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Rogerio Bernardino da Silva Jeffersom Cordeiro Assoni
Dr. Jorge Guerra Villalobos
Editoração e Diagramação
Rogerio Bernardino da Silva Conselho Editorial
Drª. Maria das Graças Limas
Revisão Gráfica Drª. Maria Aparecida Cecílio
Cristiano Niero Ms. Kiyomi Hirose
Edson Barreiro Drº. Geovanio Rossato
Drº Elias Brandão
Organização Me. Fabio Angeoletto
Dr. Jorge Guerra Villalobos

Revisão Ortográfica e de Estilo Colaboradores


Dra. Myrna T. Rossi Rego Matheus Aparecido Godoy Ribeiro
UNESP Lucas César Frediani Sant´Ana

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Feito no Brasil / Made in Brazil


2008 – 2ª Edição
Sumário

PREFÁCIO ......................................................................................................................... 9
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 11
CAPÍTULO I...................................................................................................................... 13
CAPÍTULO II..................................................................................................................... 37
CAPÍTULO III.................................................................................................................... 65
CAPÍTULO IV ................................................................................................................... 85
BIBLIOGRAFIA............................................................................................................... 107
PREFÁCIO

Este livro é o resultado de um longo processo, iniciado no ano de 2000, quando


lecionávamos no programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual
de Maringá. Neste ano, aceitamos com um grupo de alunos amigos discutir parte da obra
relacionada com a História da Geografia, que havia sido escrita por Horacio Capel,
considerado o mais importante geógrafo historiador, e que em 1981, havia revolucionado
a leitura da história desta antiga ciência com a obra "Filosofia y ciencia en la geografia
contemporánea: una introducción a la Geografia", Barcelona: Barcanova.
Assim, durante alguns anos fomos trabalhando lentamente numa obra clássica
que fora traduzida a inúmeras outras línguas, exceto o português, mesmo quando no
Brasil a obra de Capel vinha sendo muito estudada.
Ao definir as características da tradução para o público brasileiro, decidimos
junto com o professor Capel, realizar duas inovações: a primeira foi realizar a edição da
obra original em mais de um volume, sendo o primeiro editado no presente ano e os
outros previstos até finais de 2005. E a segunda inovação, foi a inclusão de um capítulo
relacionado com a Geografia italiana, que não consta do original.
Sempre ficou pendente a idéia de traduzir um texto relacionado com a
Geografia espanhola. Porém, como em 1999 havíamos publicado com Capel, "O
Nascimento da ciência moderna e a América: o papel das comunidades científicas, dos
profissionais e dos técnicos no estudo do território. Maringá: EDUEM", que trata em parte
da história da Geografia na Espanha e América, decidimos elaborar outra obra específica
para um futuro próximo. Proponho no momento a lista dos trabalhos publicados na
revista "Geo-Crítica", "Cadernos críticos de Geografia Humana" e em diferentes volumes
da série "Geo-Critica, textos de apoio", editados desde 1976 pela Universidade de
Barcelona, entre os quais podemos lembrar "Ciencia para la burguesia. Renovación
pedagógica y enseñanza de la geografia en la revolución liberal española, 1814 - 1857",
"La geografia en el bachillerato español, 1836 - 1970", "El libro de Geografia en España,
1800 - 1939", "La enseñanza de la geografia y el profesorado de las escuelas normales,
1882 - 1915".
Para finalizar, não poderia deixar de comentar, a inestimável colaboração da
minha mestre e amiga Dra. Myrna Teresinha Rossi Rego da UNESP/Rio Claro- S.P. que,
amante da geografia, dedicou inúmeras horas a dar melodia brasileira ao texto final.

Dr. Jorge Ulises Guerra Villalobos


Universidade Estadual de Maringá - Departamento de Geografia
Organizador
APRESENTAÇÃO

Colocar um trabalho do porte deste do Professor Capel à disposição do público


brasileiro é, no mínimo, louvável, tanto pela acessibilidade ao texto, quanto pela
qualidade e quantidade de informações e reflexões que contém.
Dentre os geógrafos de expressão internacional, o Professor Capel se destaca
pela permanente preocupação com as questões relativas à formação das bases teóricas
da ciência geográfica, reiterada nesta obra. O nome: Filosofia e Ciência na Geografia
Contemporânea, expressa adequadamente o conteúdo, porém, não se espere dela
apenas uma introdução à Geografia, como informa o sub-título.
Muito mais que isso, o autor transita com segurança pela própria historiografia
das idéias geográficas e seus componentes filosóficos, epistemológicos e metodológicos
e pelo contexto histórico – social – geográfico das suas manifestações.
O começo desta trajetória finca marco em Humboldt – pai da moderna ciência
geográfica do qual Capel analisa o projeto de investigar “[...] toda a complexa e rica
problemática das relações entre os distintos fenômenos de nosso planeta [...]”, na formulação
de uma “Teoria da Terra”. De maneira corajosa, Capel discute o a tese de que “somente uma
parte concreta da produção humboldtiana possuía realmente o caráter de geografia” e a
demonstra tratando da geografia física e da geografia regional. Finaliza o resgate da memória
deste grande cientista, esmiuçando sua obra magna – Cosmos.
Karl Ritter, outro dos presumidos pais da geografia moderna, é tema de Capel,
que começa por detalhar sua biografia e influências. A visão de mundo de Ritter de que
“o território atua sobre os habitantes e os habitantes atuam sobre o território” e que a
geografia e a história deveriam estar, necessariamente, juntas é explorada por Capel que
conclui ressaltando a importância da obra de Ritter para a continuidade da geografia,
exatamente no momento em que as especialidades científicas e o surgimento de novas
disciplinas assumiam parte do que se considerava até então objeto da geografia.
A partir da constatação de inúmeros estudiosos de que as obras de Humboldt e
Ritter ficaram, por uma década após a morte de seus autores, praticamente esquecidas,
Capel formula duas perguntas que conduzem a discussão seguinte: porque as obras destes
autores não tiveram influência na geografia alemã? Porque a geografia demorou tanto a se
desenvolver nas universidade alemãs? O resgate do desenvolvimento do ensino escolar
alemão e da posição da geografia são a chave das respostas que mostram como a geografia
se impôs e se consolidou a ponto de, ao final do século 19, existir ensino universitário de
geografia em praticamente todas as universidades alemãs, atraindo jovens de formações
diversas (historiadores, filólogos, matemáticos, farmacêuticos, zoólogos, geólogos e até
geógrafos), numa “mistura altamente estimulante.”
A criação da cátedras de geografia e o crescimento do número de estudantes
deram como resultado a publicação de manuais e monografias, atlas e mapas e a ênfase
no debate do objeto da geografia.
Enquanto isso, na França, a geografia praticamente inexistia nas
universidades, porém, assumia papel cada vez mais destacado no ensino elementar,
justificando a demanda de professores e estimulando a institucionalização e expansão
desta ciência em nível universitário. Repete-se o que ocorria na Alemanha, com a
criação de cátedras universitárias de geografia e sua ocupação por “um grande número
de indivíduos que chegaram por acaso à geografia”, nas palavras de Claval, com as
quais Capel não concorda e justifica em extenso texto.
Ao final do século 19, a geografia ainda não havia se firmado, mantendo o
caráter de auxiliar da história, sendo aceita com reticências por naturalistas e cientistas
e atacada por sociólogos. Capel fala da resistência da ciência geográfica, da luta pela
manutenção de sua unidade como estratégia central nesta resistência e do processo de
consolidação da geografia na França.
Pelo que rapidamente se expôs, nesta obra Capel mostra seu profundo
conhecimento da ciência geográfica e revela ao leitor facetas e interpretações pouco
conhecidas. Impressiona pela erudição, pela bibliografia, pela clareza, justificando sua
posição como um dos maiores teóricos da geografia de nosso tempo.

Lucia Helena de Oliveira Gerardi


Programa de Pós-graduação em Geografia – UNESP – Rio Claro

12
CAPÍTULO I

Tradução de: Paulo Rodrigues, Jorge Guerra Villalobos, Vanda Ueda

HUMBOLDT E A TEORIA DA TERRA

Quase todos os estudiosos da história da geografia concordam em considerar


Alexander von Humboldt como o pai da moderna ciência geográfica. Sua obra, sem dúvida, foi
decisiva para a configuração de muitas das idéias geográficas, particularmente no campo da
geografia física. Entretanto, sua figura e obra permaneceram, de certa maneira, como um fato
isolado1 , tendo que se esperar até o último terço do século XIX para encontrar uma disciplina
bem desenvolvida e alguns anos mais para se poder falar com toda propriedade de uma
geografia humana sistemática.

A GÊNESE DO PROJETO CIENTÍFICO HUMBOLDTIANO

Nascido em 1769 e pertencente a uma família aristocrática prussiana, cujo pai, maçom e
racionalista, preocupou-se em dar uma educação esmerada para seus filhos através de
preceptores, Alexander Von Humboldt recebeu muito cedo uma boa formação em economia
política graças às aulas do fisiocrata Wilhelm Dohm. Sua formação posterior em matemática,
ciências naturais, botânica e física, mineralogia — com professores particulares e através de
seus estudos na Academia de Minas de Freiberg (1790-1792)2 — e em tecnologia se
completou, em seguida, com uma boa educação financeira devido a seus estudos de
“Comércio”, disciplina destinada a formar os altos funcionários de finanças. Por outro lado, sua
ânsia de liberdade, seu desejo e necessidade vital de desenvolvimento pessoal fora do âmbito
de seus preceptores e do ambiente familiar, bem como a influência dos círculos cosmopolitas
judaicos, que freqüentou em Berlim, e de George Forster, que havia acompanhado o Capitão
Cook em sua segunda viagem ao redor do mundo, contribuíram para a formação de um espírito
viageiro que se traduziria em diversas viagens e, sobretudo, na grande expedição à América
Espanhola3 . Charles Minguet que estudou com atenção particular os anos de educação de
Humboldt e as tensões psicológicas que influíram em algumas de suas decisões assinala, com
1 Segundo escreveu P. CLAVAL, 1974, p. 29.
2 A Academia de Minas de Freiberg fundada em 1766 era uma das grandes escolas de geologia e foi considerada “um dos torrentes que conduz à moderna geologia” (HALL, 1976, p. 211). Humboldt estudou ali em 1791-92
e foi discípulo de A. G. Werner.
3 A bibliografia sobre Alexander Von Humboldt é bastante abundante. Duas excelentes biografias são as de H. BECK, 1971 e MINGUET, 1969. Na Espanha ocupou-se de Humboldt, MELON, 1931-1960. Não seria estranho
que Georg Forster houvesse influenciado Humboldt, despertando-lhe a idéia de uma viagem a América e facilitando-lhe relações que lhe permitiram realizar a expedição. Através de Fausto de Elhuyar, Forster teve contatos
com a Corte espanhola e inclusive havia aceitado em 1787 passar ao serviço de Espanha e tomara nacionalidade espanhola trabalhando como cientista. Veja-se sobre isso GIL NOGALES, 1980.
referência à vocação científica deste autor: “As forças vitais de Alexander, que pareciam durante
sua adolescência relativamente débeis, mas que adquiriram depois uma considerável extensão,
se aplicaram unicamente na direção indicada, o estudo da natureza, excluindo de sua vida
qualquer outra paixão, e em particular as relações sentimentais com mulheres”4 .
Alexander von Humboldt realizou com Georg Forster uma viagem pela Alemanha,
Inglaterra e França, durante a qual pode assistir a alguns dos acontecimentos da Revolução
Francesa, que deixaram nele uma admiração e uma marca inesquecível. Pouco a pouco, foi-se
definindo o projeto de uma expedição científica às terras não européias, com a finalidade de
realizar um estudo sistemático da natureza, aproveitando a ampla e variada formação que
possuía. Depois de várias tentativas mal sucedidas para viajar à África e Oriente Próximo
embarcou finalmente em La Coruña (5 de junho de 1799), rumo à América espanhola. Seu
propósito é bem claro, não se trata somente de realizar uma expedição científica clássica com
instrumentos astronômicos de primeira ordem: “tudo isso não é, entretanto, o objetivo principal de
minha viagem. Meus olhos devem estar sempre fixados sobre a ação combinada das forças, a
influência da criação inanimada sobre o mundo animal e vegetal, sobre esta harmonia” 5 .
Já desde o próprio começo de sua viagem, é toda a complexa e rica problemática das
relações entre os distintos fenômenos de nosso planeta o que Humboldt tratava de investigar.
Neste sentido, pode-se afirmar que Humboldt não assentou as bases da “Física do Globo” por
casualidade, como resultado do encadeamento das observações empíricas realizadas sobre o
terreno. Na própria base de suas viagens à América encontra-se a idéia genial que logo seria tão
influente na ciência geográfica. O caso de Humboldt mostra – como muitos outros exemplos
científicos – que só se encontra o que se busca, o que previamente já se havia intuído, o que
havia sido objeto de uma formulação antecipada que permite selecionar e organizar os
conhecimentos posteriores em função da primeira idéia6 .
A preocupação inicial de Humboldt se manteve como idéia motriz durante toda a viagem
e guiou também a redação dos volumes em que dava conta das investigações americanas. Na
introdução da Informação histórica da viagem às regiões equinociais do Novo Continente diz:
“Havia-me proposto um duplo fim na viagem cuja informação histórica publico agora. Desejava
que fossem conhecidos os países que visitei e recolher fatos que lançassem luz sobre uma
ciência apenas esboçada e muito vagamente designada com os nomes de Física do mundo,
Teoria da Terra ou de Geografia física. De ambos os objetos pareceu-me mais importante o
segundo [...] Preferindo sempre o conhecimento dos fatos isolados, ainda que novos, o do
encadeamento dos fatos observados a longo prazo, parecia-me muito menos interessante o
descobrimento de um gênero desconhecido que uma observação sobre as relações geográficas
dos vegetais, sobre a migração das plantas sociais, sobre o limite de altitude a que se elevam
seus diferentes grupos rumo ao cume das montanhas.”

4 MINGUET, 1969, p. 38.


5 Carta a von Moll, fechado no mesmo dia de seu embarque para América; cit. por MINGUET, 1969, p. 61.
6 Muito mais tarde, no Cosmos, Humboldt escreveria que “as correrias longínquas, que não serviram durante longo tempo mais que para fornecer a matéria de contos de aventuras, não podem ser instrutivas a não ser no
tanto que o viajante conheça o estado da ciência cujo domínio deva estender e em quanto suas idéias guiem suas pesquisas e o iniciem no estudo da natureza (Ed. 1874, vol. I, p. 32).

14
Mais adiante considera as vantagens das viagens ao interior dos continentes para
realizar este projeto, porque são elas que permitem observar a disposição regular das camadas
rochosas e dessa forma determinar a história de nosso planeta, assim como permitem
reconhecer os tipos “na disposição das matérias brutas reunidas em rochas e na distribuição das
plantas e animais”. E conclui:
“O grande problema da física do mundo é determinar a forma destes tipos, as leis dessas
relações, os laços eternos que relacionam os fenômenos da vida e os da natureza inanimada.”7
A gênese desse projeto intelectual humboldtiano deriva certamente da convergência de
três correntes de pensamento: duas delas científicas – a botânica e a geognosia – e uma terceira
de caráter filosófico e literário – o idealismo e o romantismo alemão.
Desde 1793, pelo menos, Humboldt já havia definido sua preocupação com uma
“restauração total das ciências”, em que se acentuava a integração dos diversos conhecimentos,
ou – como ele mesmo escrevia – a tentativa de “introduzir unidade em todo o afã humano”.
Interessava-se pela influência da natureza física sobre o homem e afirmava a necessidade de
“ligar o estudo da natureza física com o da natureza moral e começar na realidade a levar ao
universo, tal como o conhecemos, a verdadeira harmonia”8 .
É provável que o primeiro estímulo para este projeto procedesse da influência que nele
exercia o movimento romântico e a filosofia idealista, com os quais havia entrado em contato
através do círculo berlinense de Mendelsohn e, mais tarde, por sua relação com as grandes
figuras do romantismo alemão. De qualquer forma, nele existe uma idéia chave, a de “harmonia”
da natureza, que se repete constantemente; e é também possível que sua estada em Freiberg e
seus estudos de Geognosia lhe encaminharam ao objetivo de demonstrar experimentalmente a
“harmonia da natureza” através de provas e experimentos físicos9 . Por outro lado, não se pode
esquecer que Humboldt teve relação com Schiller e Goethe, visitando este último em 1794, cujo
estivera trabalhando em um projeto de novela “Sobre o Universo” no qual desenvolvera sua
concepção harmônica da natureza10 . O projeto científico de Humboldt se dispunha de
demonstrar empiricamente esta concepção idealista da harmonia universal da natureza
concebida como um todo de partes intimamente relacionadas, um todo harmonioso movido por
forças internas, como ele mesmo diria em algum momento. Este foi o grandioso projeto científico
que Humboldt acariciou durante toda sua vida, e que o conduziu em seu empreendimento a
fundar a “Física do Globo” e que culminaria mais tarde, nessa obra de maturidade que é o
Cosmos.
Alguns aspectos do método de Humboldt podem ser destacados a partir uma
perspectiva geográfica. Em primeiro lugar, Humboldt seguiu um método comparativo, e ao
mesmo tempo incorporou sempre em suas investigações a perspectiva histórica. Um autor
assinalou que “sua descrição não é puramente estática, mas, sim, recorre ao método histórico e

7 HUMBOLDT, 1818, ed. cast. in Biblioteca Indiana, IV, p. 569 e 570.


8 Carta à Brinkmann en 1793, em na que alude à grande capacidade de seu irmão Guilherme Humboldt “para enlaçar idéias e ver concatenações de coisas”. Cit. por BECK, 1971, p. 58-59.
9 BECK, 1971, p. 71 e subseqüentes.
10 BECK, 1971, p. 79. O mesmo Humboldt logo reconheceu a influência que tiveram em seu pensamento as idéias de Goethe sobre a natureza (BECK, 1971, p. 257). Sobre a concepção de Goethe em relação ao método
adequado para o estudo do mundo natural, veja-se SEAMON, 1978.

15
ao método comparativo”. E acrescenta: “É nisto, de fato, no que a Geografia é uma ciência nova,
ao levar em conta tanto o ‘Sein’ como o ‘Werden’”11 . Sem entrar aqui na discussão se realmente
a união destas duas perspectivas é o específico da geografia, vale a pena, entretanto, atentar
agora para cada uma delas.
Em relação ao método comparativo usado por Humboldt, cabe destacar somente que o
usou de forma abundante e que alguns consideram que é precisamente este uso de
comparações universais sua contribuição mais importante12 . Humboldt comparava, de fato,
sistematicamente as paisagens do setor que estudava com outras partes da Terra. Assim, por
exemplo, comparava as planícies do Orinoco com os Pampas, os desertos do velho continente e
os da América, o altiplano do México e o da Península Ibérica, as montanhas da Europa e as do
Novo Mundo, como disse Dickinson13 , “o essencial é que não só reconheceu paisagens únicas,
mas observar que possuem relações gerais e causas genéticas comuns com áreas similares em
outras partes da Terra; esta é a essência do método geográfico”.
A importância desta atitude é considerável. Realmente, como destaca J. Piaget14 , a
tendência a comparar, que não é tão natural como se pode crer, é um dos fatores que permitem
o passo de uma ciência do estado pré-científico ao estado nomotético, permitindo um
distanciamento em relação ao ponto de vista próprio, dominante em um primeiro momento. A
utilização do método comparativo representa, pois, um passo decisivo na ciência. No caso de
Humboldt, é provável que essa atitude procedesse de duas fontes: uma, a influência de Georg
Forster, que em seus Quadros do Baixo Reno (1791-1794) havia comparado a paisagem alemã
com paisagens inglesas e francesas15 ; outra, de seus conhecimentos botânicos, geológicos e
zoológicos, e mais concretamente de seu conhecimento dos métodos da “anatomia comparada”
que ele mesmo aplicou em suas observações.16
Por outro lado, a perspectiva histórica, a mudança, e a evolução foram questões que
preocuparam a Humboldt desde antes de sua viagem à América, e que se expressa claramente
na carta que escreveu a Schiller em 179417 . Nela, critica “a maneira como foi tratada até agora a
ciência da natureza, em que só se retinham as diferenças de formas, se estudava a fisionomia
das plantas e dos animais, em que se confundia inclusive, o ensino das características, o ensino
da identificação com a ciência sagrada”. Frente a este tipo de ciência, Humboldt diz que “é outra
coisa mais elevada o que se tem que buscar”, e o que se deve procurar é:
“a harmonia geral na forma, o problema de saber se existe uma forma de planta original,
que se apresenta sob milhares de gradações, a repartição destas formas na superfície da Terra,
as diversas impressões de alegria e de melancolia que o mundo das plantas produz nos homens
sensíveis, o contraste entre a massa rochosa morta, imóvel e inclusive entre os troncos das
árvores que parecem inorgânicos, e o tapete vegetal vivo que reveste de certa maneira

11 MINGUET, 1969, p. 76.


12 Jaime Labastida na introdução à El Humboldt Venezolano, HUMBOLDT, 1977.
13 DICKINSON, 1969, p. 26.
14 Em PIAGET, MACKENZIE, LASARFELD et alli, 1973, p. 54.
15 BECK, 1971, p. 41.
16 Nos volumes XXIII-XXIV da “Série Americana”, dedicados a estudos de zoologia e anatomia.
17 Reproduzida por BECK, 1971, p. 76-77, e por MINGUET, 1969, p. 77.

16
delicadamente o esqueleto com uma carne mais tenra; a história e a geografia das plantas, quer
dizer, a descrição histórica da extensão geral dos vegetais sobre a superfície da Terra, uma parte
não estudada da história geral do mundo; a investigação da mais antiga vegetação primitiva em
seus momentos fúnebres (petrificação, fossilização, carvões minerais, hulha); a habitabilidade
progressiva da superfície do globo; as migrações e os trajetos das plantas, plantas sociais e
plantas isoladas, com os mapas correspondentes, quais são as plantas que têm seguido certos
povos; uma história geral da agricultura; uma comparação das plantas cultivadas e dos animais
domésticos; origem das duas degenerescências; que plantas são mais ou menos estritamente,
mais ou menos livremente, submetidas à lei da forma simétrica; a volta ao estado selvagem das
plantas domésticas [...] as perturbações gerais que se produziram na geografia das plantas como
resultado das colonizações; tais são, me parece, os objetos dignos de atenção e não foram
quase em absoluto tratados”.
O parágrafo é interessante porque através dele se comprova que, ao menos desde
1794, Humboldt já considerava como insatisfatório todo o sistema científico do século XVIII,
baseado na realização de classificações, o qual havia levado na História Natural às
classificações de Linneo, Tournefort e Buffon. Tratava-se de uma concepção que, em definitivo,
considerava a Natureza como imóvel, e aceitava a possibilidade de realizar uma classificação
estática de seus elementos. Frente a ela, desde pleno século XVIII uma série de figuras (Bonnet,
Benoît de Maillet, Diderot) “já pressentem a grande potência criadora da vida, seu inesgotável
poder de transformação, sua plasticidade e esta deriva que envolve todos seus produtos, entre
eles nós, num tempo do qual ninguém é dono. Muito antes de Darwin e de Lamarck, o grande
debate do evolucionismo foi aberto por Telliamed, a Palingénesie e o Rêve de D’Alambert”.18
Humboldt já pertence, por esta visão histórica e dinâmica da natureza, à nova era
científica, a qual no século XIX conduzirá a este descobrimento fundamental da ciência
contemporânea que é o evolucionismo. Frente à Natureza concebida como algo estático e
contínuo como fazia em geral a ciência do século XVIII, Humboldt vê claramente que é preciso
considerar a história das plantas, a história da Terra, a evolução do nosso planeta, refletida nas
plantas e organismos fossilizados. Por outro lado, frente à concepção espacial dos naturalistas
preocupados com as taxonomias, para os quais como disse Foucault19 “o espaço real
geográfico e terrestre em que nos encontramos nos mostra os seres misturados uns com os
outros, em uma ordem que com relação à grande camada das taxionomias não é mais do que
acaso, desordem e perturbação”, Humboldt adota um ponto de vista totalmente diferente e se
coloca o problema de compreender as relações que unem em um mesmo espaço a fenômenos
e elementos aparentemente desconexos, ou cuja conexão não pode ser deduzida de um
sistema taxionômico. Frente à concepção que reflete a frase de Adanson em seu Cours
d’historie naturelle (1772)20 , de que a natureza “é uma mistura confusa de seres que o acaso
aparentemente aproximou [...]; esta mescla é tão geral e múltipla que parece ser uma das leis da

18 FOUCAULT, 1966, ed. cast. p. 127.


19 FOUCAULT, 1966, p. 148.
20 Cit. Por FOUCAULT, 1966, p. 149.

17
natureza”, bastará situar as palavras de Humboldt sobre sua idéia de harmonia da natureza,
sobre as relações entre os fenômenos que se dão em nosso planeta, para compreender a
imensa distância que separa a concepção humboldtiana da do século XVIII.
Humboldt aceita plenamente a distinção kantiana entre “sistemas da natureza” e
“descrições da natureza” e admite que os primeiros “nos põem em evidência um admirável
enlace de analogia de estrutura, seja no desenvolvimento completo destes seres, seja nas
diferentes fases que percorrem segundo uma evolução em espiral”, de outro lado salienta que
“todos estes pretensos sistemas da natureza, engenhosos em suas classificações, não nos
mostram os seres distribuídos por grupos no espaço com respeito às diferentes relações de
latitude e altura a que estão situados sobre o nível do oceano e segundo as influências
climatológicas que experimentam em virtude de causas gerais” 21 . Este foi o estímulo intelectual
que o conduziu ao desenvolvimento de sua geografia física.
Nesta geografia física, que culmina no Cosmos, Humboldt procura elevar-se a uma
reflexão científica a partir do que antes era considerado um puro acaso incompreensível. Nele
escreve, de fato, que a primeira olhada à vegetação de um continente nos mostra “as formas
mais distintas, como as gramíneas e as orquídeas, as árvores coníferas e os carvalhos,
próximas umas das outras; e se vê ao contrário as famílias naturais e os gêneros que longe de
formar associações locais estão dispersos como o acaso”. Porém “esta dispersão, não obstante,
é aparente”; e precisamente:
“a descrição física do globo nos mostra que o conjunto da vegetação apresenta numericamente
no desenvolvimento de suas formas e de seus tipos, relações constantes; que sob climas iguais,
as espécies que faltam em um país estão substituídas no próximo por espécies de uma mesma
família; e que esta lei de substituições que parece consistir nos mistérios do organismo originário,
mantém nas regiões limítrofes a relação numérica das espécies de tal ou qual grande família,
com a massa total das fanerógamas que compõe as duas floras”.22
Para Humboldt, “a descrição da natureza está intimamente ligada com sua história”,
porque as recordações do passado estão presentes por toda parte, tanto no mundo orgânico
como no inorgânico. No orgânico, de fato, “não é possível fixar a vista sobre a crosta de nosso
planeta, sem encontrar as marcas de um mundo inorgânico destruído”. No inorgânico, as rochas
mostram continuamente, com sua forma e sua composição, a história do planeta. História e
natureza aparecem intimamente associadas como geografia física e história. Esta concepção
dinâmica do universo e sua crítica das taxonomias estáticas e rígidas, que não reconheciam a
existência de formas intermediárias e de transição, permitiram a Humboldt chegar até o limiar do
evolucionismo, e se não chegou a ser um deles, foi reconhecido como “o elo entre a concepção
mecânica e a concepção evolucionista da natureza”, exercendo uma clara, e hoje sabida,
influência sobre a obra de Darwin23 .

21 HUMBOLDT, Cosmos, Ed. 1874, I, p. 45.


22 HUMBOLDT, Cosmos, volume I, 1845, p. 46.
23 CANNON,1969, EGERTION,1970. Ver LABASTIDA,1977, p. 39-40. A relação entre a crítica das taxionomias e a posição pré-evolucionista se reflete, por exemplo, nestas palavras do Cosmos (Ed. 1874, Vol. I, p. 31): “a
transição e o enlace (entre as espécies, os gêneros, os indivíduos) se fundam sucessivamente em uma diminuição ou desenvolvimento excessivo de certas partes, sobre soldaduras de órgãos distintos, sobre a
preponderância que resulta de uma falta de equilíbrio no balanço das forças, sobre relações com formas que, longe de serem permanentes, determinam somente certas fases de um desenvolvimento normal”.

18
O estudo das inter-relações no espaço supunha, por outro lado, a análise da distribuição
espacial dos diferentes fenômenos. De fato, outro aspecto interessante da contribuição de
Humboldt é a utilização de certos métodos cartográficos que, em alguns casos seguem, todavia
em vigor. É o que ocorre, por exemplo, com a utilização de isolinhas. A partir de uma idéia de
Halley sobre o magnetismo, Humboldt foi o primeiro a unir, mediante linhas, os pontos que
possuíam a mesma temperatura média anual (isotermas), assim como as temperaturas estivais
(isoterais) e invernais (isoquímenas) conferir com um climatologias se as palavras isoteriais e
isoquímenas estão corretas no português calculando também, no informe científico de sua
viagem à Ásia Central, as amplitudes térmicas. Em seu trabalho sobre As linhas isotermas e a
distribuição do calor no globo, propôs o sistema de representação ainda utilizado. Ao mesmo
tempo, Humboldt realizou secções de relevo para mostrar as alturas e as correspondências com
os fenômenos que observava. A inspiração para realizar perfis de grandes áreas ou “mapas de
altura” lhe veio de suas experiências na mineração, e pode representar assim “países inteiros por
um método que até hoje não se empregou senão para as minas ou para pequenas porções de
terreno por onde devem passar canais”.24
Através da sua variada formação, Humboldt pode oferecer contribuições decisivas a
diversos ramos da ciência, sobretudo à geologia, à mineralogia, à meteorologia e climatologia
(nome que parece haver criado), à geografia botânica, assim como à oceanografia (estudo da
corrente marítima com seu nome), à hidrologia e ao estudo do problema do geomagnetismo.
No desenvolvimento de seu pensamento e de seu método geográfico, a viagem à
América foi realmente decisiva, como ele mesmo reconheceu mais tarde25 . Particularmente
importantes foram suas observações nos Andes equatoriais, onde pode analisar as mudanças
de vegetação em relação à altura, assim como as que realizou na Nova Espanha, onde
estabeleceu pela primeira vez a divisão, ainda utilizada, entre terras quentes, terras temperadas
e terras frias, divisão, totalmente deve-se dizer, inspirada - como ele mesmo ressalta 26 - nas
denominações que lhes dava popularmente a população. Na viagem à Ásia Central, ao
contrário, foram sobretudo as observações geomagnéticas, geológicas e astronômicas que
predominaram, já que o objetivo era o estudo dos recursos minerais. O mais destacável dessa
notícia de viagem (publicada em 1843) são as teorias sobre montanhas e mesetas, e os cálculos
sobre alturas e sua influência na altura média dos continentes; os estudos sobre hidrologia e
sobre o Cáspio; e o exame das causas das variações das isotermas em relação a sua
disposição teórica segundo os paralelos. O papel das massas continentais e de sua
configuração topográfica, assim como a respectiva disposição das massas marinhas e
continentais e sua articulação (uma expressão que logo obteria muito êxito) são alguns dos
aspectos sobre os quais Humboldt trouxe valiosas contribuições.

24 HUMBOLDT: Ensaio político sobre Nova Espanha, Ed. 1978, p. 22. Humboldt discutiu amplamente os problemas de representação gráfica do território na sua Introdução à Pasigrafia geológica, obra que redigiu no México
a pedido de Andrés Manuel del Río e que se incluiu nos Elementos de Orictognosia (1805) do geólogo espanhol. Veja-se HUMBOLDT, 1805. Esta obra afirma que “a princípios de 1795 me pus a figurar países inteiros, como
se representa uma mina” (p. 162).
25 Veja-se MINGUET, 1969, p. 563. A publicação dos resultados da viagem à América de fez nos 30 volumes editados em Paris entre 1807 e 1834 com o título geral de Viagem às regiões Equinociais do Novo Continente
feita em 1799... e 1804 por A. de Humboldt e A. Bonpland. Uma descrição do conteúdo destes 30 volumes pode ver-se na introdução de Juan A. Ortega y Medina ao Ensaio político sobre Nova Espanha, HUMBOLDT (Ed.
1978, p. CLI-CLIII) e em MELON, 1960a.
26 HUMBOLDT: Ensaio Político sobre a Nova Espanha, Ed. 1978, p. 25.

19
Os geógrafos destacaram também que Humboldt é o primeiro que faz alusão às
paisagens naturais, como expressão de áreas homogêneas. Assim escreve num de seus
ensaios sobre plantas:
“Da mesma forma que reconhecemos em distintos seres orgânicos uma fisionomia determinada,
e do mesmo modo que a Botânica descritiva e a Zoologia consistem, em sentido restrito, em
uma análise detalhada das formas dos animais e vegetais, da mesma maneira cada região da
Terra possui uma fisionomia natural peculiar a cada uma”27 .
Quais são as raízes dessa valorização da “fisionomia das regiões” é algo que está por
se estudar. Sem dúvida, para um naturalista habituado a aplicar os princípios de caracterização
morfológica que estavam na base das taxonomias setecentistas, era fácil a passagem rumo a
uma caracterização fisionômica das paisagens naturais. E, além do mais, isso reflete uma
sensibilidade ante a paisagem que era comum entre os naturalistas da época. Talvez se
devesse prestar atenção à influência que nele pode exercer a obra de naturalistas como Horace
Benedict de Saussure, que Humboldt conheceu em Genebra em 1795, e que cita explicitamente
como modelo de sua Informação Histórica da Viagem às Regiões Equinociais28 , para justificar a
inclusão de descrições e quadros de paisagem sobre temas variados, e de quem muito
provavelmente procedem os roteiros para a observação e descrição das áreas montanhosas.
Porém, além disso, é necessário colocar esta sensibilidade em relação com o novo
sentido da paisagem, próprio do movimento romântico, com essa exaltação da natureza que
aparece em tantas obras literárias da época - como, por exemplo, em Paul et Virginie, a novela
de Saint-Pierre de que tanto Alexander gostava - e que conduz a uma valorização das
descrições e a uma vivência íntima com a paisagem natural.
A indubitável sensibilidade de Humboldt diante da paisagem e suas repetidas alusões
ao “prazer” que se obtém de sua contemplação são, sem dúvida, uma dívida a mais desse autor
com o espírito romântico da época.
Este sentimento da natureza e da paisagem reflete-se em toda a obra de Humboldt,
porém aparece vivo sobretudo em seus Quadros da Natureza, publicados primeiramente em
alemão em 1808, obra na qual expõe literariamente, para um público amplo, o resultado de seu
trabalho científico na América. A obra está inspirada em outra de Georg Forster, o companheiro
de sua viagem européia de 1790, Quadros do Baixo Reno (1791-1794), a qual foi considerada,
apesar de sua forma de diário, outro claro precursor do método geográfico regional29 . Assim,
através de Forster, de Goethe e da literatura pré-romântica, o sentimento da natureza foi elevado
por Humboldt a uma clara expressão científica e difundido, por seu grande prestígio, a um
público amplo.
Em Humboldt aparece claramente a relação entre grandes estruturas físicas e
atividades humanas. Era uma preocupação que ele tinha a muito tempo. Ao menos desde 1793,
como vimos, e volta a aparecer em 1797 ao serem publicados seus Ensaios nos quais se

27 Cit. por DICKINSON, 1969, p. 25.


28 HUMBOLDT, Relación histórica, Introducción, Ed. 1962 (Biblioteca Indiana), p. 576.
29 MINGUET, 1969, p. 42.

20
preocupa, por exemplo, com a influência da natureza sobre a saúde humana e em que proclama
sua esperança de que algum dia conseguiria “trazer à luz estas conexões observadas entre os
mundos material e moral”30 . Mais tarde no Ensaio Político sobre a Nova Espanha afirma que:
“a fisionomia de um país, o modo com que estão agrupadas as montanhas, a extensão das
planícies, a elevação que determina sua temperatura, enfim, tudo o que constitui a estrutura do
globo, tem as relações mais essenciais com os progressos da população e o bem estar dos
habitantes. Essa estrutura influi no estado da agricultura, que varia segundo as diferenças dos
climas, na facilidade do comércio interno, nas comunicações mais ou menos favorecidas pela
natureza do terreno e, por fim, na defesa militar da qual depende a segurança externa da
colônia. Somente sob estes aspectos as grandes indagações geológicas podem interessar ao
homem de Estado, quando calcula as forças e a riqueza territorial das nações.”31
Também na Informação Histórica da viagem às regiões equinociais refere-se aos
resultados gerais que pensa ter obtido na sua viagem à América e que “abraçam, ao mesmo
tempo, o clima e sua influência sobre os seres organizados, o aspecto da paisagem, que muda
segundo a natureza do solo e de seu manto vegetal. A direção das serras e dos rios que
separam assim as raças de homens como os grupos de vegetais; essas modificações, enfim,
que afetam o estado dos povos situados em diferentes latitudes e em circunstâncias mais ou
menos favoráveis para o desenvolvimento de suas faculdades.”32
A visão dos sofrimentos dos homens lhe aparecia freqüentemente por detrás das ricas
e, aparentemente, alegres paisagens que percorria. Humboldt foi um homem de firmes
convicções políticas liberais e que, apesar de suas origens aristocráticas e de sua privilegiada
situação econômica e social, defendeu sempre as aspirações dos grupos sociais oprimidos –
quer se tratasse dos indígenas ou dos negros americanos, dos escravos estadunidenses ou dos
servos do campo russo ou alemão - e manteve o “formoso e ardente desejo de instituições
livres”33 . É verdade que foi coberto de honrarias pelos reis da Prússia, que foi amigo do
autocrata Frederico Guilherme III34 , e que poderia ser considerado como um “democrata de
Corte”35 . Contudo, também é verdade que sempre defendeu um ponto de vista democrático,
que sua elevada posição e imenso prestígio lhe permitiu manter sempre.
Sua posição política e sua atitude frente à miséria e à injustiça reflete-se bem nesta
frase: “é um dever do viajante que viu os tormentos e degradações da natureza humana levar as
denúncias dos desafortunados ao conhecimento daqueles cuja tarefa é procurar seu alívio”36 .
Esta consciência da miséria ofuscava seu prazer pela natureza em algumas ocasiões. Como
quando rememorando os ricos cultivos dos vale do Güines, próximo de Havana, lembra o
sofrimento dos escravos africanos que nela trabalhavam e escreve: “a vida do campo perde seu

30 BECK, 1971, p. 122.


31 Humboldt, Ensaio político... Ed. 1978, p. 21.
32 Humboldt, Notícia Histórica, Ed. Biblioteca Indiana, IV, p. 572.
33 Escrito por Humboldt em 1852 em seu Gespräche mit einem jungem Freunde, cit. por Kellner, 1963, p. 217-218.
34 O qual conhecia as opiniões liberais de Alexander von Humboldt, mas que o considerava “como politicamente inofensivo” e tanto ele como seu ministro Gentz “se riam dele” (Beck, 1971, p. 295). As ambiguidades da
posição política de Humboldt ficam bem refletidas na obra de Beck.
35 Minguet, 1969, p. 88.
36 Humboldt: Ensaio Político sobre a ilha de Cuba, cit. por Kellner, 1963, p.129.

21
atrativo quando é inseparável do aspecto da infelicidade de nossa espécie” 37 . Foi sem dúvida
este sentimento da injustiça e do sofrimento e de sua fama de denunciar as injustiças sociais que
lhe fechou as portas das possessões inglesas na Ásia, que ele queria visitar 38 , e o que impediu
de tratar questões humanas na sua viagem à Ásia Central russa, por imposição expressa do
ministro Conchrin.39

HUMBOLDT E A GEOGRAFIA FÍSICA

São tantas as alegações feitas sobre o caráter geográfico da obra de Humboldt40 e em


particular sobre seu projeto essencial de fundamentar uma física do Globo, que poderia parecer
uma atitude atrevida opor-se a este tipo de interpretações. E, contudo, se lermos atentamente a
obra de Humboldt, sem preconceitos corporativos e sem a obsessão de justificar a todo custo a
ciência geográfica e estudá-la retrospectivamente a partir da definição que em seguida se deu a
ela, e se nos esforçarmos, ao contrário, em situar sua obra no panorama da ciência de seu
tempo, torna-se evidente, me parece, que somente uma parte concreta da produção científica
humboldtiana possuía realmente o caráter de “geografia”. Com sua física do globo Humboldt não
estava fundamentando a geografia moderna, e sim esforçando-se em estabelecer uma ciência
totalmente nova, que pouco tinha que ver com a geografia da época.
A confusão, neste sentido, procede essencialmente da utilização por Humboldt de duas
expressões: a de “geografia física” que em várias ocasiões considera mais ou menos
equivalente à sua Física do Globo e Geografia das plantas. Porém, convém advertir que ambas
eram expressões habituais usadas pelos naturalistas da época e que talvez não tenhamos que
atribuír-lhes o sentido que depois lhes foi dado.
O termo geografia física era utilizado correntemente pelos naturalistas da época e se
relacionava com um projeto bastante compartilhado de constituir uma teoria da Terra. Assim o
expressava, em 1787, Horace Benedict de Saussure, o naturalista suíço que tanto influiu em
Humboldt, ao considerar que havia chegado o momento de desenvolver uma ciência da Terra
baseada nas observações e não na especulação e na elaboração de sistemas: “a ciência que
reúne os fatos, os únicos que podem servir de base à teoria da Terra ou à Geologia é a geografia
física, ou descrição de nosso globo; de suas divisões naturais, da natureza de suas estruturas e
da situação de suas diferentes partes; dos corpos que se mostram na superfície e dos que
encerra em todas as profundidades em que nossos débeis meios nos permitiram penetrar”41 .
Saussure dedicou-se a realizar estas observações e a reunir os “fatos” nos Alpes, já que
estava convencido de que “é, sobretudo, o estudo das montanhas que pode acelerar os
progressos da teoria deste globo”. Contudo seus trabalhos eram considerados pelos

37 Humboldt: Ensaio político sobre o Reino da Nova Espanha. Ed. 1978, p. 236.
38 Theodoriadis, 1966.
39 Kellner, 1963.
40 Em algum caso até se estabelece o ano de sua conversão. Assim para Pau Villa, Humboldt é o iniciador da geografia moderna, porém “Venezuela lhe fez geógrafo”, Vila-Carpio, 1960, p. 160.
41 Saussure, H-B.: Voyage dans les Alpes, 1787, I, p. VI.

22
contemporâneos, e podem ser, ainda hoje, como próprios de um naturalista e não como os de
um geógrafo. De fato, sua “paixão pela geografia física” estava permitindo que contribuísse com
o desenvolvimento da geologia e é na história desta ciência que com mais propriedade podem
ser incluídas suas Viagens pelos Alpes. Leve-se em consideração que na França, na Suiça
francófona, na Espanha e outros países, o termo “geologia” somente se generalizou depois de
1778, e até essa data usava se habitualmente a expressão “Geografia física”. 42
No século XVIII alguns naturalistas alemães reconheciam a existência de uma história e
uma física dos três reinos da natureza. O botânico Ludwig havia defendido em 1742 que o
método histórico observaria o externo e conduziria à classificação, enquanto que o método físico
penetraria corpos naturais e permitiria mostrar o nascimento e as transformações de suas partes.
Esta dimensão histórica era para os filósofos como Wolf a das verdades de fato, frente às
verdades da razão43 . Nestas distinções a geografia aparecia certamente como mais vinculada à
história, à medida que oferecia dados e verdades de fato, enquanto que através da física era um
tipo diferente de problemas que se colocavam.
As idéias de Humboldt sobre a geografia física dependiam muito da “Geognosia” de
Werner, de quem foi discípulo durante os estudos da Academia de Minas de Freiberg, em 1791.
A identificação entre “Geognósia”, “ciência da Terra” e “geografia física” aparece aceita pelo
próprio Humboldt na sua Flora Fribergensis Specimen (1793), na qual define a tarefa desta
ciência como o estudo do que coexiste no espaço, considerando ao mesmo tempo os
fenômenos inorgânicos e orgânicos. 44
Humboldt manteve por toda sua vida esta identificação entre ciência da terra e geografia
física, a qual aparece explicitamente sustentada em 1828, por ocasião de suas conferências na
Universidade de Berlim45 e em seguida na obra que delas deriva, o Cosmos. Nesta última obra
Humboldt faz alusão à descrição física do mundo como “ciência independente” e escreve que
“se desde longo tempo os nomes das ciências não tivessem se distanciado de seu verdadeiro
significado lingüístico, a obra que publicou deveria levar o título de Cosmografia e dividir-se em
Uranografia e Geografia”, que eram, efetivamente, as partes em que aquela se dividia
tradicionalmente. Porém, estas expressões e outras como fisiologia, física ou história natural,
ofereciam a grande desvantagem de ter um sentido diferente nas línguas da antigüidade clássica
das quais foram tomadas, porque “nasceram e começaram a ser usadas habitualmente muito
antes de que se houvesse idéias claras sobre a diversidade dos objetos que estas ciências
deveriam abraçar, ou seja, antes de sua recíproca limitação”46 . De uma maneira mais concreta,

42 Broc, 1975, p. 200, nota 49. A respeito de Espanha basta citar o testemunho de Guillermo Bowles em sua Introducción a la Historia natural y a la geografía física de España (Madrid, 1775): “a geografia física é o
conhecimento das terras de nosso globo desde a superfície até o mais profundo que os homens penetraram”. A obra de Bowles é essencialmente um estudo de mineralogia e geologia. Poderia citar-se numerosos exemplos
para demonstrar que as questões relacionadas com a constituição da Terra, sua estrutura interior e as formas de sua superfície eram objeto da física durante o século XVIII. Entre eles pode servir a obra de Carra, 1781. É
sem dúvida dessa linha da qual surgiu a idéia de uma “física do globo”. Como prova suplementar pode assinalar-se que durante todo o século XVIII as observações com o barômetro e termômetro,a determinação de alturas,
as observações sobre vulcões e terremotos e as características do solo eram consideradas dentro da Física. Assim se fazia, por exemplo, nos “Anais de História Natural” (logo “Anais de Ciências Naturais”) de Madrid; no
Índice geral do vol. I (1800) se agrupam os artigos publicados segundo se refiram ao reino animal, vegetal ou mineral, à química e a física; neste último se incluem uma carta de Humboldt desde América, um artigo de N. S.
Franqui sobre um vulcão de Tenerife, outro de J. Varela sobre determinadas alturas em Canárias e outro de G. Thalacker sobre “Pontos de elevação conhecidos na Europa, África e América, e em Valencia”. Uma disposição
semelhante nos volumes seguintes.
43 Cassirer: El problema del conocimiento, vol IV, p. 212. Aqui se encontra a raiz da posterior distinção kantiana entre a “descrição da natureza” própria da história e da geografia e os “sistemas da natureza”.
44 Beck, 1971, p.73-74.
45 Beck, 1971, p. 315 e seguintes. e em particular a carta de Berghaus de 20 de dezembro de 1827, p. 319.
46 Humboldt: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 41.

23
considera que para a parte terrestre da física do mundo “conservaria de bom grado a antiga e
expressiva denominação da Geografia Física”.47
Esta geografia física tal como a definiu no Cosmos:
“Trata da distribuição do magnetismo em nosso planeta, segundo as relações de
intensidade e de direção; porém não se ocupa das leis que oferecem as atrações ou repulsões
dos pólos, nem dos meios de produzir correntes eletromagnéticas permanentes ou passageiras.
A Geografia Física elabora em grandes traços a configuração compacta ou articulada dos
Continentes, a extensão de seu litoral comparado com sua superfície, a divisão das massas
continentais nos dois hemisférios, divisão que exerce uma influência poderosa sobre a
diversidade de climas, e as modificações meteorológicas da atmosfera; mostra o caráter das
cadeias de montanhas, que soerguidas em diferentes épocas, formam sistemas particulares,
seja paralelos entre si, ou divergentes e cruzados; examina a altura média dos Continentes sobre
o nível dos mares e a posição do centro de gravidade de seu volume, a relação entre o ponto
culminante de uma cadeia de montanhas e a altura média de seu cume ou sua distância de um
litoral próximo.
Descreve também as rochas de erupção como princípios de movimento, posto que
trabalham sobre as rochas sedimentares que atravessam, soerguem ou inclinam; contempla os
vulcões que quer se encontrem isolados ou colocados em séries, simples ou duplas, quer se
estendam a diferentes distâncias da esfera de sua atividade, seja pelas rochas que em degraus
largos e estreitos produzem, seja removendo o solo por círculos que aumentam ou diminuem de
diâmetro no andar dos séculos.
A parte terrestre da física do Cosmos descreve, por fim, a luta do elemento líqüido com a
terra firme; expõe quanto têm de comum os grandes rios em seu curso superior ou inferior, e em
sua bifurcação, quando seu leito ainda não está inteiramente concluído; apresenta as correntes
de água partindo as mais elevadas cadeias de montanhas, ou seguindo durante longo tempo um
curso paralelo a elas, seja em sua base, ou a grandes distâncias, quando o soerguimento das
camadas de um sistema de montanhas, e a direção da rugosidade são conformes à que
seguem os bancos de areias mais ou menos inclinados da planície. Os resultados gerais da
Orografia e da Hidrografia comparadas, pertencem unicamente à ciência da qual desejo aqui
determinar os limites”.48
É evidente que isto pode constituir um projeto significativo de investigação científica,
porém não está clara a relação do mesmo com o que até o século XVIII se entendia por
Geografia,49 nem com o sentido, em sua época, de outros contemporâneos e do próprio
Humboldt que atribuíam à expressão “geografia”. Tanto mais que Humboldt depois das palavras
anteriores mantêm uma distinção entre “Geografia Física” por um lado, e “Geografia
propriamente dita” e “Geografia Comparada”, por outro, considerando estas últimas como
ciências descritivas e enumerativas, e como auxiliares “para a composição da geografia física”.50

47 Humboldt, A. de: Cosmos, Vol. I, Introducción, Ed. 1874, p. 42.


48 Humboldt, A. de: Cosmos, Vol. I, Introducción, Ed. 1874, p. 42-43. Neste último parágrafo existe um defeito de tradução: quer dizer que só os resultados gerais dessas ciências pertencem à geografia física.
49 Veja-se Capel: Geografía y matemáticas..., 1981.
50 Humboldt, A. de: Cosmos, Vol. I, Introducción, Ed. 1874, p. 43 e 51.

24
Quanto à expressão “geografia das plantas” é preciso dizer que era também usada
habitualmente pelos botânicos, para referir-se à distribuição espacial das espécies vegetais.
Depois do estudo sistemático e das taxonomias, era a distribuição o que interessava, assim
como determinar os fatores que nela influíam. É assim que um naturalista como Ramond havia
estudado a variação da vegetação nos Pirineus em função da altitude e das mudanças de
temperaturas, apresentando sobre isso uma comunicação à Academia de Ciências de Paris
(Observations faites dans les Pyrenées, Paris, 1789) e voltando a tratar mais tarde do mesmo
tema em uma obra de conjunto, as Voyages au Mont Perdu (Paris, 1801).
A idéia de geografia das plantas não veio a Humboldt da Geografia e sim da Botânica. E
chegou a ele através de seu amigo botânico Karl Ludwig Willdenow, cujas concepções se
dirigiam rumo ao desenvolvimento de uma fitogeografia ou geografia das plantas e em cuja
Botânica (1792) aparece já um capítulo em no qual é analisada a influência do clima sobre a
vegetação, as migrações de espécies e muitas outras idéias sobre a geografia das plantas que
em seguida apareceram também na obra de Humboldt51 . É aqui, e também em sua relação com
os botânicos do círculo do naturalista Blumenbach na Universidade de Göttingen52 , e na Idéia de
uma Geografia das plantas de Giraud Soulavie53 , que Humboldt se inspirou para o plano de sua
Geografia das Plantas54 .
De fato, em sua Flora Fribergensis specimen, publicada em 1793, com seus 24 anos,
Humboldt já esboça um programa de pesquisa em geografia vegetal como parte da botânica.
Tudo parece indicar que uma parte essencial de seu projeto científico esboçado nos anos 1793-
1794, e que aparece refletido na carta de Schiller que anteriormente foi citada, procede em boa
parte da influência do botânico Willdenow e foi em seguida enriquecida pelas contribuições que
também fizeram à geografia das plantas outros botânicos e naturalistas como Leopoldo von
Buch e Carl Smidt, que o próprio Humboldt aproveitou em seus estudos nas Ilhas Canárias.
Para Humboldt o termo “geografia das plantas” estava unido à Botânica e não à
Geografia. Assim se nota por suas próprias palavras nas quais distingue claramente “Geografia”
de “geografia das plantas”55 , e assim deve-se interpretar também sua afirmação de que “a
classificação das espécies, que deve ser vista como a parte fundamental da botânica [...] é para
a geografia dos vegetais o que a mineralogia descritiva é para a indicação das rochas que
constituem a crosta exterior do globo"56 . Após essas palavras, Humboldt considera que para
conhecer as leis que seguem a disposição das rochas e determinar sua idade em regiões
distantes, é preciso conhecer antes os fósseis simples que existem nas montanhas, cuja
descrição e nomenclatura é ensinada pela orictognósia; e adiciona: “o mesmo sucede com essa
parte da física do mundo que trata das relações que têm as plantas, ora entre si, ora com o solo
que habitam, ora com o ar que respiram e modificam. Os progressos da geografia dos vegetais

51 Beck, 1974, p. 29-30 e 200.


52 Beck, 1971, p. 33.
53 Beck, 1971, p. 37.
54 Beck, 1971, p. 30. Chamar isto de “um primeiro objetivo de pesquisa geográfica” como faz Beck me parece inapropriado.
55 Como a carta a Rennenkampff de 7 de janeiro de 1812, en Beck, 1971, p. 271. De todas maneiras, veja-se uma opinião distinta em Hartshorne, 1939, p. 79.
56 Humboldt: Relación histórica del viaje a las regiones equinociales, Introducción, Ed. Biblioteca Indiana, vol. IV, p. 569.

25
dependem, em grande parte, dos da botânica e seria prejudicial ao avanço das ciências querer
elevar-se a idéias gerais descuidando do conhecimento dos fatos particulares”.57
Humboldt não se considerava a si próprio um geógrafo, e sim um físico, um naturalista,
um químico, um botânico. Ele mesmo definiu o projeto científico que o conduziu à América como
uma “empresa idealizada com o objetivo de contribuir para o progresso das ciências físicas” 58 , e
considera que a publicação de seu trabalho pode oferecer interesse “para a história dos povos e
o conhecimento da Natureza”. Constantemente ao longo de sua obra - e não somente no
Cosmos - Humboldt distingue entre aquela parte de suas observações que pertence à
mineralogia, à botânica e à geografia, do que é uma nova visão integrada de todos os
fenômenos e que constituiria parte dessa “Física do Globo” que se propõe fundamentar.
Em geral, em suas palavras fica claro que a “geografia” é para ele os mapas e os
trabalhos prévios indispensáveis para construi-los (observações astronômicas de latitude e
longitude, nivelamentos com o barômetro, sobretudo) e talvez também a disposição das grandes
linhas do relevo e “a enumeração fatigante das produções do país”59 . Tudo mais - quer dizer, os
estudos sobre plantas, rochas, sobre as estruturas das cordilheiras, as observações atmosféricas
e sobre a intensidade das forças magnéticas - pertence seja à botânica, seja à geologia e
mineralogia, ou à física.60
Humboldt distingue em algum momento entre “a história natural descritiva, a geografia e
a economia política”61 . Também quando escreve em Cuba refere-se aos distintos trabalhos que
empreendeu no curso de suas viagens à América e propõe às pessoas que iriam publicar seus
diferentes manuscritos de caráter astronômico, geognóstico, físico, químico, zoológico e
botânico62 , distinguir cuidadosamente as distintas ciências em que se integravam seus
trabalhos, e sem mencionar neste caso, de forma nenhuma a geografia, que sem dúvida ia unida
em seu pensamento à astronomia, já que as observações astronômicas eram o principal
fundamento para os mapas.
A geografia era, para ele, essencialmente viagens e posições no mapa. São estes
aspectos que ele tratou essencialmente na sua História da Geografia, e que naqueles momentos
se identificaram acima de tudo com essa ciência. Essa era a idéia que seguramente adquiriu da
geografia em sua passagem pela Universidade de Göttingen, que possuía uma longa tradição
de estudos geográficos e uma biblioteca bem provida de coleções de viagens 63 . Também seria a
idéia que ficaria de sua estada em Gotha junto a Franz von Zach, o astrônomo editor de umas
Efemérides Geográficas Gerais que procuravam de determinar astronomicamente a posição dos
lugares na Terra64 .

57 Humboldt: Relación histórica..., p. 569. Os botânicos consideram a Humboldt o criador de uma geografia botânica que posteriormente desenvolveriam no século XIX botânicos como Pyrame de Candolle, Robert Brown ou
Frédéric Schoun. La Géographie botanique de Alfonse Candolle (1855) seria a obra fundamental na consolidação desta corrente de pesquisa sobre a geografia das plantas dentro da botânica. Veja-se sobre isso o discurso
pronunciado pelo catedrático de Botânica da Faculdade de Ciências de Paris em 1893 (Bonnier, 1893-94).
58 Humboldt: Relación histórica del viaje a las regiones equinociales, Introducción, Ed. Biblioteca Indiana, vol. IV, p. 569.
59 Humboldt: Relación histórica..., p. 572.
60 Podemos encontrar distinções deste tipo na introdução à Relación histórica del viaje a las regiones equinociales, em particular na página 572 da edição da Bibl Hispana, vol. IV.
61Humboldt: Relación histórica del viaje a las regiones equinociales, Introducción, Ed. Biblioteca Indiana, vol. IV, p. 576.
62 Beck, 1971, p. 186.
63 Beck, 1971, p. 33.
64 Beck, 1971, p. 101.

26
Isso explica que para nosso autor o “conhecimento geográfico” do lugar, era antes de
tudo a determinação de sua latitude e longitude65 . Também eram os mapas o aspecto valorizado
como “geográfico” por outros contemporâneos, como por exemplo o colombiano Caldas.
Quando realizava essas observações, astronômicas - cartográficas que constituíam um dos
objetivos da viagem à América, Humboldt era, sem nenhuma dúvida, um geógrafo.
Em várias oportunidades escreve frases que mostram claramente que para ele a
geografia era a determinação de posições no globo e a produção cartográfica, e não o estudo da
geologia e da física. Se tivesse pretendido só o primeiro não teria realizado uma expedição
terrestre, mas uma viagem marítima, porque considerava que “o interesse das ciências naturais
está” nestas, “subordinado ao da geografia e a astronomia náutica”; ao contrário as expedições
marítimas “parecem menos adequadas para impulsionar a geologia e outras partes da física
geral que as viagens no interior de um continente”. Para ele estava claro que “não é percorrendo
as costas (em expedições marítimas) que se pode reconhecer a direção das cadeias de
montanhas e sua constituição geológica, o clima peculiar de cada zona e sua influência nas
formas e hábitos dos seres organizados”.66
Humboldt mostrou, por outro lado, um evidente distanciamento em relação à geografia.
Quando se refere “aos geógrafos que tanta pressa tiveram de despedaçar o mundo para facilitar
o estudo da ciência” 67 , está se referindo, sem dúvida, a uma ciência que não considerava sua
(não disse “nossa ciência”). Na realidade, como havíamos dito, ele considerava a si um “físico”,
um “naturalista”, um "filósofo da natureza” e em algumas ocasiões um “botânico”68 . Dessa
maneira o consideravam também seus contemporâneos, que valorizavam sobretudo suas
contribuições à história natural, à física ou inclusive, à química. 69

HUMBOLDT E A GEOGRAFIA REGIONAL

Para muitos geógrafos Humboldt não foi só o criador da geografia moderna mas, ao
mesmo tempo, o da moderna geografia regional. Concretamente,70 o Ensaio político sobre o
Reino da Nova Espanha é uma obra admirável71 , que recebeu atenção e é considerada básica,
nesse sentido.

65 Como se deduz de suas palavras sobre as observações que fez em Barcelona em 1799, Beck, 1971, p. 133. Em outra ocasião escreve sobre que “os relógios marinhos, ainda ampliando em tudo a massa de nossos
conhecimentos geográficos...”. Humboldt, Relación histórica..., p. 576.
66 Humboldt: Relación histórica del viaje a las regiones equinociales, vol. IV, p. 570. A introdução desta obra foi escrita em 1811. Outro texto interessante a levar em consideração e que relaciona o trabalho do geógrafo com
a elaboração de mapas aparece em Humboldt: Del Orinoco al Amazonas, 2ª. ed., 1967, p. 295.
67 Humboldt, A.: Ensayo político sobre ...la Nueva España, Ed. 1978, p. 220.
68 Vejam-se as referências concretas em HUMBOLDT,A.: Relación histórica del viaje a las regiones equinociales, Introdução (Ed. 196..., Bibl. Indiana, vol. IV, p. 576), de onde se designa como “ físico”; e em BECK, 1971,
páginas 114 (“filósofo da natureza”) e 200 (“botânico”). Também em uma ocasião se designa como “fisiogeógrafo” (BECK, 1971, p. 229). Ao regressar da América, Humboldt valorava sobretudo seus trabalhos astronômicos,
botânicos e químicos (BECK, 252) e considerava que seus trabalhos aportariam dados “da geologia e da física geral” (HUMBOLDT, Relación histórica...,Ed. 196..., Bibl. Ind., IV, p. 577.
69 O termo “físico ou naturalista” era o mais correntemente aplicado a Humboldt, como assinala BECK, 1971, p. 15. Ver-se também a referência bibliográfica incluída em HUMBOLDT, A.: Ensayo político...,Ed. 1978, p. CLIX
(Lettre de M. Alex Humboldt, physicien...au citoyen Fourcroy, 1800). Por outra parte suas amizades e relações científicas mas importantes ao regressar da América foram com físicos e naturalistas como Gay Lussac, Arago
ou Biot, com os quais manteve estreita colaboração. Em 1824 propus criar uma “Revista de Geografia e Etnografia” (BECK, 1971,p. 297), mesmo que fosse essencialmente para expor os resultados das explorações que
pensava realizar ou estimular no México. Sobre sua colaboração com Berghaus em “ Hertha”, ver em BECK, p. 301.
70 Admirável, ainda aceitando as críticas e reservas que alguns autores e em particular os mexicanos, fizeram a ele. Veja-se o prólogo de Ortega y Medina à edição do Ensaio..., Humboldt, 1978, p. XLIX.
71 Publicado com o título de Essai politique sur le Royaume de la Nouvelle Espagne, Paris, 1807-1811, 2 vols.

27
Assim R.L. Stevens Middleton, ao analisar esta obra, acreditou poder concluir que o
plano da mesma era, em muitos aspectos, o mesmo que os estudos modernos de geografia
regional, e comparou o referido plano com o de uma obra de L. Dudley Stamp, concluindo que
“as regiões e os problemas são diferentes, mas a organização adotada na obra de Humboldt é
essencialmente a mesma”72 . Por isso ele e outros crêem que essa obra é o fundamento ou o
protótipo da moderna geografia regional, o primeiro tratado geográfico verdadeiramente
moderno, e o mexicano Jorge Vivó considera ainda, que deveria ter recebido o título de
Geografia da Nova Espanha”73 . A mesma opinião tem R.E. Dickinson, o qual considera que
Humboldt é, nesta obra, acima de tudo um geógrafo regional, “no sentido de que reconhece a
interdependência dos fenômenos espaciais e a necessidade de explicar todo conjunto
espacialmente distribuído em relação com seu contexto espacial” 74 . Por seu lado Hanno Beck
crê que com o Ensaio Político iniciou-se a geografia moderna e, concretamente, a geografia
econômica regional75 .
Sem negar que o Ensaio tivesse posteriormente uma grande influência no pensamento
geográfico, não é certo que possa ser considerada como uma obra de geografia.
Poder-se-ia talvez ser tentado a afirmar que no Ensaio se recolhe a linha da geografia
descritiva de países, que na Alemanha haviam cultivado, com grande êxito, autores como
Büsching. Um dos preceptores de Humboldt, em sua infância, foi Johan Cristian Kumth que
havia sido precisamente discípulo de Büsching76 . Mas sem necessidade de esgrimir esta
possível linha de influência, é claro que a obra de Büsching era suficientemente conhecida na
Alemanha para sê-lo também por Humboldt.
De qualquer forma, basta comparar o plano do Ensaio com a desordenada disposição
de temas que aparecem na geografia de Büsching77 , perceber que não é aí que estaria o
estímulo para a obra sobre Nova Espanha. Tanto mais que convém não esquecer, por outro
lado, que na segunda metade do século XVIII o desenvolvimento da estatística havia levado
numerosos autores (como, por exemplo, Achenwall) a considerar a geografia política como
carente de sentido78 , e que neste confronto tanto Humboldt como seus contemporâneos
tendiam a considerar a obra sobre o México como estatística 79 .
Na realidade, é de seus estudos de economia política e comércio realizados na
Academia Comercial de Hamburgo dirigida pelo economista Johan Georg Busch, que procedem
os estímulos intelectuais e a tradição que conduz ao Ensaio político sobre o Reino da Nova
Espanha. É essa formação que lhe permitiu realizar durante sua viagem à América uma ampla
análise da economia e da sociedade das possessões espanholas, em termos de produções,
comércio com a metrópole e características das sociedades locais.

72 STEVENS, 1956.
73 VIVO, 1962.
74 DICKINSON, 1969, p. 28.
75 BECK, 1971, p. 309. Discute também a possível prioridade de Haenke.
76 BECK, 1971, p. 23.
77 Por exemplo BUESCHING, 1769-1773.
78 BECK, 1971, p. 34 e 74.
79 Assim Humboldt em Ensayo, Ed. 1978, p. 18 onde afirma que sua obra se limitará “aos resultados gerais, porque não são próprios da estatística os resultados da História Natural”; sobre o juizo dos contemporâneos
considerando o Ensaio como uma Estatística de México, ver-se BECK, p. 260.

28
O plano da obra e os temas tratados são melhor entendidos se inseridos na tradição da
economia política da época, que na da geografia.
Humboldt inicia apresentando considerações gerais sobre a extensão e o aspecto físico
da Nova Espanha e “sem entrar em nenhum pormenor de história natural descritiva” - porque
estes temas eram tratados em outros volumes da série americana - estudava “a influência das
desigualdades do solo sobre o clima”, a agricultura, o comércio e a defesa das costas. Em
seguida, no livro segundo estudava a população em geral e as distintas castas que a compõem.
O terceiro livro apresentava a estatística particular de cada uma das intendências, sua
população e sua área “calculada - acrescenta Humboldt - segundo as cartas geográficas que eu
mesmo levantei por minhas observações astronômicas”. Depois, no quarto livro, examina o
estado da agricultura e das jazidas de minerais metálicos; no quinto os progressos das
manufaturas e o comércio; e no sexto realiza indagações sobre as rendas do Estado e sobre a
defesa militar do país.
Esta perspectiva analítica e o tratamento dos temas mostra que o Ensaio é, na
realidade, uma obra de economia política, como seu próprio título já aponta e como, ao longo do
texto, se comprova repetidamente80 . Os temas são os habituais em obras de economia política
da época dedicadas ao estudo das regiões e países, e aparecem, por exemplo, em obras como
a História da Economia política de Aragão (1798) de Ignacio de Asso, ou na Descrição
Econômica do Reino de Galícia (1804) de Lucas Labrada, para citar somente duas obras
espanholas. É isso que faz com que o Ensaio esteja “em forte contraste com as compilações
enciclopédicas de escritores desde os dias de Estrabão aos topógrafos do século XIX” como
teve que reconhecer o próprio Dickinson81 .
A parte mais propriamente geográfica do Ensaio vai, na realidade, separada do corpo
principal do mesmo, e está constituída pelo Atlas Geográfico e Físico do Reino da Nova
Espanha, fundado sobre observações astronômicas, medidas trigonométricas e nivelações
barométricas (Paris, 1811, vol. XIX da série Americana, 20 pranchas, em francês), e a Introdução
geográfica ou Análise explicativa do Atlas da Nova Espanha, que precedia o Ensaio.
A introdução resume muitos temas que aparecem nele, e insiste, sobretudo, no mais
especificamente “geográfico”, a saber: as relações de viagem e descobrimento no vice-reinado
da Nova Espanha; e a justificação das posições geográfica aceitas para a confecção de mapas
(observações astronômicas realizadas por Humboldt ou por outras pessoas; dados obtidos das
relações de viagens), justificado com as citações de mapas parciais e de documentos utilizados
para a elaboração dos mapas gerais.
Humboldt utilizou amplamente, para a parte humana de suas obras americanas,
informações fornecidas por fontes oficiais e os dados de ilustres moradores locais da sociedade
branca, a qual influiu nos vários anos que durou sua viagem a América, em certas opiniões sobre
os indígenas, hoje discutidas por alguns hispano-americanos.

80 Humboldt fala sempre em sua obra do “desenho” ou “quadro político” do México, e assinala que “abraça quando faz referência as relações políticas e comerciais do México”, Ensayo, Ed. 1978, p. 220. O mesmo Humboldt
o denomina como “político” ao referir-se a ele na introdução da Relación histórica de la viaje a las regiones equinociales, Ed. Bibl.Ind., IV, p. 54, uma vez que distingue claramente a geografia da história natural e da
economia política (idem., p.576).
81 DICKINSON, 1969, p. 28, que apesar de tudo, a considera “a primeira das descrições geográficas sistemáticas”.

29
Mas, em geral, em suas descrições sobre os aspectos humanos afastou-se muito pouco
das normas em uso nos livros de viagens, tão numerosos durante o século XVIII. Não existe
uma intenção de generalização, nem uma preocupação sistemática de desenvolver uma teoria
geral sobre a “geografia humana” do Novo Mundo, questão que, por outro lado, estava fora de
seu objetivo científico fundamental. Inclusive quando coloca o problema da interação entre meio
físico e humano o problema das relações que tanto o preocupava do ponto de vista dos
fenômenos físicos - não deixa de cair em observações com um certo ar determinista, que às
vezes prenuncia as teses de estímulo-resposta, como quando ao referir-se aos climas tropicais
ressalta que:
“sob um clima suave e uniforme, a única necessidade urgente do homem é a alimentação. É o
sentimento desta necessidade que excita para o trabalho; e se compreende facilmente porque,
em meio à abundância, a sombra das bananas e ao pé da fruta-pão, as faculdades intelectuais
se desenvolvam mais lentamente que debaixo de um céu rigoroso, na região dos cereais, onde
nossa espécie está constantemente em luta com os elementos”82 .
No conjunto, do ponto de vista da geografia humana, Alexandre von Humboldt não
superou a concepção da descrição regional, que se reflete igualmente em obras como a de seu
contemporâneo Félix de Azara.

ROMANTISMO E EMPIRISMO NO COSMOS

O projeto intelectual acariciado por Alexandre von Humboldt desde os anos finais do
século XVIII – ou seja, a fundamentação de uma ciência integradora que estudasse as relações
entre os fenômenos da vida e da natureza inanimada - culminou em sua grande obra de
maturidade, o Cosmos, cujos quatro volumes foram aparecendo a partir de 184583 .
O plano desta obra estava traçado desde 1827, data em que o autor deu seu famoso
ciclo de 61 conferências sobre a descrição física do mundo na Universidade de Berlim84 . Este foi
o germe inicial de uma obra que inicialmente deveria ter um só volume, mas que o autor foi
ampliando sucessivamente85 , o que não deixa de ter conseqüências sobre a coerência da obra.
De qualquer forma ela foi um autêntico êxito editorial e facilitou uma visão geral da Terra e do
universo na qual foram educadas gerações de intelectuais da Alemanha e de toda Europa.
Precisamente por este caráter ambicioso e integrador que possui, o Cosmos é uma obra
importante da ciência européia do século XIX. É a obra daquele que foi considerado o último
homem enciclopédico da cultura universal. Nela ultrapassou sua antiga concepção de uma

82 Humboldt, Relación histórica, tomo III, libro III, cap. IV.


83 HUMBOLDT: Cosmos, vol.I, 1845; vol. II, 1847; vol III, 1950; vol. IV, 1858. Depois de sua morte publicou se um volume V com notas diversas do autor. Existem ao menos duas traduções espanholas desta obra: uma de
Francisco Díaz Quintero (Madrid, Edit. Vicente García Terrés, 1851-52), incompleta, em dois volumes, e outra de Bernardo Giner y José de Fuentes (Madrid, Imprenta de Gaspar y Roig, 1874-75) dos quatro volumes. Uma
seleção desta obra foi publicado em “Geo-crítica” (Universidad de Barcelona, no. 11, setembro de 1977) com uma introdução de Miguel Ángel MIRANDA.
84 As conferências se desenvolveram entre 3 de novembro de 1827 e 26 de abril de 1828 e foram seguidas de um segundo ciclo de 16 horas na Academia do Canto, que constituíram um verdadeiro acontecimento social,
com uns 1.400 ouvintes. Ver-se BECK, 1971, p. 315-320.
85 Sobre o fato de que só se previa inicialmente um único volume, ver-se BECK,1971, p. 454-459. Todavia em outra ocasião escreve que se reserva “para o terceiro e último tomo completar o que falta” (Cosmos, Ed.1874,
vol III, p. 8).

30
geografia física da Terra para abordar uma descrição física do universo (Physische
Welteschreibung), com a qual de fato culmina e se reformula a velha linha da cosmografia.
Humboldt se propôs a mostrar o que, segundo ele, constitui o resultado mais importante
da investigação científica, considerada como objeto de reflexão intelectual superior e não
simplesmente do ponto de vista de suas aplicações práticas. Trata-se do “conhecimento da
conexão que existe entre as forças da natureza e o sentimento íntimo de sua mútua
dependência”86 , um projeto que já havíamos visto expresso em 1799 e que se amplia para um
objetivo de compreensão global do universo. Estendem-se os limites da antiga física do globo
terrestre, “reunindo sob mesmo ponto de vista os fenômenos que a Terra apresenta com os que
abarcam os fenômenos celestes”.
Desta forma chega-se a uma ciência do cosmos, a uma física do mundo. Esta seria a
ciência que “aspira tornar conhecida a ação simultânea e o vasto encadeamento das forças que
animam o Universo”, uma ciência que, sem dúvida, não é uma simples enciclopédia das ciências
naturais, já que nela “os fatos parciais só serão considerados em suas relações com o todo”87 .
Em O Cosmos aborda um horizonte extraordinariamente vasto: nada menos que “a reunião de
tudo quanto existe no espaço, desde as mais distantes nebulosas até os leves tecidos de
matéria vegetal, distribuídos segundo os climas, que cobrem e colorem diferentemente as
rochas”88 . Como não deseja criar neologismos, prefere denominar isto de “descrição física da
Terra”, que antes aplicava à parte terrestre.89
No volume I, Humboldt desenvolveu considerações introdutórias sobre a diversidade do
prazer da natureza e o estudo das leis do universo; realizou uma discussão dos limites e
métodos de exposição da descrição física do mundo; e abordou, por último, a apresentação dos
três grandes grupos de fenômenos que integraria em sua obra: os fenômenos celestes, os
terrestres e os da vida orgânica. Trata-se de uma apresentação geral das idéias de toda a obra,
que mais tarde seria desenvolvida de forma mais detalhada nos sucessivos tomos. O volume III
(1850) desenvolve o estudo do céu; o IV (1858) o da terra; por outro lado, o que teria sido
seguramente, dedicado à vida orgânica não pode ser escrito pelo autor, que faleceu em 1859.90
Entre o volume introdutório e os que compreendem as diferentes partes de sua
descrição física do mundo, Humboldt redigiu um volume extraordinariamente interessante
dedicado a apresentar as distintas etapas da configuração da imagem do cosmos (Vol. II, 1847).
Antes de mais nada, o reflexo do mundo exterior na imaginação do homem, no qual estuda
como os homens têm representado a natureza e que efeitos teve esta sobre sua imaginação,
analisando para isto descrições da paisagem feitas por diferentes escritores e a influência da
pintura da paisagem no estudo da natureza. Humboldt procura neste volume “a expressão do
sentimento da natureza entre os povos da antigüidade clássica, e entre as nações modernas,
recolhendo os fragmentos de poesia descritiva que ostentam o colorido do caráter nacional de

86 Humboldt: Cosmos, Ed. 1874, vol.I, p. 2.


87 Humboldt: Cosmos, Ed. 1874, vol.I, p. 38.
88 Humboldt: Cosmos, vol.I, p. 52.
89 Por Mundo entende: "o conjunto do Céu e da Terra, a universalidade das coisas que compõem o mundo sensível".
90 Na Espanha o Cosmos foi estudado por A. Melon (1925 e em trabalhos posteriores). A obra merece uma análise mas profunda, com uma perspectiva ampla, interdisciplinária.

31
cada uma dessas raças, e da idéia que formavam da criação, considera a como obra de um
poder único”. Também descreve “o gracioso encanto da pintura da paisagem”. Em todas estas
páginas Humboldt constitui um autêntico precedente da moderna geografia da percepção, uma
tendência que alguns geógrafos espanhóis aferrados, com afinco à concepção tradicional se
esforçaram em rejeitar, esquecendo que, aquele que eles veneravam como o pai da geografia
moderna, havia escrito magníficas páginas sobre essas geografias pessoais e sobre essas
imagens mentais que às vezes fundem suas raízes no mito e na lenda. Foi Humboldt, de fato,
quem escreveu que:
“existe o lado do mundo real ou exterior, um mundo ideal ou interior, pleno de mitos fantásticos e
às vezes simbólicos, e de formas animais cujas partes heterogêneas são tomadas do mundo
atual ou dos restos das gerações extintas. Formas maravilhosas de árvores e de flores, crescem
também sobre o solo da mitologia, como o frêne (Fraxinus oxycarpa Will) gigantesco dos cantos
de Edda, a árvore do mundo chamada Igdrasil [...]. Por isto a região nebulosa da mitologia física
está povoada, de acordo com a diferença das raças e dos climas, de formas graciosas ou
horríveis que dali passam ao domínio das idéias sábias, e durante o espaço de muitos séculos
são transmitidas de geração a geração”.91
A isto Humboldt une, no mesmo volume, um ensaio histórico sobre o desenvolvimento
progressivo da idéia do universo que constitui, levando em conta a época em que foi escrito, um
valioso panorama da história da ciência e da geografia. Outro campo ao qual Humboldt dedicou
atenção92 e também mereceria maior cuidado em seu estudo por parte dos que utilizam o nome
de Humboldt a todo momento.
O estudo da física do mundo tem de começar, segundo Humboldt, pela parte sideral ou
uranológica, que deve ser independente e não estar subordinada à terrestre como se fosse uma
simples preliminar da descrição da terra. Na realidade, tal estudo da parte sideral é mais simples
que o da Terra, já que se a descrição física desta (Physische Erdschreibung) precisa levar em
conta as ações físicas e químicas que se apresentam nela, no que se refere ao céu estas ações
não poderiam ser estudadas em seu tempo. Por isso os fenômenos dos espaços celestes
devem “ser consideradas como submetidos às simples leis dinâmicas do movimento”93 . Esta
parte uranológica começa com uma descrição geral do céu, e a partir de um mapa do céu como
aquele que tentou realizar Herschell apresenta as hipóteses sobre a formação do universo e as
características das estrelas e das nebulosas. Só depois se passa para a descrição do sistema
planetário, dos cometas, estrelas errantes, e o problema da luz zodiacal. Mas não se trata de
uma simples cosmografia da maneira tradicional. A descrição física do mundo “oferece o quadro
do que coexiste no espaço, da ação simultânea das forças naturais e dos fenômenos que estas
produzem”94 . Sem dúvida, a empreitada era difícil e arriscada, porque, como o próprio autor

91 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. III, p. 7.


92 Não só aqui, senão também em seu Examen critique de l´histoire de la géographie du Nouveu Continent, et des progrès de l´astronomie nautique aux 15e et 16e siècles (Paris, 1814-34), do que existe uma tradução
castelhana de Luis Navarro Calvo: Cristóbal Colón y el descubrimiento de América; historia de la geografía del Nuevo Continente y de los progresos de la astronomía náutica en los siglos XV y XVI (Madrid, Biblioteca
Clásica, vols. 163-165, Hernando, 1926).
93 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p.47, e no vol.III, p. 427.
94 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p.54. No volume III, página 427 escreve que “o objeto de uma Descrição física do Mundo é contar o que ocupa o espaço e leva ao movimento da vida orgânica as duas esferas do
Céu e da Terra”.

32
reconhece, “muito longe estamos ainda da época em que será possível reduzir a unidade de um
princípio racional por obra do pensamento quanto percebemos por meio dos sentidos”. Mas é
necessário ir a direção a esta meta. Mesmo se o problema fosse insolúvel “nem por isso uma
solução parcial, a tendência em direção à compreensão do mundo, deixaria de ser o objeto
eterno e sublime de toda a observação da natureza”95 . Humboldt insiste em que o estudo do
cosmos não é um ramo à parte no domínio das ciências naturais; antes “o abraça por completo,
os fenômenos do céu como os da terra; mas os abraça sob um ponto de vista que é aquele a
partir do qual se pode recompor melhor o mundo”96 . Por isso em sua obra trata de “dispor os
fenômenos segundo uma ordem que permitisse supor o laço gerador que os une entre si”97 .
Depois do estudo uranológico, a descrição física do globo ou geografia física. Seu objeto
seria “reconhecer a unidade na imensa variedade dos fenômenos, descobrir pelo livre exercício
do pensamento e combinando as observações, a constância dos fenômenos em meio a suas
variações aparentes” e ao mesmo tempo “mostrar a conexão que têm as leis da distribuição real
dos seres no espaço, com as leis da classificação ideal por famílias naturais, por analogia de
organização interna e de evolução progressiva”.98
A descrição física do globo começa pela magnitude, forma e densidade da terra, o que é
importante “para a economia geral da natureza”. Para poder estudar o encadeamento dos
fenômenos terrestres e “o conjunto de forças ativas que compõem um único e mesmo sistema”,
supõe ser necessário partir do que considera as propriedades gerais da natureza e as três
direções principais de sua atividade, a saber: a atração, as vibrações do calor e da luz, e por
último os fenômenos eletromagnéticos aos quais havia dedicado tanta atenção desde sua
juventude e em seguida como criador e impulsor da rede internacional de observações
geomagnéticas.99 Tudo isso é abordado na primeira parte do volume IV, e seguido pelo estudo
da reação do interior da terra sobre sua superfície, onde são analisadas as forças interiores que
transformam a crosta terrestre (vulcões, terremotos) os quais se apresentam como forças ao
mesmo tempo de destruição e de criação.
No Cosmos refletem-se os diversos elementos da formação intelectual e de atitude de
vida de Alexandre von Humboldt. Vale a pena destacar, sobretudo, dois aspectos contraditórios:
o que se refere a sua formação científica baseada no empirismo e fortemente influenciada, além
disso, pelo materialismo e o enciclopedismo francês do século XVIII;100 e, por outro, seu tributo
ao espírito romântico da época, ao qual Alexandre não podia permanecer estar alheio.
Sua formação e sua atividade científica se basearam sempre no rigor das observações
e na realização de numerosos de experimentos. Quer se tratasse de suas observações
botânicas, zoológicas, mineralógicas ou geomagnéticas ou de suas experiências a respeito do

95 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 58-59.


96 HUMBOLDT: Cosmos,1874, vol. III, p. 23.
97 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. III, p. 3-4.
98 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 45.
99 Ver sobre ele BIERMANN, 1978. Humboldt havia organizado uma série de observações coordenadas em Europa, América do Sul e Ásia, a partir de 1829, a qual foi a base da “União Magnética” de Göttingen de Gauss e
Weber (1832-35). Em um dos comentários à comunicação de Biermann, J.A. CAWOOD (em FORBES, 1978, p. 139-149) criticou suas opiniões e defendeu que desde os anos 1840, e quiçá antes, Humboldt já não estava na
vanguarda na pesquisa magnética e que sua obsessão por encontrar colaboração se deve sobretudo à debilidade de sua bagagem científica pessoal.
100 Aspecto que foi ressaltado por MINGUET, 1969, p. 71-72.

33
galvanismo e o eletromagnetismo, Humboldt procedeu, a todo o momento, com um impecável
método científico. Por isso valorizou sempre o método empírico e indutivo, a respeito dos quais
podemos encontrar numerosas declarações em seus textos. Para ele, o espírito científico
procede: 1) “pela aplicação do pensamento às observações isoladas”; 2) “pela visão do espirito
que compara e combina”; 3) “pela indução”, que “nos revela as leis numéricas”. Dessa forma,
afirma no Cosmos, é possível dar “um caráter mais elevado à descrição física do globo”.101
Neste método indutivo, que ele defende e pratica, não falta, naturalmente, a
experimentação, a qual aparece numa fase avançada, tanto no trabalho pessoal do cientista,
como históricamente nas etapas que os povos e a inteligência humana percorreram: “o
empirismo começa por cálculos isolados que vão se aproximando segundo sua analogia e
dessemelhança”; porém “ao ato da observação direta sucede sempre, ainda que muito tarde, o
desejo de experimentar”.
Não se trata, certamente, de uma simples acumulação de dados: “o pesquisador
racional não trabalha ao acaso; guia-se por hipóteses que vão se formando por um
pressentimento semi-instintivo”. Por último, os resultados da observação e o experimento
“conduzem por meio da análise e da indução, ao descobrimento de leis empíricas”102 . Este é o
objetivo final da investigação científica nas ciências experimentais, “elevar, existência das leis e
generalizá-las progressivamente”.103
Através desta generalização pretende-se sempre chegar “à investigação das causas
que ligam todos os fenômenos entre si, passando assim da descrição à explicação”104 . No caso
da descrição da Terra, as numerosas observações que realiza só adquirem sentido quando se
aprofunda “a conexão que liga as causas aos efeitos”105 . Dificilmente seria possível encontrar
entre os cientistas positivistas em meados do século XIX declarações tão claras como as que
Humboldt realiza e que neste ponto coincidem plenamente com as regras do método que mais
tarde Claude Bernard formularia em sua Introdução à medicina experimental (1865).
A valorização do método experimental e sua confiança nele estavam unidas a uma
nítida consciência da dificuldade de atingir o objetivo proposto. Humboldt era consciente de que
podemos obstinar-nos em conhecer as leis, porém que sempre “encontraremos sob nossos pés
abismos intransponíveis”. A ciência é assim uma empreitada inacabada, e que, além do mais,
nunca pode completar-se, dada essência das coisas e a própria imperfeição de nossos órgãos.
De qualquer modo, dirigir-se rumo a este objetivo procurando conhecer a natureza, exigia
desenvolver por igual todos os ramos das ciências matemáticas, físicas, e naturais, e ao mesmo
tempo pressupunha valorizar a ciência pura frente à ciência aplicada, uma ciência pura cujo
objetivo seria “o de ampliar e fecundar a inteligência” e que também seria a meta em direção à
qual devem tender todas as ciências diretamente: o descobrimento das leis, do princípio de

101 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 44


102 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 57.
103 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 30.
104 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 10.
105 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. III, p. 6.

34
unidade que se revela em toda a vida universal da natureza106 . Este foi o objetivo do qual
Humboldt se imbuiu e ao qual tratou de dar forma no seu Cosmos.
Objetivos semelhantes no que diz respeito à compreensão profunda da natureza
haviam-se proposto também alguns filósofos contemporâneos. Porém em Humboldt há uma
firme e explícita rejeição do idealismo, das “concepções do universo fundadas unicamente na
razão, nos princípios da filosofia especulativa”. Se num momento em que as ciências
experimentais não estavam desenvolvidas, estas tentativas tinham alguma justificativa, com o
desenvolvimento dessas “viu-se também - escreve - esfriar o ardor que levava a deduzir a
essência das coisas e sua conexão, de construções puramente ideais e de princípios racionais
como um todo”.107
Esta rejeição dos excessos das filosofias idealistas da natureza não supõe subestimar a
reflexão filosófica. A filosofia não ameaça a ciência, pelo contrário, a faz frutificar, e “o abuso do
pensamento e as equivocadas vias em que penetra, não pode autorizar uma opinião cujo efeito
seria rebaixar a inteligência; ou seja, que o mundo das idéias não é por sua natureza mais que
um mundo de fantasmas e sonhos”108 . Humboldt repetiu muitas vezes que a ciência não é só
um conjunto de observações empíricas; portanto não se deve estranhar que insista, ao mesmo
tempo, em que é também uma interpretação racional, “o espírito aplicado à natureza”. É claro
que por aí havia uma pequena porta aberta às influências idealistas, que sem dúvida se deixam
sentir quando aceita, citando Hegel, que “o mundo exterior não existe para nós, senão quando
que pelo caminho da intuição o refletimos dentro de nós mesmos”, e quando concorda com este
filósofo no sentido de que “o mundo objetivo pensado por nós e em nós refletido, está submetido
às eternas e necessárias formas de nosso ser intelectual. A atividade do espírito se exerce sobre
os elementos que lhe são fornecidos pela observação sensível”.109
Estas alusões à intuição, que não são excepcionais na obra de Humboldt, têm a ver nele
também com o espírito romântico da época. E este romantismo humboldtiano explica também
alguns aspectos do projeto intelectual de Alexandre, no que se refere à concepção da natureza
como um todo harmônico, constituído por “laços eternos e imutáveis” entre todos os fenômenos
que nele se dão.
Desde os tempos antigos, a imagem do cosmos foi-se revelando ao sentido interior
“como um vago pressentimento da harmonia e da ordem do universo” e esta intuição foi logo
confirmada pela observação científica. A exposição deste longo caminho da humanidade e do
desenvolvimento progressivo da idéia do universo constitui, como vimos, o objeto de todo o
volume II do Cosmos, no qual tenta demonstrar como numa primeira fase os homens
“adivinham” ou “intuem” a ordem do universo, para chegar mais adiante ao “exato conhecimento
dos fenômenos”. A pesquisa científica que une observação e experimentação é a que permite
despojar à filosofia da natureza das formas vagas e poéticas, porém ao mesmo tempo confirma
a intuição primeira da “unidade na diversidade dos fenômenos, a harmonia entre as coisas

106 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 35.


107 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, Introdução, p. 61.
108 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, Introdução, p. 69. Outras críticas ao idealismo no vol. III, p. 3-10.
109 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 60.

35
criadas”, as quais se diferenciam “por sua forma, por sua própria constituição, pelas forças que
as animam”. Precisamente, o resultado mais importante do estudo racional da natureza é
“encontrar a unidade e a harmonia nesta imensa acumulação de coisas e de forças e, em suma,
chegar a compreender a existência ‘do Todo, animado por um sopro de vida’” 110 . É essa
concepção da natureza como um Todo que permite a Humboldt afirmar que “as forças inerentes
à matéria, e as que regem o mundo moral, exercem sua ação sob o império de uma
necessidade primordial, segundo movimentos que se renovam periodicamente. Esta
necessidade das coisas, esse encadeamento oculto, porém permanente, esta renovação
periódica no desenvolvimento progressivo das formas, dos fenômenos e dos acontecimentos
constitui a natureza que obedece a um primeiro impulso dado”.111
A partir daí entende-se que para Humboldt a descrição física do mundo necessite,
naturalmente, da ajuda de outras ciências como a física geral ou a história natural; mas também
que “a contemplação das coisas criadas, entrelaçadas entre si e formando um todo animado por
forças interiores" proporcione à ciência, que procura desenvolver em seu Cosmos, “um caráter
particular”112 . Esse caráter é dado, sem dúvida, pelo fato de que com ela pretende elevar-se a
uma “contemplação reflexiva dos materiais fornecidos pelo empirismo” 113 . Isso coloca, entre
outras coisas, o problema da linguagem científica apropriada para este propósito. A física do
mundo que pretendia escrever baseia-se na ciência, mas sem esquecer que “quanto mais
elevado é o ponto de vista, tanto mais a exposição de nossa ciência, exige um método que lhe
seja próprio, uma linguagem animada e divertida”.114
Como bom romântico, para Humboldt a contemplação da natureza produz, antes de
tudo, um “prazer”. Prazer que é em primeiro lugar, uma impressão estética independente do
conhecimento dos fenômenos. Assim, “o sentimento da natureza, grande e livre, eleva nossa
alma e nos revela como que por uma misteriosa inspiração que as forças do Universo estão
submetidas a leis” 115 . Outro prazer mais íntimo é o produzido “pelo caráter individual da
paisagem, a configuração da superfície do globo em uma região determinada”, e que produzem
exaltação, tristeza ou outros sentimentos. As inesquecíveis páginas que Humboldt escreveu
sobre as paisagens americanas em muitas de suas obras e, sobretudo, como já foi dito, nos
Quadros da Natureza,116 mostram a profundidade dos sentimentos que a contemplação e o
prazer da natureza provocava nele e a maestria que teve para transmiti-los a seus leitores. É
nessas descrições que melhor se pode comprovar a magnitude da dívida que Alexandre teve
com o movimento romântico de seu tempo.
Essa dívida é, contudo, maior em Karl Ritter, a outra grande figura a quem se atribui a
paternidade da geografia moderna. A ele dedicaremos o capítulo seguinte.

110 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 3.


111 HUMBOLDT: Cosmos, vol. I, p. 30.
112 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 42.
113 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. III, p. 9.
114 HUMBOLDT: Cosmos, vol. I, p. 38. Porém isso não significa que Humboldt considerara - como afirma Fred K. Schaefer - a seu Cosmos “como uma obra literárias, mais que uma contribuição à ciência” (SCHAEFER, F.
K. (1953), Ed. 1971, p. 25).
115 HUMBOLDT: Cosmos, Ed. 1874, vol. I, p. 4.
116 HUMBOLDT: Quadros da natureza (Cuadros de la naturaleza, Trad. cast. Bernardo Giner, 1876).

36
CAPÍTULO II

Tradução de: Lílian Melchior, Jorge Guerra Villalobos

RITTER: A NATUREZA E A HISTÓRIA

Se a discussão sobre o caráter geográfico da obra de Humboldt pode ter algum


sentido, no caso de Karl Ritter isto é desnecessário, pois se trata, sem dúvida, de um
geógrafo, que chegou a ser catedrático de Geografia na Universidade de Berlim.
Diferentemente de Humboldt, sua obra propõe de uma maneira direta e fundamental o
estudo das relações entre a superfície terrestre e a atividade humana. A atenção
centra-se agora no homem, e a Terra passa a ser objeto de uma atenção secundária
que, aparece sobretudo, aparece como o cenário da vida humana. As diferenças de
formação de um e outro autor, a educação mais filosófica e histórica de Ritter e,
sobretudo, sua dedicação profissional ao ensino, explicam muito das diferenças do
caráter da obra de cada um deles.

UM PEDAGOGO CRISTÃO INFLUENCIADO POR PESTALOZZI

Karl Ritter é filho de uma família da burguesia saxã e realizou seus estudos
universitários com a ajuda de um banqueiro de Frankfurt, J. J. Bethmann Hollweg, que o
preparava a ser preceptor de seus filhos, o que o levou a interessar-se muito cedo por
questões pedagógicas 117 . Transformado em preceptor em 1798, aos 19 anos, dedicou-
se principalmente às humanidades e à geografia. Pouco depois, combinando sua
atividade pedagógica com um trabalho de pesquisa, preocupou-se com a redação de
uma obra de geografia descritiva: Europa. Ein geographische, Historisches, Statistiches
Gemäldes für Freunde und Lehrer der Geographie (Europa: um quadro geográfico,
histórico e estatístico para amigos e docentes da geografia; Frankfurt, vol.I, 1804, vol. II
1807). Nessa obra Ritter colocava-se na linha de análise das geografias geográfico-
estatística, ao mesmo tempo que assumia as preocupações da reine Géographie, que

117 Entre os trabalhos existentes sobre a vida e a obra de Ritter destacam-se os de SCHMITTHENNER, 1951, e BECK, H., 1956 e 1979. Também é útil a introdução realizada por Georges NICOLAS–OBADIA na edição de
Ritter, 1974; o capítulo correspondente de DICKINSON, 1969; e o artigo de Ritter em SILLS, 1977, realizado por E. Plewe. Em 1979 por motivo do segundo centenário de seu nascimento, foram realizados vários simpósios
sobre este geógrafo, o Carl Ritter Symposium em Bochum (junho de 1979) cujas comunicações encontram-se na publicação da série Abhandlungen und Quellen zur Geschichte der Geographie und Kosmologie
(Padernborn), outro em Quedlinburg e Schnepfental, organizado pela Geographische Gesellschaft da República Democrática Alemã, e um terceiro organizado pela Geographische Gesellschaft de Berlim, nesta cidade. As
mais de 40 comunicações apresentadas nestas reuniões permitiram que se conhecesse melhor, sem dúvida, a obra do grande geógrafo alemão.
levava a uma discussão a respeito das referências naturais mais apropriadas às
descrições 118 .
Ritter viajou com seus alunos ou com o objetivo de concluir sua formação à
Suíça (1807), e depois em várias outras vezes em anos posteriores, onde visitou a
escola pestalozziana de Yverdon e junto com seus discípulos freqüentou cursos em
Genebra, sobre história e literatura (com Sismondi) e sobre física e química (com Pictet),
no tempo em que se interessavam pelas ciências naturais e a geografia das plantas. Em
1809 foi nomeado professor do Ginásio de Frankfurt e dedicou-se à leitura dos filósofos
clássicos, visitando também a Itália como acompanhante dos filhos do banqueiro. Pouco
tempo depois, passou a trabalhar como professor no Ginásio de Göttingen, cidade em
que fez cursos de botânica, mineralogia e geognosia ao mesmo tempo em que
começava a trabalhar na sua Erdkunde, da qual publicou uma primeira versão em 1818,
em 2 volumes, e em uma obra sobre Heródoto (Die Vorhalle Europäicher
Völkergeschighten von Herodotus, und an den Kaukasus und den Gestanden des
Pontus, eine Abhandlung zur Alterthumskunde, Berlim, 1820). Depois de outra breve
passagem por Frankfurt, instalou-se em Berlim, em 1820, onde por indicação de Wilhelm
von Humboldt, havia sido nomeado professor da Escola Militar de Berlim, com a função
de ensinar esta matéria na universidade que o irmão de Alexandre acabara de fundar.
Essa nomeação foi obtida com a interferência do ministério da Guerra e com a ajuda do
poderoso discípulo de Ritter, August von Bethmann-Hollweg, professor de direito em
Berlim e que chegaria a ser ministro da Cultura.
A Universidade de Berlim, fundada em 1810 pelo ministro de ensino público
Wilhelm von Humboldt, transformou-se de imediato no principal centro da cultura alemã.
A instituição foi concebida como um centro de ensino laico do qual a preocupação
essencial era o saber por si mesmo 119 . Ben David ressaltou algumas características da
universidade e da cultura alemã do início do século XIX, em sua relação com as
condições sociais do país, e procurou explicar a grande importância que adquiriu a
filosofia e o triunfo do idealismo e o romantismo pela impossibilidade dos intelectuais
alemães participarem das decisões políticas do estado.
Ao mesmo tempo, demonstrou a reação deste grupo contra o modelo francês
das “Grandes Ecoles” e seu apoio, por outro lado, à universidade. A ampla relação entre
os humanistas e cientistas permitiu que se desenvolvesse entre os primeiros uma certa
atitude empírica para abordar as questões humanísticas. Ciência e humanidades
encontraram-se juntas nas novas universidades, já que não existia uma divisão absoluta
entre elas, como o que se produzia na França, com a criação das grandes escolas
técnicas. E admitia-se por isso, com facilidade, que a educação superior tivesse uma
base tanto cultural como humanística. Aceitou-se também uma separação entre a ciência
abstrata, cultivada na universidade, e suas aplicações práticas e utilitárias, assim como

118 BECK, 1979, p. 27-28. A Europa foi acompanhada de um pequeno Atlas de “seis mapas da Europa sobre as produções da geografia física e da população desta parte do Mundo” (1806).
119 BEN DAVID-ZLOCZOWER, Ed. 1966, p. 14.

38
entre os métodos puramente "científicos" e os "educativos". Não era exigido da ciência e
nem da filosofia, que ambas fossem diretamente úteis do ponto de vista econômico e
social: "sua importância derivava do fato de que proporcionava uma justificação espiritual
para a sociedade, e de seus efeitos educativos para modelar as mentes" 120 .
O papel da filosofia e das humanidades se consolidou devido à invasão
napoleônica, a qual deu lugar a uma reação nacionalista que valorizou os aspectos
espirituais da cultura alemã como elemento de resistência e união; também contribuiu
para exaltar a história passada, na qual eram buscadas as raízes da personalidade
germânica, o elemento para a unificação que os políticos românticos alemães - entre
eles Wilhelm von Humboldt - apoiavam decididamente. Nesta eclosão dos estudos
históricos, a geografia era uma ciência indispensável, e a isto se deve, em parte, a
criação da cátedra de geografia para a qual Ritter foi nomeado professor em 1820 e
titular em 1825, ministrando aulas ai durante aproximadamente 40 anos 121 .
O espírito de exaltação nacionalista era também muito forte na Allgemeine
Kriegschule ou Escola Geral de Guerra, organizada por Gerhar von Scharnhorst e
dirigida pelo grande teórico da guerra Carl von Clausewitz (1780-1831) e por August
Rühle von Lilienstern (1780-1847). A contribuição dos estudos históricos para a formação
do caráter militar era muito valorizada, e o próprio Clausewitz estava influenciado pelo
romantismo e pela filosofia idealista, e em particular por Fichte e Hegel. Sua obra Vom
Kriege (1832-1834) foi redigida quando Ritter já era professor do centro e mostra um
interesse evidente pelos problemas espaciais e geográficos, os quais também
preocupavam, e muito mais a von Rühle 122 . Ritter era particularmente valorizado no
centro militar não somente por sua formação histórica, mas também pela atenção que
dava ao relevo no plano e ao projeto de sua geografia.
Em seu novo posto, Ritter se viu obrigado a dedicar-se com afinco cada vez
maior à geografia 123 e trabalhou na reedição e atualização de sua Erdkunde,
transformado agora em um ambicioso projeto que somente seria interrompido com sua
morte: Die Erdkunde in Verhältnis zur Natur und zur Geschichte des Menschen oder
allgemeine vergleichende Geographie, als sichere Grundlage des Studiums und
Unterrichts in Physikalischen und historischen Wissenschaften (A Geografia de acordo
com a Natureza e a História do homem ou Geografia Geral comparada, como
fundamento seguro para o estudo e conhecimento das ciências físicas e históricas) 124 .
Os 21 volumes publicados constituem somente uma parte da obra total prevista
e se referem à África (um volume) e Ásia (18 partes em 20 volumes). Foram publicados

120 BEN DAVID, 1971, Ed. 1974, p. 142.


121 Sobre sua atividade docente ver BECK, H., 1979, p. 58-61.
122 O general von Rühle esteve à frente da direção de Estudos da Escola desde 1816 e desde 1826 foi presidente da Comissão de Estudos Militares. Foi autor de numerosas obras geográficas e históricas, entre as quais
pode se destacar um Atlas histórico universal (1827), um esquema histórico dos estados prussianos (1838), uns rudimentos de Hidrognosia (1839), uma história da pátria alemã desde os primeiros tempos até o século XVIII
(1840). Realizou também um grande número de mapas, entre eles um orohidrográfico da Saxônia.
123 BECK (1979, p. 52): “Suas atividades na Real Escola de Guerra e na Universidade (...) o aproximaram mais da Geografia que todos os anos que dedicou ao ensino doméstico e público no colégio de Frankfurt”.
124 A primeira edição foi publicada em 1817-18 em 2 vols. que foram reeditados em 1822 e que constituíram o ponto de partida da edição definitiva de Erdkunde. Veja-se a bibliografia de Ritter preparada por G. NicoIas-
Obadia e incluída em RITTER, 1974, p. 243-247 e também PLOTT, 1963; BECK, H., 1956 e 1979, p. 78-108. Veja-se também a nota 89.

39
entre 1833 e 1859, quase um volume por ano, de umas 1000 páginas cada. O caráter
fragmentário - e talvez duplamente fragmentário - dessa obra foi destacado por Hanno
Beck, que assumiu recentemente a tarefa de interpretar tanto a obra, quanto o Atlas que
a acompanha, e defendeu que o projeto ritteriano compreendia não somente o estudo
dos cinco continentes (que constituiria a primeira parte), mas também as partes líquidas
do planeta (segunda parte), e as formas dos reinos mineral, vegetal e animal (terceira
parte) 125 .
Espírito profundamente religioso, de vocação quase missionária, Ritter queria
ser, antes de tudo, um pedagogo cristão. Toda sua obra geográfica, incluindo Erdkunde,
está escrita "do ponto de vista do educador" 126 . Seu contato com as idéias pedagógicas
inovadoras bem cedo realizou-se quando estudou como bolsista, no Philantropinum de
Schnepfenthal, fundado por Ch. G. Salzmann, cujos métodos eram inspirados nas idéias
pedagógicas de Rousseau.
Neste instituto Ritter permaneceu 11 anos, e teve oportunidade de entrar em
contato com a natureza através de trabalhos de campo e festas camponesas 127 , nas
quais eram celebrados os produtos da natureza, o que o influenciou em seu interesse
posterior pela botânica. De fato, toda sua obra está profundamente influenciada por suas
preocupações e sua atividade pedagógica, que o levaram a estudar com atenção a vida
de Sócrates.
Particularmente decisivo foi seu encontro com J. E. Pestalozzi. Ritter encontrou-
se com o pedagogo suíço em Yverdon em três oportunidades: em setembro de 1807,
data na qual iniciou-se no ensino da geografia que ali era minstrado por J. G. Tobler,
ficando impressionado pelas aplicações geográficas dos métodos pestalozzianos. Sendo
as outras duas oportunidades em setembro de 1809; e em janeiro de 1812. Estes
contatos foram essenciais para a gênese da obra geográfica de Ritter. Segundo parece,
a promessa que fez a Pestalozzi de trabalhar a geografia de acordo com o método de
ensino deste, foi o estímulo inicial para a primeira redação de Erdkunde, cujo primeiro
volume foi dedicado precisamente ao pedagogo suíço e antigo mestre Gutsmuth 128 . Hoje
se aceita que é a J. E. Pestalozzi que Ritter refere-se quando escreveu na Introdução ao
Erdkunde que não encontrava as idéias diretrizes de sua obra, "na verdade de uma idéia,
mas no conteúdo total das verdades que admite como tais, ou seja no mundo da crença",
acrescetando que "essas idéias diretrizes repousam sobre uma visão interior das coisas,
adquiridas em contato com a natureza, e com a sociedade, da qual o autor [Ritter] tomou
consciência por ocasião de um debate com um grande homem deste século" 129 . Ritter
reconhecerá sempre esta dívida, chegando a escrever que era com Pestalozzi que havia

125 BECK, H., 1979, p. 75-77.


126 Como escreve em seu Diário em 1815-16, BECK, 1979, p. 110.
127 NICOLAS-OBADIA, em RITTER, 1974, p. 251 e 201, nota 31.
128 NICOLAS-OBADIA, em RITTER, 1974, p. 199, nota 11.
129 RITTER (1818), em 1974, p. 56 e nota 11; cf. RITTER, 1836, p. 31, que traduz “intuição interior” em lugar de “visão”.

40
aprendido realmente geografia apesar, de que este não conhecia essa ciência: “é ao
escuta-lo, [Ritter] que senti despertar em mim o instinto dos métodos naturais” 130 .
Tem-se defendido que a obra de Ritter, em particular sua Erdkunde, não é mais
do que aplicação do método de Pestalozzi `a geografia 131 . Apesar da discussão que
existe sobre este ponto 132 , é indubitável que há uma parte importante de verdade nesta
afirmação que, de qualquer maneira, mostra a profunda influência da pedagogia
pestalozziana no geógrafo alemão 133 . Influência que atinge aspectos muito diversos de
sua obra, desde a utilização do conceito de "tipo" a sua produção cartográfica, que foi
interpretado em relação com a importância que dá Pestalozzi ao desenho, e como forma
de visualização intuitiva das unidades geográficas.
Ritter admirava em Pestalozzi, além de seus métodos pedagógicos, seu “simples
cristianismo autêntico, livre de qualquer imitação racionalista” 134 , e se interessou por
suas iniciativas sociais, como as escolas para pobres e para a educação dos
camponeses. Toda sua vida e obra está profundamente impregnada por este
cristianismo evangélico que certamente influiu também na sua carreira, já que era de
igual modo importante em círculos muito influentes em Berlim. Uma característica destes
grupos de poder parece ser a rejeição do racionalismo e uma procura de um cristianismo
mais profundo, tudo isso unido a posições políticas conservadoras 135 . Em Ritter, esta
profunda religiosidade estava certamente unida às características psicológicas de sua
personalidade. Neste sentido, é interessante assinalar que foi educado por sua mãe
viúva e devota piedosa, e que em 1816, casou-se com Lili Kramer, mais velha do que
ele, praticamente calva e com um “estado patológico generalizado”, o que é justificado
por seu biógrafo Hanno Beck dizendo que o que atraía a Ritter "em uma mulher não era
sua juventude, mas sua maturidade e seu instinto maternal” 136 .

GEOGRAFIA FÍSICA, GEOGRAFIA COMPARADA E HISTÓRIA

O problema essencial estudado por Ritter é o das relações, o mesmo que fazia,
paralelamente seu contemporâneo Humboldt. No caso de Ritter estas relações ou
conexões (Zusammenhang), se estabelecem entre fatos físicos e humanos: “A Terra e
seus habitantes estão em estreitas relações mútuas e um elemento não pode ser
considerado em todas suas fases sem os outros. Neste sentido, a História e a Geografia
devem estar sempre juntas. "O território atua sobre os habitantes e os habitantes sobre o

130 Cit. por NICOLAS OBADIA, em RITTER, 1974, p. 24, nota 11. Pestalozzi propôs a Ritter a direção de sua escola em Yverdon. Ao que parece a recusa a esta proposta provocou a interrupção da amizade entre ambos.
131 PLEWE, 1960.
132 BECK, 1979, p. 110.
133 A melhor introdução a Pestalozzi é, sem dúvida, a leitura de Como Gertrudis enseña a sus hijos (1801), PESTALOZZI, Ed. 1976.
134 BECK, 1979, p. 34.
135 BECK, 1979, p. 44 e 123.
136 BECK, 1979, p. 46. Por certo, o irmão de sua mulher Gustav KRAMER (1864-1870) realizou uma biografia de seu cunhado utilizando seus Diários: Carl Ritter. Ein Lebensbild nach seinem handschriftlichen Nachlass
dargestellt, Halle, 2 vols., 1864 e 1870, 2ª. ed.. ampliada 1875. Nesta é valorizada a personalidade religiosa e teológica de geógrafo.

41
território”, são palavras de Ritter, escritas em 1804, na introdução a sua Europa, que
podem ser consideradas como sua tese fundamental. A preocupação com as relações
coloca-se sempre, contudo, em termos da causalidade. Com referência a cada fenômeno
é necessário estabelecer “o porquê de cada um dos mesmos, e como aparecem de
acordo com sua localização no espaço”.
O domínio que lhe interessa é a superfície terrestre, as “formas exteriores” da
Terra 137 . Relaciona-se, assim, com uma antiga linha geográfica que aparece
representada no século XVII por obras como o Espejo Geográphico do espanhol Hurtado
de Mendoza 138 . Para Ritter, interessava enquanto “o palco onde se desenvolvem a
atividade humana” e assim a superfície terrestre é “esta terra na sua relação essencial
com o Homem” 139 . Os aspectos naturais desta superfície podem ser estudados em si
mesmos, em suas próprias leis independentes do homem, e ser objeto de investigação
particular 140 , e “toda aspiração a uma visão de conjunto das ações da natureza, em sua
coesão, pode ser saudável”.
Este estudo da natureza em si mesma e nas suas relações era precisamente o
objeto de estudo da geografia física, que Humboldt, como vimos, distinguia
cuidadosamente da “geografia propriamente dita” e da “geografia comparada” 141 . Sem
dúvida Ritter aceitava esta distinção, como demonstra o texto a seguir:
“Meu objetivo não foi simplesmente reunir e elaborar uma massa maior de materiais que
a de meus predecessores, mas sim indicar as leis gerais à diversidade da natureza,
mostrar sua conexão com qualquer fato tomado isoladamente, e indicar em um campo
puramente histórico a perfeita unidade e harmonia que existe na aparente diversidade e
capricho que prevalece no planeta, que aparece mais evidente nas relações mútuas da
natureza com o homem. Além desta linha de estudos aparece a ciência da geografia
física, onde são investigadas todas as leis e condições sob cuja influência apareceram a
grande diversidade de coisas, nações e indivíduos e determinam todas as suas
modificações subseqüentes” 142 .
São estas relações mútuas da natureza com o homem e a terra como palco da
atividade humana o que interessa a ele fundamentalmente.
Ritter considera que a geografia física havia-se constituído a partir da
observação da natureza. Esta geografia física era “semelhante” à que ele havia-se
esforçado também para elaborar, ainda que se diferenciasse dela ao renunciar “a
abordar as relações cósmicas, estatísticas e políticas do globo terrestre” 143 . Esta

137 RITTER (1818), em 1974, p. 48.


138 Veja CAPEL: La Geografia como ciência matemática mixta, em “GeoCrítica” nº 30, 1980, p. 27.
139 RITTER (1818), Ed. 1974, p. 42.
140 RITTER (1818), Ed. 1974, p. 43. Veja também HARTSHORNE, 1946, p. 238-239 e SCHMITTHENNER, 1951.
141 Ritter e Humboldt conheceram-se em 1807. Sobre suas relações, veja BECK, 1971, p. 401-407; e 1979, p. 60. Em 1834-35 Humboldt assistiu aulas de Ritter na Universidade, demonstrando assim publicamente seu
apreço pela obra do geógrafo, sobre a qual escreveu no Cosmos (Ed. 1874, vol 1), p. 41, ”estava reservado a nosso tempo e a minha pátria, ver Carl Ritter traçar o quadro da Geografia comparada em toda sua extensão, e
em sua íntima relação com a história do homem”. Mas Ritter, por sua vez, havia escrito em 1818 que HumboIdt era “o fundador da geografia comparada moderna e confessa que a ele “deve a presente obra haver adquirido
sua coesão interna (...). Sem ele e sem sua obra nunca teria visto provavelmente a luz.” (RITTER [1818], Ed. 1836, I, p. 76; Ed. 1974, p. 78).
142 Cit. por DICKINSON, 1969, p. 37.
143 RITTER (1818), Ed. 1974, p. 55.

42
geografia denomina-se física “porque se trata nela das forças da natureza, na medida em
que manifestam no espaço, condicionam formas precisas e provocam mudanças”. Ritter,
rejeitava a expressão comum de geografia física, que “recobre uma parte muito estreita
do conceito de geografia”, tal como ele o considera, e rejeita também a expressão
geografia filosófica, que “se aproxima dele, porém, contínua, sendo muito diferente e
muito ambígua”. A pergunta se em Ritter os termos Geographie e Erdkunde são
idênticos, tem sido formulada e recebido respostas diferentes. Porém não deveria ser
feita sem precisar uma cronologia e as etapas da vida acadêmica de Ritter. Talvez seja
válido afirmar - como pretendia Beck - que o Erdkunde, seja simplesmente a aplicação
do método de Pestalozzi à geografia. Pode-se perguntar, no entanto, considerando as
constantes críticas de Ritter à geografia tradicional, se o sentido destas duas expressões
não teriam ido se distanciando caso Ritter não houvesse encontrado uma ocupação
profissional como geógrafo na Universidade de Berlim.
A ciência da terra (Erdkunde) que ele tenta escrever é geral “não porque se
esforce para dizer tudo, mas sim porque - sem definir um objetivo bem definido - dedica-
se a estudar cada parte da terra e cada uma de suas formas, segundo sua natureza e
com a mesma atenção”; e comparada “no sentido em que outras ciências foram
constituídas como disciplinas formativas” 144 .
Essa geografia comparada abriria à geografia como ciência “um novo domínio”,
que era o que ele precisamente tratava de desobstruir com suas obras, e que com o
tempo talvez poderia “evoluir até o ponto até ponto de chegar a ser algum dia a geografia
universal”.
Para Ritter, a geografia é algo mais que uma simples descrição da Terra. Em um
dos volumes de Erdkunde diz:
“A expressão geografia, utilizada no sentido de descrição da Terra, é infeliz e tem
confundido as pessoas; parece-nos que com isso simplesmente refere-se aos elementos,
cujos fatores são a verdadeira ciência da geografia. Esta ciência tenta possuir a mais
completa e cósmica imagem da Terra; resumir e organizar em uma bela unidade de tudo
o que conhecemos do globo [...]. A geografia é a parte da ciência que estuda o planeta
em todas suas características, fenômenos e relações, como uma unidade
interdependente, e mostra a conexão deste conjunto unificado com o homem e com o
Criador do homem” 145 .
Mais adiante Ritter insiste na mesma idéia, ressaltando que o princípio central da
geografia é a “relação de todos os fenômenos e formas da Natureza com a espécie
humana” 146 .

144 RITTER, Ed. 1836, p. 30; Ed. 1974, p. 56. Acrescenta que pensa em particular na anatomia comparada. Veja mais nas p. 65-67 BECK (1979, p. 87) afirma que “Ritter qualifica seu projeto de geografia física. Mas como
(...) lhe parece que o físico exclui o orgânico, teria preferido como denominação o conceito de fisiológico”. Não compartilha desta opinião de Beck. Por outro lado, é muito interessante a discussão que realiza (p. 106-119)
sobre o sentido exato da expressão comparada”.
145 Cit. por DICKINSON, 1969, p. 36.
146 Cit. por DICKINSON, 1969, p. 36.

43
Na verdade, para ele, sua interpretação geográfica possui, sobretudo, um
interesse histórico. Assim ao apresentar o projeto de sua Erdkunde, considera que se
conseguisse chegar ao objetivo proposto, “poderia ser considerado que se fizera
progredir um ramo da história, no sentido de que se teria chegado a explicar a natureza
estimulante das forças das relações naturais externas que atuam sobre o curso da
evolução da humanidade” 147 . Ritter sempre deu uma grande atenção ao devenir histórico
dos povos que habitavam em cada uma das regiões que estudava. Como Herder,
entendia o espaço terrestre como o palco da história, e considerava que a maior
harmonia entre o homem e a natureza se produz nos momentos de maior
desenvolvimento cultural. Por outro lado, ele sempre se interessou pela história e
ministrou cursos desta disciplina, motivado não somente por ela em si, mas também
porque graças a ela podia adentrar-se no passado alemão.
A partir daqui, entende-se que Ritter se interessara pela natureza das relações
entre a geografia e a história, tema abordado mais de uma vez em suas obras
essenciais, e que analisou especificamente em sua comunicação à Academia Real de
Ciências de Berlim, em 10 de janeiro de 1833 148 .
As idéias de Ritter sobre este problema procedem essencialmente da concepção
kantiana que considerava a geografia e a história como ciências à parte na classificação
geral das ciências, por estudar fatos isolados que se sucedem no tempo e que ocorrem
juntos no espaço 149 . De forma semelhante, para Ritter as ciências geográficas e
históricas:
“partem ambas de fatos isolados conhecidos que se justapõem ou se sucedem e que a
geometria e a cronologia transformam, no entanto, rapidamente em relações
imperceptíveis que têm de ser medidas, mas que estão desprovidas [...] de um valor
objetivo preciso [...] o que obriga estas ciências exatas a raciocinar sobre problemas de
ordem filosófica 150 .
Mas a relação entre geografia e história é mais que uma proximidade
epistemológica que as converte em ciências diferentes das demais. De fato, cada uma
necessita da outra em sua investigação:
“A justaposição simultânea da existência das coisas, enquanto tal se reflete sobre isto,
não ocorre nunca sem uma certa sucessão destas mesmas coisas. A ciência das
relações terrestres espaciais não pode prescindir, assim, de uma dimensão temporal, ou
o quadro cronológico, do mesmo modo que a ciência das relações terrestres temporais
não pode prescindir de um palco ou marco espacial no qual estas relações
necessariamente foram construídas. A história teria que possuir, na verdade, um marco
espacial para poder realizar-se. Seja isso evidente ou não, sempre comporta um fator
geográfico [...]. Mas, igualmente a ciência geográfica, não pode ser privada do fator

147 RITTER (1818), Ed. 1836, p. 26: Ed. 1974, p. 54.


148 Incluída em RITTER, 1974, p. 132-150.
149 Sobre esta veja SCHAEFFER (1953), Ed. 1974, p. 44-47; May, 1970; e HARTSHORNE, 1958.
150 RITTER (Ed. 1974), p. 132.

44
histórico se quiser ser uma verdadeira disciplina das relações espaciais, e não um
amontoado de abstrações, um compêndio que fixa, certamente, um marco e permite
decifrar o vasto mundo, porém não permite apreender a realidade espacial através de
suas relações, assim como sua conformidade interior e exterior à lei” 151 .
Compreende-se assim que, para Ritter, a geografia científica não pode ser
separada do estudo da história, e que ela adquire todo um sentido em relação a este
precisamente. Ritter concordava com outros autores contemporâneos não geógrafos,
para os quais a geografia era unida à história, ou inclusive pertence à história. Em
particular, concordava com Hegel, que também abordou a geografia em sua obra Lições
sobre a Filosofia da História (1815-1816), mais concretamente em sua introdução sobre
“o fundamento geográfico da história universal”.
Para Hegel, a ciência da terra é a “geologia”, enquanto que a geografia pertence
na realidade à história. A natureza é um dado “exterior”, é “o terreno sobre o qual o
Espírito se move”, encarnando distintas figuras que constituem diferentes etapas nesse
devenir da humanidade a procura de sua realização 152 . Para o filósofo, convém levar em
conta sobretudo as “diferenças naturais” que facilitam a possibilidade de
desenvolvimento de tal ou qual figura do Espírito Absoluto. A natureza intervém,
sobretudo, negativamente quando define as condições globais de impossibilidade.
Também para Ritter, as sujeições que a Terra impõe ao desenvolvimento da humanidade
são aspectos básicos da sua teoria:
“Considerando que a humanidade, seus povos e seus indivíduos formam parte integrante
do conteúdo material que as forças naturais e os três reinos da natureza (a crosta
terrestre, a cobertura vegetal e o mundo animal) dão aos espaços; como, por outro lado,
a humanidade não está limitada a terra, mas seu desenvolvimento físico e mental
depende dela, pode-se considerar que as sujeições impostas pelos espaços ao mundo
animado e inanimado ou ao desenvolvimento mental dos homens, dos povos ou da
humanidade inteira representa uma parte importante da geografia científica” 153 .
O ponto de vista de Ritter é que estas relações, esses materiais e essas
sujeições, bem como todas as combinações resultantes não são fixas. Por um lado,
fazem parte “de um grande organismo terrestre” e possuem um comportamento e uma
evolução própria de acordo com leis físicas e cósmicas específicas. Por outro lado, a
humanidade, a sociedade “evoluem segundo leis éticas”, mas estão fixadas à superfície
do planeta, razão pela qual “a humanidade inteira vive um conflito [outra idéia de raiz
hegeliana] implícito que a opõe ao desenvolvimento físico da sua morada, a Terra”. Por
isto,

151 RITTER (Ed. 1974), p. 132-133.


152 Veja sobre isto CHATELET, 1976.
153 RITTER (1818), Ed. 1974, p. 135.

45
“dever-se-á admitir que estas relações e condições próprias do nosso planeta e de suas
localidades, que evoluem no tempo do físico ao mental e atuam sobre a humanidade,
constituem o principal objeto da geografia científica” 154

O IDEALISMO DE RITTER

Hegel não é a única influência filosófica que pode ser detectada em Ritter. Muito
mais que no caso de Alexander von Humboldt, sua obra deve ser interpretada nos
marcos da filosofia idealista alemã do início do século XIX. As diferenças neste sentido
entre os dois autores talvez se devam, em parte, às diferentes formações de um e outro,
e ao fato de que Alexander vivera longos e importantes períodos de sua vida fora da
Alemanha.
Ritter foi uma personalidade fortemente influenciada pelo movimento romântico e
pela exaltação pangermanista. Leitor dos discursos à nação alemã de Fichte, admirador
da antiguidade clássica, da Idade Média, da antiga arte alemã, leitor também de August
Wilhelm von Schlegel 155 . Do romantismo e da filosofia idealista recebeu numerosas e
varias influências, confirmadas por sua relação com Pestalozzi, com quem aprendeu que
a visão interior das coisas, na intuição, é a base e o fundamento absoluto de todo o
conhecimento 156 . Seu idealismo foi radical, a natureza existe para o homem, é “seu olhar
que chama a natureza à existência e que lhe dá seu alto significado” 157 .
Este idealismo se manifesta também, na pretensão de globalidade e totalidade
da concepção ritteriana. Georges Nicolas-Obadia, colocou convincentemente em
evidência como a idéia do Todo, expressa por Ritter, tem sua origem na filosofia de
Schelling, nesse idealismo absoluto que produz um sistema da natureza autosuficiente,
no qual se valoriza o princípio de organização como ação recíproca das partes que
contribuem para formar uma totalidade unitária. Seguindo Schelling, para Ritter o Todo é
ao mesmo tempo uma imagem divina e a visão global da natureza, e é para
compreensão deste todo que ele como geógrafo tenta contribuir. Isto se concretiza
estudando em particular as relações entre o homem e a natureza terrestre, assim como
outras totalidades subordinadas ao grande Todo absoluto - ou seja, tudo o que existe e
pode ser pensado pelo Eu absoluto - o cosmos, o globo terrestre, a superfície terrestre.
O Todo geográfico que ele estuda insere-se, em última instância, no grande Todo da
natureza, estreitamente interdependente, e organizado segundo um princípio de
finalidade. Trata-se de um mundo harmônico pelo equilíbrio e coesão de suas partes, e
ao mesmo tempo, pela harmonia nas relações entre o homem e a natureza. É também o

154 RITTER (1818), Ed. 1974, p. 136.


155 Sobre tudo isto, veja BECK, H., 1979, p. 32-33. A utilização por Ritter dos princípios românticos de “polaridade” e ,”individualidade” foi destacada por Plewe em SILLS, 1968 (art. Ritter).
156 Pestalozzi tratou especificamente deste tema no ABC de la Intuicíon (1803-1804) e Enseñanza intuitiva de las relaciones numéricas (1803-1804), assim como em sua obra principal Cómo Gertrudis enseña a sus hijos
(1801), caps. VI, IX e X. Veja PESTALOZZI. Ed. 1976.
157 RITTER (1818), Ed. 1836, p. 26; Ed. 1974, p. 54.

46
resultado de forças que se opõem e se equilibram 158 . Através da atividade racional, da
reflexão científica, descobre-se o lugar do homem no Todo, ao mesmo tempo que se
desvenda também progressivamente a totalidade do mundo: “toda reflexão sobre o
homem e sobre a natureza - escreve Ritter - nos conduz a considerar o particular em
suas relações com o Todo”. A análise deve ir do Todo em direção as partes, já que “o
conhecimento total do Todo não pode vir do particular se o próprio Todo não for
conhecido ao mesmo tempo” 159 . Como exemplo disto, diz que somente a partir da noção
do sistema solar se pode compreender a revolução da Terra no cosmos e a noção da
Terra como planeta, e explica a relação recíproca das partes desta. Este Todo, por último
se divide em partes, que são por sua vez, outras totalidades. Assim os continentes se
apresentam também como "Todos mais ou menos separados pela natureza”, como “os
grandes indivíduos terrestres” 160 .
A procura das relações entre o Todo e suas partes, e vice –versa, é realizada
por Ritter no Todo terrestre sob a influência do platonismo. Este havia sido valorizado por
Schelling e por outros filósofos da época, em particular por Wolf, cujas aulas Ritter
parece ter assistido em Halle em 1796-97 161 . Deste platonismo das idéias e das formas
procede, em última instância, sua preocupação com o número e a proporção e com a
geometria. A combinação de quatro formas ou elementos fundamentais (ar, água, fogo e
terra) constitui o Todo terrestre, e Ritter os estuda especialmente nas formas que
apresentam na superfície do globo e na disposição e interação recíproca que contribuem
para modelar a crosta do Todo terrestre. Forma da terra e posição geográfica aparecem
como elementos básicos para esta configuração da superfície terrestre. Mas também as
relações numéricas entre os espaços e formas permitem obter conclusões sobre o Todo
terrestre. Através das relações entre a massa continental e a articulação de suas costas,
ou entre aquelas e as ilhas periféricas, Ritter procura descobrir as leis da organização
espacial da superfície terrestre, obtendo, como veremos, diversas conclusões.
Não é estranho como tudo isto que Georges Nicolas–Obadia tenha escrito que
“ao estabelecer vínculo científico e não genético entre os números e as formas, Carl
Ritter introduziu implicitamente a noção de estrutura espacial na geografia moderna”. De
fato, o estudo do “sistema natural das relações espaciais”, constitui, para Ritter, o objeto
da geografia, o que uniria, segundo Nicolas-Obadia, com uma tradição geográfica muito
antiga, que remonta a Eratóstenes.
A insistência nas formas geométricas e nas relações espaciais era, sobretudo,
para Ritter, um recurso pedagógico que permitiria evitar a cansativa enumeração e
descrição detalhada dos países. Tratava-se de procurar clareza e ordem que permitisse
que a geografia se convertesse em uma disciplina com possibilidades de docência,
158 RITTER (1818), Ed. 1974, p. 45.
159 .RITTER (1818), Ed. 1836, I, p. 10; Ed. 1974, p. 45.
160 RITTER (1818), Ed. 1836, p. 13, onde se traduz “as grandes partes”, no lugar de “continentes”, Ed. 1874, p. 46.
161 NICOLAS-OBADIA, em RITTER, 1974, p. 10. Além disso Ritter assistiu também cursos sobre platonismo em Göttingen em 1814, interessando-se sobretudo por Schleirmacher porque, segundo ele, havia conseguido
reconciliar o cristianismo com a Antigüidade, Cristo com Platão, BECK, 1979, p. 43. Ritter cita Platão em várias ocasiões em seu Diario (BECK, 1979, p. 110), e em Erdkunde, onde refere-se ao Teeteto (RITTER, Ed. 1836, I,
p. 25) e a “eterna Tetractis” pitagórica (idem, p. 9).

47
superando a fase descritiva e a acumulação de informações que nenhuma pessoa podia
assimilar 162 .
Com isto, Ritter levava até as últimas conseqüências, - e, ao mesmo tempo,
situava em uma nova perspectiva - uma série de esforços e de iniciativas que vinham se
realizando desde meados do século XVIII. Esta nova perspectiva deriva não somente de
sua formação platônica, mas também da assimilação dos ensinamentos pestalozzianos.
Essas questões foram tratadas especificamente num discurso pronunciado na
Academia Prussiana de Ciências, em 17 de janeiro de 1828; titulado Observações sobre
os meios que permitem ilustrar as relações pela forma e número no caso da
representação gráfica 163 , no qual, a propósito de uma anunciada venda do departamento
cartográfico da Academia, tratou de aprofundar os procedimentos gráficos elementares e
propôs a realização de um Atlas das relações espaciais. Neste discurso, Ritter defende
que para a compreensão das relações espaciais é necessário utilizar-se da forma e do
número. Não é difícil relacionar esta proposta com a tese pestalozziana de que a origem
de todos os nossos conhecimentos se encontra no número, na forma e na palavra” 164 .
Por forma entende as figuras geométricas, ou seja:
"Essas representações visuais da forma que permitem por si só, e sem dados relativos a
suas dimensões, imaginar a relação analógica entre quaisquer superfícies e que
dispensam assim qualquer outra descrição. No marco de uma teoria das relações
geográficas, a utilização correta das figuras geométricas e sua prudente aplicação
comparativa aos espaços físicos, permitiria elaborar representações mais precisas de
forma simples e inteligente. Ao combiná-las dever-se-iam descobrir novas utilizações
que, por sua vez, dariam acesso a uma série eminentemente sucinta e condensada de
representações que se recobrem mutuamente; então, poder-se-ia colocar em evidência o
que despende de suas figuras geométricas, levando em conta todos os fenômenos”.
Em vez de permanecer ancorados na pura descrição, Ritter propunha a
utilização de figuras geométricas, com um uso semelhante ao que havia sido usado na
terminologia botânica e - ele deveria ter acrescentado - como no ensinamento
pestalozziano. Pensa que a superfície do globo poderia ser dividida horizontalmente “em
um certo número de figuras geométricas, não arbitrárias, mas sim conforme a natureza
de sua extensão, ou seja, de maior a menor tamanho”. Sua combinação facilitaria o
avanço da ciência geográfica em direção à reflexão verdadeiramente científica e daria
precisão à terminologia, evitando o caráter escolástico e estéril da geografia. Como
exemplos desta utilização, o quadrado poderia representar a Espanha ou o Peloponeso,
o retângulo a Anatólia, o losango a Tessália, o triângulo a África ou a América do Sul;
podendo-se indicar sobre as figuras com símbolos + ou - o excesso ou a falta de espaço
representado em relação ao real. A figura pode ser fragmentada ou agrupada, assim

162 RITTER (1818), Ed. 1974, p. 121.


163 Incluído em RITTER, 1974, p. 118-132. As citações seguintes procedem deste lugar, quando não se indicar o contrário
164 PESTALOZZI (1801), Ed. 1976, p. 57 e p. 75-81.

48
como ser considerada em diferentes escalas, e sua análise permitiria determinar
territórios com formas idênticas. Assim, “aparecerão certas categorias e conceitos de
classificação e constituir-se-ão em relação aos arquétipos e a sua variação de modo
preciso e científico, o que permitirá, com a leitura das figuras, deduzir as relações e
características que correspondem propriamente à classe inteira, às subclasses e aos
indivíduos”.
Mas não se trata somente de compartimentar espaços. Ritter pensa que poderia
ser realizada também uma análise qualitativa dos elementos que constituem o espaço,
tais como a extensão das águas, regiões montanhosas, desertos ou áreas cerealistas,
citando como referência a representação geognóstica da América do Sul, realizada por
Alexandre von Humboldt na sua Relacíon del Viaje. “Reagrupando as figuras
geométricas e todas suas subdivisões, segundo suas relações quantitativas e
qualitativas, escreve Ritter, poder-se-ia descobrir a expressão mais concisa para
designar o caráter dominante dos continentes, dos países, dos territórios, das províncias
e dos distritos”, substituindo desta forma as descrições gerais imprecisas que se tornam
tão cansativas.
Junto com a análise das formas, a das relações numéricas dos espaços e de
suas figuras constituem outro meio de conhecimento geográfico. Não se trata, adverte
Ritter, de estatística nem de utilização de cifras absolutas, mas, pelo contrário, das
relações que permitem comparar “e construir um sistema espacial de relações” 165 .
Em cada espaço terrestre “há um número importante de partes e relações
fisiograficamente definíveis e mensuráveis”, as quais são necessárias para a
compreensão da verdadeira natureza destes espaços, e que se referem tanto a
dimensões horizontais como verticais. Somente com elas se chegará, pensa Ritter, a
uma verdadeira “ciência de relações geográficas”. Trata-se de relações parciais em
relação ao Todo terrestre ou continental, comparação de áreas, relações litoral, massa
continental, extensão de áreas florestais, cerealistas, lacustres entre outros. Como
exemplo, analisa a relação entre a forma de vida e o tipo de atividade dos homens com
os tipos de terra que os alimentam, citando o ensaio sobre a população de Malthus, e as
obras de Ch. Dupin e de Lullin de Châteauvieux. A relação entre a longitude do litoral e a
superfície da terra, por sua vez, permite obter conclusões sobre o grau de articulação do
território e, levar a consideração sobre os fatores do desenvolvimento dos povos 166 .
A aplicação do método permite também comparar as bacias fluviais, tão
importantes na origem das civilizações, mediante proporções numéricas determinadas:
grau de inclinação de toda ou uma parte da bacia, distância em linha reta do nascimento
até a foz, sinuosidades do curso, relações entre a longitude do curso e superfície. Desta
forma, “cada sistema fluvial recebe assim sua característica principal, definida
geometricamente”, o que permite também conhecer suas particularidades. O sentido de

165 Comparem-se as idéias de Ritter neste sentido com as de PESTALOZZI (Ed. ,1976, p. 76-80) sobre o ensino da arte de medir.
166 Exemplo destas relações em seu discurso sobre a organização do espaço (1850), RITTER, 1974, p. 186.

49
todos estes cálculos é importante para Ritter, posto que “as relações espaciais permitem
geralmente tornar sensíveis a natureza real das relações geográficas, as quais sem
estes dados permaneceriam desconhecidas”.
O organiscismo ritteriano provém de Platão, 167 mas sua base biológica procede
de seus conhecimentos de anatomia e fisiologia, adquiridos nos cursos de Göttingen, e
dos quais origina-se o impulso para realizar uma geografia comparada como ciência
análoga à “anatomia comparada” 168 . Prova deste profundo organicismo ritteriano seriam
as repetidas alusões ao corpo e aos membros do corpo terrestre, à alma do mundo, bem
como sua decidida afirmação de que as forças que organizam o sistema terrestre “atuam
de uma maneira análoga à atividade fisiológica que determina a vida dos organismos
vegetais e animais” 169 .
Ritter trata de reconstruir a unidade do Todo a partir da observação, progredindo
do simples ao complexo. Com isto segue, outra vez, uma das regras fundamentais do
método pestalozziano que propunha: “aprende a classificar tuas intuições e a possuir
completamente o simples, antes de avançar até o mais complexo" 170 . Ritter pensa
chegar assim, pela comparação ao estabelecimento das leis gerais, e desde 1818 tentar
chegar “à lei geral de todas as formas importantes de que a natureza se reveste em
escala mundial e local”, considerando que “somente com o concurso das leis gerais de
todos os tipos dominantes e fundamentais da superfície da terra, inerte e animada, pode
ser apreendida harmonia do mundo dos fenômenos” 171 .
A preocupação com a proporção, e o objetivo de avançar sempre do simples ao
complexo, explicam, por outro lado, alguns aspectos do plano de Erdkunde. Inicia-se de
fato, com o estudo do velho continente, e especificamente pela África, por ser este o
continente mais simples. Em cada situação, Ritter parte do conjunto das altas terras
interiores que seguindo nisso as idéias de Kircher e de Buache 172 considera como núcleo
essencial e primitivo de cada continente. Em seguida, os rios, estabelecem o contato
através de degraus intermediários entre esse nível e terras baixas que formam “uma
ampla coroa de extensões e depressões variadas” 173 . Estas três formas principais e suas
combinações constituem os grandes traços dos continentes.
O que interessa a Ritter, não é a posição absoluta destes conjuntos, mas sim
sua posição relativa entre eles e em relação ao conjunto do planeta, ao mesmo tempo
em que se interessa pela influência destas formas e disposições sobre a natureza (reinos
vegetal, animal e mineral) e a história da humanidade. As formas fluídas (ar, água e fogo)

167 Veja CAPEL, Organicismos, fuego interior y terremotos, “Geo-Crítica” nº 27-28, 1980. Hegel possui também expressões claramente organicistas, e quando na Enciclopedia de las Ciencias filosóficas realizou um quadro
do saber humano considerou entre as ciências físicas a geologia, que estuda este “organismo” que é o “corpo terrestre”. Veja sobre isto CHATELET 1976.
168 NICOLAS-OBADIA, em RITTER, 1974, p. 251 e nota 8.
169 RITTER, Ed. 1974, p. 185.
170 PESTALOZZI (1801), Ed. 1976, p. 52.
171 RITTER, Ed. 1974, p. 45.
172 Nicolas-Obadia, em RITTER, 1974, nota 3, p. 197-198. Certamente que o eco de Kircher aparece também na visão que Ritter possui do fogo subterrâneo como envoltura interna da terra, como fogo interior que abre
caminho para a superfície. Veja RITTER, 1974, p. 51; 1836, p. 21. Sobre Kircher veja CAPEL, Organicismo..., “Geo-Crítica”, nº 27-28, 1980; e SIERRA, Geocosmos de Kircher, “Geo-Crítica” nº 33-34, 1981.
173 RITTER (1818), Ed. 1836, p. 17-18; Ed. 1974, p. 49.

50
“rodeiam o globo terrestre totalmente em profundidade (o fogo) e em altura” 174 , e os
corpos dos três reinos da natureza se integram na obra, sendo considerados em sua
própria organização e estrutura, em sua posição na superfície do globo, e em relação
com a história da humanidade, enquanto elementos dominados e transformados pelo
homem 175 .

FINALISMO E DETERMINISMO EM RITTER

Da forma e das proporções Ritter extrai muitas conseqüências sobre o destino


dos povos e da humanidade. Este caminho foi sem dúvida impulsionado pela concepção
finalista da história e da geografia, uma concepção que - como havia advertido Ratzel - o
torna herdeiro espiritual de Herder 176 . Como um bom idealista e fervoroso cristão, Ritter
concebia o mundo como organizado, segundo um princípio de finalidade e a história
como expressão da vontade divina. A isto, deve-se acrescentar a tradição que interpreta
as características sociais e a variabilidade histórica, a partir da ação do meio físico. Estas
interpretações adquiriram grande importância na Ilustração como forma de explicar as
desigualdades evidentes entre os povos, as quais contradiziam as idéias sobre a
perfeição e a igualdade da natureza humana.
De todas estas raízes provém o determinismo de Ritter, sua pretensão de
explicar os fatos humanos em função dos fenômenos físicos. Um determinismo que é
uma mistura do ambientalismo da Ilustração e do teleologismo próprio das concepções
românticas e idealistas.
Não é difícil encontrar na obra de Ritter textos de matiz claramente determinista,
finalista ou providencialista, nos quais a natureza, sob a influência das leis cósmicas
superiores, determina o destino dos povos, predestinando uns ao triunfo e o domínio e
condenando outros ao imobilismo e a submissão. De fato, Ritter expressa bem
precocemente sua confiança de que chegará o dia em que cientistas, “capazes de
aprender de um só golpe de vista o mundo natural e o mundo humano”, estarão em
condições “de predizer a partir de dados gerais, a cadência necessária à evolução de um
povo específico em um dado lugar, e que deveria ser fixada e adotada por este povo
para que tenha acesso à prosperidade oferecida pelo Destino eterno 177 .
Este é, em parte, o objetivo a que se propõe em sua Erdkunde, em que expressa
sua preocupação de ver “o papel dos processos internos da natureza imaterial ou

174 RITTER (1818), Ed. 1836, p. 22; Ed. 1974, p. 22.


175 RITTER (1818), Ed. 1836, p. 24; Ed. 1974, p. 53.
176 No resumo da História da Geografia, F. RATZEL escreveu (1905, vol., I, p. 55) com referência à importância da obra de Herder: “o primeiro grande progresso foi realizado por J. G. Herder com suas Ideas sobre la
Filosofia de la História de la Humanidad (1785) na qual se levanta a concepção da Humanidade considerada como a parte mais sublime da Terra, chamada a coisas sublimes, estendendo-se com suas considerações de
natureza essencialmente geográfica desde os astros até os povos mais humildes e depreciados; Carl Ritter acolheu, como vimos, o pensamento de Herder, e deu assim uma base científica à Geografia do homem”. Mais
adiante escreve (vol. I, p. 56) “Carl Ritter adaptou a concepção filosófica de Herder à ciência geográfica dos países e às aplicações pedagógicas”. Sobre o pensamento de Herder veja MEINECKE, 1954.
177 RITTER (1818), Ed. 1974, p. 44.

51
separada do exterior, no desenvolvimento dos homens, dos povos e dos Estados” 178 .
Ritter considera que a influência da natureza se faz sentir tanto sobre os povos como
sobre os indivíduos, porém, mais sobre os primeiros. Os povos, como os homens, “são a
resultante de dois componentes, um espiritual e outro físico” e todos os povos “estão
submetidos à influência da natureza, mesmo quando esta parece não expressar-se” 179 .
Ritter sempre insistiu - como veremos - em descrever a ordem subjacente sob a
desordem aparente da superfície do planeta, e acreditou descobrir esta ordem como
expressão de infinitas forças em interação. Estas forças, identificadas com leis cósmicas
superiores, explicam a disposição das terras no planeta, o que, por sua vez, influencia no
devenir da humanidade, já que, por exemplo, “o fato dos continentes terem superfícies
diferentes explica a potência dos povos e a possibilidade que lhes é dada de dominá-
los”. Portanto, acredita poder afirmar que “o acaso aparente que preside a disposição
relativa das massas de terra reflete uma lei cósmica superior, que determinou
necessariamente todo o processo de desenvolvimento da humanidade” 180 .
A disposição geral da superfície do globo explica também o triste destino de
determinados povos que não conseguem gerar culturas superiores. É a situação, em
particular, da África onde “as condições naturais e humanas recusaram ao corpo
inarticulado da África toda individualização”. Devido a sua forte compacidade e sua
escassa articulação, e ao fato de que os contrastes climáticos distribuem-se
regularmente de um lado a outro do Equador, “todos os fenômenos deste indivíduo
terrestre [...] conservaram um caráter uniforme e, no entanto, particular”. Isto
precisamente é “o que explica porque o Estado primitivo e patriarcal no qual vivem os
povos deste continente ficou fora dos progressos e do tempo, porque parece dever
oferecer ainda, durante milênios, um abrigo à elaboração de um futuro desconhecido”.
Para Ritter, este continente “presa da imobilidade”, só conhece desenvolvimentos
coletivos e “as plantas, os animais, os povos e os homens não evoluem individualmente
nela” 181 .
As características diferenciadas dos outros continentes explicam os diferentes
desenvolvimentos da civilização neles. Assim, a civilização da Ásia pôde surgir nas
articuladas penínsulas meridionais, ainda que o núcleo central do continente “tinha sido
privado das vantagens inerentes a suas articulações e de seus efeitos”, motivo pelo qual
este “núcleo central do continente asiático continuou sendo a pátria monótona dos povos
nômades”, e as civilizações periféricas China, Indochina, Índia e Arábia, não tiveram
condições de propagar sua civilização ao interior do continente” 182 .
No caso da Europa, pelo contrário, o núcleo central do continente não constitui
nenhum obstáculo, e não consegue isolar seus membros. Por isso,

178 RITTER (1818), Ed. 1836, p. 26, “cortada” como “independente do exterior”, Ed. 1974, p. 54.
179 RITTER, Ed., 1974, p. 42 e 43.
180 RITTER, Discurso sobre la organizacíon del espacio en la superfície del globo (1850), Ed. 1974, p. 186.
181 RITTER, Ed. 1974, p. 180-181.
182 RITTER, Ed. 1974, p. 180.

52
“este indivíduo terrestre, fortemente compartimentado que é a Europa, pôde conhecer,
ao contrário, um desenvolvimento harmonioso e unificado, que condicionou desde o
início seu caráter civilizador e deu à harmonia das formas o triunfo sobre a potência da
matéria. O menor dos continentes, estava, assim, destinado a dominar os maiores. Da
mesma forma que a Ásia [...] estava por seu modelado vocacionada desde sua origem a
permitir que os continentes vizinhos tirassem proveito de suas riquezas sem por isto
empobrecer-se. A Europa, continente circunscrito à zona temperada, finamente
articulado, dotado de um relevo em escala humana e de formas continentais e marítimas
que se interelacionam, estava particularmente predisposta [...] a acolher o que é diferente
[...]. Sabendo que a vocação [...] se confirmou ao nível da história universal, sabe-se
menos que isto estivesse de alguma forma inscrito nela desde toda eternidade; atribui-se
a honra, por isso, ao homem europeu, mesmo que esta só lhe pertença em parte” 183 .
Um aspecto que contribui grandemente para dar singularidade à Europa é sua
forma, na qual se encontra “o contato e a relação recíproca mais favorável, assim como o
mais perfeito equilíbrio entre as oposições das formas sólidas e fluídas ao nível do globo
terrestre” 184 . Isto faz com que não se encontrem neste continente as desvantagens da
forte articulação e da desagregação do arquipélago indonésio, nem a compacidade da
África, pois ambas formas que se tornam “muito pouco favoráveis para a evolução, que
faz os povos saírem do estado de barbárie primitiva”. Frente a estes extremos, “a Europa
longe de inibir, estimula”, motivo pelo qual:
“enquanto indivíduo terrestre talvez aparentemente menos provido de dons naturais, a
Europa estava, efetivamente destinada a converter-se em crisol das riquezas e das
tradições do Velho Mundo, ao mesmo tempo que em um lugar privilegiado para o
desenvolvimento da atividade intelectual e espiritual, própria para absorver e organizar o
conjunto da humanidade” 185
Por último, o Novo Mundo possui também seu destino. Por sua posição
marítima, a América do Norte “estava destinada a ser descoberta em várias ocasiões por
navegantes europeus e não por asiáticos”. A parte oriental, por suas características
naturais (portos, temperaturas temperadas), “estava desde a origem perfeitamente
equipada para acolher uma civilização do tipo europeu”. Em resumo, “esta parte do
planeta, mais ainda do que a Europa, estava destinada a estender a civilização
humana” 186 .
Frases como a que acabamos de reproduzir poderiam ser reunidas em grande
número 187 . Contudo, convém advertir que seu determinismo inegável foi às vezes
livremente acentuado pelos tradutores em seus outros idiomas, que em certas

183 RITTER, Ed. 1974, p. 182.


184 RITTER, Ed. 1974, p. 184.
185 RITTER, Ed. 1974, p. 185.
186 RITTER, Ed. 1974, p. 187. Ritter acrescenta que “os obstáculos naturais que subsistem serão superados quando a civilização estabelecida tiver tido tempo de deixar atuarem suas técnicas”.
187 Veja por exemplo outras similares em RITTER, 1974, p. 177, 180 e 182.

53
oportunidades incluíam adjetivos, que não estavam no original, a respeito da fatalidade de
certos desenvolvimentos188 .
Na sua análise sobre a relação entre o meio físico e o desenvolvimento histórico,
não poderia deixar de constatar que algumas terras que pareciam predestinadas pela
natureza a desempenhar um importante papel na história da humanidade não haviam
alcançado grande desenvolvimento, como ocorre por exemplo com o conjunto de ilhas
que se estendem desde o Ceilão até a Nova Guiné, situadas em uma posição planetária
extremamente favorável.
Sem dúvida, isto poderia ser explicada a partir de seu próprio raciocínio
geográfico, argumentando com uma espécie de limite de articulação, além da qual os
efeitos positivos desta deixavam de atuar. Enquanto, a articulação terras-mares era
perfeita na Europa, a Indonésia estava excessivamente dividida em muitas ilhas, e por
isso o desenvolvimento cultural e econômico não poderia concretizar-se.
Mas além disto, deve-se levar em consideração que Ritter conhecia, bem, como
vimos, a obra de Hegel, para ser matizado na consideração das relações homem-
natureza. Como homem de seu tempo, reconhece explicitamente que “a lei que dirige o
mundo do espírito é diferente da lei que rege o mundo físico” 189 e considera que “os
encadeamentos de causa e efeito que a natureza e história nos mostram”, pode-se
prever, posto que o planeta parece ter uma vocação mais nobre revelada pela
continuidade histórica, uma organização superior que não será portanto puramente
física. Esta organização deve ser fundamentalmente diferente da dos organismos
naturais existentes pelo planeta” 190 .
Por último, era difícil desconhecer que o espetacular desenvolvimento
econômico e tecnológico que estavam vivendo desde o século XVIII os países europeus
permitia escapar das imposições do meio natural. Por isto, não é estranhos, que junto ao
determinismo dos textos anteriores, possam ser encontrados outros muitos mais
relativizados, o que poderiam ser utilizados como argumento a favor de um Ritter não
determinista.
Um dos textos onde isto pode ser observado mais claramente, é a comunicação
à Academia de Ciências de Berlim em 1833, na qual ao estudar o fator histórico na
geografia, reconhece explicitamente a diminuição do peso da natureza perante o
progresso da civilização:
"É evidente que na influência que exerceram implicitamente sobre a evolução dos povos
e das civilizações, as forças naturais tiveram que enfraquecer a medida em que aqueles
progrediam [...]. O mundo civilizado, ou o próprio homem se desprendem
progressivamente dos limites que a natureza e sua morada, a Terra, lhe impõe. Pode-se
dizer, pois, que as influências exercidas pelas mesmas relações naturais e as mesmas

188 Veja NICOLAS-OBADIA, em RITTER, 1974, p. 6. Um texto deste tipo procedente da tradução francesa de 1836 pode ser visto em CLAVAL, 1974, p. 50.
189 RITTER, Ed. 1974, p. 184.
190 RITTER, Ed. 1974, p. 185.

54
posições terrestres dos espaços construídos no universo não foram sempre iguais no
decorrer dos tempos” 191 .
Ritter oferece numerosos exemplos sobre isto, e mostra, em particular, como “os
progressos da navegação oceânica modificaram completamente a posição das terras,
das ilhas e dos continentes na superfície da terra” 192 ; como os Alpes “viram modificar
suas relações com o meio e pode-se dizer que esta grandiosa forma natural reduziu
progressivamente sua marca sobre a humanidade” 193 ; assim como, graças à
generalização do uso do vapor na navegação fluvial, “os grandes rios continentais,
perdem igualmente seu comprimento de antigamente: passaram a ser geralmente seis
ou sete vezes mais curtos do que são efetivamente” 194 ; e como, em relação a tudo isto,
“as forças naturais ativas na superfície dos continentes, que estiveram até então
indômitas, estão hoje por toda parte submetidas ao homem. Comparado à rigidez
natural do espaço terrestre que havia-se oposto ao estabelecimento de relações
espaciais fluídas, o domínio das forças naturais significou um deslocamento das relações
continentais em direção ao interior das terras onde os rios têm precisamente sua
fonte” 195 .
Ritter não era totalmente original ao mostrar estes fatos. Antes dele, Anton
Friedrich Büsching (1724-1793) havia ensinado que o transporte aquático podia liberar o
homem da dependência dos recursos locais 196 . Mas agora, com o passar do tempo, isto
pode ser afirmado com maiores dados. A partir daí Ritter conclui que no curso da história
da natureza física, o espaço geográfico, teve um peso variado:
“Graças aos progressos realizados pelo homem no decorrer dos séculos e do domínio
que assegurou assim progressivamente sobre a natureza, a natureza física das terras
pode adotar e já adotou, de fato, em todos os lugares, e especialmente no que se refere
à vida dos povos considerada em seu conjunto, formas e valores totalmente
diferentes” 197 .
Manteve estas idéias durante anos, e num discurso de 1850 explica que “o
próprio imobilismo dos povos indolentes que habitam a região tórrida e superpovoada do
Sudão ao dos povos que vivem em pequenos grupos nas terras geladas do norte, é
explicado da mesma forma”, ou seja, pela influência do meio; mas acrescenta, em
seguida, que estas características do imobilismo não desaparecerão “até que a
humanidade não descubra os meios práticos de dominar os obstáculos erguidos pela
natureza e liberando-se de seu controle, dominar a Terra.” 198 .

191 RITTER, Ed. 1974, p. 140.


192 RITTER, Ed. 1974, p. 142.
193 RITTER, Ed. 1974, p. 141.
194 RITTER, Ed. 1974, p. 143.
195 RITTER, Ed. 1974, p. 144.
196 JAMES, 1972, p. 141.
197 RITTER, Ed. 1974, p. 145.
198 RITTER, Ed. 1974, p. 177.

55
Na obra de Ritter aparece, inclusive, claramente formulada, a idéia da
transformação do espaço físico e das relações espaciais em função do desenvolvimento
da ciência e da sociedade. Em 1833 explica que:
“na construção e organização que conhecem em nosso planeta, o espaço, os períodos
de tempo, as figuras, as formas e os conteúdos espaciais , cujos valores não mudam,
não conservam as mesmas relações enquanto moradia da humanidade; de fato, os
valores relativos se modificam no decorrer dos milênios e dos séculos. Por conseguinte,
de século em século, de decênio em decênio, a natureza do conteúdo material dos
espaços aparecerá como diferente aos observadores [...]. É um fato que os espaços da
crosta terrestre se modificam na sua relação com o homem” 199 .
Esta mudança da relação do valor do espaço para o homem se deve
essencialmente ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Novos instrumentos de
medida e observação permitem ampliar o conhecimento sobre o planeta e estender o
domínio sobre ele, de forma que:
“os progressos realizados na comunicação com o universo não somente têm
transformado as distâncias verticais - altura e profundidade - mas também as horizontais
em todas as direções [...]. Os elementos de cuja existência não se suspeitava, entravam
de repente na realidade, o que era inacessível se aproximava, e os intercâmbios se
multiplicavam” 200 .
Para Ritter, é precisamente esta transformação do espaço e das relações
espaciais que permite caracterizar a ciência geográfica frente às outras que também
estudam o espaço, “é nesta mesma modificação que experimentam as relações físicas
de nosso planeta sob a ação do fator histórico que reside a principal diferença entre a
geografia, entendida como a ciência das relações de conjunto da terra no sentido
terrestre do termo, e os ramos que constituem a astronomia” 201 , já que, frente ao caráter
imutável das distâncias cósmicas, as distâncias terrestres modificaram-se, apesar de
estarem “aparentemente fixadas pelas formas sólidas” 202 .
Influenciado pela idéia de progresso e por sua confiança no devenir da
humanidade, Ritter tem consciência, por último, de que “o globo terrestre está longe
ainda de ter, concluído seu desenvolvimento”, e de que “o período histórico lhe reserva,
provavelmente, maiores mudanças do que as que conheceu durante a pré-história” 203 . A
transcendência de todas estas mudanças da ciência e da sociedade é o fato, no qual,
Ritter está muito consciente, em 1850, de que era toda a concepção da ciência
geográfica que teria que ser modificada, para que pudesse incorporar claramente esse
elemento nas relações entre e homem-natureza. Assim em 1850, escrevia que apesar do
peso dos contrastes entre o Leste e o Oeste e de seus fundamentos naturais, estas

199 RITTER, Ed. 1974, p. 136.


200 RITTER, Ed. 1974, p. 137.
201 RITTER, Ed. 1974, p. 138.
202 RITTER, Ed. 1974, p. 138.
203 RITTER, Ed. 1974, p. 145-146.

56
oposições puderam se modificar no decorrer da história, “até converter-se para os povos,
tão somente, em relações recíprocas”. E conclui: “é assim como os intercâmbios culturais
chegaram a modificar as influências naturais exercidas pelos continentes e que foi
necessário repensar – em relação à antiguidade - os métodos da Geografia” 204 .

OS PROBLEMAS DE MÉTODO EM RITTER

Esta preocupação de discutir e repensar os métodos da geografia é uma


constante na obra de Ritter. Em 1852, ao reeditar diversos textos metodológicos,
confessa que sua obra possuía um objetivo claro: “promover uma geografia científica,
esforçando-se para nela introduzir um método” 205 .
As regras do método científico, a serem utilizadas, aparecem definidas
explicitamente por Ritter em 1818, na introdução de sua Erdkunde 206 . Trata-se de um
método que não pode ser classificador ou subjetivo, mas pelo contrário, deve ser objetivo
e redutor ou simplificador 207 , com a finalidade de poder “revelar o caráter principal das
formações da natureza e de constituir assim um sistema natural que se propõe a
descobrir as relações fundamentadas sobre a essência da natureza”. Deseja-se que a
classificação dos fatos e do trabalho científico permita formar um sistema natural, deve
ser feita, “guiada por um certo número de idéias e diretrizes”; e Ritter acrescenta: “sem
este estoque de idéias, estas hipóteses e teorias [...] o homem não chegará nunca a criar
um Todo”. E mais ainda: “a ausência de teoria não é uma garantia de verdade e não
protege em absoluto da parcialidade” 208 .
Trata-se também de um método globalizador, não analítico, porque
“contrariamente à que precisa; separa e distingue a visão intuitiva das coisas, presta-se
melhor, por sua natureza às combinações e às construções” 209 . Ritter enumera de
maneira precisa as regras fundamentais deste método, que são as seguintes 210 :
1) Em primeiro lugar, é necessário partir de observação em observação, e não
da opinião ou da hipótese à observação. Por observação, Ritter entende os dados
científicos de caráter geográfico (tais como viagens ou inventários) ou de caráter natural
(observações físicas, meteorológicas e assim por diante) que possam ser reunidas Ritter,
ao contrário de Humboldt, utilizou sobretudo informações de segunda mão para a
redação de suas obras. A mais importante delas, Erdkunde, trata de continentes que
204 RITTER, Ed. 1974, p. 178
205 RITTER, Einleitung zur allgemeinen vergleichenden Geographie, und Abhandlungen zur Begründung einer mehr wiessenschaftlichen Behandlung der Erdkunde, Berlim, 1852. Tradução francesa de 1974, p. 37. Há
também uma tradução inglesa de W. L. Cage: Geographical Studies by the Late Professor Carl Ritter of Berlin, Boston, 1861. Trata-se de uma obra em que Ritter reuniu vários textos teóricos e entre eles a Introduccíon
general al Erdkunde (Berlim, 1818, 2 vols.), que havia sido reimpressa também na 2ª edição desta obra. Deste volume de Erdkunde existe uma tradução francesa de 1836 que também pode utilizar, e à qual remeto, junto
com a edição de 1974, indicando as variantes que considero dignas de ressaltar. Por último também há uma edição inglesa da parte geral de Erdkunde, traduzida por N. L. Cage: Comparative Geography, New- York –
Cincinatti, 1864; Londres-Edinburg, 1965.
206 RITTER (1818), Ed. 1836, vol. I, p. 27-34; Ed. 1974. p. 54-58.
207 “Dedutivo”, traduz NICOLAS-OBADIA.
208 RITTER (1818), Ed. 1836, I, p. 30-31; Ed. 1974, p. 56.
209 RITTER (1818), Ed. 1974, p. 57; Ed. de 1836, vol. I, p. 31 interpreta mais livremente o texto.
210 RITTER (1818), Ed. 1836, p. 32-34; Ed. 1974, p. 57-58.

57
nunca havia visitado. Mesmo em suas descrições dos países europeus que havia
percorrido (Prússia, França, Suíça, Itália), são predominantes as referências a partir de
leituras e não das observações pessoais. Como assinalou Kramer, “usava os olhos dos
outros muito mais do que os seus próprios” 211 . Em qualquer caso, foi sempre cuidadoso
ao citar as fontes destas observações, que enumera sistematicamente na introdução de
suas obras, e impressiona também pelo enorme levantamento bibliográfico que realizou.
2) A segunda regra consiste em “partir do simples e uniforme ao complexo e
variado”, assim como dos aspectos secundários aos principais. É a aplicação desta regra
o que conduz, como já vimos, a iniciar Erdkunde com o estudo da África, continente
maciço e uniforme “que constitui a forma mais simples que conhecemos” 212 . A aplicação
deste segundo ponto do método, não deixa de levantar interrogações, mas é o que
permite a Ritter justificar sua forma de proceder. Assim trabalhará a partir “das alturas em
direção às planícies, das nascentes às desembocaduras, da vegetação aquática à
vegetação terrestre, ou das zonas frias ou quentes às temperadas; da influência
mecânica, química ou orgânica ao conjunto da vida; da natureza ao homem e, de novo
do geral ao particular; do Todo à parte, do que é abstrato e geral ao que é concreto e
particular” 213 .
3) A terceira regra é classificatória: “reagrupar as coisas semelhantes e
análogas”, o que, sem dúvida, é um recurso indispensável para a comparação. Não se
pode esquecer que este é um aspecto essencial de seu método, porque não é em vão o
subtítulo de sua obra é “geografia geral comparada”. De toda maneira, o alcance exato
desta expressão foi objeto de discussão 214 e Beck realizou recentemente um
interessante trabalho, insistindo que o real entendimento de Ritter por geografia geral
comparada, é a ordenação e comparação de relações ou descrições de países,
confrontando os dados de umas e outras para ver suas coincidências ou diferenças 215 .
As regras 4 e 5 consistem: 4) esforçar-se por situar os fatos em seu contexto
histórico, e 5) “conceder mais importância à intensidade de um fenômeno que a sua
extensão territorial”.
Estas são as regras que Ritter aplicou na composição do projeto de sua
Erdkunde, e as que, junto com sua concepção do trabalho geográfico, dão originalidade
a esta obra que por tantos outros conceitos pode ser situada na linha tradicional das
geografias universais dos países 216 . De fato, Ritter se propôs a realizar uma obra de
geografia de países, na tradição das obras descritivas e enciclopédicas que tanta
importância adquiriram no século XVIII (Büshing, Guthrie, Malte-Brun) e que pelo caráter

211 KRAMER, 1959, p. 409. Veja também sobre isto FREEMAN, 1961, p. 35.
212 RITTER, Ed. 1974, p. 58 e 48.
213 RITTER (1818), Ed. 1836, I, p. 34; Ed. 1974, p. 58.
214 Veja-se por exemplo HARTSHORNE, The Nature of Geographie, 1961, p. 58-59.
215 BECK, 1979, p. 106-120, discussão sobre o sentido da expressão “comparado”.
216 Downes, por exemplo, estudando as geografias de países do século XVIII se perguntou “pais da geografia, o cientista Humboldt e o historiador Ritter representam o nascimento da ilustração geográfica ou o clímax das
geografias universais”, DOWNES, 1971, p. 385.

58
monumental que tinham, por sua longa vida e seu súbito desaparecimento, Downes
tem denominou de “dinossauros bibliográficos”.
No geógrafo alemão não aparece claramente à qual tanta importância seria
atribuída mais tarde essa distinção entre geografia geral e geografia regional, ou a
análise das combinações de fenômenos numa parcela da superfície terrestre. Seu
ponto de vista pode ser considerado, por isso, como "excepcionalista", pois a obra
de Ritter, Erdkunde, estuda a superfície da Terra em termos de diferenças espaciais
dos fenômenos espacialmente associados sobre ela, enquanto que as distribuições
no planeta dos fenômenos singulares - ou seja, o que para muitos geógrafos
posteriores é o objeto da geografia geral - seria objeto específico de outras
ciências 217 . De fato Dickinson, seguindo Hartshorne e Schmithenner, pensa que “a
principal contribuição de Ritter ao conhecimento humano foi sua idéia de
associações regionais de fenômenos terrestres em vários níveis sobre a superfície
da Terra” 218 , já que se esforçou para utilizar unidades de análises que tiveram algum
grau de permanência e por mostrar o vínculo de umas e outras com as de ordem
superior.
Mas convém advertir que este último se relaciona com suas idéias a respeito
da unidade do Todo terrestre e da integração dos todos parciais (por exemplo, os
continentes) no grande Todo planetário; e o primeiro, as unidades usadas, têm a ver
por sua vez com as discussões provocadas pela reine Geographie e a crise das
unidades políticas frente as freqüentes mudanças de limites dos Estados no final do
século XVIII, provocadas, em particular, pelas campanhas napoleônicas.
Nesta classificação que fez dos continentes, não partiu das unidades
políticas, como era habitual até então. A única tentativa de divisão em regiões
naturais havia sido das bacias fluviais de Buache em meados do século XVIII, a qual
teve uma origem essencialmente cartográfica e já era abertamente questionada
pelos geólogos. Ritter rejeitou também estas divisões hidrográficas, e utilizou
essencialmente unidades orográficas.
Acreditava que estas unidades apresentavam uma disposição semelhante
em todos os continentes: altiplanos nucleares; montanhas paralelas, divergentes e
radiais a partir do núcleo, assim como as cordilheiras em interseção com elas; terras
baixas; áreas de transição. Em cada uma das divisões efetuadas era estudada uma
série de aspectos que continuavam sendo clássicos no método geográfico: relevo,
clima, principais produções, população, assim como a evolução histórica e as etapas
de exploração e descobrimento.

217 DICKINSON, 1969, p. 41. A expressão “excepcionalismo” procede de SCHAEFER, 1953.


218 DICKINSON, 1969, p. 45.

59
A DIMENSÃO ESPACIAL E A PROCURA DE UMA ORDEM SUBJACENTE

As suas preocupações metodológicas refletidas desde os seus primeiros textos


geográficos foram-se afirmando e depurando com o passar do tempo, consolidando a
dedicação profissional de Ritter à geografia. Enquanto elaborava os 21 volumes de sua
obra magna, dedicou também atenção a estas questões nos diversos discursos e
comunicações que fez na Academia de Ciências de Berlim, referentes aos fundamentos
da geografia científica e que foram dedicados a: A posição geográfica e a extensão dos
continentes (14 de dezembro de 1826); Observações sobre os meios que permitem
ilustrar as relações espaciais pela forma e número no caso da representação gráfica (17
de janeiro de 1828); O fator histórico na geografia como ciência (10 de janeiro de 1833);
A terra como fator de unidade entre a natureza e a história nos produtos dos três reinos
da natureza, ou sobre a respeito de uma ciência dos produtos da natureza em geografia
(14 de abril de 1836); Sobre a organização da superfície do globo e o seu papel no
decorrer da história (1 de abril de 1850) 219 .
Relendo hoje estes discursos de Ritter, podem ser encontradas muitas idéias
que surpreendem por sua modernidade. Destacaremos aqui duas delas. Primeiro: sua
valorização da dimensão espacial e geométrica da ciência geográfica; segundo a
preocupação pela procura de uma ordem e de leis gerais.
A valorização da dimensão espacial e geométrica da geografia, assim como as
relações numéricas entre as unidades geográficas têm a ver, por um lado, com o
platonismo do autor, e por outro, com seu interesse pela cartografia. Não há de se
esquecer, que Ritter realizou numerosos mapas por razões pedagógicas e como
ilustração de suas obras geográficas.
A definição da geografia como ciência do espaço aparece explicitamente
formulada: “as ciências geográficas [escreve] tratam essencialmente do espaço, à
medida que trabalha com espaços terrestres (seja qual seja o reino da natureza a que
pertencem e quaisquer que sejam suas formas); dedicam-se a descrever como as
localidades se distribuem umas em relação as outras no espaço e os vínculos que
mantêm, tanto nos aspectos mais particulares como nas manifestações mais gerais” 220 .
Esta é uma caracterização escrita em 1833, e que certamente nem o mais exigente
geógrafo quantitativo duvidaria em aceitar.
Ritter tinha uma visão finalista do desenvolvimento científico e possuía uma clara
consciência da originalidade de sua obra. Igualmente aos outros cientistas de sua época
(Humboldt, Lyell) pensava que havia chegado o momento de dar um fundamento

219 Estes discursos foram em seguida reproduzidos em Einleitung..., 1852, op cit. nota 89. Trad. francesa 1974, p. 103.194.
220 RITTER (1833), Ed. 1974, p. 132.

60
científico, definitivo à ciência que praticava, revelando o verdadeiro objeto da mesma, o
qual não havia aparecido até então pela ação de obstáculos diversos. Ritter pensa que:
“em virtude da sua natureza específica, a geografia científica somente poderia nascer da
ação de considerar diferentes fatos espaciais típicos isolados ou em relação com os fatos
relativos aos períodos, também isolados, em que viveram os personagens históricos [...].
Desenvolver-se-ia depois até que, descobrindo seu próprio objeto, o globo terrestre em
seu conjunto e suas partes, aprende a descobrir sua verdadeira natureza. Então, da
descrição poderia passar a lei e chegar a ser, mais que uma simples enumeração, uma
ciência das relações terrestres espaciais [Verhältnisslehre der irdischerfullten Räume),
uma cadeia de causalidade dos fenômenos terrestres locais e gerais” 221 .
A tarefa desta ciência poderia aparecer já em seu tempo de uma maneira clara e
consistiria “em estudar suas relações globais, ou seja, observar os espaços, determinar
seu conteúdo e a relação de um a outro”. O objeto da geografia científica aparece
definido assim em termos que refletem o impacto do platonismo ritteriano: “a geografia
científica deve interessar-se, primeiro nas proporções aritméticas dos espaços, ou seja,
pela determinação de suas somas, distâncias e magnitudes; depois por suas proporções
geométricas, ou seja, pela definição de suas figuras, suas formas e suas posições” 222 .
O problema do caráter específico da geografia, em relação a outras ciências, é
tratado também por Ritter, que pensa que a geografia se interessa pelo conteúdo dos
espaços terrestres “não do ponto de vista da estrutura, da forma e das forças inerentes
ao material em si ou sob o ângulo das leis naturais às quais obedece”. Este é o objeto
dos diferentes ramos das ciências naturais. A geografia, ao contrário, “se interessará, por
isso sob a ótica da relação do desenvolvimento diferenciado, da esfera de extensão e
das leis de expansão destes espaços ao redor da Terra, e que resultam das
combinações terrestres, de suas posições, suas formas, suas dimensões e suas
distâncias. A todos esses fenômenos, as outras ciências só se referem
acidentalmente.” 223
Uma segunda idéia, digna de se destacar é a preocupação de Ritter em mostrar
a existência de uma ordem sob a aparente desordem em que se apresentam os
fenômenos na superfície terrestre, assim como seu esforço para chegar às leis gerais
dessa ordem. Em particular, no discurso, pronunciado em 1o de abril de 1850 a respeito
da A organização do espaço na superfície do globo e seu papel no decorrer da história,
Ritter trata explicitamente esta questão referindo-se à aparente desordem dos
fenômenos:
“O que nos choca ao observar um globo terrestre é a arbitrariedade que preside a
distribuição das extensões de água e de terra. Nada de espaços matemáticos, nenhuma
série de linhas retas ou de pontos [...] Nenhuma simetria no conjunto arquitetônico desse

221 RITTER, 1974, p. 135.


222 RITTER, Ed. 1974, p. 135. Em 1850 escrevia sobre a possibilidade de usar em geografia, “em acepções muito próximas e intercambiáveis expressões tais como figuras geométricas, romboedros, triângulos, ovais, etc”
(Ed. 1974, p. 169-170).
223 RITTER, Ed. 1974, p. 135.

61
Todo terrestre [...]. Sim, esse Todo terrestre perfeitamente assimétrico, que não obedece
a nenhuma regra e difícil de apreender como um conjunto, deixa-nos uma impressão
estranha e obriga-nos a utilizar diversos modos de classificação para apagar a idéia de
caos que dele se desprende”.
Esta aparente desordem explica, segundo Ritter, que fora difícil deduzir as leis
gerais e que em lugar disso os autores haviam-se contentado a realização de descrições
parciais, limitando-se mais às partes constitutivas que à aparência global. Assim,
“havendo se contentado até agora em descrever e classificar sumariamente as diferentes
partes do Todo, a geografia não pode, pois, tratar das relações e das leis gerais, as
únicas que podem fazer dela uma ciência e dar-lhe sua unidade”.
A utilização de um modelo da superfície terrestre, como é definitivamente o
globo terrestre, pôde facilitar algumas deduções gerais sobre as relações espaciais,
ainda que, claramente insatisfatórias:
“Ainda que a Terra como planeta seja muito diferente das representações em escala
reduzida que conhecemos dela, e que somente nos dão uma visão simbólica de seu
modelado, temos que recorrer a essas miniaturizações artificiais do globo terrestre para
criar uma linguagem abstrata que nos permita falar dele como um Todo. E assim, de fato,
não nos inspirando diretamente na realidade terrestre, que pudemos elaborar a
terminologia das relações espaciais. No entanto, como a rede matemática projetada
sobre a Terra a partir da abóbada celeste converteu-se assim no elemento determinante,
esta terminologia permaneceu até agora incompleta e não permite hoje uma
aproximação científica a um conjunto estruturado, considerado em suas extensões
horizontais e verticais ou em suas funções” 224 .
Ritter considera que a ciência permitiu descobrir a simetria e a ordem existente
sob a aparente desordem da natureza: “A assimetria e a aparência informe das obras da
natureza desaparecem com um exame em profundidade”. Em razão disto se pergunta se
o homem seria o único ser vivo que viveria em um meio modelado pelas forças cegas e
desorganizadas, e se teria que admitir que “contrariamente a todas as criaturas que
abriga, somente a Terra estaria desprovida desta força criadora que engendra uma forte
estrutura interna”. Pensa que não tem se deve confundir aparência e essência, as
impressões de uma coisa e a realidade dela ou de um fenômeno, e conclui:
“Quanto mais avançamos no conhecimento da distribuição espacial na superfície do
globo terrestre e quanto mais nos interessamos para além de sua aparente desordem, na
relação interna de suas partes, mais simetria e harmonia descobrimos e tanto mais as
ciências naturais e a história podem nos ajudar a compreender a evolução das relações
espaciais. Se através da determinação astronômica dos lugares, a geodésia, a
hidrografia, a geologia, a meteorologia e a física, poderiam alcançar até agora grandes
progressos em matéria de ordem espacial, resta ainda muito por fazer e podemos
esperar chegar a isto fazendo intervir, nos estudos das relações espaciais, nossos
224 RITTER, Ed. 1974. p. 166.

62
conhecimentos relativos à história dos homens e a distribuição local dos produtos dos
três reinos da natureza” 225 .
Ritter ressalta em seguida, algumas características gerais do globo: a divisão
das águas e terras, destacando a forte concentração das massas continentais no
hemisfério Norte e a forma afilada dos continentes no hemisfério Sul; a oposição entre
um hemisfério marítimo terrestre do noroeste e um hemisfério oceânico do sudoeste, e
como “a ponta sul da Inglaterra constitui o centro do universo terrestre”, o que explica
que “a Inglaterra tenha estado todo o tempo predisposta ao domínio dos mares”; a
existência de um cinturão vulcânico circumpacífico; a oposição entre as grandes
formações continentais e insulares, “que foi, é, e continuará sendo o fundamento sobre o
qual se desenvolveu a história da humanidade”; a analogia entre o que ele denomina
depressões americanas e australianas. No que se diz respeito à organização do Velho
continente, encontra nele “a mesma lei que presidiu a constituição do Todo terrestre”;
esta lei é reconhecida “na analogia que apresentam entre si, as alturas, os desníveis e as
depressões”; também assinala a existência de um cinturão costeiro, no qual quando
existem formações tabulares encontra-se a “confirmação da lei segundo a qual os
levantamentos do terreno alcançam sua máxima amplitude no sudeste das vertentes
abruptas que descem em direção ao grande cinturão costeiro”. Esta lei, “permite atribuir
a fenômenos semelhantes as mesmas causas e os mesmos efeitos” 226 .
Estas seriam as cinco ou seis disposições gerais mais destacadas que se podem
identificar na superfície terrestre. A partir daí, Ritter conclui triunfalmente:
“Bastava, pois, tratar de descobrir sob a desordem aparente os elementos de harmonia e
de uma simetria superior. No entanto, é verdade que, pelo fato de o olho não estar
suficientemente exercitado, uma primeira apreciação das coisas, nos deixa incapacitados
de pressentir suas leis. É precisamente porque está presa numa rede
extraordinariamente complexa, onde a natureza é muito dinâmica; sendo ela constituída
por individualidades regionais muito numerosas para que possa ser compreendida ao
primeiro golpe de vista” 227 .
A modernidade de muitas destas idéias é evidente. Ainda que chegasse a elas a
partir de estímulos diferentes, poder-se-ia afirmar que esta preocupação com a
geometrização e a procura de uma ordem espacial não estava muito longe dos esforços
que realizava, quase ao mesmo tempo, seu contemporâneo, o economista e fazendeiro
Johan Heinrich von Thünen (1783 – 1850), e que refletiram em sua obra magna Der
isolierte Staat (3 vol.: vol. I, 1826; vol. II, 1850-1863; vol. III, 1863). Ainda também, é
necessário que, reconhecer que em outros aspectos há uma grande diferença entre o
refinado aparato matemático das teorizações de von Thünen sobre a produtividade e a
renda de terra e as considerações relativamente elementares de Ritter sobre a ordem

225 RITTER, Ed. 1974, p. 167-168.


226 RITTER, Ed. 1974, p. 172-174.
227 RITTER, Ed. 1974, p. 176. Idéias semelhantes na p. 185.

63
espacial. O caráter e os objetivos de uma obra e outra explicam abundantemente as
diferenças neste sentido, e também nos tornam conscientes da finalidade
essencialmente pedagógica da obra de Ritter e, em definitivo, da geografia da época. E
Esta constatação tem grande importância, porque precisamente foi essa função da
ciência geográfica que garantiu sua continuidade, justamente num momento em que a
especialização científica havia feito aparecer diversas disciplinas que se ocupavam de
boa parte do que antes constituía o objeto da geografia.

64
CAPÍTULO III

Tradução de: Lisandro Pezzi, Jorge Guerra Villalobos, Vera Beatriz Köhler

A INSTITUCIONALIZAÇÃO UNIVERSITÁRIA DA GEOGRAFIA ALEMÃ: UM MODELO


PARA A EUROPA

HUMBOLDT E RITTER, DUAS FIGURAS SEM CONTINUIDADE

É uma opinião amplamente admitida que as figuras de Humboldt e Ritter


constituíram, de certa forma, casos isolados, sem uma grande influência direta, apesar
do prestígio que os acompanhou em vida. Segundo esta interpretação, a geografia como
ciência não se aproveitou imediatamente dos ensinamentos destas figuras, e só mais
tarde receberia o estímulo de suas idéias - ou por utilização direta, como no caso de
Humboldt, ou por reação ante alguns deles, como é o caso de Ritter - e pôde aproveitar o
abundante, porém bastante desorganizado, patrimônio reunido nestas obras
monumentais.
Os historiadores alemães da geografia costumam assinalar que o decênio que
seguiu a morte de Humboldt e Ritter foi um decênio de crises. Assim Konrad
Krestschmer, por exemplo, disse que após a morte destes autores em 1859 ocorreu "um
período de paralisação", "não existiram grandes personalidades, nem houve
propriamente escolas; a década dos 70 do século XIX forma uma lacuna no
desenvolvimento constante da Geografia, vazio interrompido somente por alguns
descobrimentos sensacionais". 228 O mesmo afirma Hettner e, depois dele, Hartshorne. 229
Opinião semelhante é sustenta por Paul Claval que, mesmo aceitando que é
nestes autores que deveriam ser buscadas "as primeiras formulações sistemáticas do
que é a geografia", considera que "no fundo eram casos isolados" 230 e se refere também
explicitamente à crise da geografia alemã na década de 1860-70. Entre os ingleses, por
último, G. R. Crone escreveu que "depois da morte de Ritter, o ímpeto dado por ele
desapareceu gradualmente e por um tempo a teoria geográfica recebeu escassa atenção
na Alemanha". 231

228 KRETSCHMER, 1930, p. 188.


229 HETTNER, 1898; HARTSHORNE, 1959, p. 29.
230 CLAVAL, 1974, p. 35.
231 CRONE, 1970, p. 32.
Esta coincidência de interpretações é sintomática de uma opinião, ainda que
por sua vez origine, algumas interrogações.
Em primeiro lugar, por que a obra de Humboldt e Ritter não teve influência? E
depois, por que demorou tanto para a geografia universitária desenvolver-se na
Alemanha?
A primeira questão remete à situação institucional de Humboldt e à mudança
das idéias científicas, que coincide mais ou menos com o final da vida dos dois cientistas
(Humboldt e Ritter). Como já vimos, Humboldt não era geógrafo e o projeto de sua
geografia física teve impacto, sobretudo entre os naturalistas. Por outro lado, a
especialização e o desenvolvimento crescente das ciências tornavam cada vez mais
difíceis a viabilização do projeto humboldtiano. Isto foi reconhecido, no final do século
XIX, pelo geógrafo Von Richthofen, quando depois de avaliar a importância da obra de
Humboldt, admitia que "muitos dos resultados conseguidos caíram depois no
esquecimento, já que estes, assim como os fatos aos quais eles referem, foram
incorporados por outras ciências". 232
No caso de Ritter, é necessário levar em conta, sobretudo, várias
circunstâncias. Uma, que o Erdkunde é uma obra de difícil leitura; seu estilo é obscuro
devido à busca de uma nova linguagem, e por ser, ao mesmo tempo, uma forma de
aproximação ao divino. Como reconhece um benevolente biógrafo de Ritter "pode-se
contar as pessoas que se haviam rendido verdadeiramente a ele e que tentaram sua
leitura". 233 Por outro lado, as concepções finalistas ou providencialistas que mantinha
dificilmente eram aceitáveis em meados do século XIX.
Deve-se levar em conta, além disso, que Humboldt e Ritter morreram em 1859
e que pouco antes de suas mortes o ambiente intelectual havia mudado na Alemanha,
como em toda Europa. Esgotava-se o romantismo e o idealismo e começavam a difundir-
se e a triunfar o positivismo e o naturalismo. A pretensão de realizar sínteses globais do
Todo terrestre, como a que de certa forma havia tratado Humboldt no Cosmos e Ritter no
Erdkunde, ia dar lugar a investigações empíricas concretas, baseadas na observação e
no método experimental, e a uma crítica do teleologismo e das implicações não
científicas ou "metafísicas" das obras anteriores.
Nem Humboldt, nem Ritter, criaram uma rede de discípulos diretos ligada a sua
pessoa e a sua obra, e através dos quais suas idéias pudessem se completar e
desenvolver. O primeiro não ocupou cargos docentes na Universidade de Berlim e,
apesar de seu prestígio e influência, sempre considerou sua obra científica como um
projeto estritamente pessoal do qual tratava de afastar todos os cientistas que pudessem
fazer-lhe sombra, escolhendo ao contrário colaboradores subordinados. 234

232 RICHTHOFEN, 1883, Ed. 1978, p. 52.


233 BECK, H., 1979, p. 78.
234 Como demonstram as vicissitudes de sua relação com Caldas em Bogotá, desprezando a colaboração e a companhia de um dos jovens cientistas mais brilhantes e promissores de toda a América hispânica, e cujas
investigações andavam na mesma direção que as suas, e aceitando em troca a de Montufar, jovem aristócrata que sem dúvida lhe facilitou numerosos contatos na sociedade local, mas que carecia da preparação intelectual
do anterior. Veja-se, sobre isto as cartas escritas por Caldas a seu mestre José Celestino Mutis em MENDOZA, 1909, e em particular as cartas de 6 e 21 de abril de 1802 (p. 151-166). Na viagem à Rússia, Humboldt não

66
Quanto a Ritter, não teve discípulos diretos que continuassem seus
ensinamentos na universidade alemã, ainda que se cite um certo número de geógrafos,
militares ou cientistas sociais, que assistiram suas aulas: P. P. Semenov - Tian Shanski,
Arnauld Guyot, Élisée Reclus, Karl Marx, Moltke. 235 Junto a eles não se pode esquecer
os alunos indiretos, devido à ampla produção científica, parcialmente traduzida para
alguns idiomas estrangeiros. 236 Por último, também influência através da Sociedade
Geográfica de Berlim, fundada em 1828, e da qual foi presidente e um dos pilares
básicos até sua morte.
Não obstante, apesar de tudo isto, produziu-se esse "vazio" ao qual se referiam
os testemunhos acima citados. Ritter foi sucedido, na universidade, por Heinrich Kiepert
(1818-1899), o cartógrafo que o havia ajudado na elaboração dos mapas do Erdkunde, o
qual estava certamente mais interessado pelos problemas práticos do que pela
elaboração de sínteses teóricas. No entanto, a cátedra de geografia de Berlim não
parece ter tido, após o desaparecimento de Ritter, uma grande atividade, 237 até a
chegada de Richthofen em 1886, que marca o início de uma nova etapa. Precisamente o
próprio Richthofen reconhecia em 1883 a falta de continuidade na obra dos dois
cientistas, recordando que a geografia física não foi uma disciplina acadêmica e
constatando que a obra de Ritter "foi útil sobretudo para os estudiosos da escola
histórica". E concluía com esta lamentação que tão bem ilustra negativamente o que
realmente ocorreu:
"Se Humboldt tivesse explicado Geografia na única cátedra universitária
existente naquele momento, e se Ritter tivesse sido o homem ilustrado, ainda que sem
relevância acadêmica, a Geografia Física poderia ter cantado vitória, por se opor quase
de repente às descrições sintéticas das diversas regiões da Terra." 238
Mas, o que realmente aconteceu foi o contrário: "Foi então - afirma Richthofen -
que se afroxou ainda mais, o nexo que unia os vários ramos daquela [a Geografia física],
com o que deveria ser considerado agora em diante a essência das disciplinas
geográficas"; uns ramos passaram à geologia, outros à botânica e zoologia, a
meteorologia ficou isolada e a etnografia foi incluída na geografia; com o que " o homem
veio, pois, a constituir a finalidade e o objeto da investigação geográfica. Qualquer
pesquisa a respeito das características dos espaços terrestres somente podia ser tarefa
de ciências especiais". 239
Em 1850, coincidindo com a chegada dos estudantes russos e austríacos a
Berlim para formar-se como professores secundários de geografia, Ritter, se referia à
necessidade de se criar cátedras de geografia nas universidades desses países e em

aceitou Von Baeyer, C. S. Kunth, Valenciennes, Alexander Braun, Karl Friedrich Schimper e Louis Agassiz, que trabalhavam com ele ou lhe haviam sido recomendados, o que H. BECK (1971, p. 328) considera que "é de
lamentar porque Alexander havia trabalhado muito tempo com eles". Seria interessante conhecer as razões pelas quais escolheu a Gustav Rose e Gottfried Ehrenberg como companheiros de viagem.
235 Veja-se a relação de membros que poderíam pertencer a "escola de Ritter" em BECK, H., 1973, p. 240-241.
236 Veja-se uma bibliografia destas traduções elaborada por G. NICOLAS - OBADIA, em RITTER, Ed. 1974, p. 243-247.
237 Segundo BROC, 1974, p. 555, em 1875 a cátedra de Ritter estava vaga e os trabalhos de Humboldt e Ritter pareciam completamente esquecidos nessa data.
238 RICHTHOFEN 1883, Ed. 1978. p. 52.
239 Ibidem,. p. 52 - 53.

67
outras em todo mundo. 240 Porém, a criação destas cátedras demorou, como se vê pelas
declarações de Richthofen.
Na Alemanha, em 1870, só existiam, além da cátedra de Berlim, outras nas
universidades de Breslau, ocupada por Karl J. H. Neumann (1832-1880), e de Göttingen,
onde Johan Wappaeus (1812-1879), era professor de geografia e estatística. São estes,
juntamente com Kiepert, de certa forma, os herdeiros da geografia do século XVIII.
Estudando sua obra, Dickinson considera que "suas idéias marcaram o fim de uma
época e tiveram um impacto muito reduzido no desenvolvimento posterior". 241 Outros
autores da metade do século, também produziram obras de geografia, ainda que
tivessem formações e profissões diversas: Georg Benjamim Mendelsohn (1794-1874), 242
Ernst Kapp (1808-1896), autor de uma geografia geral comparada, apresentada de forma
científica (Vergleinchende Allgemeine Erdkunde in wissenschaftliche Darstellund, 1845-
46; 2º ed., Braunschweig, 1868); e Johan Georg Kohl (1808-1878), viajante e
bibliotecário que foi autor de uma obra que foi muito valorizada pelos geógrafos, por
tratar pioneiramente o tema da circulação e os assentamentos humanos em sua
dependência em relação à configuração da superfície terrestre: Der Verkehr und die
Ansiedelungen der Menschen in ihrer Abhändigkeit von der Gestaltung der Erdoberfläche
(Dresden, 1841; 2º ed., Leipzig, 1850).
A crítica às idéias de Ritter constituiu um estímulo para a gestação de novas
concepções. Neste sentido é importante a figura de Oscar Peschel (1826-1875), "o
último grande geógrafo antes que se fizesse sentir plenamente o impacto do
darwinismo". 243 Peschel foi o primeiro a criticar abertamente a visão teleológica de Ritter,
e escreveu obras sobre história da geografia até a época de Humboldt e Ritter
(Geschichte der Erdkunde auf Alexander von Humboldt und Carl Ritter, Munich, 1865),
sobre geografia da população (Völkerkunde, Leipzig, 1874) e outras sobre geografia
física; estas últimas foram as mais apreciadas, pois se considera que com sua obra Neue
Probleme der vergleichenden Erdkunde als Versuch einer Morphologie der Erdoberfläche
(Leipzig, 1868), chegou a uma clara formulação da evolução cíclica das formas
superficiais da terra partindo da anatomia comparada. 244
A obra de Peschel sobre geografia física e sua história da "ciência da Terra",
em que associa claramente as figuras de Humboldt e Ritter, pode ser usada, sem dúvida,
em defesa da tese de que pouco antes de 1870, o eco de Humboldt havia começado a
ser sentido na geografia. Não é, sem dúvida, o único testemunho que pode ser citado
neste sentido. Pode citar-se outro que considero significativo contra a tese defendida
neste livro, e que é muito valioso por tratar-se de um testemunho contemporâneo de um

240 BECK, H., 1979, p. 69.


241 DICKINSON, 1969, p. 54; fornece informação sobre Kiepert, Neumann e Wappaeus.
242 Veja-se a respeito HOHMANN, 1969.
243 DICKINSON, 1969, p. 56. Sobre as idéias dominantes na geografia alemã a meados do século XIX, veja LEIGHLY, 1938.
244 Veja-se BECK, H. 1973, p. 251-255. Sobre a geografia comparada de Peschel, veja MEHEDINTI, 1901, que criticou o referido autor por realizar simplesmente comparações científicas, enquanto que o caminho deveria a
ver sido a morfologia comparada, procurando as homologias das formas: "A Geografia - escreve Mehedinti - deve comparar as formas com fim de encontrar as transições que as unem a partir de uma forma primitiva."
Mehedinti, por sua vez, faz objeções a Peschel, considerando que seu método "ameaçava conduzir a geografia por um caminho muito estreito".

68
autor que não é geógrafo. Trata-se das palavras escritas pelo norte americano
Georg Perkins Marsh em sua obra Man and Nature, publicada em 1864 e que por
haver sido escrita em Roma faz eco das idéias que dominavam a Europa naqueles
anos. Marsh (1801-1882) não era geógrafo, mas sim historiador e lingüista, além de
político 245 e homem de negócios. A obra, anteriormente citada, é um importante
marco numa linha de reflexão ecológica, tratando de mostrar a ação do homem
sobre a natureza, e tinha por subtitulo Physical Geography as modified by Humam
Action. É natural, por isso, que valorizasse as obras contemporâneas que se haviam
dedicado a este tema, como as de Mary Sommerville 246 ou Herschel. Fala também
"da influência da geografia física sobre a vida humana", 247 e valorizou a contribuição
dos geógrafos para estes temas ao tratar da "nova escola de geógrafos". Estas são
suas palavras:
"Os trabalhos de Humboldt, Ritter, Guyot e seus seguidores deram à
ciência geográfica um caráter mais filosófico e, ao mesmo tempo, mais criativo em
relação ao que recebera das mãos de seus antecessores. Talvez o campo mais
interessante de especulação aberto pela nova escola aos cultivadores deste estudo
seja a seguinte questão: até que ponto influíram na vida social e no progresso social
do homem, as condições físicas externas, e especialmente a configuração da
superfície do globo, e a distribuição, esquema e posição relativa da terra e da
água?". 248
É com certeza, um depoimento importante. Ainda que ao lado dele, possam
alinhar-se outros que mostrariam que para os geólogos da época, a geografia física
fazia parte da geologia, e que colocariam em evidência que eram eles que traziam
as mais interessantes contribuições ao estudo da configuração da superfície
terrestre. Como exemplo poder-se-ia citar o geólogo de Basiléia, Ludwig Rütimeyer
(1825-1895) que estudou os processos erosivos como elemento para a
compreensão das formas superficiais do território da Suíça (Ueber Thal und See
Bildung. Beiträge zum Verständniss der Oberfläche der Schweiz, Basiléia, 1869). 249
Além disso, constão as afirmações de Richthofen anteriormente citadas que, por
procederem de pessoa que havia trabalhado como geólogo, devia saber o que se
dizia. Somente um estudo imparcial e quantificado sobre as idéias dominantes
naqueles anos, nas diferentes comunidades científicas permitirá resolver com
segurança este importante problema.

245 Foi embaixador dos Estados Unidos na Itália entre 1861-1882.


246 Veja-se sobre esta autora no Capítulo IV.
247 Na outra edição esse autor a substitui por "condições geográficas".
248 MARSH, E. (1864), Ed. de Lowenthal, 1960, p. 13. Vale a pena assinalar que o suíço Arnauld Guyot (1807-1884) foi aluno de Ritter e desenvolveu uma parte essencial de sua atividade nos Estados Unidos, exercendo
ali uma grande influência.
249 Veja-se um texto dele reproduzido em BECK, H., 1973, p. 247-250.

69
O DESENVOLVIMENTO ESCOLAR E SEUS EFEITOS NA PRODUÇÃO EDITORIAL

A geografia adquiria um grande desenvolvimento no ensino primário e


secundário e, em função disso desenvolvia-se também uma importante produção
editorial de caráter geográfico e cartográfico.
No século XIX foram feitos esforços para melhorar o grau de escolarização da
população alemã. Na Prússia, uma lei, promulgada em 1839, proibia dar emprego a
crianças menores de nove anos que não tivessem freqüentado a escola pelo menos
durante três anos. 250 O número de professores aumentou de 28.000 em 1843 para
72.000 em 1891, sendo, para toda Alemanha, 120.000 nesta última data, e 187.000, em
1910. A população escolarizada aumentou proporcionalmente. Em 1873, o número de
crianças que freqüentavam as escolas elementares da Prússia era de 4,1 milhões, cifra
que ascendia a 5,5 milhões em 1895, e a 10,3 milhões em toda Alemanha em 1910. 251
Desde os anos 1860, o sistema escolar alemão havia se convertido em um modelo para
outros países europeus. A viagem, que por incumbência do governo francês o inspetor J.
M. Baudouin realizou para visitar as escolas da Alemanha, mostra claramente a
admiração que o estado do ensino em tal país causava. Sobre a Alemanha do Norte
disse:
"Em nenhum lugar, a instrução está tão difundida, nem é ministrada com tanto
abnegação, nem dirigida com tanto cuidado. O menor povoado tem sua escola primária;
a mais insignificante cidade seu ginásio, suas escolas média e real, perfeitamente
organizadas, dotadas e cuidadas. Na Alemanha, todos se interessam pela juventude: os
grandes personagens e as mais ilustres senhoras lhes dedicam seu tempo, sua fortuna e
sua experiência; os melhores escritores escrevem livros para as crianças; os poetas
compuseram, para as aulas de ginástica e de canto, poesias que os mais ilustres
compositores não se recusaram colocar música. Todo o povo alemão está convencido de
que dedicar-se à instrução da juventude é cumprir um dever pessoal e trabalhar pelo
futuro do país. Cada um, pois, torna-se voluntariamente Volkserzieher, professor do
povo, e contribui, por seu lado, para o progresso da instrução geral." 252
Em 1860, a obrigação escolar já era um costume, e estava generalizada na Prússia.
O processo havia-se iniciado em princípios do século XIX, e cinqüenta anos depois,
todas as crianças eram obrigadas a freqüentar a escola na Prússia, entre os 6 e os 15
anos. Os frutos dessa política haviam começado a ser sentidos. Comentando esta
situação, Baldouin afirma que na Alemanha Central havia apenas um homem de 30 anos
em 1860 que não sabia ler, escrever e contar facilmente. 253 As estatísticas confirmam

250 CIPOLLA, 1970, p. 102.


251 Cifras de CIPOLLA, 1970, p. 27 e 111; e MITCHELL, 1975, p. 749-770.
252 BAUDOUIN, 1866, p. 14.
253 Ibidem, p. 79-81.

70
esta afirmação, pois mostram uma forte redução das cifras de analfabetismo na
população adulta: em 1870, o analfabetismo entre a população de mais de 10 anos no
reino da Prússia era de 10 por cento entre os homens e de 15 por cento entre as
mulheres, com percentagens muito baixas, às vezes menos de 5 por cento, em
Brandemburgo, Saxônia, Schleswig-Holstein, Hannover, Westfalia e Hesse Nassau, e
elevados na Prussia, Pomerânia e Silésia, que contavam com grandes quantidade de
população camponesa e em alguns casos polonesa. 254
O sistema estava bem organizado desde o ensino maternal ao ensino médio. A
partir das Kindergärten existia toda uma hierarquia de instituições docentes: as
Volksschulen, Freischulen ou Elementarschulen, de freqüência rigorosamente obrigatória
desde os 6 anos; as Bürgerschulen, ou escolas médias, fundadas em 1804, e nas quais
se ministrava o ensino desde os 10 - 11 anos aos 15; as Realschulen, ou escolas reais,
difundidas desde 1816, e onde chegavam crianças de algum dos dois níveis anteriores;
as Höhere Bürgerschulen, ou as escolas médias superiores onde se ministrava um
ensino especial para filhos de famílias abastadas e como preparação para exercer certos
cargos ou para entrar na universidade, constituindo uma espécie de Realschulen de nível
superior. 255
Uma característica desse sistema escolar é a aplicação de modelos pedagógicos
renovados desde o início do século XIX. As idéias de Rousseau, adaptadas ao ambiente
religioso, imperante entre os grupos dominantes e tão úteis ao sistema político prussiano,
haviam sido aplicadas em alguns centros, transformados em modelos de modo geral. 256
Depois da derrota de 1812 e da exaltação nacionalista que a seguiu, o governo e os
intelectuais prussianos, valorizavam grandemente a educação da juventude como uma
formação tanto física como intelectual. O ensino dos ginásios gregos, e mais
concretamente de Lacedemonia, converteu-se, neste sentido, num modelo a seguir, e os
métodos ativos de Pestalozzi, que atribuíam grande atenção ao exercício ao ar livre e à
ginástica como elemento de formação moral foram levados em consideração como
“modelo de ginástica pedagógica, militar e médica”.
Para isso, pedagogos forma enviados a Yverdon, fato a que Ritter e seu círculo não
estavam alheios, pelas relações que como já vimos tinha com Pestalozzi e, também
porque seu preceptor Gutsmuths foi um dos mais ativos difusores do método
pestalozziano na Alemanha. 257
Todo esse esforço foi acompanhado de um propósito claro de organizar e no
possível unificar os programas educacionais. A divisão política da Alemanha durante boa
parte do século XIX e, a estrutura descentralizada do Reich, inclusive no final desse

254 CIPOLLA, 1970, p. 104.


255 Dados em BAUDOUIN, 1866.
256 Veja-se sobre o plano de ensino vigente desde 1860 em Schnepfental, a escola na qual Ritter havia sido o primeiro aluno, e sobre o prestígio de que o centro tinha, BAUDOUIN, 1866, p. 224-230. Certamente, a este
centro de ensino vinham também, naqueles anos, alunos espanhóis. Sobre a pedagogia alemã da época veja-se ABBAGNANO; VISELBERGHI, 1976, e PRUEFER, 1940.
257 Veja-se cap. II e BAUDOUIN, 1866, p. 89-91.

71
século, introduzia grande número de diferenças de umas regiões para outras, porém
mesmo assim, havia uma vontade consciente de atingir a unificação.
Em todo este desenvolvimento a geografia desfrutou da grande vantagem de estar
sempre presente nos programas educacionais. E inclusive, sua presença fora muito
importante, já que, junto com a língua, a história e a filosofia eram uma das matérias que
contribuíam para afirmar o sentimento da unidade alemã acima da divisão política
existente. A aplicação dos métodos pestalozzianos permitia converter facilmente a
Heimatkunde em geografia, e fazer dela um ensino ativo e em contato com a natureza.
Em todo este desenvolvimento pedagógico, pode-se imaginar a grande influência que a
obra de Ritter pôde ter tido e a difusão de suas idéias pestalozzianas, através dos altos
círculos político – militares berlinenses aos quais estava vinculado.
A presença da geografia foi importante em todos os níveis e centros de ensino. Nas
escolas primárias era ministrada primeiro como ensino "à vista", em forma de
conversação e em seguida como lições nas classes superiores. O ensino se referia à
“figura da Terra” e seus movimentos, os princípios elementares da geografia, os pontos
cardeais, os sistemas de montanhas, o curso dos rios, etc., assim como os ramos da
indústria de cada país e o mecanismo de sua administração”. As noções referentes à
constituição da Terra, metereologia ou distribuição das plantas eram estudados nos
cursos de ciências naturais ou física.
Nos nove anos das escolas médias e escolas médias superiores (Bürgerschule e
Höhere Bürgerschule), a geografia não aparecia nos três anos iniciais, mas sim nos três
médios (com duas horas semanais no quarto, uma no quinto e duas no sexto) e nos três
superiores (com uma e duas horas). Nos cursos inferiores eram estudados os primeiros
elementos de cosmografia, geografia geral das cinco partes do mundo, estudo especial
da geografia da Alemanha e principalmente a de cada estado (a da Alemanha do Norte
no caso da Prússia).
Para ingressar nos centros de ensino médio (Realschule) devia-se realizar um
exame oral no qual eram incluidas noções de geografia física e política, zoologia,
mineralogia, botânica e geognosia, latim, elementos de química e matemática. O exame
com o qual finalizavam estes estudos, Abiturienten Examen, incluía religião, alemão,
latim, francês e inglês, física, química, matemática, desenho e geografia. A respeito
desta última, incluíam-se perguntas sobre as cinco partes do mundo, os centros
comerciais e os produtos do comércio, a geografia detalhada da Alemanha e Prússia (ou
o Estado que fora tratado) em particular, geografia matemática e geografia sob o ponto
de vista das relações internacionais. 258 No que se refere ao exame final das Realschule
de segunda ordem, para a geografia compreendia as mesmas questões, mas sem exigir
a geografia mercantil e a das relações internacionais. 259

258 BAUDOUIN, 1866, p. 108.


259 Ibidem, 1866, p. 114.

72
A geografia estava também presente em outros centros de estudos de ensino
especial. Assim na escola industrial de Berlim, 260 na Escola Superior Feminina da
mesma cidade; nesta dedicavam-se 2 horas de estudos à geografia nos cursos médios e
superiores: o estudo da Alemanha por meio de mapas mudos no 5º ano, as partes do
mundo com as divisões principais no 4º ano; África, Ásia, América e Oceania no 2º ano;
os princípios da geografia política e matemática da Europa, no 1º ano; e a geografia
política, matemática e comercial das cinco partes do mundo no último ano. 261
A eficácia de todo esse sistema escolar dependia enormemente da formação
dos professores. Neste sentido realizou-se também, na Alemanha, e especialmente na
Prússia, um esforço para melhorar a formação dos docentes. No nível do primário,
criaram-se Escolas Normais para a formação dos professores. Nos exames de admissão
para estes centros exigiam-se religião, língua, aritmética, música, história, física, história
natural e geografia. Nesta matéria, os aspirantes prestavam exames de elementos da
cosmografia, limites geográficos mais importantes, manejo dos globos terrestres,
conhecimento minucioso das diferentes partes da Europa com suas relações comerciais,
e, em particular, das divisões políticas e administrativas do reino da Prússia 262 . Na
escola eram estudadas diversas matérias (religião, leitura, cálculo mental, ginástica,
pedagogia teórica e prática...), entre as quais a geografia, sobre a qual se diz apenas
que não se fará de forma “de memória” e que se realizará “com o auxílio de cartas
mudas”. Quanto ao ensino secundário, as reformas que haviam introduzido o Abitur ,
exigindo maiores qualificações para ensinar neste nível, repercutiram imediatamente no
aumento dos estudantes universitários que se preparavam para docência. 263
A demanda de textos de geografia e de atlas como resultado das demandas
escolares, e o interesse do grande público pelas descrições de países, estimularam o
desenvolvimento de publicações seriadas de geografia e o desenvolvimento de centros
cartográficos especializados.
A tradição cartográfica era antiga na Alemanha. No século XVIII, ocorreram
decisivas contribuições para solução de importantes problemas matemáticos
relacionados com as projeções 264 e existiram casas editoriais dinâmicas como a de
Hommann de Nürenberg, que perdurou até o século XIX; 265 Mathias Seutter de
Augsburg; 266 ou Friedrich Justin Bertuch (1747-1822), criador do Instituto Geográfico de
Weimar e editor da revista “Geographische Ephemeriden” (1798-1837).

260 Ibidem, 1866, p. 119-120.


261 Ibidem, 1866, p. 121-125. A geografia estava presente no ensino de todas as províncias alemãs com programas mais ou menos semelhantes aos que resumimos, que se referem à Prússia, e ainda em alguns momentos
com maior número de horas. Veja-se BAUDOUIN, 1866, p. 137 e seguintes.
Nas Realschulen da Saxônia, por exemplo, a geografia era ensinada nesta ordem: geografia geral, geografia de toda Alemanha, da Saxônia, e Cosmografia, BALDOUIN, p. 172-173.
262 Ibidem, p.33.
263 BEN DAVID-ZLOCWER (1961), Ed. 1966, p. 21. Isto afetou a várias disciplinas, pois durante o século XIX a maior parte dos estudantes universitários de Ciências Naturais preparavam-se para ser professores do ensino
médio. Veja-se BEN DAVID (1971), Ed. 1974, p. 141.
264 Em particular os trabalhos de Johann H. Lambert: Beyträge zum Gebrauche der Mathematick und deren Anwendung, Berlim, Reiner, 1765-1772; e os realizaram em Petersburgo, de Euler.
265 Veja-se BAGROW; SKELTON, 1964, p. 187. O fundador foi Johan Baptist Homann (1664-1724), que junto com outros cartógrafos elaborou o Grosser Atlas de 1716, com 126 mapas, e realizou também atlas para o
ensino como o Methodischer Atlas, 1719 e contou com a colaboração do astrônomo J. G. Doppelmayr. Com sua morte, foi sucedido seu filho e mais tarde por seu cunhado, sendo a casa conhecida como “Hommannische
Erben” (Sucessores de Hommann).
266 Sucedido por Tobias Conrad Lotter.

73
No século XIX, o principal centro geográfico- cartográfico foi o Justus Perthes
Geographischer Anstalt, de Gotha, fundado em 1785 para editar publicações
genealógicas, mas orientando, em seguida, também para a geografia e a cartografia.
Este Instituto Geográfico editou, entre 1816 e 1823, um atlas manual, o Handatlas über
alle theile der Erde und über das Weltgebande, realizado por Adolf Stieler (1775-1836) 267
e continuado por F. de Stülpnagel; este atlas foi a base essencial do Instituto e contou
com numerosas edições, cada vez mais amplas, durante o século XIX. Também fundou
a revista "Hertha" (1825-1829) transformada depois em "Annalen der Erdländer-, Völker-
und Staaten Kunde" (1829-1843, 28 vols.). Em 1837, Heinrich Karl Berghaus (1797-
1884) publicou nesta mesma editora seu famoso Physikalischer Atlas, no qual se
observa nitidamente a influência das idéias de Alexandre von Humboldt.
Mais tarde August Heinrich Petermann (1822-1878), discípulo de Berghaus,
assumiu o cargo da direção dos trabalhos cartográficos do "Instituto Justus Perthes", o
qual deu grande impulso ao centro, renovou o Handatlas, introduzindo mapas históricos
e temáticos, e criou em 1855 o Petermanns Geographische Mitteilungen, revista
geográfica que pouco depois atingia uma tiragem de 5.000 exemplares por edição, e a
qual continha material empregado para a confecção dos mapas (estatísticas,
bibliografia, artigos) e que constituiu o modelo de revista geográfica para todos os países
europeus no último quarto do século XIX. Depois, em 1860, criou também os
"Petermanns Geographische Mitteilungen Erganzungheft" dedicados as monografias
geográficas. Nesta mesma linha editorial, em 1866, E. Behm fundou o anuário
"Geographisches Jahrbuch", de caráter mais prático e elementar, e que tinha por objetivo
seguir o desenvolvimento da ciência geográfica. Ao mesmo tempo, como
desenvolvimento e complemento dessas publicações, a empresa incorporou também a
elaboração de livros de texto para o ensino, adaptando o Handatlas e o Physicalischer
atlas às necessidades escolares, e editando também atlas históricos, bem como material
pedagógico e mapas murais. 268
A casa editorial Reimer, de Berlim, também dispunha de um departamento
cartográfico que teve a colaboração de cartógrafos como Julius Ludwig Grim, W.
Scharrer, Carl Zimmermann, Heinrich Mahalmann e Heinrich Kiepert, os quais
colaboraram, todos, em meados do século XIX, na edição dos mapas da Erdkunde de
Ritter. Kiepert, publicou, em 1860, um Atlas de grande formato com 45 mapas, que foi
considerado, na época, o melhor existente na Alemanha.
Desta forma, a demanda provocada pela presença da geografia no ensino
primário e secundário, estimulou o desenvolvimento e a diversificação do Instituto Justus
Perthes e de outras entidades deste tipo, antes da fase de expansão da geografia
universitária, criando-se assim uma infra-estrutura que viria a beneficia-la amplamente
quando começava seu desenvolvimento no ensino superior. Um desenvolvimento que,

267 Veja-se HORN, 1967.


268 Para a história do Instituto de Gotha, veja-se HAACK, 1972, p. 169-208.

74
pelo que vemos, continuou - e não precedeu - ao desenvolvimento da geografia nas
escolas e institutos de ensino médio.

O DESENVOLVIMENTO UNIVERSITÁRIO E A CONSOLIDAÇÃO DAS DISCIPLINAS


CIENTÍFICAS

A fase de expansão da geografia universitária alemã começa de fato, em torno


de 1860. A demanda de formação de professores para o ensino primário e secundário se
fez sentir na universidade alemã num momento em que esta havia se convertido numa
poderosa estrutura institucional e começava receber estímulos exteriores. Para entender
as razões dessa expansão e a organização que os departamentos universitários desse
país adotaram, é necessário voltar-se agora para o sistema universitário alemão no
século XIX.
Desde aproximadamente 1830, a universidade alemã havia conhecido um
grande desenvolvimento e foi-se convertendo no modelo educacional de ensino superior
para todos os países europeus, deslocando neste sentido, a França. A tese de J. Ben
David é de que a evolução não foi algo planejado, mas, de certa forma, imprevista: não
foi conseguida como resultado de demandas sociais exteriores ao sistema, mas de
demandas que se produziram dentro do próprio sistema universitário, que havia sido
organizado como estrutura independente de outros setores da sociedade com o fim de
assegurar a liberdade de pensamento e o caráter criativo. 269
A criação da universidade de Berlim, em 1809, significaria o começo de
profundas transformações na universidade alemã, as quais se intensificaram depois de
1830. Berlim foi o modelo para as velhas universidades das diferentes entidades políticas
alemãs e para as que foram fundadas depois (Bonn, 1818; Munich, 1826).
Como já vimos no capítulo anterior, essa universidade se caracterizou pela
valorização da ciência pura, pela integração de ciências e humanidades e pela posição
central que a filosofia e as disciplinas culturais adquiriram. Como prova da extensão do
modelo, deve-se assinalar que em torno de 1840 a faculdade de filosofia compreendia o
maior número de docentes universitários na Alemanha, com aproximadamente a metade
do total. 270
Em torno de 1830, entretanto, a situação começou a mudar. Houve uma firme
reação contra este domínio filosófico, e começou uma fase de forte desenvolvimento das
ciências naturais e do método experimental na universidade alemã 271 . Há um
crescimento interno com a aparição de novas especialidades, desmembradas da filosofia
(história, lingüistica, filologia, ciências naturais empíricas) ou da medicina (anatomia,

269 BEN DAVID (1971), Ed. 1974, p. 154.


270 BEN DAVID; ZLOCZOWER, 1966, p. 23.
271 BEN DAVID (1971), Ed. 1974, p. 145 e seguintes..

75
fisiologia), assim como a criação de laboratórios, seminários e mais tarde, institutos de
pesquisa. Este desenvolvimento produzido, demonstra, segundo Ben David, a
superioridade do sistema alemão sobre outros e em particular sobre o francês, o que se
sustenta sobretudo, "na sua capacidade para se modificar de acordo com as
necessidades da investigação científica, apesar das idéias equivocadas (do ponto de
vista das ciências empíricas) dos fundadores da universidade". 272 Esta capacidade
deriva, por sua vez, da estrutura interna da universidade, que possuía duas
características básicas: 1) o autogoverno, que deu aos especialistas o poder de tomar
decisões de acordo com os centros intelectuais e científicos, e a liberdade acadêmica,
esta última, logicamente como um privilégio excepcional num país no qual a liberdade de
expressão e a igualdade social não existiam; 2) a exigência de qualidade acadêmica e a
definição das duas principais funções acadêmicas: a do Privatdotzen, que devia realizar
uma carreira acadêmica e demonstrar sua competência profissional no campo da
pesquisa, ascendendo à docência depois de realizar um trabalho original que lhe dava
habilitation; e a do Professor.
Tratava-se, além disso, de um sistema descentralizado e competitivo no qual
as diferentes entidades políticas alemãs se esforçavam por criar centros prestigiosos que
atraíssem os estudantes. Numa situação como esta a ciência avançou rapidamente.
Foram criadas novas especialidades e cátedras que deram origem a novas disciplinas
científicas com uma metodologia especializada e um conteúdo sistematicamente
definido, 273 consolidaram-se as carreiras de pesquisa científica e foram dadas
oportunidades a jovens universitários com aspirações intelectuais. Foi então que se criou
o papel do pesquisador profissional. Apareceram os laboratórios de pesquisa das
universidades, que obtiveram um grande prestígio em meados do século XIX, e as
cátedras mais famosas começaram a atrair estudantes do mundo inteiro.
Em torno de 1860, o desenvolvimento econômico da Alemanha permitiu
também o aparecimento da ciência aplicada e o próprio desenvolvimento universitário
obrigou a redefinir as funções da universidade. Nesse contexto, institucionalizaram e
desenvolveram-se as ciências sociais como a psicologia experimental, a sociologia, a
economia, não como desenvolvimentos a partir de uma demanda externa, afirma Ben
David, mas a partir de interesses puramente acadêmicos. É nesse momento também – e
concretamente depois de 1860 – que a geografia começa a fase mais intensa de
desenvolvimento universitário.
Aceitando-se a interpretação de Ben David, seria necessário concluir que no
desenvolvimento da geografia atuaram estímulos acadêmicos puramente internos.
Certamente estes existiram. Em algumas situações a geografia podia estar associada à
estatística como no caso de Wappaeus e de seu sucessor Wagner na Universdade de
Göttingen. Wappaeus editou pela sétima vez o Handbuch der Geographie und Statistik

272 Ibidem, p. 146.


273 BEN DAVID – ZLOCZOWER (1961), Ed.1966, p.13.

76
de Stein y Hörschelmann (Leipzig, 1849 – 1871, 12 vols.) 274 trabalhando ao mesmo
tempo as duas matérias (geografia e estatística), matérias intimamente associadas na
concepção de alguns cientistas do século XVIII. O próprio Ratzel reconhece
explicitamente a importância da estatística no desenvolvimento da Geografia. Assim, em
La Tierra y la Vida afirma que
“a estatística, fundada por Süssmilch e Achenwald (1749) não reavivou
imediatamente a Geografia, porém, outorgou a seus dados numéricos, critérios e
significados mais elevados, como bem se pode ver em Büsching [refere-se a Nueva
Descripción de la Tierra, 1754], e conferiu, particularmente à Geografia, uma maior
veracidade [...]. Em momentos – ainda na primeira metade do século XIX – em que para
muitos países e cidades da Europa os dados estatísticos da população só podiam-se
apresentar por meio da presunção, foram obtidos, resultados cada vez mais seguros
através das operações estatísticas”. 275
Entretanto, tem-se a impressão mais forte de que no caso da geografia foram
estímulos externos que atuaram fundamentalmente. Todos os dados parecem indicar
que foi a presença da geografia no ensino básico o estímulo principal para multiplicação
das cátedras universitárias de geografia depois de 1874, data na qual se decidiu que
existiriam cátedras desta matéria em todas as universidades alemãs. Certamente a nova
situação criada pela unificação alemã, entre 1864 e 1871, 276 supôs novas exigências, do
ponto de vista dos textos e dos cursos de geografia nos níveis da escola primária e
secundária, que deveriam ser atendidas pelos professores. A isso deveriam ser
acrescentadas as exigências do imperialismo alemão. Segundo H. Beck, a formação do
império alemão em 1871 e a aquisição de colônias desde 1884 –1885 (Congresso de
Berlim) deu lugar ao surgimento de uma nova política, que impulsionou a criação de
cátedras e departamentos de geografia “em número nunca antes conhecido”. 277
Em 1870, somente existiam, como vimos, três cátedras universitárias de
geografia na Alemanha (Berlim, Göttingen e Breslau). A partir de 1871, vão-se criando
com rapidez. Sucessivamente foram fundadas: em 1871, Leipzig (Oscar Peschel); em
1873, Halle (Alfred Kirchhoff), e a Technichen Hoscschule de Munich (Hermann Guthe);
em 1875, Bonn (Ferdinand Von Richthofen) e Strasburg (Georg Gerland); em 1876,
Konigsberg (Hermann Wagner) e Marburg (Johan Justus Rein); em 1878, Kiel (Theobald
Fischer); em 1881, Greifswald (Rudolf Credner); em 1886, Viena (Albrecht Penck) e a
cátedra de Geografia Física da Universidade de Berlim (Ferdinand von Richthofen), junto
à de geografia histórica que havia sido ocupada desde os anos 60 por Kiepert. 278 Em
1890 praticamente todas as universidades alemãs possuíam ensino especializado de
geografia.
274 WAGNER, 1911, v. I, p. 8.
275 RATZEL: La Tierra e la Vida, Ed. 1905, v. I, p. 55-56.
276 Estas são as datas principais: 1864, guerra contra Dinamarca e anexação da Prússia de Schelswig e Holstein; 1866, guerra austroprussiana, incorporação de Hannover; constituição da “Confederação do Norte” e
assinatura de tratados militares com os estados alemães do sul; 1871, incorporação de Alsácia e Lorena e proclamação de Guilherme I como Imperador da Alemanha.
277 BECK, H., 1973, p. 261.
278 Elaborado a partir de BECK, 1973, p. 261-262.

77
Foi a partir daí que se constituíram as escolas geográficas universitárias, em torno
de alguns professores particularmente ativos e prestigiados. As principais foram as de
Leipzig, fundada por O. Peschel, que nela permaneceu até sua morte (1875), e na qual
sucederam-se em seguida Ferdinand von Richthofen (1883-86), Frederich Ratzel (1886-
1904) e J. Partsch (1905-22), a de Berlim desde a chegada de Ferdinand von Richthofen
(1886-1905) que foi sucedido por Albrecht Penck (1906-1927); a de Bonn, organizada
por Richthofen (1875-83) e mais tarde por J. J. Rein (1883-1910); a de Breslau, onde
Wappaeus foi sucedido por J. Partsch (1876-1905); ou a de Göttingen, na qual com a
morte de Wappaeus, Hermann Wagner (1880-1920) foi nomeado para ocupar a cátedra.
Em algumas dessas universidades tiveram início séries de publicações, e revistas
periódicas, destacando-se a “Geographische Zeitschrift”, fundada em Leipzig em
1895. 279

A COMUNIDADE DOS GEÓGRAFOS E A DEFINIÇÃO DO OBJETO DA GEOGRAFIA

A criação dessas cátedras significou a aparição de oportunidades profissionais que


atraíram jovens brilhantes e ambiciosos. Aconteceu na geografia algo semelhante ao que
ocorreu nas outras disciplinas científicas. Com o exemplo da criação da cátedra de
fisiologia separada de anatomia, J. Ben David e A. Zloczower mostraram de que forma
as oportunidades profissionais atraíam jovens universitários e provocavam um período
de rápida expansão científica nesta disciplina, e como o bloqueio desta saída
profissional, que ocorreu na Alemanha entre 1870 e 1890, desviava este crescimento em
direção a outras especialidades, e provocava, por sua vez, uma diminuição da expansão
científica naquela. 280 De forma semelhante, a existência de maiores possibilidades
institucionais na psicologia, explica a atração em direção a esta ciência de um certo
número de físicos e a utilização de métodos experimentais para o estudo dos fenômenos
da mente, em lugar dos métodos puramente especulativos que eram usados até
então. 281 O estudo de Ben David e Collins mostra que em torno de 1850, as
possibilidades de se chegar a ser professor universitário eram maiores para os que
concluíam uma habilitação em ciências médicas do que nas disciplinas filosóficas, mas
que na década seguinte, a situação havia se modificado completamente, sendo que a
filosofia oferecia condições mais favoráveis para a competição. É este o momento em
que Wundt, formado como fisiólogo, chegou à filosofia, e dentro dela à psicologia, e o
físico Ernst Mach direcionou-se também para a filosofia. Por esta razão, produziu-se uma
“hibridação de papéis” 282 que foi particularmente frutífera para o desenvolvimento da
psicologia alemã.

279 Na atualidade – desde 1963 – edita-se em Wiesbaden. Veja-se também, mais adiante, cap. IX.
280 BEN DAVID; ZLOCZOWER (1961), Ed.1966, p.24-28.
281 BEN DAVID; COLLINS, 1966.
282 Ibidem, 1966.

78
Algo semelhante ocorreu na geografia. Neste ramo científico, as oportunidades
profissionais que se apresentaram foram aproveitadas por pessoas de formação muito
diversa. Os que sentiram a “vocação” pela geografia foram: historiadores e filólogos
como A. Kirchoff, Georg Gerland, ou Joseph Partsch; botánicos com formação histórica,
como Theobald Fischer; matemáticos e/ou cientistas naturais, como Hermann Wagner,
Siegmund Günther, Johan Justus Rein ou Rudolf Credner; farmacéuticos e zoólogos
como Friedrich Ratzel; geólogos como Ferdinand von Richthofen ou Albrecht Penck;
professores do ensino superior, como Hermann Guther; ou finalmente geógrafos como
Otto Krümmel e Friedrich Hahn, discípulos de Oscar Peschel em Leipzig, entre 1871 e
1875. É, com certeza, o que Hanno Beck denominou “uma mistura altamente
estimulante”. 283
As razões para esta conversão à geografia podem ser objeto de interpretação. A
História Sagrada da disciplina apresenta por vezes como súbitas revelações da ciência
geográfica, experimentadas em alguns casos durante longas viagens por terras
estranhas (situação de Richthofen ou Ratzel); uma espécie de iluminação repentina. “Foi
através das viagens – escreve Jean Brunhes – Ratzel chegou à Geografia, da mesma
forma que vários dos geógrafos mais destacados da Alemanha contemporânea, como o
barão von Richthofen, Theobaldo Fischer, entre outros.” 284 Opinião semelhante têm
também outros geógrafos. Assim da viagem que Richthofen realizou pela China, em
1869-71, foi escrito que “a começou como geólogo e a terminou como geógrafo”, já que
se no início suas observações foram sobretudo geológicas, logo se converteram em
geográficas “ao ser paulatinamente absorvido pelas sutis relações entre a natureza e o
homem”. 285
Porém, os fatores desta evolução não estão claros, ou podem ser manifestamente
diferentes. No caso de Richthofen, deve-se lembrar que era geólogo e que realizou seus
primeiros estudos como tal, em seu posto no “Geologische Reichanstalt” de Viena de
1852 a 1860, trabalhando nos Alpes tiroleses e nos Cárpatos. Em 1860, chegou a Berlim
e viajou numa delegação diplomática comercial prussiana à Tailândia, Japão, China,
Filipinas e Indonésia, decidindo então realizar uma expedição geológica à China. Esta se
efetuou entre 1869 e 1870, morando também quase um ano no Japão. 286 O resultado de
suas pesquisas pessoais e os estudos realizados plasmou-se numa obra monumental de
caráter geológico e paleontológico, publicada a partir de 1877. 287 Com certeza, na parte
exploratória de sua investigação Richthofen se relacionava com a geografia, e
283 BECK, H., 1973, p. 261. Veja-se também DICKINSON, 1969, cap. 7, p. 89-99, onde faz um estudo da obra de J. Partsch (1851-1925), H. Wagner (1840-1920), Georg Gerland (1833-1919), Theobald Fischer (1846-
1910), Alfred Kirchhoff (1838-1907) e Alexander Supan (1847-1920).
284 BRUNHES, J., 1912, p. 43.
285 CRONE, 1970, p. 33.
286 Veja-se BECK, H., 1973, p. 263; DICKINSON, 1969, cap. 6, p. 77-88.
287 Dada a importância que possui essa obra cujo volume I foi considerado o iniciador de uma nova época da geografia (Dietmar HENZE, em RICHTHOFEN [1877], Ed. 1971), vale a pena descrever com detalhe as partes
que a compõem. Os três primeiros volumes são do próprio Richthofen: v. I: China, Ergebnisse eigener Reisen und darauf gegründeter Studien. Erster Band Einleitender Theil (Berlim, Dietrich Reimer, 1877); v. II: Das
nördliche China (Berlim, 1882, XXIV, 792 p.). Vol. III: Das südliche China (Berlim, 1912, XXX, 817 p.). Os dois volumes seguintes incluíram pesquisas paleontológicas, v. IV: Paleontologische Theil. Enhaltend
Abhandlungen, von Dr. Wilhelm Dames, Dr. Emanuel Kayser, Dr. G. Lindström, Dr. A. Schent e Dr. Conrad Schwager (Berlim, 1883, XVI, 228 p.); v. V: Enthaltend die Abschliessende paleontologische Berbaitung der
Sammlung F. von Richthofen, Dr. Fritz French (Berlim, 1911, XII + 289 pp.). Por último, existe um Atlas von China Orographische und geologische Karten, de F. von Richthofen (Berlim, 2 v., 1885 e 1912). Os dados
procedem da reedição do volume 1, elaborado por Dietman Henze, RICHTHOFEN, 1971. Sobre o trabalho intelectual de Richthofen, veja-se também AFREMOV, 1976.

79
significativamente o volume I foi dedicado aos membros da Gesellschaft für Erdkunde de
Berlim, “em lembrança reconhecida de uma atividade simultânea”, e dedica atenção ao
desenvolvimento dos estudos sobre a China 288 . Mas talvez possa se duvidar do caráter
geográfico de uma viagem que estuda essencialmente problemas geológicos, como a
configuração orográfica da Ásia Central, a paisagem do loess na China setentrional ou as
estepes salinas da Ásia Central, e que deu lugar à realização de mapas orográficos e
geológicos. De qualquer modo, a análise deste volume e dos seguintes, assim como do
conjunto da produção científica de Richthofen, deve ser feita levando-se em conta a
consciência que ele próprio tinha sobre o caráter de sua atividade e as expectativas
profissionais que se lhe apresentavam em cada momento.
Mais significativo é, neste sentido, o caso de Friedrich Ratzel. Por sua formação
como farmacêutico e zoólogo e seu trabalho posterior, 289 Ratzel não parecia
particularmente interessado pela geografia. Durante os estudos em Montpellier sob a
direção de Charles Martins, enviou umas “Cartas zoológicas da a orla Mediterrânea” 290
ao jornal “Kölnische Zeitung”, o que o conduziu ao jornalismo. Como enviado do jornal
viajou à Europa oriental, Itália e América do Norte. Os motivos de sua conversão
aparecem nitidamente neste texto de Jean Brunhes:
“O próprio professor Ratzel me contava nos termos a seguir em janeiro de 1904,
alguns meses antes de sua morte a evolução característica de sua carreira: “Realizei
viagens, desenhei, escrevi. Isso me conduziu a Naturschilderung. Enquanto isso, voltei
da América e me disseram que necessitavam de geógrafos. Então, reuni e analisei todos
os fatos que eu próprio havia observado e colhido sobre a imigração chinesa à Califórnia,
ao México e à Cuba, e redigi minha obra sobre a imigração chinesa que foi minha tese
de habilitação”.” 291
São, pois, motivos de oportunidade profissional, os que essencialmente
atuaram. Se esta oportunidade não houvesse ocorrido, seguramente Ratzel teria dado de
qualquer forma algumas de suas contribuições científicas, porém teria se inserido em
outra tradição acadêmica, e a linguagem e o conteúdo de suas teorias teriam sofrido
variações significativas.
A criação de cátedras universitárias de geografia e o aumento do número de
estudantes tornaram necessárias as publicações de manuais de ensino superior. Muitas
das grandes obras da geografia deste momento tiveram sua origem neste estímulo e
cumpriam essencialmente uma função pedagógica. Assim, surgiram a Völkerkunde de
Oscar Peschel (Leipzig, 1874) e a Physische Erkunde deste autor e de Gustav Leipoldt
(1879-80, 2 vols.), a Anthropo-geographie de Ratzel (1882) ou a Morphologie der
Erdoberfläche de Albrecht Penck (1894). Entre os manuais de caráter geral, foi muito
288 Desde as primeiras geografias do império (Richthofen, 1877, p. 273-644) aos descobrimentos realizados pelos europeus a partir da chegada dos portugueses a Cantão em 1517 (idem, págs 645-726).
289 Veja-se, mais adiante, cap X.
290 RATZEL: Zoologische Briefe von Mittelmeer, editadas mais tarde em seu Wandertage eines Naturforchers, Leipzig, 1873-74, 2 v.
291 BRUNHES, J. 1912, p. 43. A obra à qual Ratzel se refere é Die Chinesische Auswanderung, Breslau, 1876. Outro exemplo curioso de “conversão” é o de Georg Gerland, que orientou a tese de Hettner. Gerland era
filólogo e antropólogo e ao ser nomeado professor de Geografia em Strasburg (1875) tentou converter a cátedra numa de antropologia (Völkerkunde); não conseguindo dedicou-se à geografia, mas acentuou curiosamente os
aspectos físicos e considerou que os humanos pertenciam a etnografia. Veja-se a respeito sobre isso DICKINSON, 1909, pp. 94-95.

80
utilizado o Lehrbuch der Geographie de Hermann Wagner, (revisão de uma obra anterior
de H. Guthe, é de Wagner a 5ª. Ed; 1883; 9ª ed, 1912, 4 vols.) que ainda dedica grande
atenção a geografia matemática em sua primeira parte.
Constituíram-se também coleções editoriais, destinadas ao público universitário
ou geral. A mais importante foi talvez a “Bibliothek der geographischer Handbücher”,
dirigida por Ratzel e editada em Stuttgart pela editora Engelhorn. Nela apareceram o
Handbuch der Klimatologie de J. Hahn (1883, 2º ed., 1897, 3 vols.); o Handbuch der
Ozeanographie de Boguslawski e Otto Krümmel (1884, 2º ed., 1907-11, 2 vols.); a
Morphologie de A. Penck (1894); o Handbuch der Gletscherkunde de A. Heim (1885), e o
Handbuch der Pflanzengeographie de O. Drude (1890), além da Antropo-geographie de
Ratzel (1º ed., 1882).
À geografia universal foi dedicada a série “Unser Wissen von der Erde”, cujo
primeiro volume foi a Allgemeine Erdkunde de Hahn, Hochstetter e Pokorny (1872)
completamente reformulada (1885-86) e a série “Länderkunde des Erdteils Europa”,
dirigida por Alfred Kirchhoff a partir de 1887 (Viena – Praga – Leipzig), e onde
apareceram, entre outras, a obra de Theobaldo Fischer Landerkunde der
Südeuropäischen Halbinsel (1893) e a de Albrecht Penck Das Deutsche Reich (1887).
Kirchhoff através destas coleções e de sua dedicação à geografia regional converter-se-
ia no “mais popular dos geógrafos alemães de seu tempo”. 292 As mesmas características
tinha a “Allgemeine Landerkunde”, dirigida por Wilhelm Sievers (1893-1913).
As teses e trabalhos de pesquisa sobre Alemanha tiveram espaço nas séries
que as editoras começaram a publicar, e em coleções como a “Forschungen zur
deutschen Landes – und Volkskunde” (Bad Godesberg, 1885), que incluía monografias
sobre Alemanha. Nela foi publicado, por exemplo, um importante trabalho dirigido por
Kirchhoff e com a colaboração de doze autores, entre os quais Penck, com o título
Anleitung zur deutschen Landes – und Volkforschung (Stuggart, 1889), que passou a ser
um clássico da metodologia regional alemã. 293 Entre as séries de monografias gerais,
pode ser citada a importante “Natur und Geisteswelt”, publicada em Leipzig, que em
1910 havia chegado a 300 volumes. Nela Kirchhoff publicou seu Mensh und Erde (1901).
Ou as séries regionais, que são impossíveis de enumerar, e de que somente citaremos a
título de exemplo “Die Rheinland in naturwissenschaftlich–geographischen
Einzeldarstellung”, editado por G. Mordziol em Brünschwig, em 1910.
A partir de 1880, a comunidade científica dos geógrafos alemães deslocou seu
centro de atividade das Sociedades geográficas para os Departamentos universitários.
São, agora, os geógrafos da universidade que vão adquirindo o controle do
desenvolvimento científico, e que organizam e dominam as jornadas geográficas
(Deutscher Geographentag). 294

292 Nas palavras de H. BECK, 1973, p. 293.


293 Um texto desta obra, escrito por A. Meitzen, está reproduzido em H. Beck, 1973, p. 289-292.
294 Veja-se, mais adiante. IX.

81
O desenvolvimento da geografia universitária alimentou, por sua vez, a potente
indústria editorial e cartográfica, dedicada a publicações escolares. As grandes editoras
de Berlim, Leipzig, Breslau, Sttutgart, entre outras, solicitaram a colaboração dos
professores para edição de atlas, mapas e textos escolares. Joseph Partsch, Hermann
Wagner, Alfred Kirchhoff, entre muitos outros, dedicaram atenção a essa atividade. As
revistas do Instituto Geográfico de Gotha, que caiu cada vez mais sob o controle da
universidade, renovaram-se e criaram números especiais: o “Pettermann Geographische
Mitteilungen” é dirigido por Langhaus e Alexander Supan e começa a publicar
suplementos estatísticos sobre a população (Die Bevölkerung der Erde, o Statistiches
Jahrbuch, 1884). Enquanto o “Geographische Jahrbuch” passa a ser dirigido por
Hermann Wagner, a partir de 1879.
O interesse pelos temas de pedagogia da geografia e pela difusão dos
conhecimentos geográficos para os professores da escola primária e secundária se
reflete nas publicações que foram criadas, destinadas especificamente a estes
professores. Em particular, a “Geographischer Anzeiger”, fundada em 1899 por H. Haack
e H. Fischer; a “Deutsche Erde”, fundada em 1901 por P. Langhaus, e que prestava
atenção particularmente na geografia alemã; e o “Geographen Kalendar”, fundado por H.
Haack em 1903, para atualizar a informação estatística. Ao mesmo tempo, o tema da
formação dos futuros professores de geografia foi objeto de cuidadosa atenção nas
universidades e tema de trabalhos científicos, que partiam do pressuposto de que para
que a ciência geográfica se desenvolvesse era indispensável começar por garantir essa
disciplina no ensino primário e secundário e formar adequadamente os professores
desses níveis. 295
O problema do objeto preciso da geografia teve que ser submetido a debate. O
desejo de afirmar seu caráter “científico” levou a muitos geógrafos a defender a geografia
física, rejeitando os desenvolvimentos humanísticos e históricos da disciplina. Nisto
influía seguramente também o desejo de distanciar-se do determinismo da obra de Ritter,
evidente, em particular, em Peschel. Foi nesse momento, muito provavelmente, que a
obra de Humboldt apareceu aos geógrafos como um modelo a ser seguido, tanto por sua
concepção integradora, que tão útil poderia ser à nova geografia institucionalizada, como
pela utilização de métodos empíricos que tanto prestígio adquiriram com o triunfo das
concepções positivistas. A chegada de naturalistas e geólogos à geografia como
Richthofen, e a criação da cátedra de geografia física da Universidade de Berlim,
reforçou ainda mais essa tendência. 296 Aproveitando sua formação geológica, Richthofen
desenvolveu de modo destacado a geografia física e em particular a geomorfologia. Foi
ele quem declarando por conta própria, a partir de sua nova profissão de geógrafo que:
“é uma característica de nosso tempo o fato de ter-se reconhecido de novo a unidade do

295 Veja-se, por exemplo, a comunicação apresentada pelo professor da Universidade de Munster, R. Lehman no Congresso Internacional de Geografia de Londres de 1895, em TORRES CAMPOS, 1896, p. 250 e
seguintes.
296 Veja RICHTHOFEN: Aufgabe und Methoden der heutigen Geographie, 1883.

82
saber a respeito da superfície terrestre”, afirmou que o objeto próprio da geografia
científica era “o conhecimento do amplo campo das interações causais”, que se
produzem na superfície da Terra. Agora, a partir de uma geografia institucionalizada, que
deve justificar seu objeto e especificar seus métodos, não se podia deixar de reconhecer
o avanço das ciências naturais, e aceitar que: “isso deve-se refletir na Geografia
científica e nos seus métodos”. Mas ao mesmo tempo, o geógrafo na sua procura do que
era especificamente geográfico podia – e devia – voltar-se em direção à obra de Ritter,
pois ele havia “impulsionado os métodos de investigação no campo das idéias"
esperando, ao mesmo tempo que poder-se-ia, “associar de forma harmônica à direção
de tipo material”. 297
A orientação física que Richthofen imprimiu à geografia, desenvolvendo sobretudo a
geomorfologia era, certamente, perigosa porque poderia fazer dessa disciplina um simples
apêndice da geologia ou de outras ciências naturais. Como reconhece o próprio Richthofen, a
zoologia sistemática e a botânica já haviam determinado por si mesmas “a presença local e as
relações causais de primeira ordem, que unem, por exemplo, essa presença ao solo e ao clima”.298
A geografia pretendia conectar, por sua vez “com outros fenômenos muito distantes do campo da
botânica e da zoologia”, através da aplicação “do ponto de vista dirigente a da geografia”. Porém,
não fica claro qual foi a razão pela qual isto não podia ser feito também por outros cientistas, e as
dúvidas se tornam intensas quando a única coisa que se especifica a respeito desse ponto de vista
geográfico é que considerava os fenômenos “com referência à superfície terrestre e na sua relação
causal com os outros fenômenos tratados sob o mesmo critério”.299
Ao mesmo tempo o desenvolvimento da antropogeografia, sobretudo a partir
da obra de Ratzel, orientava também a disciplina para as ciências humanas.
Evidenciava-se com isto um dualismo que os geógrafos da época consideraram que era
consubstancial à geografia desde a antigüidade, 300 mesmo que se afirmasse
retoricamente que a geografia havia evoluído em direção a abolição de tal dualismo. A
solução para este dilema foi buscada – da mesma forma que em outras escolas como a
francesa -, através da orientação para a geografia regional e da paisagem.

297 Os textos provêm do discurso de admissão de RICHTHOFEN na Academia de Leipzig em 1883, Ed. 1978, p. 53, 51 e 54 respectivamente. Certamente foi então que teve de justificar Ritter e defender que “não é
exatamente a acusação que se lhe atribui de menosprezar os problemas da Geografia física”, como afirmou KRETSCHMER (1923), Ed. 1930, p. 187.
298 RICHTHOFEN (1883), Ed. 1978, p. 55.
299 Ibidem, p. 54.
300 WAGNER, Ed. 1911, v. I, p. 28.

83
84
CAPÍTULO IV

Tradução de: Karin Schawabe Meneguetti e Jorge Guerra Villalobos

A INSTITUCIONALIZAÇÃO UNIVERSITÁRIA DA GEOGRAFIA FRANCESA

Apesar da prematura criação, de uma cátedra de geografia na Universidade de


Paris, em 1809, e da fundação, em 1828, da primeira sociedade geográfica européia em
Paris, pode-se afirmar que, de fato, a institucionalização universitária e o
desenvolvimento da geografia moderna só se realizaram na França no último terço do
século XIX. A demanda de professores de geografia para a escola primária e secundária
será sentida muito lentamente, apesar da expansão das cifras de escolarização. Foi o
impacto produzido pela derrota de 1870 frente à Alemanha que constituiu o impulso
decisivo para a reforma do ensino, dando maior presença à geografia no nível primário e
secundário e ampliando, por sua vez, o ensino desta matéria na universidade.

DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E SABER GEOGRÁFICO

As reformas educativas e institucionais realizadas na época revolucionária e


napoleônica deram lugar a uma fase de intenso desenvolvimento científico durante os
três primeiros decênios do século XIX, no qual a geografia propriamente dita esteve
praticamente ausente. Para a regeneração do homem e a organização da nova
sociedade, os políticos da Revolução consideraram que a ciência e a educação eram
essenciais e que o estado tinha a responsabilidade de impulsioná-las. Assim, grandes
esforços foram realizados nesta direção e os cientistas e intelectuais foram chamados a
assumir importantes responsabilidades políticas. 301 A criação de instituições científicas
bem dotadas, como a Escola Politécnica, a Escola Normal Superior, o Conservatório de
Artes e Ofícios, ou o Museu de História Natural, permitiu que a atividade científica
pudesse se desenvolver por tempo integral e se convertesse em uma profissão, uma vez
que se implantavam normas impessoais de recrutamento através dos concursos. Foram
criados novas cátedras científicas e começaram a ser publicadas revistas especializadas
como os Anais de Química, os de Matemáticas ou os do Museu de História Natural.

301 CROSLAND, 1977; BEM DAVID (1971), Ed. 1974, págs. 113-126; LEON, 1977, cap. IV. Sobre as modalidades do desenvolvimento científico francês a partir de 1800, FOX, 1973.
A contrapartida de tudo isso foi a excessiva centralização da vida intelectual e
científica em Paris, o que se momentaneamente deu lugar a desenvolvimentos rápidos e
espetaculares, a longo prazo provocou a rigidez do sistema e o empobrecimento das
iniciativas provinciais. A universidade imperial criada por Napoleão reunia todos os
docentes superiores do Estado e teve sua sede em Paris como universidade central,
enquanto que nas províncias só foram criadas faculdades dependentes.
Neste desenvolvimento, a presença da geografia foi débil. Os levantamentos
cartográficos exigiam complexas operações astronômicas e geodésicas e haviam
passado a ser realizados por físicos ou matemáticos, que foram constituindo corporações
científicas diferenciadas. O fracasso da criação do Museu de Geografia de Paris,302
ainda que se tenha devido sobretudo a rivalidades entre as distintas armas, é também o
sintoma do fim de uma época na qual a cartografia se identificava com a geografia. Por
outro lado, nas Faculdades de Ciências, criadas em 1808, e nas instituições
especializadas adquiriam desenvolvimento as ciências da Terra, como a história natural,
que teria em Cuvier uma figura de destaque, e a geologia, cujo representante mais
destacado seria Léonce Élie de Beaumont (1798-1874). Na cátedra de geografia da
Universidade de Paris, ao contrário, a disciplina era de fato uma ciência auxiliar da
história, e os sucessivos catedráticos que a ocuparam (J. D. Barbié du Bocage entre
1809 e 1825; A. Barbié du Bocage, de 1825 a 1835; J. D. Guigniaut, de 1835 a 1862; e
A, Himly, de 1862 a 1899) eram, sobretudo, historiadores, e explicavam essencialmente
a geografia antiga para uso de historiadores. 303
Questões tão importantes como a disputa do evolucionismo entre realizava por
geólogos e biólogos, sem que seus ecos chegassem à geografia, e sem que os cientistas
considerassem esta ciência mais que uma "disciplina prática" que oferecia dados a
políticos, comerciantes ou o público em geral. Como ressaltou Numa Broc, nas
classificações da ciência realizadas no século XIX a geografia ou bem estava ausente,
ou bem se unia seja à geologia, seja à etnologia, ou bem se dividia entre geografia física
e política, mas "em nenhuma parte aparece a idéia que o objeto da geografia pudesse
ser justamente a colocação em paralelo de fatos físicos e fatos políticos".304
Se a tudo isso acrescentarmos que a Sociedade de Geografia de Paris, fundada em
1828, tinha, sobretudo, objetivos relacionados com a exploração e as viagens;305 que as
obras de Humboldt, ainda que em boa parte escritas em francês, tiveram um eco
imediato principalmente entre os físicos e naturalistas,306 e que a geografia física estava

302 BROC, 1974 (d).


303Outros testemunhos sobre a decadência da geografia na primeira metade do século XIX em CAPEL, 1977, n° 8, págs. 8-9.
304 BROC: Eugène Cortambert, 1976. Segundo este autor, o único que em meados do século XIX falou de ciências "físico-morais" foi precisamente Cortambert, em seu Place de la Géographie dans la classification des
connaissances humaines (1852).
305 Veja-se mais adiante, cap. VII.
306 O Cosmos foi traduzido para francês por "um dos astrônomos do Observatório de Paris", enquanto que Humboldt foi pouco ou nada citado pelos geógrafos, que tinham uma formação e uma preocupação histórica.
Como exemplo desta escassa utilização, pode-se citar a obra de M. L. LANTER, "Agregé de l'Université, Professeur d'Histoire et de Géographie au Licée Janson-de-Sailly et à l'École des Hautes études Commerciales", o
qual publicou uma obra sobre a América (L'Amérique. Choix de Lectures de Géographie, accompagnées de resumes, d'analyses, de notes explicatives et bibliographiques, Paris, Librairie Classique Eugène Belin, 5.ed.
Revue et corrigée, 1887, 656 págs.), na qual apesar do tema, não existe nenhuma leitura procedente de Humboldt sobre a América; Humboldt aparece citado no índice alfabético de nomes, mas isso se deve simplesmente a
sua citação por outros autores.

86
cada vez mais associada à geologia e enfrentava, além disso, a competição incipiente de
uma nova ciência, a fisiografia,307 podemos chegar à conclusão de que não existiam
razões científicas de peso para a institucionalização universitária e o desenvolvimento da
antiga geografia, afetada gravemente em seu conteúdo pelo crescimento da
especialização científica.
Mas enquanto isto ocorria, a geografia era uma matéria popular em outros níveis
elementares, e seguramente ganhava adeptos. Revistas como o "Journal de Voyages"
criada por Malte Brun em 1808, "La Tour du Monde" ou "Lectures Géographiques"
forneciam ao grande público letrado informação sobre países exóticos, e sobre os
progressos da colonização européia. Obras monumentais de geografia universal, como a
do dinamarquês radicado na França, Malte-Brun, Précis de Geographie Universelle
(1810-1929), ou a do italiano Adriano Balbi representavam importantes esforços de
sistematização dos conhecimentos geográficos dos países da Terra. Mas inclusive
nestes casos o domínio geográfico não era indiscutível, já que a incorporação de dados
numéricos sobre produção ou comércio aproximava o estudo dos países à ciência da
estatística, motivo pelo qual Balbi sente-se obrigado a dedicar grande atenção à
distinção entre as duas ciências, e a analisar a obra estatística do Barão von Zeidtlitz
(1829).
De início, deve-se reconhecer que esta geografia descritiva de países não se
caracterizava pelo rigor de seu método, e que podia dar oportunidade a burlas e
menosprezo por parte de outros cientistas. Tomemos como exemplo o Précis de la
Géographie Universelle de Malte-Brun, tantas vezes editado na França e outros países.
A obra começa por um quadro histórico dos progressos da geografia, no qual insiste,
sobretudo, nos avanços da exploração da Terra e discute em seguida a teoria geral,
dividindo a geografia em matemática, física e política. Por último, se chega à parte
essencial da obra, a descrição dos continentes e países, o que exige do autor "grandes
meditações antes de encontrar e determinar o método que oferece maior solidez e
parece mais agradável". O problema é este:
"Uma ordem puramente geográfica parece que chegaria a eliminar as relações
políticas e morais dos diversos quadros que temos que apresentar; uma ordem
puramente política dificultaria a descrição de montanhas, mares, rios e climas. Como
conciliar de algum modo estes métodos? É necessário tentar mais de um caminho, variar
os meios de acordo com os obstáculos que nos propomos a vencer". 308
Nesse sentido, nada de um só método científico único, mas diversidade deles,
segundo convenha. O mesmo problema se coloca ao tratar concretamente a descrição
de cada país, já que "o emprego muito rigoroso destes métodos abstratos [da geografia
especial ou regional] é o que dá aos livros de geografia tanta rispidez", e com "essa vã

307 Eugène Cortambert escreveu uma Physiographie, Description générale de la Nature pour servir d'introducion aux sciences géographiques (1836), que constitui um compêndio de ciências físicas e naturais para uso de
geógrafos, de formação quase que exclusivamente histórica; Numa Broc o qualificou como uma mescla de noções de "astronomia, geologia, geografia, botânica e meteorologia", uma espécie de "Cosmos do pobre", BROC,
1976 a e b; e o artigo do mesmo autor em FREEMAN e PINCHEMEL, 1978, vol. II. Sobre a fisiografia, veja-se infra, cap. IV, págs. 142-143.
308 MALTE-BRUN, Ed. De Victor A. MALTE-BRUN, s. f., vol. I, pág. 12.

87
aparência de ciência a geografia essa imagem viva do universo, parece apenas uma fria
e triste anatomia". Por isso a solução se impõe: "seguir os princípios gerais da arte de
escrever, e variando segundo a natureza dos objetos, não só o tom como também a
ordem da descrição", tenta-se criar "para a pintura de cada dia, um quadro particular que
convenha à magnitude relativa dos objetos".309 Logo se vê que se trata essencialmente
de problemas metodológicos relacionados com a apresentação ao grande público, e que
dificilmente esta discussão pode ser considerada científica no mesmo sentido que o era,
por exemplo, a astronomia de Laplace, ou a biologia de Cuvier.

A GEOGRAFIA NO ENSINO PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO

A geografia desfrutou naquele momento de um apoio importante: sua presença


tradicional no ensino básico. Como já foi dito, a França revolucionária valorizou
extraordinariamente o papel da educação e realizou, por isso, um esforço para difundir o
ensino elementar, que haveria de contribuir para criar o homem novo. Depois da
Restauração, a necessidade de atender as exigências da nova ordem industrial, assim
como de assegurar a ordem social estimulando nas classes populares um sentimento de
respeito, asseguraram também a sustentação da tendência à difusão do ensino,310 ao
mesmo tempo em que emergem os enfrentamentos entre leigos e religiosos por seu
controle. O ensino primário foi se implantando em todo o território. O número de
professores era, em 1837, de 60.000 (18 por 10.000 habitantes), e em 1863 havia
aumentado para 109.000 (29 por 10.000 habitantes), sendo a cifra mais elevada tanto
absoluta como relativa, da Europa de meados do século XIX.311 Situação semelhante
acontecia com a escolarização: o total aproximado de crianças que freqüentavam as
escolas elementares era de 2,9 milhões em 1840 e de 3,5 milhões em meados do século
XIX, números não alcançados por nenhum outro país europeu.312
Ao mesmo tempo o ensino secundário, que havia sido ministrado nas "escolas
centrais de ciências e letras" até 1802, foi organizado em seguida nos liceus e "colleges".
Junto a um ensino clássico baseado nas humanidades vão se instituindo também ciclos
com uma maior presença de disciplinas científicas, e desde 1865 incluíram-se cursos
especiais destinados a formação de "sub-oficiais da indústria".313 O número total de
alunos do ensino secundário era de 48.000 em 1850 e de 56.000 dez anos depois.314
Em todos estes níveis a geografia esteve sempre presente com maior ou menor
intensidade, ainda que ameaçada, algumas vezes, pela fisiografia. Autores como Eugène

309 MALTE-BRUN, idem, pág. 12. Convém advertir que nas diferentes edições que se realizaram existiram adaptações realizadas por seu filho Victor, e que podem modificar algumas das declarações teóricas. Veja, por
exemplo, MALTE-BRUN, Ed. esp., 1854 e 1875.
310 LEÓN (1969), Ed. 1977, cap. V; PROST, 1968; ANDERSON, 1975.
311 CIPOLLA (1969), Ed. 1970, pág. 27.
312 CIPOLLA (1969), Ed. 1970, pág. 111. Quadros comparativos em CAPEL, 1977, n° 8, pág. 16.
313 Cit. LÉON, 1977, cap. V.
314 MITCHELL, 1975, págs. 749-70. Quadros comparativos em CAPEL, 1977, n° 8, pág. 16.

88
Cortambert (1805-1881) elaboraram grande número de textos escolares.315 Em meados
do século XIX são tomadas medidas destinadas a unificar os programas e a geografia é
incorporada no ensino elementar superior, considerando-se seu valor para despertar na
criança o sentido da observação.316 Em 1857, as normas do ministério da Instrução
Pública estabelecem que o ensino elementar da geografia deve basear-se na
observação do meio conhecido da criança e preconizam o "método intuitivo" que parte do
particular para o geral, da aldeia à província e à França.317 Depois de 1861, a demanda
por professores faz com que a geografia seja ensinada também na Escola Normal
Superior. Quanto aos Liceus, o ensino da geografia foi introduzido por Duruy em 1865,
ainda que pareça não ter tido uma presença muito destacada.318
A derrota da França de 1870, frente aos alemães, provocou uma profunda crise no
país e despertou um movimento de regeneração e reforma no qual a transformação dos
sistemas de ensino passou a ser uma aspiração geral. Considerava-se que a
superioridade científica e técnica da Alemanha se fundamentava na superioridade de
suas instituições docentes. Daí provém a idéia, muitas vezes repetida, de que a guerra
havia sido ganha pelos professores da escola alemã.319 Entre as medidas adotadas,
destacam-se as que procuravam organizar um ensino primário gratuito, obrigatório e
laico, através de uma série de leis promulgadas nos anos 1880. Também aumentou o
número de crianças escolarizadas, que chegou a 5 milhões em 1880, que logo se
estabilizou pouco acima de 5,5 milhões entre 1890 e 1910. O de mestres, por sua vez,
era de 110.000 em 1872 e de 143.000 em 1890, números que continuavam sendo os
mais altos da Europa, tanto em termos absolutos quanto relativos.320
Reformulou-se também o ensino secundário, configurando-se o bacharelado
unificado, e foram criados centros de ensino técnico. Neste nível secundário, o esforço
foi particularmente importante, já que de 74.000 alunos que existiam em 1875 se passou
a 86.000 em 1880, a 90.800 em 1890, a 99.000 em princípios do século XX, e a 126.000
em 1910.321 Por último, foram organizadas também as faculdades e foi concedida
novamente a autonomia às universidades das províncias.
Os precários conhecimentos em geografia e línguas vivas foi sentido naquele
momento como uma carência particularmente grave, e contribuiu para que, nas reformas
docentes, posteriores a 1870, a geografia fosse claramente favorecida. Todos
compreenderam que "o progresso da geografia era um dos elementos de renovação",
como dizia uma publicação da Société de Géographie de Paris.322 Um historiador
convertido à história econômica e social, Émile Levasseur, e outro que havia chegado a

315 Veja art. de BROC sobre este autor em FREEMAN-PINCHEMEL, 1978, vol. II.
316 CLAVAL (1969), Ed. 1974, pág. 38.
317 BROC, 1974 (c), págs. 546-547.
318 BROC, 1977, pág. 77.
319 MEYNIER, 1969, pág. 8.
320 LÉON, 1967, cap. VI; PROST, 1968; as cifras procedem de MITCHELL, 1975, págs. 749-770, e CIPOLLA (1969), ed. 1970; um quadro comparativo em CAPEL, 1977, n° 8, págs. 16-17.
321 Fonte: as mesmas da nota anterior.
322 SOCIÉTÉ DE GÉOGRAPHIE, 1921, pág. 10.

89
ser catedrático de geografia da Sorbonne, Auguste Himly, foram os protagonistas da
reforma no que se refere à geografia.
A enquete realizada por Levasseur e Himly para conhecer a situação da geografia
na França, em 1872, mostrou que o regulamento de 1857 havia conseguido melhorar o
ensino da geografia na escola primária, e que o uso de mapas, do quadro negro e a
realização de observações, em substituição à simples lista decorativa começava a ser
amplamente difundida. Mesmo assim, era necessário continuar avançando rumo a um
ensino ativo, e a circular enviada em 1° de outubro de 1872 pelo Ministro da Instrução
Pública323 assinala a obrigatoriedade de realizar excursões geográficas (ou "passeios
topográficos"), estudando-se previamente os mapas, e fazendo croquis, estudos de
plantas e visitas históricas.
Em 1874, foram adotadas definitivamente, por iniciativa de Levasseur e Himly, os
novos programas de geografia no ensino secundário. Neles aparecia uma parte de
geografia física, "fundo essencial de todo estudo físico", de geografia política e de
geografia econômica.324 Do mesmo modo que Huxley fazia em Londres, tratava-se de
evidenciar "as relações dos fenômenos entre si e as relações de causa e efeito",
segundo escrevia Levasseur.325 Naquele momento, entre as autoridades acadêmicas, o
influente historiador Ernest Lavisse apoiou a geografia frente às reivindicações dos
historiadores.
A comissão nomeada pelo ministro da Instrução Pública Jules Simon redigiu um
programa de reforma do ensino secundário para nove cursos, o qual seria aplicado de
1872 a 1880. No que diz respeito à geografia, dever-se-ia ensinar: três cursos
elementares, com noções simples sobre a Terra, Europa e França; três cursos de
gramática (6°, 5° e 4°), com geografia física e política da Terra, Europa e França; e três
cursos de humanidades (3°, 2° e 1°) com geografia física, política, histórica e
econômica. Este último ensino estaria "dirigido a levar a atenção dos alunos novamente
à geografia física, base de todos os demais conhecimentos geográficos, a iniciá-los em
algumas das principais leis da física do globo, a ilustrar a geografia política com a história
e a completar o conhecimento das províncias com noções de geografia econômica
relativas à população, a agricultura, a indústria, as vias de comunicação e o
comércio".326 A "geografia econômica" passou a fazer parte então do programa oficial.
O programa de 1872 foi modificado em 1880, em 1885 e em 1890, no sentido de
dar maior importância ao estudo da Terra e reduzindo o da França, diminuindo ao
mesmo tempo a extensão da geografia econômica, com a oposição de Levasseur. À
geografia se dedicava uma hora e meia semanais nos três primeiros cursos, e uma hora
semanal nos três últimos.

323 Cit. por MEYNIER, 1969, pág. 9.


324 BROC, 1974 (c), pág. 548.
325 Cit. por BROC, 1974 (c), pág. 548.
326 TORRES CAMPOS, 1896, pág. 225.

90
Em 1887, aprovou-se um novo plano de estudos para as escolas primárias,
dividindo o ensino em uma seção infantil, (5 a 7 anos), e em três cursos: elementar, (de 7
a 9 anos); médio (de 9 a 11 anos) e superior (de 11 a 13). A geografia era ensinada nos
três cursos de acordo com um programa derivado diretamente das idéias que Lavasseur
vinha mantendo desde a década anterior. A comunicação apresentada por esse autor, no
Congresso Geográfico de Londres de 1895, permite perceber seu pensamento a
respeito.327
Para Lavasseur, incentivador da reforma, a geografia que deveria ser ensinada era
ao mesmo tempo física e humana. Em seu informe à Academia de Ciências,
apresentando os novos programas Lavasseur afirmava que:
"a obra da natureza é uma das fases da geografia; a outra fase pertence ao homem.
O homem constrói moradias, traça caminhos, cultiva os campos, explora as minas, cria
suas fábricas, exerce o comércio e produz a riqueza. Esta riqueza está ligada por íntimas
relações com a natureza do solo e do clima [...]. O importante é fazer compreender estas
relações [...] e abrir assim o espírito dos jovens para o sentimento das leis naturais da
economia política".328
Os programas de geografia propostos para o ensino secundário levavam em
consideração as idéias de Lavasseur, no sentido de distinguir: 1) uma parte física (relevo,
regime das águas, o mar, costas, e clima); 2) uma geografia política "que se apóia na
história e estuda o homem no seu passado e em seu presente" e que compreendia a
geografia histórica e a geografia administrativa; e 3) uma geografia econômica, na qual
deveriam ser incluídos os estudos da população, da agricultura, da produção mineral, da
indústria e das vias de comunicação. A estas três partes da geografia poder-se-ia
acrescentar a geografia matemática, mas esta, segundo Levasseur, "forma uma ciência
particular constituída com independência".329
As reformas aplicadas nos anos posteriores à derrota de 1870, e também aos
sucessos revolucionários da comuna foram fortemente marcadas pela idéia da reforma
da sociedade, com o objetivo de afastar os perigos revolucionários. Nesta ação de
fortalecimento do controle social, a educação deveria desempenhar um papel essencial.
É o que expressava em 1887 uma pessoa tão influente como o filósofo E. Ravaisson, o
sucessor de Victor Cousin e presidente do Conselho da Associação de Filosofia: "o mal
que sofremos afirmava em 1887 não está tanto na desigualdade das condições, ainda
que algumas vezes seja excessiva, como nos sentimentos de ódio que se lhe
acrescentam"; e diagnosticava: "o remédio para este mal deve ser procurado
fundamentalmente numa reforma moral, que estabeleça a harmonia e a simpatia
recíproca entre as classes, reforma que é sobretudo objeto da educação".330 Este

327 Seguimos o resumo de sua comunicação efetuado por TORRES CAMPOS, 1896, págs. 214 e seguintes.
328 Cit. por TORRES CAMPOS, 1896, pág. 229.
329 Cit. por TORRES CAMPOS, 1896, pág. 231.
330 Cit. por BERGSON (1904), Ed. 1976, págs. 203-232. Em seguida acrescentava que "a sociedade deve repousar sobre a generosidade, ou seja, sobre a disposição para se considerar como uma grande raça, uma raça
heróica e até divina".

91
esforço educativo deveria atingir as classes trabalhadoras, organizando ensino prático e
cursos técnicos.
Em 1863, haviam sido criados por Victor Duruy os cursos de ensino secundário
especial com uma finalidade mais prática que a clássica (preparatório para os negócios,
agricultura e comércio). Neles também se levou em conta a geografia, já que dos quatro
anos que o constituía, a presença desta matéria era importante nos dois últimos. A partir
de 1866, nos programas de ensino secundário especial, estudava-se geografia agrícola,
industrial, comercial e administrativa; geografia da França e estudo de outros países de
forma sumária. Uma reforma deste ensino em 1891, realizada por Léon Bourgeois,
ampliou os estudos e os tornou mais semelhantes ao bacharelado clássico, diminuindo
também a importância da geografia econômica.
Também se ensinava geografia nas escolas primárias superiores, continuação do
ensino primário "aberto às crianças das classes trabalhadoras que terão necessidade de
dedicar-se, na maior parte dos casos, ao trabalho manual", como se afirmava na
introdução aos programas de 1893. De acordo com estes objetivos, considerava-se que
esta escola primária superior "deveria orientar seus alunos desde o primeiro até o último
dia para as necessidades da vida prática que os esperava", e isto explica que para a
realização dos programas se elegesse "na história, o que pode formar o espírito cívico;
na geografia, o que deve interessar ao futuro comerciante".331
Por último, ensinava-se também geografia comercial em muitas escolas técnicas
subordinadas ao Ministério do Comércio e Indústria. Nas escolas da Indústria, a
geografia ocupava uma hora e meia no 1° e 2° ano; e na escola do Comércio, uma hora
e meia no 1° ano e três horas nos 2° e 3° anos. A geografia também tinha grande
importância nas escolas superiores de Comércio, particularmente a geografia comercial.
Todas estas reformas de educação básica e secundária provocaram uma demanda
de professores de geografia (ou de geografia e história), estimulando, por sua vez, a
institucionalização e a expansão da geografia na universidade.

GEÓGRAFOS UNIVERSITÁRIOS FRENTE A GEÓLOGOS E HISTORIADORES

No ensino superior francês, o período posterior a 1830 conheceu um estancamento


científico, depois de algumas decádas nas quais as reformas da época revolucionária e
napoleônica haviam dado à ciência deste país a primazia indiscutível na Europa. A
ciência perdeu atrativos ante a existência de outras oportunidades na política, na
indústria, nos negócios, na filosofia social ou na literatura. A burocratização e
centralização da docência e das instituições científicas e, como conseqüência disso, a

331 Cit. por TORRES CAMPOS, 1896, pág. 226.

92
inflexibilidade, frearam as possibilidades de adaptação às novas necessidades da
tecnologia naqueles anos.332
Depois do impacto da derrota que acabou com o Segundo Império, as reformas
empreendidas tenderam a imitar o modelo alemão de ensino superior. Por iniciativa do
diretor da Educação Superior, Alfred Dumont (de 1879 a 1884), uma comissão presidida
pelo historiador Ernest Lavisse e pelo químico Berthelot, iniciaram um conjunto de
reformas da universidade francesa, as quais em seguida seriam continuadas pelo
sucessor de Dumont, Louis Liard, entre 1884 e 1902. As universidades recuperaram sua
autonomia, foram criados novos cursos e ampliado o número de cargos para professores
universitários, que passaram de 503 em 1884 a 1.048 em 1902, ao mesmo tempo em
que suas funções de docência completavam-se com as de pesquisa. O número de
estudantes universitários chegou a 30.000 no princípio do século XX.333
A criação de novas cátedras teve notável influência no desenvolvimento das
disciplinas científicas afetadas. Este é um fato que se repete no século XIX, já que a
especialização repercute no crescimento da ciência.334 Entre as cátedras que então
foram criadas encontra-se a geografia, que naquele momento conheceu uma fase de
desenvolvimento espetacular.
É nesse momento que se produzem as "conversões" e a chegada de universitários
procedentes de outras disciplinas à geografia. Paul Claval escreveu que até a década de
1870 "os geógrafos estiveram quase sempre isolados: a geração que tomou posse das
cátedras recentemente criadas na Alemanha e na França não recebeu necessariamente
uma formação geográfica. Compreende um grande número de indivíduos que chegaram
por acaso à geografia".335
Ainda que não esteja de acordo com a expressão "por acaso", já que dificilmente se
pode aceitá-la na base de um movimento social como é o caso do aparecimento de uma
comunidade científica, é evidente que estas palavras dão conta do tardio e
surpreendente desenvolvimento da comunidade científica dos geógrafos e suscitam a
necessidade de se discutir os fatores que influem em sua constituição.
De uma maneira geral, pode-se dizer que na França a geografia se desenvolveu
primeiramente através de historiadores e a partir da História, consolidando-se de forma
crescente seu caráter "científico" ou "moderno" com o desenvolvimento da geografia
física. Historiadores de profissão, e a maior parte com teses sobre história antiga, foram
os homens que iniciaram ou arcaram com a reforma posterior a 1870: Auguste Himly
(1823-1906), catedrático de Geografia da Sorbonne desde 1862; Émile Levasseur (1828-
1911), o responsável por levar adiante as reformas;336 L. Drapeyron (1839-1901).
Historiadores foram também muitos dos primeiros professores que ascenderam ao
332 BEN DAVID (1971), ed. 1974, págs. 127-129. Veja-se também uma análise do sistema de patronato francês e dos efeitos negativos do sistema de "fazer carreira" sobre a qualidade do trabalho científico em FRANKEL,
1978.
333 BEN DAVID (1971), ed. 1974, págs. 133-134 e GERBORD, 1965.
334 CROSLAND, 1977, PÁG. 104.
335 CLAVAL, 1974, pág. 35, cursivas acrescentadas.
336 Veja-se sobre ele, CLAVAL-NARDY, 1968; CLAVAL, 1974; e o art. de Jean Pierre NARDY, em FREEMAN-PINCHEMEL, 1978, vol. II.

93
ensino superior: Paul Vidal de La Blache (1845-1918); Bertrand Auerbach (1856-1942),
catedrático de geografia da Universidade de Nancy desde 1892;337 Étienne Émile
Berlioux (1828-1910), professor de Lyon desde 1874.338
Todos estes historiadores chegaram à geografia através da oportunidade
profissional que se lhes ofertava, e do ponto de vista intelectual, atraídos pela idéia da
relação dos fatos históricos com o contexto geográfico no qual se desenvolviam. Mas
todos eles tentaram promover uma ciência moderna, aprofundando primeiro na
topografia e no estudo dos mapas, e em seguida, cada vez mais, em uma geografia
física que era considerada "o ramo essencial" da disciplina.
Isto supunha uma mudança importante em relação ao passado imediato. Até as
reformas dos anos 1870, os professores universitários de geografia – em particular os
da Sorbonne – possuíam, sobretudo, uma formação e uma preocupação histórica. Eram
cursos de geografia histórica o que ministravam, e isso os obrigava a olhar o passado
para reconstruí-lo e explicar a história antiga, ou para realizar estudos sobre a história
dos descobrimentos geográficos.
Provavelmente, este interesse pela história facilitou a recepção das idéias de Ritter.
Sua geografia geral comparada havia sido traduzida parcialmente para o francês em
1836, e conhecida também, sem dúvida, em sua versão alemã.339 Em todo o caso, foi
nas idéias de Ritter que Himly se apoiou depois de sua conversão à geografia em
1858,340 o que certamente era facilitado por seu conhecimento do alemão pois era de
Strassbourg e por seus estudos em Berlim. Tal como foi demonstrado por Vincent
Berdoulay, são sobretudo as idéias do geógrafo alemão que se refletem em seus cursos
da Sorbonne.341
Himly adotou de Ritter, sobretudo, o método comparativo. Também procede dele
sua idéia de que a geografia era uma ciência que "deveria estudar cientificamente as
relações entre a Terra e o homem". Apesar de aceitar que o estudo geográfico deveria
começar com a Terra em si mesma, Himly não realizou estudos de geografia física,
interessando-se somente pelos aspectos históricos da geografia.
No entanto, nos anos de 1870-1880, a geografia física adquire uma importância
crescente. Certamente pela associação que vinha-se consolidando ao longo do século
XIX entre a geografia física e as ciências da natureza, esse ramo passou a ser
considerado por muitos como "a verdadeira geografia".342 Particularmente entre 1880 e
1890 a geografia física era a essência da geografia. Isto sem dúvida, facilitou a
incorporação dos naturalistas e geólogos atraídos à docência da geografia pelas

337 Veja-se sobre ele BROC, 1974.


338 BROC, 1975.
339 É necessário não esquecer que um geógrafo como Reclus houvesse assistido pessoalmente os cursos de Ritter em Berlim.
340 Foi por razões de oportunidade profissional que Auguste Himly chegou à geografia. Após uma formação em história medieval, influenciado por Ranke, e depois de trabalhar como paleógrafo na Escola de Chartes, foi
nomeado responsável pelo curso de história na Sorbonne, em 1858. Sua dedicação à geografia se ocorreu, segundo V. Berdoulay, "somente devido a uma contingência de sua carreira, quando substituiu Guigniant na
Sorbonne, em 1858", com a idade de 35 anos. Foi somente então que ingressou na Sociedade de Geografia de Paris, ainda que nunca tenha ocultado que preferia a história à geografia, sendo, ao que parece, praticamente
inexistentes suas relações de amizade com os geógrafos. (Veja-se sobre isto BERDOULAY, em FREEMAN, OUGHTON e PINCHEMEL, 1977, vol. i, pág. 43.)
341 BERDOULAY, em sua tese de doutorado, e em sua biografia de Himly, cit. na nota anterior. Veja-se também o discurso de VIDAL DE LA BLACHE, 1899.
342 Por exemplo, DRAPEYRON em 1881, cit. por BROC, 1974 (c), pág. 557.

94
oportunidades que se lhes ofereciam, assim como a relação com os geólogos que
ministravam a disciplina de "geografia física" nas faculdades de ciências. Geólogos como
Albert Lapparent (1839-1908), Emmanuel de Margerie (1862-1953) ou Charles Velain
realizaram naqueles anos contribuições importantes neste ramo da disciplina.
A institucionalização e o desenvolvimento da geografia teve um de seus primeiros
apoios na difusão do ensino de Topografia. Dele se afirmava no Congresso de Geografia
de Paris de 1875 que era "a alma da Geografia", e como escrevia F. Hennequin, "o
prefácio da Geografia".
Desde inícios dos anos 1870 existia já ensino de topografia em várias cidades.
Assim Frédéric Hennequin era professor de topografia na cidade de Paris, e no
congresso de Paris de 1875, adotou como a primeira de suas conclusões que "o estudo
da geografia em todos os níveis deve começar pela topografia, e não pela cosmografia",
acrescentando de forma categórica: "o professor utilizará o mapa do Estado Maior e o
estudo do terreno".343
Propagador desta linha pedagógica foi também, (além do citado Hennequin),
Ludovic Drapeyron, que depois do congresso de Paris se converteu em incansável
propagandista do método topográfico e da criação de museus geográficos. Nessa linha,
em 1876 foi criada a "Sociedade de Topografia de Paris", da qual Drapeyron será seu
secretário geral até sua morte em 1901, e cujo objetivo declarado era "a reconstituição
progressiva da geografia por meio da topografia".
A Sociedade organizou-se em seis seções que se referiam tanto às ciências
naturais como às humanas: 1) Topografia propriamente dita; 2) Geografia; 3) Geografia
aplicada ao estudo da história; 4) Geografia industrial e comercial; 5) Estatística; e 6)
Geologia botânica e zoologia. Chegou a ter 900 membros em 1881, certamente atraídos
tanto pela geografia quanto pelos enfoques positivistas que propunham.
Estudando esta iniciativa, Numa Broc assinalou que "como obra de patriotismo
prático a Sociedade de Topografia é inseparável do clima revanchista dos anos de 1880,
e perderá sua razão de ser depois de 1900, quando o ensino da geografia havia
adquirido certa consistência".344
Desde o final da década de 70, a pressão para a institucionalização da geografia
nos centros de ensino superior era muito forte. A necessidade de formar os professores
que as reformas pedagógicas dos níveis primários e secundários exigiam era, sem
dúvida, o fator decisivo para a gênese e a consolidação deste processo.
A criação das cátedras de geografia foi sentida como uma ameaça por outros
cientistas universitários em particular historiadores e geólogos. Por isso o
desenvolvimento do processo institucionalizado teve de se realizar com a oposição, mais
ou menos aberta, destes grupos acadêmicos.

343 Cit. por BROC, 1974 (c), pág. 554.


344 BROC, 1974 (c), pág. 556.

95
Dentro desta luta de interesses profissionais, uma batalha importante foi a que tinha
como objetivo conseguir que se desse maior atenção à dos conteúdos de geografia nos
concursos em "História e Geografia". A estratégia dos geógrafos consistiu em destacar a
necessidade de possuir uma formação ampla de caráter "científico" e em particular de
topografia, cartografia, leitura de mapas e geografia física e ciências naturais. Nesta linha
também, em 1885, Vidal de La Blache conseguiu a introdução de teses de geografia no
concurso e em 1886, com a iniciativa de Drapeyron, o Congresso Nacional de Sociétés
Savantes concorda em apoiar o projeto. Mas este, inesperadamente, encontrou a
oposição de Himly, que apoiou os historiadores, considerando desnecessária a criação
de um curso de geografia, porque segundo dizia, "o homem é mais interessante que os
pedregulhos".345 Himly declarou também explicitamente que "se exagera a importância
[da geografia] ao se englobar nela todo tipo de ciências físicas e naturais" e considerava
que o ensino da história era "muito mais importante na educação".346 Por estas razões
apoiou, em troca, a criação de cátedras de geografia física nas universidades.347
Desde 1886, a atividade de Himly e de grande número de historiadores, entre os
quais Lavisse, parece dirigir o ministério à criação de cátedras de geografia física,
dividindo a geografia em um ramo humano e outro natural. Insiste-se que a geografia
física das faculdades de Letras é uma espécie de introdução à geografia histórica e
política, e que, realmente, a verdadeira geografia física deveria ser estudada nas
faculdades de Ciências. Em 1886-87 iniciam-se por esta razão, cursos de geografia física
em Paris, Nancy e Lille.348 O perigo de uma ruptura e ainda do desaparecimento da
geografia era evidente, tanto mais porque nas faculdades de Letras a geografia era
ministrada geralmente por professores com formação em História, e como contexto para
explicar a evolução dos fatos históricos (geografia da Grécia antiga, do Império romano e
do Oriente Próximo). Corria, assim, o perigo de consolidar-se como uma disciplina
puramente auxiliar da história.
Ante a ofensiva dos historiadores, os geógrafos negaram-se a aceitar a divisão da
geografia e trataram de manter o controle de seu desenvolvimento, obstaculizando as
tentativas de criação de ensinos independentes nas Faculdades de Ciências. Sua
estratégia dirigia-se à conversão das disciplinas científicas em ciências "auxiliares", de
forma que a síntese sempre fosse realizada pela corporação dos geógrafos. As palavras
de um observador estrangeiro participante do Congresso de Geografia de Paris de 1889
(o espanhol Torres Campos), são um bom testemunho das estratégias de uns e outros.
Frente à proposta de alguns participantes, (especificamente o alemão Laubert, a
quem se uniu Torres Campos), que dizia: "para que a geografia seja devidamente
cultivada sob seu duplo aspecto natural e humano não são suficientes as cátedras da

345 BROC, 1974 (c), pág. 562.


346 Cit. por BROC, 1975 (c), pág. 57.
347 Sobre esta questão veja-se BROC, A. G., 1974 (c). A reforma do Bacharelado de 1895 dividiu o concurso em duas séries de provas, a primeira das quais, consistindo em defender uma tese, explicar um texto e ministrar
uma aula, ocorria ante os professores da universidade em que houvesse estudado.
348 BROC, 1974 (c), págs. 562-563.

96
Faculdade de Letras, é indispensável que esta seja ministrada nas de Ciências", a
reação foi que:
"por razões circunstanciais, a maioria francesa, crendo ver ameaçada a Geografia
humana ou histórica [...] se negou a admitir uma conclusão radical neste ponto; porém
reconhecida a exatidão do princípio, ficou acertado um padrão ao declarar que se devem
fazer todos os esforços possíveis para facilitar, nas Faculdades, as relações orgânicas
entre o ensino de Geografia e o das Ciências que podem servir-lhe de auxiliares".349

UMA DISCIPLINA AINDA MAL DEFINIDA NO FINAL DO SÉCULO XIX

No final do século XIX, a batalha não estava ainda decidida, e a ofensiva dos
historiadores contra a geografia continuava. A geografia era uma ciência aceita com
reticências por naturalistas e cientistas sociais, uma disciplina que tinha essencialmente
o caráter de matéria auxiliar para a história, e que pelo lado das ciências humanas não ia
demorar em receber também o ataque dos sociólogos. Se, apesar de tudo, a geografia
resistiu, foi mais por razões pedagógicas e ideológicas que por razões estritamente
científicas. A demonstração disto se encontra facilmente nos textos dos geógrafos da
época, se estes são lidos de modo imparcial e no seu contexto. Vejamos, como exemplo
o discurso pronunciado por Marcel Dubois na aula de abertura do curso de Geografia
Colonial na Universidade de Paris, em dezembro de 1893.
Dubois, que se dirige a um público da faculdade de Letras na qual dominam os
historiadores, afirma, de início o caráter de encruzilhada da geografia, e também a
utilidade de sua relação com a história.
Ele considerava que "não é necessário ser um grande filósofo para compreender
até que ponto a disciplina dos estudos históricos se aplica à geografia, feita de ciências
físicas e naturais, mas também de ciências morais e políticas". Advertia também aos
presentes sobre o fato de que a geografia era um conhecimento científico, e não uma
simples descrição: "tem sua filosofia, e melhor dito, é uma filosofia". As ambições eram
grandes porque, afirmava Dubois, somente quando a geografia se elevar "ao papel de
filosofia das ciências" poderá "contribuir para os benefícios que a sociedade espera
dela".350
Através das palavras de Dubois se comprova que a cátedra de geografia colonial,
cujas aulas se inauguravam, não havia sido bem recebida. Porém, as reticências vinham
de uma direção inesperada. Na realidade, de fato criticava-se “uma malvada tendência à
abstração, um viés filosófico que, segundo parece, não seria adequado no domínio da
geografia". Muitos teriam preferido, em seu lugar, uma "Geografia das colônias
francesas", pois essa denominação implicaria numa limitação mais rígida e na obrigação

349 TORRES CAMPOS, 1890, Pág. 40.


350 DUBOIS, 1894, págs. 123 e 124.

97
constante de localizar e descrever. Dubois mostra que nisto havia mais que uma mera
questão de palavras, era "o próprio método das ciências geográficas o que estava em
jogo", e para além disto:
"Nesta oportunidade trata-se, uma vez mais, de saber se a geografia estará
condenada a não ser nada mais que uma arte de descrever superfícies mais ou menos
extensas, se continuará sendo a humilde auxiliar encarregada de preparar para a história
o quadro e a localização exata de seus relatos, ou se lhe será permitido elevar-se até o
estudo sistemático e coerente das relações da Terra com o homem, (como desejou Karl
Ritter), e até conclusões gerais capazes de guiar a atividade das sociedades
humanas".351
Depois de afirmar que "descrever por descrever não é uma tarefa digna de ocupar
toda a atividade de um professor", refere-se ao de prestígio que a geografia desfruta
desde os anos de 1870 na opinião pública, e ao fato de que o desenvolvimento desta
ciência a estava conduzindo gradualmente "à altura dos ensinamentos dos quais ontem
era uma humilde auxiliar". Para destacar a utilidade da geografia, pergunta-se
retoricamente que razão, se não a consciência dessa utilidade, teria levado os
estadistas, que têm o encargo da organização das colônias, a considerar a geografia
uma ciência capaz de colaborar em uma tarefa tão importante, criando a cátedra de
geografia colonial.
Porém, as palavras que seguem mostram que nem todos viam da mesma maneira
esta utilidade da geografia. Dubois fala em seguida "dos espíritos mesquinhos" que
parecem ver no crescimento rápido das pesquisas até pouco tempo descuidadas “um
perigo para os estudos dos que estão encarregados”. Sem dúvida está se referindo,
sobretudo, aos historiadores, com os quais os geógrafos tinham que estar
necessariamente associados já que a ciência geográfica era "uma emula de suas
superioras, a filosofia e a história, na obra da educação nacional" que se havia iniciado
depois da derrota de 1870. Mas sua colaboração nesta tarefa podia ser conseguida "com
a ajuda dos progressos das ciências físicas e naturais".
De fato, a geografia tinha que conseguir ainda em 1894 o respeito de outros
cientistas, e isso no pensamento dos geógrafos só poderia ser obtido fortalecendo-se
unidade da disciplina frente aos inimigos exteriores. Nesse sentido afirma Dubois: "é do
progresso natural e normal da coesão dos estudos geográficos, é da afirmação gradual
da sua disciplina que devemos esperar para ela o respeito e a consideração que ainda
se mede às vezes com uma prudência próxima da parcimônia".352
E, em seguida palavras muito significativas mostram que no desenvolvimento da
geografia francesa primeiro ocorreu a institucionalização e a propaganda da nova
ciência, e somente mais tarde a reflexão sobre os métodos e a teoria; se, muitos
geógrafos parecem estar satisfeitos "pela popularidade que adquiriram através de uma

351 DUBOIS, 1894, pág. 124.


352 DUBOIS, 1894, pág. 126.

98
propaganda que tornou fácil e frutífera a lembrança das desgraças da França e a
evocação de um novo futuro de glória e de riqueza", a tarefa que agora, em 1894, se
impõe é outra:
"Depois de haver louvado a magnitude dos benefícios que podem ser esperados de
um bom conhecimento da geografia, temos o dever de mostrar claramente com que
método se adquire melhor este conhecimento e que procedimentos de educação
asseguram melhor tais benefícios. Não há aplicação útil dos estudos ao interesse social
sem a respeito de uma rigorosa disciplina; a preocupação perpétua com o interesse é o
que justamente conduz os sábios inquietos a não prestar nenhum serviço; e a verdade
que se encontra não é benéfica mais que aos espíritos que a buscaram por si
mesma".353
Esta declaração sobre o valor da ciência pura não supõe negar que a geografia
havia de ter também uma vertente aplicada. Mas esta é essencialmente pedagógica e
ideológica e consiste em que a:
"França saberá dar aos povos jovens, cuja educação lhe está encomendada, mais
que uma técnica de felicidade material e um guia de bem-estar; em minha alma e
consciência eu creio que está obrigada a projetar, a dar plenamente aos filhos das novas
Franças o patrimônio de nossa educação, de nossos sentimentos, de nossos desfrutes
intelectuais, em resumo, de nossa vida nacional sem reserva e em toda sua
grandeza".354
A geografia não poderia chegar a esta tarefa somente com descrições, mas teria
que realizar "um esforço de comparação, de generalização, que permita concluir"; e,
(conclui Dubois), já que os políticos e os professores haviam estimado "que a ciência
geográfica podia guiar a atividade colonial de nosso país, iluminar seus pioneiros,
dominar e inspirar a organização de nosso domínio de ultramar, temos que procurar
provas, e chegar a conclusões de alcance filosófico e prático".
Mas nesta apaixonada declaração de objetivos, há um perigo claro: a competição
dos historiadores. Por isso era necessário declarar que "a geografia colonial não se
confunde com a história da colonização francesa". Muitos elementos as distinguiam e,
sobretudo, "um contraste de métodos as separa". Os historiadores haviam conseguido
"incluir nos programas de história contemporânea o exame das questões econômicas e
sociais". A estratégia dos geógrafos consiste em afirmar a necessidade de sua presença
nestes conteúdos: "o historiador não pode se tornar dono do complexo conhecimento do
estado material das regiões e dos povos, que são o patrimônio próprio do geógrafo, da
mesma forma que o geógrafo não pode conhecer na mesma profundidade que o
historiador os testemunhos e documentos escritos de todo tipo, discuti-los e analisá-los".
Disto resultava "uma divisão do trabalho", na qual uns, "se situavam mais próximos da
natureza, e outros mais próximos do homem". E daí também "uma diferença de direção

353 DUBOIS, 1894, pág. 126.


354 DUBOIS, 1894, pág. 126.

99
nas investigações", uma "diferença de inspiração". Facilmente se vê que esta discussão
sobre a divisão intelectual do trabalho é realizada unicamente por motivos corporativos,
para mostrar que "nenhuma das duas ciências é inferior à outra", porque de outro modo
dificilmente se compreenderia que não se refira em nenhum momento a economistas e
sociólogos, que poderiam também aspirar a colaborar nos conteúdos das questões
econômicas e sociais de que se estava falando.
A tarefa que um professor universitário como Dubois atribui à geografia é
essencialmente a de mostrar toda a ordem de diferenças que separam os países
europeus entre si e estes dos territórios coloniais. Mas "para conhecer estas distinções é
necessário ter estudado em detalhe a geografia física de cada país, haver apreendido as
harmonias que unem os fenômenos de geologia, relevo, clima, vegetação, com fatos de
civilização material, a agricultura, o comércio, as rotas". É nisso precisamente, conclui
Dubois, "que consiste o ofício de geógrafo, ofício delicado e difícil, porque sua disciplina
ainda está mal definida".355

AS CÁTEDRAS UNIVERSITÁRIAS E A FORMAÇÃO DE DOCENTES DE GEOGRAFIA

Apesar da oposição de outros cientistas, as cátedras se mantiveram, e o


crescimento do número de geógrafos de Letras, e a chegada a cargos docentes de
pessoas ligadas a Vidal de La Blache (como Auerbach, Gallois e Camena d'Almeida)
consolida esta comunidade científica e a identifica cada vez mais com a faculdade de
Letras.356
Em 1895 se podia afirmar que "a geografia se professa nas faculdades de
Letras".357 Existiam classes desta disciplina nas faculdades de letras das universidades
de Bourdaux, Lille, Lyon e Nancy; um curso em Caen; um curso complementar em Aix-
en-Provence e Grenoble; um mestre de conferências em Montpellier e Toulouse;uma
cátedra de história e de geografia dos tempos modernos em Besançon, e uma de história
e geografia da antiguidade e da Idade Média em Clermont Ferrand; um curso de
geografia da África em Argel e cursos nas escolas preparatórias de Nantes e de Rouen.
Quanto à Universidade de Paris, possuía uma cátedra de geografia, fundada em 1809, e
uma cátedra de geografia comercial, fundada em 1892. Dela dependia um seminário ou
laboratório fundado em 1890 e reservado aos estudantes da faculdade que iriam se
dedicar à geografia, e um centro de estudos coloniais dependentes da cátedra
correspondente e criado em 1895.

355 DUBOIS, 1894, pág. 129.


356 Mais adiante os geógrafos chocariam com a escola de sociologia de Durkheim, não só por razões científicas como também profissionais: como assinalou CLARK (1973), Durkheim procurava situar a sociologia como
elemento central na formação de professores do ensino secundário, apresentando-a como um método aplicável a um grande número de disciplinas, o que daria a seus discípulos a possibilidade de obter cátedras não
sociológicas (WEISZ, 1977, pág. 155). Naturalmente a geografia humana era das mais afetadas, o que explica a violência da polêmica entre lablachianos e durkheimianos. Sobre desta polêmica pode-se ver BERDOULAY,
1978.
357 TORRES CAMPOS, 1896, pág. 240. Desta fonte – que por sua vez acompanha uma comunicação de Levasseur – procede a informação que se dá em seguida sobre as cátedras existentes na tal data. Sobre 1890 veja-
se BROC, 1974 (c), pág. 568.

100
Por seu lado, nas faculdades de ciências existiam cursos de geografia física nas
universidades de Paris, Lyon e Nancy, ministrados pelo professor de geologia da
faculdade. Na faculdade livre de Paris o geólogo A. Lapparent ministrava também um
curso de geografia física.
Também existia ensino da geografia no Colégio da França, onde se contavam
desde 1865 duas cátedras dedicadas parcialmente a esta ciência: a de geografia, história
e estatística econômica, ocupada por Levasseur, e que se ocupou em 1894-95 com
desenvolvimento econômico dos Estados Unidos, e a de geografia histórica da França,
ocupada por Longon, o qual havia ministrado no mesmo ano um curso sobre a descrição
das duas Aquitânias e da Novempopulania na decadência do Império romano; os alunos
eram ouvintes que participavam livremente e não deviam prestar nenhum exame. Na
Escola Prática de Altos Estudos, o próprio Longon ensinava também geografia histórica
da França, e no Museu de geologia, muitos cursos, "sem estar dedicados à geografia,
tratam de matérias que são conexas com esta ciência, e as aulas entram algumas vezes
com grande proveito no terreno da geografia".358 Por último, ensinava-se geografia
também na Escola Normal Superior.
Nos últimos anos do século XIX, e em particular depois da transferência de Vidal de
La Blache para Paris, configura-se o principal grupo intelectual da geografia francesa em
torno da figura deste geógrafo. Vidal conseguiu organizar uma ampla rede de patronato e
influência através de seu poder sobre as carreiras profissionais de seus discípulos.
Depois do grupo estruturado em meados do século XX ao redor de Victor Cousin, e ao
lado dos que se constituíram no século XX em torno de Durkheim ou de Henri Berr, o de
Vidal foi certamente um dos grupos ("clusters") mais representativos da ciência social
universitária francesa.359
A preparação do bacharelado era a tarefa mais importante dos geógrafos das
faculdades de letras, dada a saída praticamente exclusiva que o ensino representava
para os discípulos. Para isso foram criados cursos especiais, destinados àqueles alunos
que mostravam sua vocação geográfica. Assim, por exemplo, na Universidade de Paris,
os estudantes que se preparavam para o bacharelado de geografia deviam, "se não
pelos regulamentos, pela tradição que os mestres estabeleceram, quatro anos pelo
menos de cursos e de conferências a seguir: dois para a licenciatura histórico-geográfica
e dois para a agregação".360 Por sua vez, em Nancy, Auerbach havia estabelecido a
norma de que os que se preparavam para a agregação frequentava, além das aulas
especiais que ele ministrava, quatro cursos de geografia física na faculdade de
Ciências.361
Outros fatores que poderiam haver contribuído para à institucionalização da
geografia nos centros superiores, têm uma importância secundária frente à já citada

358 TORRES CAMPOS, 1896, pág. 241.


359 O conceito de "cluster" foi firmado por CLARK, 1973. Veja-se também WEISZ, 1976 e 1977.
360 TORRES CAMPOS, 1896, pág. 240.
361 TORRES CAMPOS, 1896, pág. 241.

101
necessidade de formar professores para o ensino primário e secundário. A prova disso é
o projeto de uma Escola Nacional de Geografia, proposto por Drapeyron em 1876 e
formulado mais amplamente por J. B. Paquier em 1884. Tal escola deveria conduzir à
criação de um certo número de cátedras e de um diploma especializado. As seções que
se previam eram: uma de ensino para formar professores de ensino secundário e
superior; outra de ciências políticas para o pessoal diplomático, cônsules e agentes
franceses no estrangeiro; uma terceira seção econômica e de colonização, para formar
exploradores, negociantes e funcionários coloniais; e uma última seção técnica e
científica para geodesistas, cartógrafos, topógrafos, gravadores, geólogos e
oceanógrafos.362 Tratava-se, como se vê, de se integrar em um só centro os ensinos
científicos, teóricos e práticos, que em épocas passadas haviam feito parte da ciência
geográfica, mas que desde o século XVIII foram se constituindo em corporações
científico-profissionais diferenciadas. Como era de se esperar, a oposição a este projeto
foi forte, e isso o tornou inviável, ainda que, talvez tenha contribuído para afirmar a
existência da disciplina, fortalecendo, como compensação a tendência à criação de
cátedras universitárias nas faculdades de Letras.

OS GEÓGRAFOS FRANCESES E O MODELO ALEMÃO

Como o estímulo para todo o processo de reforma do ensino superior havia sido o
abrupto descobrimento da potência da ciência alemã, é lógico que esse modelo,
essencialmente, fosse levado em conta para a organização da nova universidade
francesa.
Como não podia deixar de ocorrer, também em geografia a influência do modelo
alemão foi determinante. Numa Broc, que dedicou um interessante artigo ao tema,363
mostrou até que ponto o que ele denomina de "viagens de iniciação" às universidades
alemãs foram rigorosamente seguidas pelos professores com ambições intelectuais, e
até que ponto influenciaram na organização dos departamentos universitários franceses.
Quando os convertidos à geografia ocuparam os cargos de professor, foi essencialmente
em direção à geografia alemã que se dirigiram na procura dos critérios que lhes
permitiriam definir sua ciência e os métodos a seguir. Desta maneira Philippson, Supan,
Penck e Richthofen, em geografia física, e Ratzel em geografia humana, além da figura
já considerada clássica de Ritter, foram as fontes de onde vieram as primeiras idéias
sobre as quais havia de se edificar a geografia francesa.
Segundo Broc, os grandes intermediários entre a ciência alemã e a francesa, os
indivíduos através dos quais chegaram idéias novas à França, foram E. de Margerie,
desde 1885, difundindo sobretudo grande número de idéias provenientes da geografia

362 Cit. por BROC, 1974 (c), pág. 559.


363 BROC, 1977.

102
física alemã (as obras de Richthofen, de Penck e Supan, e a obra sobre a face da Terra
de Suess); e Bertrand Auerbach, em sua posição privilegiada na Universidade de Nancy,
difundindo os trabalhos alemães de hidrogeografia e geografia da população, mais os
trabalhos de Hettner. A eles é necessário adicionar L. Raveneau, que foi, talvez, o
primeiro que conheceu e difundiu a obra de Ratzel, assim como Vidal de La Blache e
Jean Brunhes, leitores atentos da geografia humana do geógrafo alemão.
A geografia francesa foi consolidando sua própria personalidade na última década
do século XIX e primeiras do seguinte. Frente a geólogos e historiadores afirmou-se ao
mesmo tempo a dimensão humana e física da disciplina, definindo-se como uma ciência
integradora de fenômenos de diferentes tipos, e pondo cada vez mais a ênfase na
síntese e na combinação regional. Apesar das dificuldades intelectuais que este projeto
científico deveria enfrentar no caminho até uma autêntica integração, a geografia
encontrou um ambiente político favorável para isso, por parte do poder. Naqueles anos
aos professores universitários "se solicitava que oferecessem à Terceira República um
sistema objetivo de princípios morais e políticos que pudessem substituir a religião
tradicional como uma força social unificadora", o qual exigia a unificação dos saberes
existentes e a cooperação entre campos distintos.364 Nesta busca da unidade ideológica
social, a geografia podia contribuir muito com seu método integrador aplicado à realidade
do próprio país e apoiando o nacionalismo revanchista da Terceira República.365 Isto
contribui também para explicar o êxito que obteve na luta pela sobrevivência e pela
expansão.
O desenvolvimento de uma comunidade científica de geógrafos deu lugar à
necessidade de novos órgãos regulares de comunicação intelectual. As revistas
publicadas pelas Sociedades de Geografia de Paris (como o Boletim da Sociedade de
Geografia de Paris, e o da Sociedade de Geografia Comercial da mesma cidade), ou de
províncias, assim como as revistas comerciais ou coloniais (La Moniteur Officiel du
Commerce, Revue Maritime et Coloniale) e as de divulgação geográfica popular (Lê Tour
du Monde, Le Journal des Voyages) não atendiam as exigências da nova geografia. Por
isso foram criadas outras novas como a Revue de Topographie (1876), a Revue
Géographique Internationale (1876-1903) e a Revue de Géographie. Esta última,
fundada por L. Drapeyron em 1877, pretendia incluir nela artigos de geógrafos e de
especialistas de ciências naturais e humanas, e havia adotado como lema uma das
idéias do Congresso Internacional de Geografia de Paris: "A geografia bem entendida
centralizará em benefício das Ciências Políticas todos os conhecimentos humanos". Mas
a grande revista científica da nova geografia acadêmica francesa foram os Annales de
Géographie, fundada por Marcel Dubois e Paul Vidal de La Blache em 1891, apoiando-se
na Société de Géographie de Paris.

364 WEISZ, 1977, pág. 154.


365 Veja-se BROC, 1970.

103
No primeiro número da nova revista os diretores reconheciam que já era elevado o
número de publicações que se dedicavam à geografia. Isso era resultado de uma
situação que não trazia somente aspectos positivos. Afirmava-se no editorial que "a
divisão, diríamos, o desmembramento, da ciência geográfica em uma multiplicidade de
estudos especiais, cuja autonomia é freqüentemente discutível, contribuiu em primeiro
lugar para multiplicar os periódicos de todas as dimensões".
Mas o objetivo dos Annales de Géographie eram distintos dos das revistas
existentes, e tomavam como modelo declarado os Petermann Mitteilungen, e os
Proceedings da Royal Geographical Society de Londres. Tratava-se de "acompanhar
sistematicamente os progressos das ciências geográficas em toda sua amplitude". Mais
que uma multiplicidade de notícias, interessava "uma disciplina, um método, tanto nas
informações como nos estudos". Para Vidal de La Blache e Marcel Dubois a geografia é
"a ciência que toma seus dados do maior número de outras ciências" e tem a obrigação
de fundir os materiais, aparentemente heterogêneos, numa disciplina rigorosa: "muitas
informações úteis à geografia perdem-se porque estão espalhadas em recopilações
especiais, ora de meteorologia, ora de história natural, entre outras; trata-se agora de
trazê-los à geografia, de aclimatá-los à geografia". Neste esforço de aclimatação dos
trabalhos dos naturalistas, os Annales realizaram um importante trabalho, contribuindo
para assegurar a relação com estes cientistas, e para coordenar e elevar a pesquisa
geográfica na França. O objetivo era ao mesmo tempo científico e pedagógico. Desde o
editorial do primeiro número se faz referência à utilidade que a revista teria para o ensino
e se manifesta uma clara vontade de "contribuir para fundar o espírito clássico deste
ensino".366
A reforma do ensino primário e secundário e a institucionalização posterior da
geografia na universidade, coincidindo com o aumento do número de estudantes,
provocaram uma demanda importante de livros texto, e deram lugar à aparição de um
grande número de manuais e de material auxiliar (mapas murais, Atlas, mapas
mudos).367
É necessário levar em consideração que entre 1880 e 1900 o número de estudantes
nas escolas primárias e maternais, públicas e privadas, passou de 5.300.000 para
6.300.000 e que o de estudantes secundários havia alcançado na primeira dessas datas
os 150.000.368
Alguns conhecidos autores de manuais de grande difusão antes de 1871
adaptaram-se rapidamente ao novo contexto modificando ou corrigindo suas obras "para
colocá-las em harmonia com os novos programas".369 Entre eles é de se destacar o caso
de Contambert, que transformou rapidamente sua fisiografia em uma geografia. A eles se
uniram outros novos, como O. Reclus, Lemonnier, Schrader e o próprio divulgador das

366 As citações são a de "Annales de Géographie", n° 1, 1891, págs. II-III.


367 Dados sobre isto em BROC, 1977, págs. 78-79.
368 LÉON (1967), ed. 1977, págs. 93 e 100.
369 TORRES CAMPOS, 1896, pág. 235.

104
reformas, E. Levasseur, que publicou numerosos manuais, e atlas para os diversos
cursos do ensino secundário (editados pela editora Delagrave), entre os quais cabe
destacar, segundo o próprio Levasseur, sua obra La France et sés colonies
(Géographique et statistiques).
Evidentemente,os professores universitários não estiveram ausentes, e o próprio
Vidal de La Blache deu bom exemplo dedicando à preparação de obras e material
didático uma parte de sua atividade intelectual. Desde 1883, após um longo período de
reflexão, Vidal volta a sua produção escrita contando já, sem dúvida, com um projeto
bem estruturado no qual os aspectos educativos tinham um lugar essencial.370 Realizou,
então, diversas obras para seu uso no ensino tanto em nível médio como superior, entre
elas seu famoso Atlas general, historique et géographique (Paris, 1894).
As editoras Hachette, sobretudo, e Delagrave, que editou obras de Levasseur e
Vidal de La Blache, Belin, Colin e Masson foram as que mais amplamente publicaram
manuais desse tipo para ensino secundário, enquanto que a editora Berger-Levrault
editou obras destinadas ao ensino de geografia comercial. Desta forma a geografia
escolar francesa pode dispor desde princípios do século XX de um material pedagógico
de grande qualidade, e contar com docentes que foram sendo formados sob o paradigma
regional dominante na universidade.

370 NICOLAS-OBADIA: "Geo-Crítica", n° 35, 1981.

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