei. O azul, o branco e o
dourado de sua vestimenta revelavam o es-
tupendo grau de seus conhecimentos, sabe-
doria e espiritualidade. Milhares o chamavam
de Bem Amado Mestre, sendo um destes o
caldeu, que era seu braço direito. Quanto à
sua função especial, ele era o governante de
todos os reinos do mundo espiritual e exercia
coletivamente essa função, assim como a
função particular de governos individuais.
Todos os outros governantes, portanto, eram
subordinados a ele, e ele, por assim dizer,
unia os reinos e soldava-os em um só, fa-
430
zendo deles um vasto universo, criado e
mantido pelo Grande Pai de todas as coisas.

Tentar definir a imensa magnitude de seus


poderes seria tentar o impossível. Mesmo
que o fizesse, falharia a compreensão. Tais
poderes não têm equivalente ou comparação
com qualquer dos poderes administrativos
sobre a terra. Mentes terrenas podem ape-
nas evocar esses indivíduos que governam
grandes reinos sobre a terra, que anexam
vastos territórios, por assim dizer, por meio
do medo e que dominam seus inferiores,
como servos ou escravos. Nenhum rei mortal
jamais presidiu sobre tão vasto estado, como
este personagem de quem falo. E seu reino é
governado pela lei universal da verdadeira
afeição. O medo não existe, nem poderia
existir na menor fração, porque não há a
mais leve causa para ele, nem jamais have-
rá. ele é o grande Elo invisível entre o Pai, o
Criador do Universo e seus Filhos.
431
Mas, não obstante a suprema elevação
da sua posição espiritual, ele baixa do seu lar
celestial para nos visitar, como já disse. E é
permissível a outros, de grau muito inferior,
ir visitá-lo em sua casa.

Nada há de não-substancial, vago, irreal a-


cerca dele. Já o vimos em grandes dias festi-
vos. Ele não é apenas uma experiência espi-
ritual, um grande soerguimento da alma pro-
duzido dentro de nós por algo invisível. ele é
uma pessoa real, tão concreta quanto a rea-
lidade que nós somos — e somos mais reais
que vós na terra, embora não o sabeis. Há
noções erradas de que os seres superiores
são tão etéreos que chegam a ser invisíveis,
exceto aos outros da mesma espécie; e que
são completamente intangíveis; que nenhum
mortal inferior o pode ver e sobreviver. Diz-
se comumente que esses seres estão tão
acima de nós que se passarão eternidades
antes que os possamos ver. Mas isso é abso-
lutamente errado. Muita alma destes reinos
já foi abordada por esses grandes seres, sem
432
res, sem estar absolutamente a par do
fato. Nós todos temos certos poderes que
são aumentados ao passarmos para esferas
mais elevadas, nos passos progressivos do
nosso desenvolvimento espiritual. E um des-
ses poderes é ajustarmo-nos ao nosso ambi-
ente. Nada há de mágico a respeito disso. É
altamente técnico — muito mais do que os
científicos mistérios do mundo terrestre. No
mundo espiritual chamamos isso de equali-
zação de nossa porcentagem vibracional,
mas receio que com esta explicação ficastes
na mesma! E não compete a mim tentar ex-
plicar!

O egípcio forneceu-me esses detalhes e a-


crescentei-lhes algumas explicações de meu
próprio saber, que na verdade é bem peque-
no.

A esta altura estávamos perto da casa de


Edwin e passando à atmosfera rarefeita. Lo-
go ela nos causaria desconforto se prosse-
guíssemos. Instintivamente paramos e sen-
433
timos que o momento crucial de nossa
jornada havia chegado. Era exatamente co-
mo o caldeu dissera: nada tínhamos a temer.
E prosseguimos normalmente.

Primeiro, ele aproximou-se por trás de nós e


pousou suas mãos por um breve momento
sobre nossas cabeças. Isto, disse ele, era
para nos dar poder extra para movermo-nos
através do espaço. Sentimos uma sensação
estranha imediatamente sob suas mãos, que
era ao mesmo tempo agradável e exaltado-
ra, e sentimo-nos tornar mais leves, se bem
que isso parece impossível. Podíamos tam-
bém sentir um suave calor que corria pelo
nosso organismo. Isso era meramente o efei-
to do poder, e nada em si. O caldeu colocou
Rute entre mim e Edwin e pôs-se bem atrás
dela. Colocou a mão direita sobre o ombro
de Edwin e a outra sobre o meu, e, como
usava um manto — que vimos ser ricamente
bordado — ele formava um perfeito abrigo
para os três.
434
Esta visita deveria ser maravilhosa para
nós, como disse ele, e portanto deveríamos
mostrar a alegria de que estávamos embebi-
dos, e nenhuma seriedade era necessária.

O caldeu disse-nos que ao colocar suas mãos


sobre nós, além de nos dar força para viajar,
ajustava nossa visão à intensidade extra de
luz que iríamos encontrar. Sem essa precau-
ção nos veríamos em apuros. Neste ajusta-
mento nossa visão não era embaçada de
dentro, mas uma espécie de película era su-
perposta de fora, da mesma maneira que na
terra vocês usam vidros protetores contra a
luz e o calor do sol.

Em seguida ele pegou nossas mãos nas dele


e recebemos mais força na corrente assim
transmitida. Pediu-nos para nos tornarmos
completamente passivos e lembrar que está-
vamos a caminho do gozo e não para um
teste de sofrimento. "Agora, meus amigos,
nossa chegada é aguardada. Partamos!"
435
Imediatamente nos sentimos flutuar, mas
essa sensação cessou abruptamente, pelo
que nos pareceu uma fração de segundo, e
em seguida não houve mais sensação de
movimento. Uma luz brilhou perante nossos
olhos. Ao desaparecer, sentimos o chão sóli-
do sob os pés e tivemos a nossa primeira
visão do reino supremo.

Entráramos num domínio de inimitável bele-


za. Nenhuma imaginação pode visualizar tal
deslumbramento.

Estendendo-se perante nós havia um largo


rio, aparentemente calmo, pacífico e singu-
larmente belo ao ser tocado pelo sol, toman-
do cada minúscula ondulação uma miríade
de tons. Ocupando o centro do quadro, na
margem esquerda, havia um espaçoso terra-
ço que parecia ser de alabastro, à beira da
água. Uma larga escadaria conduzia ao mais
deslumbrante edifício que a mente pode i-
maginar.
436
Era de vários andares, postos em de-
graus, de maneira que cada um ocupava
uma área menor, até atingir o cume. Seu
interior era simples e sem adornos. O edifício
inteiro era composto de safira, diamantes e
topázios. Essas três pedras constituem o cor-
respondente às três cores que víramos nas
vestimentas do visitante celestial.

Nossa primeira pergunta referia-se à razão


ou significado do material específico do pré-
dio. Não havia significado algum, segundo
nos disse o caldeu. As pedras preciosas eram
próprias do reino que visitávamos. Em nos-
sos reinos os edifícios são opacos, mas meio
translúcidos na superfície. Mas são compac-
tos e pesados, em comparação com os da-
qui. Viajamos através de muitas outras esfe-
ras, até chegarmos nestas, mas tivéssemos
nos detido para observar as regiões por que
passamos, e teríamos visto a gradual trans-
formação que se efetua até que os nossos
materiais relativamente pesados transmu-
437
dam-se em substância cristalina, sobre a
qual nossos olhos estavam pregados.

As cores porém tinham certamente um signi-


ficado especial.

Podíamos ver, cercando o palácio, muitos


acres dos mais deslumbrantes jardins, dos
quais mal podíamos desviar a vista. Mas o
caldeu docemente chamou a nossa atenção
para o restante.

Nossa vista se espraiava por milhas de mi-


lhas, e espalhadas por elas, magníficas man-
sões construídas de esmeraldas, ametistas
etc, e ao longe, algo como pérola. Cada uma
colocada no meio de jardins graciosos onde
cresciam árvores de inimitável beleza e de
formas grandiosas.

Para onde quer que lançássemos os olhos, lá


veríamos o brilho dos edifícios e jóias, as
miríades de flores, a cintilação da água do
rio.
438
Enquanto olhávamos tudo, embasbaca-
dos, houve um repentino clarão de luz que
pareceu vir direto do palácio para o caldeu, e
este respondeu com outro raio de luz. Nossa
presença no reino já era conhecida, e depois
de apreciarmos a beleza do panorama, fo-
mos convidados a caminhar até ao Palácio,
onde o nosso anfitrião nos aguardava. Tal
era o significado dos raios emitidos.

Pela mesma maneira que viéramos, nós nos


achamos rapidamente no terraço acima do
rio. O pavimento deste era branco puro, e
nos surpreendeu a maciez do solo, que pare-
cia veludo sob nossos pés. Nossos passos
não faziam ruído, mas nossas vestimentas
farfalhavam ao caminharmos; caso contrário,
o nosso caminhar teria sido silencioso. Mas
havia muitos outros sons. Não dávamos en-
trada no mundo silencioso. O ar inteiro esta-
va cheio de harmonias desprendidas dos vo-
lumes de cor que abundavam por toda parte.
439
A temperatura nos parecia bem mais ele-
vada que a do nosso reino.

Ao adiantarmo-nos para a entrada, eu, de


bom grado, teria me demorado a admirar os
materiais de que era feito, mas o tempo ur-
gia.

Nossa estada não podia ser prolongada além


de nossa capacidade de resistência à atmos-
fera rarefeita, e à intensidade da luz, não
obstante a força e proteção espiritual do cal-
deu.

Tão belamente proporcionados eram os apo-


sentos e galerias, que não sentíamos aquela
sensação de sufocante altitude, como seria
de esperar num edifício de tais proporções.

Nas paredes havia quadros com cenas pasto-


rais, feitas de todas as pedras preciosas co-
nhecidas. Essas pinturas davam uma impres-
são de luz líquida, se é que se pode usar es-
sa expressão. De cores encantadoras e de
440
muito mais variadas tonalidades do que
há na terra. Pareceu inconcebível que pedras
preciosas pudessem fornecer tal variedade
de cores.

Ao caminhar sentíamo-nos, desde a entrada,


rodeados de uma atmosfera de calor e ami-
zade, o que era aumentado pelas boas-
vindas calorosas dadas por seres encantado-
res.

Finalmente paramos perante um pequeno


salão e o caldeu nos contou que havíamos
chegado ao fim de nossa jornada. Não me
sentia exatamente nervoso, mas imaginei
que formalidades seriam exigidas, e fiquei
hesitante. O caldeu porém nos assegurou
que devíamos meramente observar as regras
ditadas pelo bom gosto.

Entramos. Nosso anfitrião estava sentado a


uma janela. Assim que nos viu, levantou-se e
veio nos cumprimentar. Primeiro agradeceu
ao egípcio e ao caldeu por nos terem trazido.
441
Depois tomou cada um pela mão, para
nos dar as boas-vindas. Havia vários assen-
tos vagos perto do que ele ocupara e sugeriu
que nos sentássemos para gozar de sua vista
predileta.

Ao aproximarmo-nos da janela, avistamos


um canteiro das mais magníficas rosas bran-
cas, tão puras quanto um campo de neve, e
que exalavam um aroma maravilhoso. Rosas
brancas, nos disse, eram suas flores favori-
tas.

Sentamo-nos e tive a oportunidade de ob-


servá-lo de perto enquanto falava; visto as-
sim notei diferenças do que ele me parecera
à distância. Diferenças que eram quase uma
questão de intensidade de luz. Seu cabelo,
por exemplo, parecia ser dourado quando
nos visitara, mas aqui parecia de clara luz
dourada. Parecia jovem, de juventude eter-
na, mas podia-se sentir a incontável eterni-
dade de tempo que jazia por trás dela.
442
Quando falava, sua voz era pura música,
seu riso como água cascateante, e nunca
imaginei possível poder emitir tanta bonda-
de, afeição e consideração, e nunca julguei
que um indivíduo pudesse possuir tal imensi-
dão de sabedoria como ele. Sentia-se que,
abaixo do Pai do Céu, ele é que tinha a cha-
ve de todo o conhecimento. Mas, por estra-
nho que pareça, apesar de termos sido
transportados a distâncias incomensuráveis à
presença deste ser transcendente e maravi-
lhoso, nos sentíamos contudo perfeitamente
à vontade em sua presença. Ria conosco,
brincava, falava de suas rosas, dirigindo-se a
cada um de nós individualmente, exibindo
exato conhecimento de todos os nossos as-
suntos, coletiva ou pessoalmente. Finalmen-
te abordou a razão de seu convite para o
visitarmos.

Com meus amigos eu visitara os reinos som-


brios e contara o que vira lá. ele achava que
seria um agradável contraste se visitássemos
os planos superiores e suas belezas. Se mos-
443
trássemos que os habitantes de tais luga-
res não são sombras irreais, mas pelo con-
trário, como nós, capazes de sentir e mostrar
as emoções de suas naturezas esplêndidas,
capazes de compreensão humana, susceptí-
veis de riso fácil e alegria pura, como nós
mesmos.

Convidara-nos para essa visita para nos dizer


que estes reinos estão ao alcance de toda
alma nascida sobre a terra, e cujo direito
ninguém nos pode roubar; e que apesar de
levar-se anos infindos para alcançar esse
fim, havia meios ilimitados para nos auxiliar.
Esse, disse ele, é o grande e simples fato da
vida espiritual. Não há mistérios; é tudo sim-
ples, direito e desimpedido de crenças com-
plicadas, religiosas ou não. Não é preciso ser
adepto de qualquer religião, que em si não
tem autoridade nenhuma para assegurar às
almas o poder de garantir a salvação. Ne-
nhum grupo religioso, que alguma vez tenha
existido, pode fazê-lo.
444
E assim, este reino de beleza incompará-
vel está livre e acessível a todos que traba-
lham na mais ínfima condição. Poderá levar
eternidades para se realizar, mas esse será o
grandioso epílogo da vida de milhões.

Nosso bom amigo, o caldeu, mencionou en-


tão que nossa estada chegava a seu limite.

Quando nos erguemos, não pude resistir à


tentação de olhar as rosas pela janela, uma
vez mais.

Nosso anfitrião disse que nos acompanharia


até à colina de onde tivéramos nossa primei-
ra visão de seu reino. Seguimos um caminho
diferente dessa vez, e qual não foi o nosso
prazer quando ele nos conduziu diretamente
ao canteiro das rosas brancas. Curvou-se e
colheu três das mais perfeitas flores que ja-
mais vira, e presenteou-nos a cada um com
uma rosa. Nossa alegria era maior ainda por
saber que com a afeição que sentíamos por
elas, nunca murchariam e morreriam. Minha
445
preocupação era apenas que, em cami-
nho para casa, fossem amassadas pela desu-
sada densidade de nossa atmosfera mais
pesada.

Mas ele assegurou-nos que isso não aconte-


ceria, porque seriam amparadas pelo seu
pensamento.

Finalmente alcançamos o ponto de partida.


Palavras não exprimiriam o nosso sentimen-
to, mas os nossos pensamentos passaram a
ele, que nos havia dado essa suprema felici-
dade, esta antecipação do nosso destino — o
destino de todos os entes da terra.

Com uma bênção para todos, desejou-nos,


sorrindo, uma boa viagem, e nós partimos.

Tentei descrever algo do que vi, mas as pa-


lavras são poucas porque não posso traduzir
o espiritual em termos terrenos.
446
Para dar-vos uma descrição exata eu le-
varia uma existência enchendo volumes, e
portanto escolhi o que achei que seria de
mais interesse e benéfico. Meu sincero dese-
jo é que tenha despertado vosso interesse,
vos tenha afastado por uns momentos da
vida terrena, e dado uma idéia do mundo
que jaz além daquele em que agora viveis.

Se voz trouxe uma partícula de conforto, e


boa esperança, então minha recompensa é
grande e eu diria: Benedicat te omnipotens
Deus.
447

Leia este livro

HISTÓRIA DO ESPIRITISMO

CONAN DOYLE

A pena de um escritor de renome mundial foi


fiel aos impulsos de um grande cérebro, que
não podia ficar indiferente diante de uma
doutrina que, de longa data, agitava os mei-
os religiosos, literários e científicos da Euro-
pa e da América.

Por certo, quando Allan Kardec codificou o


Espiritismo, lançando a público O Evangelho
Segundo o Espiritismo, o Livro dos Médiuns e
vários outros, muitas mentes sequiosas de
saber teriam indagado qual a origem da dou-
trina que, naquela época, tomava corpo e
conquistava terreno até nos mais humildes
lares; que atraía a atenção dos meios aristo-
cráticos e que surpreendia sábios como Willi-
448
am Crookes, com suas notáveis experi-
ências com Katie King.

Sem querer remontar às tenebrosas eras


primevas da Humanidade, já encontramos no
Egito o Livro dos Mortos e os misteriosos
hieróglifos, cuja chave Champollion legou à
Humanidade, que revelam a firme crença do
povo egípcio numa vida post-mortem, dedi-
cando, aos que se foram, um culto especial.

Vários volumes seriam, portanto, necessários


para um empreendimento de tal vulto, isto é,
a História do Espiritismo, desde as suas pri-
meiras manifestações no mundo. Entretanto,
esse trabalho gigantesco não veria colunado
o seu objetivo, por falta de fontes históricas
que o alicerçassem, e teríamos de ingressar
no domínio das lendas ou de insustentáveis
tradições.

Foi por isso que Conan Doyle, como Presi-


dente da Federação Espírita Internacional,
além de outros honrosos títulos que exorna-
449
ram a sua personalidade, empreendeu o
estudo da História do Espiritismo, a partir do
célebre vidente Emanuel Swedenborg, e
trouxe-nos, a mancheias, os relatos dos mais
emocionantes episódios provocados pelo Es-
piritismo na Europa e na América, satisfa-
zendo a nossa curiosidade com fatos verda-
deiramente inéditos.

Como primeiro livro que se publica em língua


portuguesa, a História do Espiritismo, de Co-
nan Doyle, vem preencher uma lacuna de há
muito existente nas bibliotecas dos aficiona-
dos do assunto, que têm agora, à sua dispo-
sição, uma obra que prima pela seriedade e
pelo valor de seu autor.

EDITORA O PENSAMENTO
450

A VIDA NOS MUNDOS INVISÍVEIS

Anthony Borgia

A idéia da sobrevivência .da alma é tão velha


como, a própria Humanidade. Entre os povos
mais antigos, já encontramos tal crença, de
tal modo arraigada na consciência humana,
que pomposos rituais eram feitos, por ocasi-
ão da morte, a fim de garantirem à alma li-
berta uma vida feliz nos planos invisíveis.

Assim é que os egípcios tinham para a mo-


rada da alma o Amenti, os gregos tinham o
Hades, os hebreus, o Sheol, os tibetanos, o
Devacã etc. De todos os rituais conhecidos, o
mais célebre é o chamado LIVRO DOS MORTOS,
escrito pelos sacerdotes egípcios e que era
colocado ao lado da múmia do defunto, para
lhe servir de passaporte nas numerosas regi-
ões celestes. Champollion chamava esse livro
de Rituais Funerários; todavia o nome de
451
LIVRO DOS MORTOS foi adotado posterior-
mente por todos os arqueólogos.

O fato é que, instintivamente, o homem re-


pele a idéia de uma completa aniquilação
após a morte, muito embora a corrente ma-
terialista sustente o contrário.

No dizer de George Tyrrell, o que distingue a


Religião da Ética é a crença em um outro
mundo e o empenho em manter intercurso
com ele.

Ora, as conhecidas comunicações mediúnicas


e o estudo dos fenômenos parapsicológicos
não deixam dúvida, quanto à intervenção de
forças inteligentes, que 'estabelecem relação
entre o mundo visível e o invisível. Seria su-
pérfluo! falarmos de Kardec, considerado o
codificador da Doutrina Espírita, mas é opor-
tuno lembrarmos que cientistas de renome
mundial, tais como Lombroso, Oliver Hodge.
Flammarion, William Crookes e vários outros,
dedicaram longo tempo ao estudo de tão
452
fascinantes fenômenos, principalmente
aqueles demonstravam ser um fato a conti-
nuidade da existência indefinida após a mor-
te.

O conteúdo da presente obra a todos inte-


ressa, pois que a teremos que passar para o
Além e nada perderemos se, de soubermos o
que somos, para onde iremos e qual a corre-
ta que devemos assumir, para gozarmos
uma vida melhor.

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