Professional Documents
Culture Documents
HOSPITAL DA LUZ
2009-2010
uma edição
A PUBLICAÇÃO DESTE LIVRO CONTOU COM O APOIO DE:
DESIGN
BY
COPYRIGHT 2010
TIRAGEM
3000 exemplares
ISBN
978-989-96054-3-5
DEPÓSITO LEGAL
302371/09
IMPRESSÃO
SIG - Sociedade Industrial Gráfica, Lda. - CAMARATE
HOSPITAL DA LUZ
Avenida Lusíada, 100 · Lisboa
Tel. 217 104 400
www.hospitaldaluz.pt
ÍNDICE
PREÂMBULO
Isabel Vaz, Presidente do Conselho de Administração do Hospital da Luz
e Presidente da Comissão Executiva da Espírito Santo Saúde - SGPS
PREFÁCIO
José Roquette, Director Clínico do Hospital da Luz
EDITORIAL
Américo Dinis da Gama, Editor
135 Bypass gástrico em Y de Roux totalmente assistido por robot. Caso clínico
César Resende, Paulo Roquete, José Damião Ferreira, João Rebelo de Andrade, Cristina Pestana, Carlos
Vaz
PREAMBLE
Isabel Vaz, Chairman of the Board of Directors of Hospital da Luz
and Chief Executive Officer of Espírito Santo Saúde
Preface
José Roquette, Clinical Director of Hospital da Luz
Editorial
Américo Dinis da Gama, Editor
109 Diffuse sclerosing variant of papillary carcinoma of the thyroid. CASE REPORT
Anabela Martins, Francisco Sobral do Rosário, Evelina Mendonça, Luis Gargaté, Olímpia Cid, Leone
Duarte, Teresa Ferreira, Ana Catarino, António Garrão
141 Laparoscopic aPproach of the acute abdomen DURING pregnancy. A Case report
César Resende, José Lourenço Reis, Paulo Roquete, Carlos Vaz, João Rebelo de Andrade, José Damião
Ferreira
145 Large post traumatic internal carotid artery aneurysm simulating a neurogenic
tumor. Surgical management
A. Dinis da Gama, Augusto Ministro, Cristina Pestana, Pedro Oliveira
155 Minimally invasive surgery for varicose veins with radiofrequency ablation
Sérgio Silva, Hugo Valentim
161 Abdominal angina due to fibromuscular dysplasia of the celiac axis. Surgical
management
Diogo Cunha e Sá, António Rosa, Germano do Carmo, Tiago Costa, Cristina Pestana, Alexandra Horta,
Ana Catarino, A. Dinis da Gama
203 Multiple sclerosis and detrusor overactivity. Treatment with botulinum toxin
Virgilio Vaz
253 Stereotactic radiotherapy with intensity modulated arc therapy in the locally
recurrent nasopharyngeal carcinoma
Francisco Mascarenhas, Sara Germano, Sofia Faustino, Carla Miguel, Fernando Marques, Rosário Vieira,
Pedro Vilela
Os “Casos Clínicos” são o produto de uma Ocorrendo num país pequeno e marginal,
circunstância feliz em que se conjugam di- sem grandes pergaminhos nem tradição
versas facetas de “rosto humano”, que per- cultural ou científica, reconhecemos que
mitiram concretizar a ideia de forma única, nem por isso somos “menores”. Somos ca-
original e, estou ciente, dificilmente repro- pazes de ombrear com os “maiores” e ga-
dutível. nhar-lhes em criatividade e originalidade,
como demonstra o êxito da iniciativa. O
Existe uma Administração e uma Direcção Hospital da Luz não desperdiçou a circuns-
Clínica mentoras do projecto, que nele or- tância a que aludia Ortega y Gassett e deu-
gulhosa e legitimamente se revêem; e existe -lhe corpo, de forma digna e perene, contri-
um quadro de profissionais médicos com- buindo para a afirmação da sua identidade.
petentes e dedicados, que se mostram pro-
gressivamente empenhados, de forma en- Não descurar o mérito e os créditos da ini-
tusiástica, como atesta o número crescente ciativa, procurando melhorá-la e aperfei-
de trabalhos apresentados em cada edição. çoá-la em cada ano que passa é a tarefa
a que nos propomos, na certeza antecipada
Dizer que estamos de parabéns é formu- que podemos continuar a contar com o en-
lar um juízo simplista, trivial, um lugar co- tusiasmo e a grata e inestimável colabora-
mum. Mais importante do que isso é afir- ção de todos.
mar que conseguimos materializar um
projecto original e mantê-lo, com o mesmo
nível e padrão de qualidade – o que contri-
bui para a satisfação individual e colectiva
e para o reforço do prestígio e da auto-esti- Américo Dinis da Gama
ma institucional. Editor
MEDICINA INTERNA
CARDIOLOGIA
CUIDADOS PALIATIVOS
NEUROLOGIA
ENDOCRINOLOGIA
IMUNOALERGOLOGIA
PNEUMOLOGIA
17
TRAQUEOMALÁCIA
OSTEOCONDROPLÁSTICA. A PROPÓSITO
DE UM CASO DE EXTUBAÇÃO DIFÍCIL
Tracheomalacia osteochondroplastica.
A case of difficult extubation
CLÁUDIA FEBRA
HELENA VIDAL
FERNANDO MARTELO
CARLOS VAZ
JOÃO SÁ
RESUMO Abstract
A traqueomalácia osteocondroplástica é uma Tracheomalacia osteochondroplastica is a
doença rara da cartilagem traqueal, cujo rare disease usually diagnosed at autopsy.
diagnóstico é realizado na maior parte dos ca- The authors report the clinical case of a
sos em necrópsias. Os autores apresentam o patient submitted to a gastrectomy due
caso clínico de um doente submetido a uma to gastric tumor, who was transferred to
gastrectomia por tumor do estômago e trans- the Intensive Care Unit and coursed with
ferido para a Unidade de Cuidados Intensivos, a difficult ventilatory weaning. During
onde a tentativa de desconexão ventilatória se the investigation of this clinical scenario,
revelou difícil. Na investigação da etiologia a bronchofibroscopy was performed
deste quadro clínico, foi realizada uma bron- that showed nodules of tracheomalacia
cofibroscopia que evidenciou nódulos de tra- osteochondroplastica, compromising the
queomalácia osteocondroplástica, com com- anatomical integrity and the function of
promisso da integridade e função da árvore tracheobronchial tree.
traqueobrônquica.
19
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A traqueomalácia osteocondroplástica Não é conhecido qualquer caso publicado
(TOP) é uma doença rara, caracterizada que tenha ocorrido em Portugal.
pela presença de múltiplos nódulos ósseos
e cartilagíneos na submucosa traqueal, com Os autores apresentam um caso de TOP
crescimento exofítico para o seu lúmen. Esta diagnosticada na sequência de um desmame
entidade foi descrita pela primeira vez por ventilatório difícil na Unidade de Cuidados
Rokitansky em 1855.1 Desde então, estão Intensivos (UCI) do Hospital da Luz.
descritos cerca de três centenas de casos.2
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 76 anos de ciadas a bronquiectasias e bronquiolectasias
idade, admitido no Hospital da Luz para de tracção, além de pequenas bolhas enfise-
terapêutica cirúrgica de tumor gástrico. matosas para-septais. Dos antecedentes re-
O doente tinha o diagnóstico de gastrite alçava-se ainda um acidente de viação ocor-
erosiva estabelecido desde 2009, estando rido há 25 anos, de que resultou ruptura
medicado com um inibidor de bomba de esplénica e um hematoma subdural agudo
protões. Em Junho de 2010 teve episódio de do qual não teve sequelas, história de hiper-
lipotímia, em contexto de anemia microcíti- plasia benigna da próstata não complicada
ca e hipocrómica, pelo que realizou video- e hábitos etílicos moderados.
endoscopia digestiva alta que evidenciou um
tumor do fundo gástrico. A investigação foi Em Julho de 2010, o doente foi submetido
complementada por ecoendoscopia gástrica, a gastrectomia total por via laparoscópica.
que confirmou a presença de volumosa le- A intervenção teve uma duração de seis ho-
são subepitelial, abaixo da junção esófago- ras e decorreu sem complicações, sendo o
gástrica, sem evidência de invasão local. A doente transferido em seguida para a UCI.
histopatologia diagnosticou tumor do es- Na admissão, o doente apresentava-se he-
troma gastrointestinal (GIST). Foi proposta modinamicamente estável, bem adaptado a
terapêutica cirúrgica que o doente aceitou. modalidade de ventilação invasiva controla-
da, com uma relação pO2/FiO2 de 276 sem
Dos antecedentes pessoais destacava-se a complicações cirúrgicas imediatas. Foi efec-
presença de hábitos tabágicos acentuados e tuado um desmame ventilatório bem suce-
bronquite crónica com cerca de vinte anos dido que permitiu a extubação orotraqueal.
de evolução, medicada actualmente com Após a extubação, o doente desencadeou
broncodilatadores inalatórios, apresentan- um quadro de estridor laríngeo, refractário
do provas de função respiratória recentes à terapêutica médica e com necessidade de
com alteração ventilatória obstrutiva brôn- re-intubação, constatando-se em laringos-
quica e bronquiolar moderada. Na tomo- copia directa um edema laríngeo. Foi ini-
grafia computorizada (TC) pré-operatória ciada corticoterapia (prednisolona 1mg/kg/
realizada destacavam-se alterações de tipo dia), além de terapêutica broncodilatadora,
enfisematoso, centrolobular, bilaterais, asso- sedação contínua por quadro de agitação
TRAQUEOMALÁCIA OSTEOCONDROPLÁSTICA. A PROPÓSITO
DE UM CASO DE EXTUBAÇÃO DIFÍCIL
Fig. 1 Nódulos de TOP na parede traqueal Fig. 2 Extensão nodular ao segmento proximal do
brônquio principal esquerdo
Fig. 3 Reconstrução no plano coronal onde se Fig. 4 Reconstrução volumétrica na qual se pode
observam áreas de calcificação milimétricas avaliar adequadamente o grau e a extensão da
fazendo protusão no lúmen do brônquio principal estenose traqueal
esquerdo
21
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
redes dos brônquios principais, associados a Quarenta e oito horas depois, o desmame
estenose traqueal na transição do seu terço ventilatório foi eficaz e o doente foi extubado
superior para o médio, sendo responsáveis sem complicações. Recuperou completamen-
por uma morfologia ondulada do lúmen dos te, sem novas complicações, tendo alta para o
brônquios principais. Quando avaliados re- domicílio ao 13º dia pós-operatório.
trospectivamente, os tomogramas torácicos
já mostravam lesões sugestivas da TOP no
primeiro exame efectuado.
DISCUSSÃO
A TOP é uma doença cuja incidência não brônquica endoluminal. Mais raramente, a
está bem estabelecida. Cerca de 90% dos ca- doença pode ter uma apresentação dramáti-
sos são diagnosticados em autópsia, consti- ca, com hemoptises maciças ou estenose tra-
tuindo achados acidentais em 1:400 cadáve- queal associada a intubação endotraqueal di-
res3 a 3:1 000 cadáveres,4 dependendo das fícil.7 No caso apresentado, o diagnóstico foi
séries. Na broncofibroscopia existem várias feito em contexto de videobroncofibrosco-
séries que relatam incidências de TOP entre pia realizada para esclarecimento de desma-
0:25 000 e 9:2 180 (0.4%).4 me ventilatório ineficaz, sendo impossível
distinguir nos sintomas reportados e atri-
A doença é mais frequente nos homens buídos inicialmente à bronquite crónica de
(3:1) e manifesta-se geralmente depois dos etiologia tabágica, quais poderiam dever-se
50 anos de idade. Na maioria dos casos é à TOP, nomeadamente, a dispneia frequen-
completamente assintomática e surge como te, a tosse crónica e a respiração ruidosa de
achado em broncofibroscopias realizadas longa duração.
por outros motivos.
Os achados broncoscópicos são considera-
A etiologia da TOP não está esclarecida. dos patognómicos e permitem o diagnóstico
Estão descritos casos associados a infec- definitivo através da observação das lesões
ções por microrganismos atípicos, como o descritas como “pedras da calçada” ou “jar-
Mycobacterium avium,5 a silicose, a amiloi- dim de pedra”. Os nódulos são múltiplos e
dose e ainda casos de ocorrência familiar. duros, distribuindo-se ao longo dos anéis
Existem dados histopatológicos que docu- cartilagíneos e poupando a parede traqueal
mentam claramente a sinergia entre factores posterior desde a região sub-glótica até aos
de crescimento ósseo e tecidular, que contri- brônquios principais; têm origem na sub-
bui para a formação dos nódulos na submu- mucosa e um crescimento exofítico para o
cosa traqueal.6 lúmen traqueal, atingindo diâmetros variá-
veis entre 1 e 10 mm.8
A maioria dos casos de TOP é assintomáti-
ca, podendo estar presentes sintomas ines- A tomografia computorizada complementa
pecíficos como dispneia, tosse, expectora- o diagnóstico de TOP, permitindo a visuali-
ção, rouquidão, hemoptises e obstrução zação de densidades nodulares calcificadas
TRAQUEOMALÁCIA OSTEOCONDROPLÁSTICA. A PROPÓSITO
DE UM CASO DE EXTUBAÇÃO DIFÍCIL
COMENTÁRIOS FINAIS
A utilização crescente da broncofibroscopia Os autores apresentam um caso de TOP
na avaliação de doentes com doenças res- diagnosticado a propósito de um desmame
piratórias poderá contribuir para o melhor ventilatório difícil em UCI, sendo esta mais
conhecimento da TOP, no que respeita à sua um diagnóstico a considerar nestas circuns-
fisiopatologia e implicações clínicas. tâncias.
BIBLIOGRAFIA
1. Molloy AR, McMahon JN. Rapid progression of tracheal 7. Thomas D, Stonell C, Hasan K. Tracheobroncopathia
stenosis associated with tracheopathia osteo-chondroplastica. osteoplastica: incidental finding at tracheal intubation. Br J Anaesth
Intensive Care Med 1988;15:60-2. 2001;87:515-7.
2. Shih, JY; Hsueh, PR; Chang, YL, et al. Tracheal botryomycosis 8. Lazor R, Cordier JF. Tracheobroncopathia osteocondroplastica.
in a patient with tracheopathia osteochondroplastica. Thorax Orphanet encyclopedia 2004 In:http//www.orpha.net/data/patho/
1998;53:73-6. GB/uk-TO.pdf
3. Mboti FB, Ninane V, Larsimont D, et al. Acute respiratory failure 9. Restrepo S, Pandit M, Villamil MA, Rojas IC, Perez JM, Gascue
from tracheopathia osteoplastica. Acta Chir Belg 2005;105:227-8. A. Tracheobroncopathia osteochondroplastica: helical CT findings
in 4 cases. J Thorac Imaging 2004;19:112-6.
4. Lundgren R, Stjernberg NL. Tracheobroncopathia
osteochondroplastica. A clinical bronchoscopic and spirometric 10. Faig-Leite FS, Defaveri J. Traqeobroncopatia osteocondroplástica
study. Chest 1981;80:706-9. em portador de tumor de Klatskin; relato de caso e revisão da
literatura. J Bras Patol Med Lab 2008;44:459-62.
5. Baugnee PE, Delaunois LM. Mycobacterium avium-intracellulare
associated with tracheobronchopathia osteochondroplastica. Eur 11. Oh IJ, Ju JY, Choi YD. Tracheopathia osteochondroplastica
Respir J 1995;8:180-2. with recurrent massive hemoptysis and atelectasis: a case report.
Tuberculosis and Respiratory Diseases 2008;65:235-8.
6. Hussain K, Gilbert S. Tracheopathia Osteochondroplastica. Clin
Med Res 2003;1:239-42.
23
UM CASO DE PIODERMA GANGRENOSO
Pyoderma gangrenosum. Case report
ALEXANDRA HORTA
NATÁLIA MARTO
SÉRGIO BAPTISTA
LUÍS COSTA
ANABELA RAIMUNDO
PEDRO MORAIS SARMENTO
FILIPA MALHEIRO
BEBIANA GONÇALVES
SUSANA COELHO
JOSÉ CAMPOS LOPES
JOÃO SÁ
RESUMO Abstract
Os autores descrevem um caso clínico de pio- The authors report the clinical case of a 49-
derma gangrenoso numa doente de 49 anos year old woman with the clinical diagnosis
de idade, que referia uma história muito pro- of pyoderma gangrenosum. In the past
longada de hidrosadenitis supurativa crónica. medical history, she mentioned to suffer of
A lesão dermatológica sofreu uma re-epiteli- a supurative chronic hidrosadenitis. The
zação completa, consequência de terapêutica dermatologic ulcer was primarily treated
sistémica com corticosteróides e ciclosporina, with glucocorticoids and cyclosporine,
para além das medidas locais orientadas pelo apart from local measures, and evolved
dermatologista. No que diz respeito à etiolo- with complete reepitelization. Concerning
gia da doença, nomeadamente a existência de the presence of a subjacent disease that
alguma afecção de base, encontrou-se apenas could be responsible for the occurrence of
uma gamapatia monoclonal IgG/K de signifi- the dermatologic ulcer, only a monoclonal
cado indeterminado, que se admite possa ser gamapathy was found of an unknown
a doença primária. significance.
25
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
O pioderma gangrenoso (PG) é uma doença Os autores descrevem um caso de PG numa
inflamatória cutânea, ulcerosa de etiologia doente com um quadro de hidrosadenitis
desconhecida. crónica e que apresentou uma evolução mui-
to favorável sob terapêutica . A doente tem
Em cerca de metade dos casos está associada uma gamapatia monoclonal de significado
a uma doença sistémica de base, mais fre- indeterminado que se pensa poderá estar na
quentemente às doenças inflamatórias intes- origem do PG.
tinais, artrites ou doenças linfoproliferativas.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino de 49 anos de Dos antecedentes pessoais realça-se uma his-
idade que foi internada no Hospital da Luz tória compatível com um quadro de hidro-
por úlcera cutânea na face externa da perna sadenitis supurativa recidivante crónica, com
esquerda e envolvendo a região maleolar e localização mais habitual nas regiões ingui-
o terço proximal e externo do dorso do pé. nais e axilares e ocasionalmente na região
inframamária. Havia ainda referência ao
A doente contava uma história com cerca aparecimento de uma lesão pustulosa que se
de seis semanas de evolução de uma peque- enxertou numa ferida punctiforme de biópsia
na ferida no terço distal da face externa da mamária feita para esclarecimento etiológico
perna esquerda, que teria resultado de trau- de imagem nodular encontrada em uma ma-
matismo minor por fricção. A ferida melho- mografia de rotina; esta lesão nodular veio a
rou transitoriamente mas posteriormente revelar-se benigna. Para além destes aspectos
aumentou muito de dimensão, tornou-se a história pregressa era irrelevante.
extremamente dolorosa, adquiriu um fundo
necrótico apresentando um exsudado puru- No exame físico a doente apresentava-se
lento sem cheiro particular. Tinha havido al- muito emagrecida, tinha uma lesão superfi-
gumas tentativas terapêuticas com medidas cial de forma grosseiramente ovalada, com
locais e com antibioterapia oral, mas peran- contornos policíclicos, de maior dimensão
te o agravamento das dimensões e caracte- de cerca de 15 cm (na diagonal), localiza-
rísticas da ferida a doente recorreu ao Aten- da ao terço distal da face externa da perna
dimento Médico Permanente do Hospital esquerda e envolvendo o maleolo externo e
da Luz. A doente foi internada, foi iniciada o terço proximal do dorso do pé. A lesão
antibioterapia intravenosa e realizados dois apresentava os bordos elevados violáceos e
desbridamentos cirúrgicos no bloco opera- infiltrados, e um fundo com coexistência de
tório sob anestesia geral. áreas necróticas e áreas de tecido de granu-
lação sangrante. Estava presente um exsuda-
Por progressão da área de necrose e colo- do purulento sem cheiro particular e a lesão
cando a hipótese diagnóstica de pioderma era extremamente dolorosa ao toque mesmo
gangrenoso a doente foi referenciada à equi- que suave (Fig. 1 e 2). Era também de real-
pa de Medicina Interna. çar a presença de várias cicatrizes deprimi-
UM CASO DE PIODERMA GANGRENOSO
27
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
COMENTÁRIO
O pioderma gangrenoso (PG) é uma doen- clonal IgG/K. O mielograma evidenciou ape-
ça inflamatória cutânea, ulcerosa de etiologia nas 4% de plasmocitos mas realça-se que a
desconhecida. doente fez o mielograma já depois de instituí-
da a corticoterapia. Assim, não é de excluir a
Em cerca de metade dos casos está associa- existência de um mieloma múltiplo indolen-
da a uma doença sistémica de base, mais fre- te. Está planeada a repetição do mielograma
quentemente às doenças inflamatórias intesti- num prazo de 3 meses.
nais, artrites ou doenças linfoproliferativas.1
Surge em 5% das colites ulcerosas e 2% das Como aconteceu com esta doente, a lesão
doenças de Crohn,2 mas tem sido descrito clínica inicial de PG é uma pústula ou ve-
também em doentes com síndroma Sweet, sícula de base inflamatória, mas pode tam-
doença de Behçet, síndroma Sjogren e como bém ser um nódulo inflamatório ou uma
complicação da terapêutica com G-CSF (fac- bolha hemorrágica de base violácea. Mais
tor estimulador de colónias granulocitárias). frequentemente, a lesão localiza-se nas ex-
tremidades ou no tronco. Há edema circun-
Na doente descrita neste trabalho encontrou- dante, os bordos são violáceos e endureci-
-se, tal como referido, uma gamapatia mono- dos e a lesão progride de forma centrífuga
UM CASO DE PIODERMA GANGRENOSO
BIBLIOGRAFIA
1. Callen JP. Pyoderma gangrenosum and related disorders. Med 4. Weenig RH, Davis MD, Dahl PR, Su WP. Skin ulcers misdiagnosed
Clin North Am 1989;73:1247-61. as pyoderma gangrenosum. N Engl J Med 2002; 347:1412-8.
2. Mir-Madjlessi SH, Taylor JS, Farmer RG. Clinical course and 5. Matis WL, Ellis CN, Griffiths CE, Lazarus GS. Treatment
evolution of erythema nodosum and pyoderma gangrenosum in of pyoderma gangrenosum with cyclosporine. Arch Dermatol
chronic ulcerative colitis: a study of 42 patients. Am J Gastroenterol 1992;128:1060-4.
1985;80:615-20.
6. Brooklyn TN, Dunnill MG, Shetty A, et al. Infliximab for the
3. Crickx B. Pyoderma gangrenosum. Pustulose sous-cornée de treatment of pyoderma gangrenosum: a randomised, double blind,
Sneddon-Wilkinson. In: Kahn M, Peltier A, Meyer O, Piette J, eds. placebo controlled trial. Gut 2006;55:505-9.
Maladies et Syndromes Systemiques. Paris: Flammarion Medicine-
Sciences, 2000;1129-35.
29
IMUNODEFICIÊNCIA COMUM VARIÁVEL.
APRESENTAÇÃO CLÍNICA COMO ANEMIA
FERROPÉNICA ASSOCIADA A GIARDÍASE
CRÓNICA
Common variable immunodeficiency
presenting as iron-deficiency anemia
associated to chronic giardiasis
NATÁLIA MARTO
SÉRGIO BAPTISTA
LUÍS COSTA
ANABELA RAIMUNDO
PEDRO MORAES SARMENTO
FILIPA MALHEIRO
BEBIANA GONÇALVES
SUSANA COELHO
ALEXANDRA HORTA
JOÃO SÁ
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de um The authors report the clinical case of
jovem com anemia ferropénica. O doente foi a young man with anemia due to iron
observado no Atendimento Médico Perma- deficiency. The patient was observed at the
nente do Hospital da Luz por pneumonia e emergency room of Hospital da Luz and
foi referenciado à consulta de Medicina In- referred to Internal Medicine consultation
terna para investigação de anemia hipocró- for investigation of anemia, with hemoglobin
mica microcítica, com hemoglobina de 9,8 9.8 mg/dL, hypochromia and microcytosis.
g/dL. Apresentava história de episódios au- He complained of a history of diarrhea,
tolimitados de diarreia, condicionando ema- leading to a weight loss of 6 kg in six
grecimento de 6 kg em seis meses. Labora- months. Laboratory testing revealed ferritin
torialmente, identificou-se ferritina de 12 µg/ 12 µg/dL and a reduction of total protein
dL e hipoproteinemia de 5,5 g/dL com albu- level (5.5 g/dL), with normal albumin level.
minemia normal. A electroforese das pro- The serum protein electrophoresis confirmed
teínas confirmou hipogamaglobulinemia. a reduction in globulin level. A stool sample
O exame parasitológico de fezes identificou parasitological analysis identified Giardia
quistos de Giardia lamblia. Uma biópsia do lamblia cysts. Duodenal biopsy showed
duodeno revelou infiltrado inflamatório e microorganisms suggestive of Giardia on the
31
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A anemia ferropénica é a manifestação mais gastrointestinal crónica, visível ou oculta.3
grave de uma carência de ferro. É mais fre-
quente na mulher em idade fértil, com uma Os autores apresentam o caso clínico de um
prevalência de 1,5 a 14%, sendo rara nos doente referenciado à consulta de Medicina
homens (prevalência de 0 a 3%).1,2 Nos paí- Interna para investigação de anemia ferro-
ses desenvolvidos, a principal causa de ane- pénica, conduzindo a um diagnóstico pouco
mia ferropénica no adulto é a hemorragia usual.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 33 anos de evolução de um quadro clínico idêntico, in-
idade, recorreu ao Atendimento Médico termitente, caracterizado por epigastralgias
Permanente (AMP) do Hospital da Luz por e episódios com duração de três a quatro
febre com calafrio, mialgias e toracalgia dias de dor abdominal de tipo cólica e diar-
pleurítica à direita. Foi-lhe diagnosticada reia aquosa com muco e pus, sem sangue,
uma pneumonia do lobo médio, medicada com cerca de dez dejecções por dia, incluin-
com amoxicilina-ácido clavulânico e clari- do dejecções nocturnas. Negava febre e não
tromicina. Devido a um valor de hemoglo- tinha perdas hemáticas visíveis.
bina de 9,7 g/dL, o doente foi referenciado à
consulta de Medicina Interna. No exame físico, o doente encontrava-se
pálido, com um índice de massa corpo-
Na consulta de Medicina Interna, realiza- ral (IMC) de 19,3, temperatura timpâni-
da uma semana mais tarde, o doente apre- ca 36,5ºC, pressão arterial 98-56 mmHg
sentava melhoria da pneumonia, mas tinha e pulso 86 batimentos por minuto. Não
dor epigástrica, vómitos e diarreia aquosa. apresentava linfadenopatias palpáveis nas
O doente referia história com dois anos de principais cadeias periféricas. O exame do
IMUNODEFICIÊNCIA COMUM VARIÁVEL. APRESENTAÇÃO CLÍNICA COMO ANEMIA FERROPÉNICA
ASSOCIADA A GIARDÍASE CRÓNICA
QUÍMICA CLÍNICA
33
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
fície epitelial microrganismos compatíveis Com base nos achados atrás descritos foi
com trofozóitos de Giardia (Fig. 3). O exa- estabelecido o diagnóstico de imunodefici-
me parasitológico de fezes identificou quis- ência comum variável (ICV) com giardíase
tos de Giardia lamblia. O doente realizou intestinal crónica.
ainda uma colonoscopia total com ileosco-
pia que não mostrou alterações relevantes O doente fez terapêutica para erradicação
neste contexto e uma tomografia computo- do protozoário com metronidazol durante
rizada (TC) toraco-abdomino-pélvica que 10 dias e iniciou terapêutica de substituição
identificou apenas esplenomegália (Fig. 4). com imunoglobulina endovenosa.
DISCUSSÃO
Os autores apresentam o caso clínico de um Perante um homem jovem com anemia carac-
adulto jovem observado no AMP por pneu- terizada como ferropénica, com diarreia cró-
monia do lobo médio, sem critérios de gravi- nica e emagrecimento, na ausência de perdas
dade, sendo o primeiro episódio de infecção hemáticas visíveis, além da potencial fonte de
respiratória conhecido. A presença de anemia hemorragia no tubo digestivo, impunha-se o
hipocrómica microcítica permitiu suspeitar diagnóstico diferencial de malabsorção.
da presença de doença sistémica subjacente à
pneumonia e conduziu à referenciação à con- O ferro é absorvido preferencialmente no
sulta de Medicina Interna. jejuno e portanto a anemia ferropénica por
35
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
malabsorção pode surgir em qualquer do- da IgA secretória na resposta humoral à in-
ença que envolva o intestino delgado, como fecção por Giardia.6
são exemplos a doença inflamatória intesti-
nal, a doença celíaca, a doença de Whipple, Na avaliação laboratorial inicial, encon-
o linfoma e as infecções crónicas. trara-se uma hipoproteinemia com albu-
minemia normal, sugerindo a presença de
Os exames pedidos foram dirigidos à ava- hipogamaglobulinemia. Por este motivo,
liação destas hipóteses diagnósticas e incluí- realizou-se electroforese das proteínas séri-
ram exame citoquímico e microbiológico de cas e doseamento de imunoglubulinas que
fezes, endoscopia digestiva alta com biópsia confirmou hipogamaglobulinemia com defi-
do duodeno e colonoscopia com ileoscopia. ciência de IgG, IgM e IgA.
Neste doente, o diagnóstico de ICV foi es- Este caso clínico paradigmático alerta para
tabelecido com base na presença de hipoga- a necessidade de investigação sistemática da
maglobulinemia com défice de três isotipos anemia, que foi aqui a primeira pista para
de Ig (IgA, IgG e IgM), giardíase crónica e a identificação de uma doença sistémica.
esplenomegália. Em consulta de Imunoaler- Constitui também uma ilustração da rele-
gologia, documentou-se alteração nos testes vância da imunodeficiência primária como
funcionais de anticorpos, consubstanciando causa de infecção recorrente ou crónica, não
este diagnóstico. exclusiva da população pediátrica.
BIBLIOGRAFIA
1. Hercberg S, Preziosi P, Galan P. Iron deficiency in Europe. Public 6. Lai Ping So A, Mayer, L. Gastrointestinal manifestations of
Health Nutr. 2001;4(2B):537-45. primary immunodeficiency disorders. Semin Gastrointest Dis
1997;8:22-32.
2. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Iron
deficiency - United States, 1999-2000. MMWR Morb Mortal 7. Park MA, Li JT, Hagen JB, et al. Common variable
Wkly Rep 2002;51:897-9. immunodeficiency: a new look at an old disease. Lancet
2008;372:489-502.
3. Cook, JD, Skikne, BS. Iron deficiency: Definition and diagnosis.
J Intern Med 1989;226:349-55. 8. Geha RS, Notarangelo LD, Casanova JL, et al. Primary
immunodeficiency diseases: an update from the International
4. Ortega YR, Adam RD. Giardia: Overview and update. Clin Union of Immunological Societies Primary Immunodeficiency
Infect Dis 1997; 25:545-9. Diseases Classification Committee. J Allergy Clin Immunol
2007;120:776-94.
5. Lopez CE, Dykes AC, Juranel DD, et al. Waterborne giardiasis:
A community wide outbreak of disease and a high rate of
asymptomatic infection. Am J Epidemiol 1980;112:495-507.
37
MONITORIZAÇÃO DA MICROCIRCULAÇÃO
NO TRATAMENTO DAS SITUAÇÕES
DE CHOQUE CARDIOGÉNICO.
A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO
Microcirculation monitoring in the
management of cardiogenic shock.
Case report
CLÁUDIA FEBRA
ANTÓNIO MESSIAS
JOÃO SÁ
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de uma The authors report the clinical case of a
doente internada na Unidade de Cuidados patient admitted to the Intensive Care Unit
Intensivos do Hospital da Luz com quadro of Hospital da Luz, with signs of cardiogenic
de choque. Entre as medidas terapêuticas, shock. In the therapeutic approach
foi utilizada uma perfusão endovenosa, du- levosimendan infusion (an inotropic drug
rante 24 horas, de levossimendano, fárma- belonging to the group of calcium sensitizers)
co inotrópico do grupo dos sensibilizadores was used during 24 hours. Along the period
do cálcio. Durante o período de perfusão do of infusion, microcirculation was monitored
fármaco, para além da monitorização con- and assessed in addition to conventional
vencional, foi efectuada a monitorização da monitoring, and revealed a trend toward
microcirculação, que mostrou uma evolução worsening following two hours of infusion,
com agravamento às duas horas após a per- but a frank improvement at 24 hours,
fusão e melhoria franca às 24 horas, concor- consistent with the clinical improvement of
dante com a melhoria clínica da doente. Con- the patient. It is the author’s conviction that
clui-se que este tipo de avaliação poderá ser monitoring of microcirculatory blood flow
útil na monitorização da microcirculação du- may be useful during treatment of severe
rante o tratamento de situações de insuficiên- cases of cardiocirculatory insufficiency.
cia cardiocirculatória grave.
39
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
O normal funcionamento microcirculatório
é o principal pré-requisito para a oxigena-
ção tecidular adequada e para a função dos
órgãos.1 As funções da microcirculação in-
cluem o transporte de oxigénio e nutrientes
para as células, o funcionamento imunoló-
gico adequado e, nas situações de doença,
a distribuição dos fármacos às células alvo.
A rede microcirculatória é constituída pelos
vasos sanguíneos mais pequenos (de diâ- Fig. 1 Equipamento para visualização da microcir-
metro inferior a 100 µm), onde se realiza a culação por SDC usado na Unidade de Cuidados
libertação de oxigénio para os tecidos, e in- Intensivos do Hospital da Luz
clui arteríolas, capilares e vénulas (unidades
microcirculatórias).2 Esta rede conta com 10
biliões de capilares e a maior superfície en-
dotelial do corpo (superior a 0,5 km2).
monitorização da microcirculação durante a mente 80 horas pelo que pode ser detectado
terapêutica da insuficiência cardiocirculató- no sangue durante mais de duas semanas
ria pode, em teoria, permitir verificar se as es- após a suspensão da perfusão endovenosa.12
tratégias de tratamento implementadas real- A utilização de levossimendano no choque
mente melhoram a microcirculação, numa cardiogénico foi descrita e associada a um
tentativa para corrigir a disoxia tecidular.10 aumento do débito cardíaco e a uma dimi-
nuição das resistências vasculares sistémicas
O levossimendano é um fármaco inotrópi- e pulmonares, com melhoria da sobrevida
co, do grupo dos sensibilizadores do cálcio, dos doentes, quando comparado com o tra-
cujo mecanismo de acção associa a sensibi- tamento convencional.13,14
lização das fibras contrácteis para o cálcio e
a abertura dos canais de potássio ATP-de- Alguns trabalhos sugerem uma melhoria da
pendentes, como mecanismo de vasodilata- perfusão dos órgãos com a terapêutica com
ção.11 O fármaco tem um metabolito activo, levossimendano, quando avaliada a micro-
o qual também exerce efeito inotrópico po- circulação sublingual durante o período do
sitivo e vasodilatador. A semivida do levos- tratamento, pelo que esta técnica se poderá
simendano é de uma hora; o seu metabolito tornar útil na prática clínica, para avaliar o
activo tem uma semivida de aproximada- efeito dos fármacos na microcirculação.15
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 76 anos de ida- e proteína C reactiva (PCR) ligeiramente au-
de, foi internada na Unidade de Cuidados mentada (1,28 mg/dL). Mediante a hipótese
Intensivos do Hospital da Luz por edema diagnóstica de asma agudizada por traqueo-
agudo do pulmão. A doente tinha uma his- bronquite aguda, foi medicada com bronco-
tória com cerca de 40 anos de evolução de dilatadores e antibioterapia empírica para o
asma brônquica, sem terapêutica específica domicílio. Como não melhorasse, regressou
nem episódios de internamento hospitalar no dia seguinte, apresentando-se com sinais
atribuíveis a esta doença, além de hiper- de dificuldade respiratória grave e com gasi-
tensão arterial essencial sem atingimento metria arterial revelando hipoxemia grave e
conhecido de órgãos-alvo, regularmente hipocápnia, electrocardiograma mostrando
vigiada e medicada com beta-bloqueante fibrilhação auricular com resposta ventricu-
e antagonista de receptores de angiotensi- lar rápida, níveis séricos de pró-BNP (pép-
na-2, e diabetes mellitus tipo 2 sob metfor- tido natriurético cerebral) elevados (2 406
mina e sem complicações macro ou micro- pg/ml) com troponina I normal, e telerradio-
angiopáticas diagnosticadas. Na véspera do grama torácico com hipotransparência de
internamento, dirigiu-se ao Atendimento padrão intersticial sugestiva de edema pul-
Médico Permanente do Hospital da Luz por monar, admitindo-se a hipótese diagnóstica
quadro clínico de dispneia para médios es- de edema agudo do pulmão.
forços e tosse seca, com semiologia clínica
compatível com broncospasmo e analitica- A doente foi transferida para a Unidade de
mente valores de leucocitose com neutrofilia Cuidados Intensivos, onde a terapêutica mé-
41
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
dica instituída não foi eficaz na estabilização sos perfundidos (PVD) de 20,28 mm/mm2 e
clínica inicial, verificando-se evolução para uma proporção de vasos perfundidos (PPV)
falência múltipla de órgãos (respiratória, de 1 (Fig. 3).
cardiovascular, renal e neurológica), com
choque misto melhorado com suporte de Às 36 horas de evolução em internamento
aminas vasopressoras (noradrenalina e do- foi iniciada perfusão, sem bólus inicial, de
pamina) e inotrópico (dobutamina). O eco- um inotrópico sensibilizador de cálcio, o le-
cardiograma transtorácico realizado nesta vossimendano, durante 24 horas. Após duas
altura revelou uma função sistólica global horas de perfusão foi reavaliada a micro-
do ventrículo esquerdo gravemente com- circulação sublingual e medido um MFI de
prometida, com fracção de ejecção estima- 1,43, uma TVD de 23 mm/mm2, uma PVD
da de 20%, hipocinésia de todas as paredes de 22,1 mm/mm2 e uma PPV de 0,96. Ime-
do ventrículo esquerdo e acinésia do septo diatamente antes da suspensão do fármaco
interventricular, aurícula esquerda dilata- (24 horas após início da perfusão) verificou-
da e cavidades direitas não dilatadas com -se um MFI de 2,45, uma TVD de 18,14
pressão na artéria pulmonar estimada em mm/mm2, uma PVD de 22,1 mm/mm2 e uma
35 mmHg. A avaliação da microcirculação PPV de 0,97 (Quadro I e Vídeo 1).
sub-lingual determinou um índice de fluxo
microvascular (MFI) dos pequenos vasos de Nos quatro dias seguintes à suspensão de
2,25, uma densidade vascular total (TVD) perfusão, foi possível desmamar os vaso-
de 20,28 mm/mm2, uma densidade de va- pressores e, por último, a dobutamina, pe-
DISCUSSÃO
Dos parâmetros microcirculatórios avalia- relativas ao tempo necessário para obtenção
dos, realçam-se as variações do índice de de valores definitivos, o que tem atrasado a
fluxo microvascular (MFI), com redução sua implementação na prática clínica à cabe-
significativa nas primeiras duas horas de ceira do doente. O MFI calculado em tem-
perfusão do fármaco e aumento para va- po real durante a colheita de imagens SDF
lores superiores ao basal após 24 horas da em doentes críticos mostrou uma sensibili-
perfusão. Estas variações do fluxo microcir- dade e especificidade elevadas quando com-
culatório apresentaram boa correlação com parado com a avaliação diferida,17 além de
os parâmetros clínicos, estando de acordo boa variabilidade inter-individual, pelo que
com os resultados apresentados por outros poderá vir a ser utilizado na prática clínica.
autores. Os parâmetros de densidade vas-
cular total (TVD), densidade de vasos per- No caso descrito, o MFI mostrou uma boa
fundidos (PVD) e proporção de vasos per- correlação com os outros dados clínicos, de-
fundidos (PPV) não apresentaram variações vendo ser melhor estudada a sua utilização
valorizáveis (Quadro I). em estudos prospectivos e randomizados.
A adição dos resultados de MFI às restan-
A utilização de parâmetros de microcircu- tes variáveis clínicas durante o tratamento
lação obtidos com a tecnologia SDF tem de doentes em choque cardiogénico pode-
permitido observar o padrão de comporta- rá contribuir para a optimização do reajuste
mento de várias doenças e respostas a tera- terapêutico e instituição de novos fármacos.
pêuticas instituídas;16 mantém as limitações
43
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
CONCLUSÃO
A avaliação da microcirculação sublingual circulação, que teve uma evolução de acor-
num doente em choque cardiogénico trata- do com o resultado clínico favorável. Assim,
do com um agente inotrópico sensibiliza- esta técnica pode também ser útil na moni-
dor dos canais de cálcio, permitiu acompa- torização da resposta à terapêutica em situa-
nhar as alterações induzidas pelo fármaco a ções de insuficiência cardíaca grave ou cho-
este nível, assim como a melhoria da micro- que cardiogénico.
BIBLIOGRAFIA
1. Vincent JL, De Backer D. Microvascular dysfunction as a cause of 10. Trzeciak S, Rivers E. Clinical manifestations of disordered
organ dysfunction in severe sepsis. Crit Care 2005;9(suppl 4):S9-12. microcirculatory perfusion in severe sepsis. Crit Care 2005;9(suppl
4):S20-6.
2. Ince C. The microcirculation is the motor of sepsis. Crit Care
2005;9(suppl 4):S13-9. 11. Lehtonen L, Põder P. The utility of levosimendan in the
treatment of heart failure. Ann Med 2007;39:2-17.
3. Chierego M, Verdant C, De Backer D. Microcirculatory alterations
in critically ill patients. Minerva Anestesiol 2006;2:199-205. 12. Kivikko M, Lehtonen L. Levosimendan: a new inodilatory drug
for the treatment of decompensated heart failure. Curr Pharm Des
4. De Backer D, Creteur J, Preiser JC, Dubois MJ, Vincent JL. 2005;11:435-55.
Microvascular blood flow is altered in patients with sepsis. Am J
Respir Crit Care Med 2002;166:98-104. 13. Wolfgang GT., Christian S. Levosimendan, a new inotropic and
vasodilator agent. Anesthesiology 2006;104:556-69.
5. Sakr Y, Dubois MJ, De Backer D, Creteur J, Vincent JL. Persistent
microvasculatory alterations are associated with organ failure and 14. Ikonomidis I, Parissis JT, Paraskevaidis I, et al. Effects of
death in patients with septic shock. Crit Care Med 2004;32:1825- levosimendan on coronary artery flow and cardiac performance in
31. patients with advanced heart failure. Eur J Heart Fail 2007;9:1172-7.
6. Dubois MJ, De Backer D, Schmartz D, Vincent JL. 15. Wimmer R, Janusch M, Lemm H, et al. Effects of levosimendan
Microcirculatory alterations in cardiac surgery with and without on microcirculation in patients with cardiogenic shock. Circulation
cardiopulmonary bypass. Intensive Care Med 2002;28:S76. 2008;118:S664-5.
7. Groner W, Winkelman JW, Harris AG, et al. Orthogonal 16. Elbers PWG, Ince C. Bench-to-bedside review: Mechanisms of
polarization spectral imaging: a new method for study of the critical illness – classifying microcirculatory flow abnormalities in
microcirculation. Nat Med 1999;5:1209-12. distributive shock. Crit Care 2006;10:221-8.
8. Cerný V, Turek Z, Parízková R. Orthogonal polarization spectral 17. Arnold RC, Parrillo JE, Phillip Delinger R, et al. Point-of-care
imaging. Physiol Res 2007;56:141-7. assessment of microvascular blood flow in critically ill patients.
Intensive Care Med 2009;35:1761-6.
9. Goedhart PT, Khalilzada M, Bezemer R, Merza J, Ince C.
Sidestream dark field (SDF) imaging: a novel stroboscopic
LED ring-based imaging modality for clinical assessment of the
microcirculation. Opt Express 2007;15:15101-14.
“LAMENTO MAS RECUSO SER
TRANSFUNDIDO... SOU TESTEMUNHA
DE JEOVÁ.”
“I am sorry, but I refuse blood transfusions…
I am a Jehovah Witness.”
RESUMO Abstract
O tratamento de uma Testemunha de Jeo- The treatment of a Jehovah's Witness
vá com anemia grave representa um desa- with severe anemia is an important
fio para os médicos, dada a sua recusa em challenge to the physician, in view of her
receber transfusões de sangue ou de pro- refusal to receive blood or blood products
dutos derivados do sangue. Torna-se deste transfusions. It is thus urgent in this context
modo premente considerar outras alternati- to consider other treatment alternatives.
vas de tratamento. Os autores apresentam o The authors present the clinical case of a
caso clínico de uma doente com anemia gra- female patient with severe anemia, managed
ve, corrigida com recurso a doses elevadas with the administration of high dosages
de darbepoetina e óxido férrico endovenoso. of darbepoetin and intravenous iron. The
As implicações associadas a esta opção tera- implications of this treatment strategy are
pêutica são discutidas, bem como revistas as discussed and the therapeutical options
alternativas terapêuticas para uma Testemu- for a Jehovah's Witness with anemia are
nha de Jeová com anemia. reviewed.
45
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
Existem mais de sete milhões de Testemu- giosos destes doentes que os levam a recusar
nhas de Jeová em todo o mundo, distribuí- receber sangue e produtos do sangue. Este
das por mais de 230 países. Em Portugal problema torna-se mais premente em qua-
encontram-se mais de 49 000, o que repre- dros emergentes ou traumáticos.
senta aproximadamente 0,49% da nossa
população.1 Os autores apresentam o caso clínico de
uma doente Testemunha de Jeová com ane-
A abordagem de doentes Testemunhas de mia grave, descrevendo a abordagem tera-
Jeová com anemia é, frequentemente, um pêutica alternativa à transfusão sanguínea
dilema para o médico, fruto dos credos reli- que usaram.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 78 anos de ida- leucocitose (13 800/μL) e sem trombocitopé-
de, caucasiana, Testemunha de Jeová, é admi- nia (278 000/μL) ou alterações da coagula-
tida no dia 7 de Maio de 2009 no Hospital ção (tempo de protrombina: 13,2 segundos
da Luz por astenia e precordialgia atípica. e tempo de tromboplastina parcial activada:
Tratava-se de uma doente com história pre- 26,9 segundos). O electrocadiograma mos-
gressa de cardiopatia valvular mitro-aórtica, trava ritmo sinusal com alterações da repola-
corrigida com prótese aórtica biológica e rização generalizadas e infra-desnivelamento
anel tricúspide desde há um ano, hipertensão de ST em V3, V4 e V5.
arterial (HTA) e anemia microcítica crónica
de etiologia não esclarecida (multifactorial), Para esclarecimento da etiologia da anemia,
com valores de hemoglobina (Hb) médios de realizou endoscopia digestiva alta que reve-
9,5 g/dL. Estava medicada com perindopril, lou presença de pólipo do antro gástrico e
furosemida, ácido acetilsalicílico, digoxina, colonoscopia que mostrou divertículos da
omeprazol, domperidona, ácido fólico, ferro sigmoideia, mas ambos os exames sem ves-
e bioflavonóide venotrópico. Fazia episodica- tígios hemáticos.
mente darbepoetina para correcção da ane-
mia. Ao segundo dia de internamento verificou-se
queda do nível de hemoglobina para 4,3 g/
À entrada, apresentava palidez das mucosas dL acompanhado de queixas de hipotensão
e da pele, sopro mitro-aórtico na auscultação e menor tolerância para esforços pequenos.
cardíaca, fervores crepitantes na base esquer- Negava angor ou dispneia. O estudo da ane-
da na auscultação pulmonar e edemas ma- mia revelou policromatofilia e anisocitose
leolares. Não apresentava sinais de discrasia acentuada no estudo do sangue periférico,
hemorrágica. 18,6% de reticulócitos com um valor abso-
luto de 325 500 reticulócitos/μL, ferropénia
Analiticamente apresentava anemia normo- com sideremia de 15 μg/dL, ferritina de 187
cítica grave com hemoglobina de 5,4 g/dL μg/mL), transferrinemia de 311 mg/dL, vita-
e volume globular médio de 90 fL, discreta mina B12 de 363 ng/dL e folatos >24 ng/mL.
“LAMENTO MAS RECUSO SER TRANSFUNDIDO... SOU TESTEMUNHA DE JEOVÁ.”
Hemoglobina (g/dL)
Tempo (dias)
47
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
DISCUSSÃO
Os doentes Testemunhas de Jeová constituem No caso clínico descrito, não obstante a
um grupo particular em termos médicos, pois presença de insuficiência cardíaca por car-
recusam transfusões de sangue, de plaquetas diopatia valvular, a doente manteve-se he-
ou de plasma, incluindo transfusões autólo- modinamicamente estável e sem intercorrên-
gas. No entanto, cada um destes praticantes cias durante grande parte do internamento,
religiosos é livre de aceitar receber fracções com Hb entre 4,3 e 6,1 g/dL, o que permitiu
do sangue (como por exemplo gamaglobuli- aguardar pela resposta progressiva à terapêu-
na ou albumina), recuperação de sangue in- tica instituída.
tra-operatória (cell saver) ou realizar diálise.1
Nos casos descritos na literatura que abor-
A indicação geral para submeter um doente a dam o tratamento da anemia em Testemu-
uma transfusão sanguínea não é consensual. nhas de Jeová, a abordagem standard mais
A tendência actual é adiar a correcção duma comum consiste na administração de eritro-
anemia por via transfusional para níveis de poetina recombinante humana (rHu-EPO),
Hb progressivamente mais baixos, a menos tal como descrito por Koestner e colaborado-
que o doente se torne sintomático. Está de- res, já em 1990.6 A rHu-EPO estimula a pro-
monstrado que em doentes com níveis pós- dução de eritrócitos e é aceite pela maioria
-operatórios de Hb entre 7,1 e 8,0 g/dL, o das Testemunhas de Jeová. Contudo, a dose
risco de morte é baixo, apesar de haver uma óptima deste fármaco mantém-se ainda por
morbilidade significativa.3 À medida que o estabelecer, especialmente na abordagem de
valor da Hb baixa, aumenta o risco de mor- doentes críticos com hemorragias extensas.7
talidade e morbilidade, tornando-se extrema- Para além disso, a resposta reticulocitária ob-
mente elevado para valores de Hb inferiores tida é variável, oscilando entre 2 e 17% para
entre 5 a 6 g/dL. Por outro lado, não foram as doses convencionais.8
ainda identificados factores preditores inde-
pendentes da mortalidade em doentes anémi- No presente caso e no que respeita à op-
cos. De um modo geral, os doentes com con- ção terapêutica efectuada, o estimulante da
centrações de Hb muito baixas não morrem eritropoiese escolhido foi a darbepoetina
num espaço de tempo curto, permitindo uma alfa suplementada com ferro (sob a forma
potencial janela temporal para a intervenção de óxido férrico sacarosado) endovenoso,
médica.4 ácido fólico oral e cianocobalamina oral. A
darbepoetina é uma forma sintética de eritro-
Torna-se assim compreensível que as Teste- poetina, que difere da rHu-EPO por possuir
munhas de Jeová se tenham interessado por uma semivida três vezes superior.9 Cada µg
alternativas médicas e/ou cirúrgicas à trans- de darbepoetina alfa equivale a 200 UI de
fusão, tais como a utilização de compostos rHu-EPO.10 As doses de darbepoetina admi-
que se comportam como substitutos do san- nistradas, 1,875 μg/kg/dia durante 3 dias e
gue, o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas posteriormente em dias alternados durante 1
e anestésicas que minimizem as perdas san- semana, foram substancialmente superiores à
guíneas e permitam a recuperação de sangue dose habitualmente utilizada no tratamento
e a utilização de medicamentos que aumen- da anemia por insuficiência renal crónica,
tam a eritropoiese.5 0,45 μg/kg por semana. No entanto, estão
“LAMENTO MAS RECUSO SER TRANSFUNDIDO... SOU TESTEMUNHA DE JEOVÁ.”
descritas doses até 4,5 μg/kg semanais em das de sangue, corrigindo eventuais coagulo-
doentes oncológicos, ligeiramente inferiores patias, reduzindo o tamanho das amostras e
às utilizadas na doente apresentada, com boa a frequência de análises sanguíneas e, intra-
tolerância.11 operatoriamente, recorrendo a anestesia hi-
potensiva, a hemodiluição normovolémica,
A correcção da anemia com eritropoetina ou a uma hemostase meticulosa e adoptando as
darbepoetina não está no entanto desprovi- estratégias de recuperação eritrocitária dis-
da de riscos, seja pela rapidez da correcção, poníveis.8,15
seja por se tentar alcançar um valor “alvo”
de Hb demasiado elevado. As complicações Actualmente em estudo, e certamente com um
mais frequentemente observadas são a HTA, futuro promissor como alternativa às transfu-
o aumento de incidência de acidente vascu- sões convencionais, encontram-se as soluções
lar cerebral (AVC) e cefaleias.12-14 Na doente de hemoglobina desprovida de células [hae-
apresentada verificou-se um episódio de EAP moglobin-based oxygen carriers (HBOC)].
em contexto de crise HTA. Não é possível Nas HBOC a hemoglobina é extraída de eri-
excluir que esta complicação não seja o re- trócitos humanos ou bovinos, ou obtida por
sultado das doses elevadas de darbepoetina tecnologia recombinante, sendo esta última o
utilizadas ou do ritmo elevado de correcção principal alvo da investigação.15,16
da anemia imposto.
Por último, deve ainda ser referido que ou-
Na correcção não transfusional duma ane- tro ponto essencial na evolução clínica desta
mia através da estimulação da eritropoiese é doente foi a detecção e tratamento da pato-
fundamental fornecer os factores hematíni- logia de base, responsável pela anemia: a an-
cos adequados, corrigindo e evitando que se giodisplasia jejunal. Com efeito, após a sua
instale a sua carência. detecção e tratamento através de videoente-
roscopia de duplo balão e árgon-terapia, a
Existem outras estratégias que podem ser correcção da anemia foi rápida e duradoura.
adoptadas de modo a auxiliar a recuperação Passado um mês a doente apresentava já um
de doentes gravemente anémicos. Minimizar valor de Hb 13,1 g/dL e até à presente data,
a resposta metabólica e o consumo de oxi- um ano depois, não houve recorrência de
génio, induzindo a paralisia muscular com anemia. A associação entre estenose aórtica,
sedação e suporte ventilatório e/ou induzin- angiodisplasia intestinal e síndrome de Wille-
do uma hipotermia moderada, entre 30oC brand é descrita desde 1958 como síndrome
e 32oC, são opções possíveis. É igualmente de Heyde. Na maioria dos casos, verifica-
possível maximizar a libertação de oxigénio -se correcção da anemia após correcção da
para os tecidos, aumentando o débito cardía- valvulopatia.17 Não tendo sido o caso nesta
co e o volume intravascular, bem como au- doente, perante a persistência de anemia fer-
mentar o oxigénio dissolvido, por ventilação ropénica, é importante excluir a existência de
invasiva ou por oxigenoterapia hiperbárica. angiodisplasias do intestino delgado.
Outra medida fundamental é reduzir as per-
49
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
CONCLUSÃO
O princípio da autonomia do doente, que possíveis. Perante um doente Testemunha
implica a liberdade em aceitar ou rejeitar de Jeová com anemia grave torna-se impor-
um tratamento, entra facilmente em conflito tante conhecer as alternativas existentes à
com a obrigação do médico em proteger a transfusão de produtos do sangue.
vida humana recorrendo a todos os meios
BIBLIOGRAFIA
1. Watchtower – Official Site ot Jeohvah’s Witnesses. Report of 10. Locatelli F, Olivares J, Walker R, et al. Novel erythropoiesis
Jehovah's Witnesses Worldwide 2009. In: http://www.watchtower. stimulating protein for treatment of anemia in chronic renal
org/e/statistics/worldwide_report.htm insufficiency. Kidney Int 2001;60:741-7.
2. Nash MJ, Cohen H. Management of Jehovah’sWitness patients 11. Tseng L, Schuller J, Mercer J, Colowick A. The pharmacokinetics
with haematological problems. Blood Rev 2004;18:211-7. of Aranesp in oncology patients undergoing multicycle
chemotherapy. Blood 2000;96 [Abst].
3. Carson JL, Noveck H, Berlin JA, Gould SA. Mortality and
morbidity in patients with very low postoperative Hb levels who 12. Singh AK, Szczech L, Tang KL, et al. CHOIR Investigators.
decline blood transfusion. Transfusion 2002;42:812. Correction of anemia with epoetin alfa in chronic kidney disease. N
Engl J Med 2006;355:2085-98.
4. Tobian AR, Ness PM, Noveneck H, Carson JL. Time course
and etiology of death in patients with severe anemia. Transfusion 13. Pfeffer MA, Burdmann EA, Chen CY, et al. TREAT Investigators.
2009;49:1395-9. A trial of darbepoetin alfa in type 2 diabetes and chronic kidney
disease. N Engl J Med 2009;361:2019-32.
5. Remmers PA, Speer AJ. Clinical strategies in the medical care of
Jehovah’s Witnesses Am J Med 2006;119: 1013-8. 14. Drüeke TB, Locatelli F, Clyne N, et al. CREATE Investigators.
Normalization of hemoglobin level in patients with chronic kidney
6. Koestner JA, Nelson LD, Morris JA, Safcsak K. Use of disease and anemia. N Engl J Med 2006;355:2071-84.
recombinant erythropoietin (r-HuEPO) in a Jehovah´s Witness
refusing transfusion of blood products: case report. J Trauma 15. Hashem B, Dillard A. A 44-year-old Jehovah´s Witness with life-
1990;30:1406-8. threatning anemia from uterine bleeding. Chest 2004;125; 1151-4.
7. Schalte G, Janz H, Busse J, Jovanovic V, Rossaint R, Kuhlen R. 16. Mozzarelli A, Ronda L, Faggiano S, Bettati S, Bruno S..
Life-threatening postoperative blood loss in a Jehovah´s Witness, Haemoglobin-based oxygen carriers: research and reality towards
treated with high-dose erythropoietin. BJA 2005;94:442-4. an alternative to blood transfusions. Blood Transfus 2010;8;59-68.
8. Kulvatunyou N, Heard SO. Care of the injured Jehovah´s Witness 17. Pate GE, Chandavimol M, Naiman SC, Webb JG. Heyde's
patient. Case report and review of the literature. J Clin Anaesth syndrome: a review. J Heart Valve Dis 2004; 13: 701-12.
2004; 16:548-53.
9. Powell J, Gurk-Turner C. Darbepoetin alfa (Aranesp). Proc (Bayl
Univ Med Cent) 2002; 15:332-5.
MIOCARDIOPATIA DE TAKOTSUBO.
UM DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
A NÃO ESQUECER
Takotsubo cardiomyopathy. A differential
diagnosis not to forget
VANESSA CARVALHO
PEDRO MORAES SARMENTO
NUNO CARDIM
ALEXANDRA HORTA
SÉRGIO BAPTISTA
LUIS COSTA
NATÁLIA MARTO
ANABELA RAIMUNDO
JÚLIA TOSTE
VANDA CARMELO
PEDRO GONÇALVES
FRANCISCO PEREIRA MACHADO
DANIEL FERREIRA
JOÃO SÁ
RESUMO Abstract
A miocardiopatia de Takotsubo (MT) carac- Takotsubo cardiomyopathy (TM) is
teriza-se pela disfunção aguda e transitória characterized by acute and transitory apical
dos segmentos apicais do ventrículo esquer- diskinesia (ballooning) of the left ventricle,
do, na ausência de doença coronária. A MT with compensatory basal hyperkinesia, in
surge habitualmente em mulheres pós-meno- the absence of coronary disease. TM is more
páusicas, após um stress emocional ou um es- frequent in post-menopausic women, after
forço físico intenso. A forma de apresentação intense emotional stress or physical effort.
da MT simula normalmente uma síndrome The clinical presentation of TM usually
coronária aguda, o que torna o diagnóstico mimics an acute coronary syndrome. The
diferencial importante. Os autores apresen- authors report two clinical cases of TM and
tam dois casos clínicos nos quais se estabe- the main steps necessary to establish the
leceu o diagnóstico de MT. Discutem-se ain- diagnosis; etiology and prognosis are also
da os diagnósticos diferenciais a considerar, discussed.
bem como a etiologia e o prognóstico da MT.
51
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A miocardiopatia de Takotsubo (MT) foi
inicialmente descrita em 1990, no Japão.1
Caracteriza-se pela instalação aguda e transi-
tória de discinesia apical (ballooning) do ven-
trículo esquerdo (VE), com hipercinesia basal
compensatória, na ausência de doença coro-
nária significativa.2 "Tako tsubo" é um termo
japonês que significa armadilha para polvos.
Esta armadilha consiste num pote cuja forma
se assemelha às alterações morfológicas ad-
quiridas pelo coração quando da fase aguda
Fig. 1 Tako tsubo – Pote utilizado como
da síndrome (Fig 1).1 A MT afecta sobretudo armadilha para capturar polvos. Nas situações
mulheres em idade pós-menopausa, entre os de miocardio-patia aguda o ventrículo esquerdo
58 e os 75 anos, e surge habitualmente após adquire uma forma semelhante
um stress emocional ou um esforço físico
intensos. elevado grau de suspeição quando do dia-
gnóstico diferencial com a SCA e é essencial
Clinicamente, a MT simula uma síndrome pois os tratamentos destas duas entidades di-
coronária aguda (SCA), apresentando-se ferem substancialmente.3
com precordialgia típica, acompanhada nor-
malmente de sintomas neurovegetativos (sín- O prognóstico é bom; verifica-se normalmen-
cope, diaforese, palpitações). O exame objec- te remissão da sintomatologia e normaliza-
tivo é, na grande maioria das vezes, normal ção da cinética segmentar do VE nas quatro
e os exames complementares de diagnóstico semanas após início dos sintomas.2
permitem estabelecer o diagnóstico diferen-
cial ao excluir a doença coronária como Os autores apresentam dois casos clínicos
responsável pelas alterações estruturais ob- nos quais se estabeleceu o diagnóstico de MT.
servadas. O diagnóstico de MT requer um
CASO CLÍNICOS
CASO CLÍNICO 1 ção recente, dispneia, ortopneia, palpitações
ou de edemas dos membros inferiores. Ne-
Doente do sexo feminino, de 78 anos de gava também história recente sugestiva de
idade, com antecedentes pessoais de hi- quadro infeccioso, de esforço físico ou stress
pertensão arterial e dislipidemia, recorreu emocional.
ao Atendimento Médico Permanente do
Hospital da Luz por precordialgia do tipo Ao exame objectivo, a pressão arterial era
opressivo, com irradiação ao dorso, acom- de 107-55 mmHg e a frequência cardíaca de
panhada de diaforese e sensação de lipotí- 100 bpm, sendo o pulso rítmico e regular.
mia. Negava queixas de cansaço de evolu- A auscultação pulmonar revelava fervores
MIOCARDIOPATIA DE TAKOTSUBO. UM DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
A NÃO ESQUECER
53
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 4 Electrocardiograma com elevação dos Fig. 5 Angio-TC com ballooning dos segmentos
segmentos ST em V5 e V6 apicais e estreitamento dos segmentos basais
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
55
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
cinética segmentar aquando do cateterismo tência frequente, mas não essencial, de epi-
cardíaco confirmam a hipótese de diagnósti- sódios de stress emocional ou físico intensos
co. A evolução característica da MT consiste prévios à instalação dos sintomas e que o
na regressão da disfunção cardíaca à seme- doente com MT é frequentemente uma mu-
lhança do que se documentou em ambos os lher pós-menopáusica.
casos apresentados. As hipóteses de feocro-
mocitoma e de miocardite viral eram pouco Conforme exposto, aquando da abordagem
consistentes perante a anamnese recolhida do doente com dor torácica, um elevado
junto das doentes, bem como perante a evo- grau de suspeição, uma abordagem sistema-
lução observada, pelo que os diagnósticos se tizada e sequencial permitirão estabelecer de
consideraram excluídos. forma célere e mais frequente o diagnóstico
de MT.
Por último, é importante relembrar a exis-
BIBLIOGRAFIA
1. Sato H, Tateishi H, Uchida T. Takotsubo-type cardiomyopathy 5. Eshtehardi P, Koestner SC, Adorjan P, et al. Transient apical
due to multivessel spasm In: Kodama K, Haze K, Hon M, eds. ballooning syndrome-clinical characteristics, ballooning pattern,
Clinical aspects of Myocardial Injury: From Ischemia to Heart and long-term follow-up in a Swiss population. Int J Cardiol
Failure. Tokyo: Kagakuhyouronsya Co. 1990:56-64. 2009;135:370-5.
2. Gianni M, Dentali F, Grandi AM, Sumner G, Hiralal R, Lonn 6. Shimizu M, Kato Y, Masai H, Shima T, Miwa Y. Recurrent
E. Apical ballooning syndrome or takotsubo cardiomyopathy: a episodes of takotsubo-like transient left ventricular ballooning
systematic review. Eur Heart J. 2006;27:1523-9. occurring in different regions: a case report. J Cardiol 2006; 48:
101-7
3. Donohue D, Movahed MR. Clinical characteristics, demographics
and prognosis of transient left ventricular apical ballooning 7. Pilgrim TM, Wyss TR. Takotsubo cardiomyopathy or transient
syndrome. Heart Fail Rev 2005;10:311-6. left ventricular apical ballooning syndrome: A systematic review. Int
J Cardiol 2008;124:283-92.
4. Prasad A, Lerman A Rihal CS. Apical ballooning syndrome (Tako-
Tsubo or stress cardiomyopathy): a mimic of acute myocardial 8. Ueyama, T. Emotional stress-induced Takotsubo cardiomyopathy:
infarction. Am Heart J 2008;155:408-17. animal model and molecular mechanism. Ann N Y Acad Sci
2004;1018:437-44.
HÉRNIA DO HIATO ESOFÁGICO MANIFES-
TADA POR QUADRO CLÍNICO DE INSUFI-
CIÊNCIA CARDÍACA. CASO CLÍNICO
Hiatus hernia with clinical presentation of
heart failure. Case report
SANDRA MARQUES+
NUNO COSTA+
PEDRO OLIVEIRA
CARLOS VAZ
JOAQUIM QUIROGA+
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de uma The authors report the clinical case of a
doente de 77 anos de idade, sem patologia 77-year old female with no current medical
activa relevante e com sintomatologia suges- history, complaining of symptoms suggestive
tiva de insuficiência cardíaca congestiva em of heart failure. The patient evaluation
crescendo, em que foi identificada a presen- disclosed intrathoracic stomach location, a
ça do estômago em localização intratorácica, rare finding which constitutes an end stage
situação rara, que representa uma fase avan- of an hiatal herniation. Gastroesophageal
çada de hérnia do hiato e cuja sintomatolo- reflux and dysphagia are the most common
gia mais frequente inclui disfagia e o reflu- clinical symptoms of this condition. Specific
xo gastro-esofágico. Descrevem a abordagem therapeutic approach and the incidental
terapêutica adoptada e o achado intra-ope- finding of a gastrointestinal stromal tumor
ratório inesperado de um tumor do estroma (GIST) during laparoscopy are discussed.
gastrointestinal (GIST). A propósito do caso The authors conclude that this rare
descrito alertam também para os diagnósti- condition should be taken in consideration
cos diferenciais raros a considerar perante in the workup of patients with cardiac or
sintomatologia cardiorespiratória. respiratory symptoms.
57
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
O termo hérnia do hiato refere-se à hernia- da membrana freno-esofágica, permitindo
ção de elementos da cavidade abdominal que órgãos como o baço, o cólon, a pâncre-
através do hiato esofágico do diafragma. A as e o íleon penetrem no saco herniário.
classificação mais abrangente identifica qua-
tro tipos de hérnia do hiato:1 Globalmente, as hérnias dos tipos II, III e IV
representam os restantes 5% das hérnias do
- As hérnias do tipo I ou hérnias de desliza- hiato.
mento, que contribuem para 95% dos casos
e resultam do deslizamento da laxidão cir- As hérnias do hiato apresentam, geralmen-
cunferencial da membrana para-esofágica, te, uma sintomatologia inespecífica e inter-
permitindo que a junção gastro-esofágica se mitente,1-3 dominada pela disfagia e refluxo
situe acima do diafragma. gastro-esofágico.4 No entanto, as hérnias
para-esofágicas volumosas podem condicio-
- As hérnias do tipo II, para-esofágicas, em nar enfartamento precoce, dor retroesternal,
que o fundo do estômago se hernia através ortopneia, dispneia paroxística nocturna e
do hiato, mas em que a junção gastro-esofá- palpitações, que resultam da ocupação do
gica se mantém na sua posição abdominal. espaço torácico pelo estômago e respectiva
compressão mecânica.1-4
- As hérnias do tipo III, variante do tipo II,
possuem características das hérnias dos ti- Os autores descrevem um caso clínico de
pos I e II. hérnia do hiato para-esofágica com uma
apresentação inabitual com sintomatologia
- As hérnias do tipo IV, também variante do cardiopulmonar.
tipo II, estão associadas a um grande defeito
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 77 anos de ida- mastectomia esquerda há 21 anos por neo-
de, caucasiana, recorre à consulta de Medi- plasia da mama.
cina Interna no Hospital da Luz – Centro
Clínico da Amadora, com queixas, com cer- Objectivamente, apresentava-se normoten-
ca de 10 meses de duração e em crescendo, sa, sem alterações significativas na ausculta-
de cansaço, ortopneia e edema dos membros ção cardíaca e pulmonar, abdómen com dor
inferiores e, mais recentemente, enfartamen- à palpação profunda ao nível do epigastro e
to e dor retroesternal pós-prandial e palpita- com discreto edema dos membros inferiores.
ções. A doente negava febre, emagrecimen-
to, anorexia, sudação, expectoração, perdas Nos exames complementares realizados
hemáticas, azia e queixas genito-urinárias. apresentava um electrocardiograma (ECG)
sem alterações significativas e um controlo
Como antecedentes pessoais salienta-se analítico de rotina dentro dos parâmetros
HÉRNIA DO HIATO ESOFÁGICO MANIFESTADA POR QUADRO CLÍNICO DE INSUFICIÊNCIA CARDÍACO. CASO CLÍNICO
Fig. 1 Radiografia do tórax – Imagem de natureza aérea volumosa. Note-se a ausência da câmara
gástrica na sua localização habitual (subdiafragmática esquerda)
Fig. 2 Estudo TC realizado com contraste endovenoso após administração de contraste oral. Com-
plementarmente realizaram-se reconstruções multiplanares. Verifica-se volumosa hérnia gástrica
transhiatal ocupando uma topografia retrocardíaca. Note-se o ligeiro espessamento parietal gástrico.
Nas reconstruções em plano coronal pode observar-se a sua extensão crânio-caudal, bem como a sua
relação com o diafragma
59
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
terapêutica cirúrgica com a qual concordou. gem descrita permitiu a visualização de uma
lesão nodular com cerca de 6 mm que foi
Adoptou-se uma abordagem transabdomi- totalmente retirada (Fig. 3 a 6).
nal laparoscópica com cinco portas. Proce-
deu-se a redução sem tensão do esófago e O exame anatomopatológico mostrou tra-
estômago herniados na cavidade torácica, tar-se de um tumor do estroma gastrointes-
com ressecção do saco herniário utilizan- tinal (GIST), com características benignas,
do dissector ultrassónico. Encerraram-se com a imunomarcação habitual para o
os pilares com pontos separados de fio de CD34 e CD117 (Fig. 7).
monofilamento não absorvível e foi colo-
cada como reforço uma prótese de dupla Actualmente, com cerca de quatro meses de
face que foi fixada aos pilares, também com pós-operatório, a doente encontra-se assin-
pontos separados de fio de monofilamento tomática, sem intercorrências cirúrgicas (Fig
não absorvível. Em seguida foi realizada 8).
uma fundoplicadura de Nissen. A aborda-
DISCUSSÃO
As hérnias para-esofágicas são problemas ra- esofágico é mais evidente nos doentes com
ros do hiato esofágico e necessitam de uma hérnias para-esofágicas, do que nos doentes
abordagem específica. Alguns investigado- com hérnia hiatal por deslizamento. Aque-
res reportam que as hérnias para-esofágicas les que estão de acordo com esta associação,
constituem uma extensão natural das hérnias argumentam que a ausência de sintomas si-
hiatais por deslizamento, ainda que estes do- gnificativos de GERD está relacionada com
entes, frequentemente, não apresentem sin- a obstrução progressiva da união esófago-
tomas de doença de refluxo gastro-esofágico gástrica pelo fundo gástrico deslizado.5
(GERD) refractários a tratamento médico.
Este facto é especialmente relevante conside- Objectivamente, os doentes com hérnias pa-
rando que a alteração anatómica peri-hiato ra-esofágicas não apresentam alterações si-
61
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
gnificativas, excepto se existirem complica- tar a idade dos doentes, este valor continuava
ções importantes. a diminuir até anular qualquer benefício com
a cirurgia electiva. Mesmo sendo um modelo
A obstrução gástrica, que leva a disfagia, ul- experimental computorizado apoia a atitude
ceração gástrica, risco de aspiração pulmonar conservadora no tratamento da hérnia para-
e possível compromisso vascular do estôma- -esofágicas em doentes assintomáticos, com
go (por volvo do órgão) encontra-se entre as mais de 65 anos.6
complicações das hérnias para-esofágicas.3,5
Na maioria dos doentes, o diagnóstico das
As queixas de dispneia e dor torácica da do- hérnias do hiato é acidental. Em muitos ca-
ente estavam relacionadas com o espaço ocu- sos, tal como no que é apresentado, os doen-
pado pela hérnia na cavidade torácica. tes são referenciados para uma consulta de
Cirurgia Geral após um estudo cardiológico
A probabilidade superior a 40% de com- negativo consequente a queixas de dor torá-
plicações significativas relacionadas com as cica, ou a uma investigação inconclusiva por
hérnias para-esofágicas, implica a indicação sintomatologia respiratória intermitente.
de tratamento cirúrgico electivo para todos
os doentes sintomáticos, excepto nos casos Entre os exames complementares de diagnós-
em que está associada uma comorbilidade tico, o estudo contrastado do tracto gastroin-
elevada.5 testinal superior é o mais importante, pois
permite visualizar hérnias para-esofágicas em
Assim, nos doentes sintomáticos, como no 50 a 97% dos casos, bem como o volvo axial
caso desta doente, existe indicação para te- eventualmente associado. A endoscopia di-
rapêutica cirúrgica. A dúvida na abordagem gestiva alta deve também ser considerada, já
a utilizar tem sido colocada nos doentes com que coexiste frequentemente uma inflamação
hérnias do hiato e assintomáticos. Neste con- da mucosa esofágica de gravidade variável.5
texto, foi criado um modelo experimental A phmetria esofágica tem uma importância
computorizado envolvendo cinco milhões questionável, já que o refluxo ácido origina-
de doentes com mais de 65 anos, com o ob- do pela obstrução mecânica do estômago di-
jectivo de determinar se poderiam beneficiar ficulta a interpretação dos resultados.5
ou não de reparação laparoscópica. Numa
revisão de 21 estudos sobre mortalidade O tratamento de eleição continua a ser a
pós-cirurgia laparoscópica de hérnias para- correcção cirúrgica, sendo consensual a re-
-esofágicas, foi determinada uma incidência dução das vísceras abdominais herniadas, a
média de 1,38%. Outros cinco estudos sobre excisão do saco herniário, a reparação dos
complicações e mortalidade de hérnias para- pilares diafragmáticos e a gastropexia para
-esofágicas não tratadas cirurgicamente, re- evitar a recidiva. Mantém-se ainda alguma
velaram que, anualmente, 1,16% desenvol- controvérsia na abordagem preferencial:
viam quadro cirúrgico agudo com necessida- transtóracica ou transabdominal, laparoscó-
de de intervenção urgente. Assim, concluíram pica ou convencional, necessidade ou não de
que a intervenção laparoscópica electiva, em fundoplicatura como parte da reparação bá-
doentes com mais de 64 anos, proporciona sica, fundoplicatura total ou parcial, eventual
uma redução de 0,13 anos de vida ajustados colocação de prótese.6
em função da qualidade de vida. Ao aumen-
HÉRNIA DO HIATO ESOFÁGICO MANIFESTADA POR QUADRO CLÍNICO DE INSUFICIÊNCIA CARDÍACO. CASO CLÍNICO
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem a colaboração do Dr.
Ricardo Abbud e do Enf. Paulo Fonseca.
BIBLIOGRAFIA
1. Kahrilas, PJ. Hiatus hernia. In: http://www.uptodate.com 5. Landreneau, RJ, Del Pino M, Santos R. Management of
(consultado em Outubro de 2010). paraesophageal hernias. Surg Clin N Am 2005;85:411-32.
2. Ueda T, Mizushige K. Large hiatus hernia compressing the heart 6. Lal DR, Pellegrini CA, Oelschlager BK. Laparoscopic repair of
and imparing the respiratory function: a case report. J Cardiol paraesophageal hernias. Surg Clin N Am 2005;85:105-18.
2003;41:29-34.
7. Predescu D, Gheorghe M, Predoiu I, et al. Gastrointestinal
3. Obuchi T, Sasaki A, Nakajima J, Baba S, Kimura Y, Wakabayashi stromal tumor (GIST) – medical rarities? Abst. Chirurgia.
G. Surgical management of hiatus hernia with chronic gastric 2010;105: 577-85.
volvulus: report of two cases. Esophagus 2010;7:59-63.
4. Bilgin Y, Wiel H. An unusual presentation of a patient with
intrathoracic stomach: a case report. Cases J 2009;2:7514.
63
EMBOLISMO PARADOXAL A PARTIR DE
UM TROMBO ADERENTE A UM CATÉ-
TER VENOSO CENTRAL. CASO CLÍNICO*
Paradoxical embolism from a huge thrombus
adherent to a central venous catheter.
Case report
NUNO CARDIM
JÚLIA TOSTE
VANESSA CARVALHO
IGOR NUNES
DANIEL FERREIRA
VANDA CARMELO
ANA OLIVEIRA
JOSÉ FERRO
SYLVIE MARIANA
ADELAIDE ALMEIDA
FRANCISCO PEREIRA MACHADO
JOSÉ ROQUETTE
RESUMO Abstract
* Traduzido e adaptado de Cardim et al.: Playing games with a thrombus: a dangerous match. Paradoxical embolism from a huge central
venous catheter: a case report. Cardiovascular Ultrasound 2010 8:6.
65
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
Nos doentes oncológicos, as alterações da o lúmen de um vaso, conduzindo à oclusão
hemostase variam desde situações assinto- total ou parcial desse vaso. De acordo com
máticas até um tromboembolismo massivo. revisões recentes, nos doentes oncológicos
A sua importância clínica reside no facto de a incidência de trombose sintomática e as-
constituírem a segunda principal causa de sintomática associada ao CVC é muito su-
morte nesses doentes.1 Embora não esteja perior à que se regista em populações não
completamente esclarecida, esta síndrome seleccionadas, variando entre 0-28% e entre
de hipercoagulação paraneoplásica pode ser 12-66%, respectivamente.6 Os relatórios
secundária a um desequilíbrio entre a coa- de autópsia sugerem que pode ocorrer uma
gulação e fibrinólise, para o qual contribui patência do foramen ovale (PFO) em cerca
o catabolismo do fibrinogénio e das plaque- de 11% a 35% da população normal,7 com
tas, a redução de factores antitrombóticos, uma incidência relacionada com a idade de
como as proteínas S, C e antitrombina, o 34,3% para idades entre 0 e 29 anos, 25,4%
aumento da activação e agregação plaquetá- para idades entre 30 a 79 anos e 20,2%
ria,2 o aumento de formação de trombina e para idades entre 80 e 99 anos. Está descri-
a trombocitose3 secundária a uma produção ta a análise consecutiva de 1100 autópsias e
excessiva de trobopoietina e interleucina6 referida uma probe-PFO (medindo 0,2 a 0,5
pelo tumor.4 O nível de gravidade das altera- cm) em 29% e uma pencil-PFO (medindo
ções da hemostase depende de diversos fac- 0,6 a 1,0 cm) em 6% dos casos.7
tores, incluindo o tipo e estadio do tumor, os
efeitos da quimioterapia adjuvante e a pre- O embolismo paradoxal foi descrito pela
sença de catéteres venosos centrais (CVC) primeira vez em 1877 por Cohnheim7 e
para a sua administração, os procedimentos refere-se à passagem de um êmbolo do cora-
cirúrgicos e outras terapêuticas adjuvantes.5 ção direito para o coração esquerdo através
de um shunt direito-esquerdo, conduzindo a
Nos doentes oncológicos a utilização de embolismo arterial. A PFO representa 70%
CVC a longo prazo é comum. A sua presen- de todos os shunts cardíacos direitos-es-
ça pode ser complicada por uma trombose querdos. Outras origens incluem defeitos do
associada ao CVC, definida como a extensão septo interventricular, anomalia de Ebstein,
de um trombo mural a partir do catéter para malformações artériovenosas pulmonares e
EMBOLISMO PARADOXAL A PARTIR DE UM TROMBO ADERENTE A
UM CATÉTER VENOSO CENTRAL. CASO CLÍNICO
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 57 anos de ida- cerebral média esquerda.
de, admitida devido a um início agudo de afa-
sia sem défices motores aparentes. Três anos O electrocardiograma estava normal, mas o
antes tinha-lhe sido diagnosticado um ade- ecocardiograma transtorácico sugeria aneu-
nocarcinoma do cólon (Kras tipo selvagem), risma do septo interauricular (ASA) com
com metástases hepáticas e pulmonares, es- uma PFO possível.
tando presentemente sob quimioterapia (ce-
tuxime e esquema FOLFOX, que inclui ácido A ETE revelou a presença de uma volumosa
folínico, 5-fluoruracil e oxaliplatina) admi- massa arredondada na aurícula direita (Ví-
nistrada através de um CVC permanente im- deo 1), proveniente da veia cava superior
plantado na veia cava superior. (Vídeos 2 e 3). A massa parecia estar ligada
à região medial e proximal do catéter, cuja
Três meses antes a doente tinha sido hospi- extremidade distal podia ser observada livre
talizada devido a bacteriemia por Listeria de massas dentro da cavidade auricular di-
monocytogenes, tratada com antibióticos reita (Fig. 1 e 2). O ASA era hiperdinâmi-
(amoxicilina-ácido clavulânico + ceftriaxo- co, com uma mobilidade elevada, e batia a
na). A doente recuperou e teve alta sem défi- massa em cada ciclo cardíaco, tal como uma
ces neurológicos. raquete bate a bola num jogo de ping-pong
(Fig. 3 e Vídeos 2, 3 e 4). A injecção de um
Duas semanas antes da apresentação actual bolus de soro fisiológico agitado numa veia
o catéter tinha sido substituído devido a fe- da região anterior do braço confirmou uma
bre de origem desconhecida. pequena PFO, com pequena quantidade de
bolhas (menos de 5) no coração esquerdo
O exame físico revelou uma doente vigil, lú- sem manobra de Valsalva provocatória (Fig. 4).
cida e cooperante, com afasia motora trans-
cortical (repetição de palavras e compreen- De acordo com os dados clínicos e dos
são mantida), sem défices motores focais ou exames imagiológicos acima descritos,
outras alterações no exame neurológico. o diagnóstico foi de acidente vascular cere-
bral (AVC) isquémico no território da arté-
A ressonância magnética (RM) crânio-ence- ria cerebral média esquerda, devido a embo-
fálica com estudo de difusão revelou lesões lismo paradoxal com origem num trombo
de difusão restrita na área frontal esquerda, aderente ao catéter venoso central através
consistentes com uma lesão vascular cere- de uma PFO num ASA.
bral aguda isquémica no território da artéria
67
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
69
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
da a CVC [risco relativo = 0,37 (intervalo ção inicial foi a administração intravenosa
de confiança 95% 0,26-0,52), P<0,001)].6 de heparina não fraccionada durante cin-
Por outro lado, e de acordo com diversos co dias, sem qualquer redução da dimen-
ensaios randomizados realizados em doen- são do trombo controlada através de ETE.
tes oncológicos, as heparinas de baixo pelo Decidiu-se não realizar trombólise devido
molecular não têm qualquer benefício na ao risco de fragmentação do trombo e con-
prevenção da trombose sintomática da veia sequente embolismo pulmonar e paradoxal.
cava superior (embora não aumentem o ris- Pela mesma razão, optou-se por não puxar
co de hemorragia).6 e remover simplesmente o CVC; o diâme-
tro do trombo era superior ao do lúmen da
Que outros factores aumentam o veia cava superior. Assim, foi escolhida a
risco tromboembólico nos doentes cirurgia, como última e mais difícil opção,
oncológicos? tendo em conta os benefícios (evitar embo-
lismo pulmonar e sistémico massivo devido
Os regimes de quimioterapia também dife- à presença de um grande trombo no CVC
rem no seu perfil protrombótico. Aparente- a jogar ping-pong com um ASA hiperdinâ-
mente os doentes tratados com combinações mico) ponderados em relação aos riscos do
de antraciclina, cisplatina ou 5-fluoruracil procedimento.
(como a doente descrita este trabalho), apre-
sentam um risco trombótico aumentado.15 ASA, PFO e embolismo paradoxal em
Estudos microscópicos incluídos em ensaios doentes oncológicos.
realizados com 5-fluoruracil em animais re-
velaram lesões endoteliais importantes, com O embolismo paradoxal é uma causa co-
formação de trombos, induzidas por este mum de AVC isquémico em doentes com
composto.15 PFO, em geral com a origem dos êmbolos
numa doença venosa dos membros inferio-
Um outro aspecto importante é o facto de res. No entanto, no caso descrito, a origem
o doente ter tido uma bacteriemia prévia. A do trombo era uma massa intracardíaca vo-
bacteriemia é muito mais comum nos doen- lumosa diagnosticada através de ETE.
tes com trombose do catéter e a trombose
em si é um factor de risco para a infecção As implicações clínicas da morfologia da
do catéter.15 PFO e os aspectos que lhe estão associados
são ainda motivo de debate.16,17 A análise
A abordagem cirúrgica foi adequada qualitativa e quantitativa por ETE é útil
neste doente específico? para a caracterização do risco de embolismo
paradoxal relacionado com PFO. Nos doen-
Na ausência de guidelines, todas as decisões tes com AVC crioptogénico, a PFO grande
terapêuticas, especialmente as relacionadas e em forma de túnel, com um shunt grave e
com a realização de cirurgia cardíaca, foram “espontâneo”, ASA e rede Chiari concomi-
debatidas exaustivamente em reuniões mul- tantes aumentam o risco embólico.17 Assim,
tidisciplinares (internistas, neurologistas, estes dados morfológicos e funcionais deta-
cardiologias e cirurgiões cardíacos). Para lhados devem ser considerados na avaliação
evitar intervenções terapêuticas excessivas, por ETE de uma PFO e não apenas a simples
foi seguida uma abordagem faseada. A op- presença ou ausência.
EMBOLISMO PARADOXAL A PARTIR DE UM TROMBO ADERENTE A
UM CATÉTER VENOSO CENTRAL. CASO CLÍNICO
CONCLUSÃO
O tromboembolismo é a segunda principal aneurisma do septo auricular e uma patên-
causa de morte nos doentes oncológicos e cia do foramen ovale deve ser realizada uma
a trombose associada a um catéter venoso ecocardiografia transesofágica para deta-
central é muito frequente nestes doentes. lhar a morfológia e a definição funcional do
risco de embolismo paradoxal relacionado
A realização de ecocardiografia transtorá- com a PFO.
cica de rotina pode desempenhar um papel
importante no acompanhamento dos doen- Perante um risco elevado de PFO, a situa-
tes oncológicos com catéteres venosos cen- ção clínica deve ser discutida no âmbito de
trais. Esta técnica pode identificar factores uma reunião multidisciplinar (cardiologista,
predisponentes para um embolismo para- oncologista, neurologista) e a decisão de ini-
doxal e permitir a selecção de doentes para ciar ou não anticoagulação deve ser conside-
terapêutica anti-agregante e anticoagulante. rada numa base individual, tendo em conta
Por outro lado, na presença de um aciden- os riscos e os benefícios da intervenção.
te vascular cerebral, caso seja detectado um
REFERÊNCIAS
1. Bayiadzis M, Lieberman F, Geskin L, Foon K. Paraneoplastic 8. Windecker S, Wahl A, Chatterjee T, Garachemani A, Eberli F,
syndromes in cancer. In: De Vita V, Lawrence T, Rosenberg S, Seiler C, Meier B. Percutaneous closure of patent foramen ovale
eds. Cancer: Principles and practice of oncology. Wolters Klumer, in patients with paradoxical embolism: long-term risk of recurrent
Lippincott W&W, 2008;:2343-63. thromboembolic events. Circulation 2000;101:893-8.
2. De Sancho M, Rand J. Bleeding and thrombotic complications in 9. Geerts W, Bergqvist D, Pineo G. Prevention of venous
critically ill patients with cancer. Crit Care Clin 2001;17:599-607. thromboembolism: American college of chest physicians
evidence-based clinical practice guidelines (8th edition). Chest
3. Bick R, Strauss J, Frenkel E. Thrombosis and hemorrhage in 2008;133:381S-453S.
oncology patients. Hematol Oncol Clin North Am 1997;10:875-907.
10. National Comprehensive Cancer Network. NCCN clinical
4. Estrov Z, Talpaz M, Mavligit G, et al. Elevated plasma practice guidelines in oncology. Venous thromboembolic disease. 2008
thrombopoietic activity in patients with metastatic cancer-related In: http://www.nccn.org/professionals/physician_gls/PDF/vte.pdf
thrombocytosis. Am J Med 1995;98:551-8.
11. Schulman S, Lindmarker P. Incidence of cancer after prophylaxis
5. Falanga A. The incidence and risk of venous thromboembolism with warfarin against recurrent venous thromboembolism.
associated with cancer and nonsurgical cancer treatment. Cancer Duration of Anticoagulation Trial. N Eng J Med 2000;342:1953-8.
Investig 2009;27:105-15.
12. Smorenburg S, Van Noorden C. The complex effects of heparins
6. Debourdeau P, Chahmi D, Le Gal G, Kriegel I, Desruennes E, on cancer progression and metastasis in experimental studies.
Douard M, on behalf of the working group of the SOR, et al. 2008. Pharmacological Review 2001;53:93-105.
SOR guidelines for the prevention and treatment of thrombosis
associated with central venous catheters in patients with cancer: 13. Akl E, Van Doormaal F, Barba M, et al. Parenteral
report from the working group. Annals Oncol 2009, 20:1459-71. anticoagulation for prolonging survival in patients with cancer who
have no other indication for anticoagulation. J Exp Clin Cancer Res.
7. Walker M, Allie D, Lirtzman M, Wyatt C, Dennis A, Vitrella D, 2008; 27:4. doi: 10.1186/1756-9966-27-4.
Craig S. Septic paradoxical embolus through a patent foramen ovale
after pacemaker implantation. Ann Thorac Surg 2000;69:946-8.
71
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
14. Akl E, Karmath G, Yosuico V, et al. Anticoagulation for 17. Goel S, Tuzcu E, Shishehbor M, Oliveira E, Borek P, Krasuski R.
thrombosis prophylaxis in cancer patients with central venous et al. Morphology of the patent Foramen Ovale in asymptomatic
catheters. Cochrane Database Syst Rev 2007;3:CD006468. versus symptomatic (stroke or transient ischemic attack) patients.
Am J Cardiol 2009;1:124-9.
15. Sanchez J, Battle J, Feijoo J. Catheter related thrombosis:
a critical review. Supportive Cancer Therapy 2007;3:145-51.
DANIEL FERREIRA
VANESSA CARVALHO
JOSÉ FERRO
NUNO CARDIM
RUI ANJOS
RESUMO Abstract
Em doentes seleccionados, a oclusão percu- In selected patients, percutaneous closure is
tânea é actualmente a abordagem de eleição currently the approach of choice for patent
para o encerramento de foramen ovale per- foramen ovale (PFO), as an alternative
meável (FOP), em alternativa à abordagem ci- to surgical procedures. In recent years,
rúrgica. Nos últimos anos, a ecocardiografia intracardiac echocardiography has been
intracardíaca tem vindo a substituir a ecocar- replacing transesophageal echocardiography
diografia transesofágica na monitorização do to monitor percutaneous closure of PFO,
encerramento percutâneo de FOP, pelo me- due to less discomfort caused to patients,
nor desconforto que causa aos doentes, bem as well as to the better quality of images,
como pela melhor qualidade das imagens, improving significantly several details of the
com um impacto significativo em vários as- procedure. The first case of percutaneous
pectos da intervenção. É descrito o primeiro closure of PFO monitorized with
caso de encerramento percutâneo de FOP mo- intracardiac echocardiography performed at
nitorizado por ecocardiografia intracardía- the Hospital da Luz is reported, enhancing
ca realizado no Hospital da Luz, comprovan- also the advantages mentioned by several
do-se as vantagens referidas por vários au- other authors.
tores.
73
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
Na vida fetal o fluxo sanguíneo passa da se suspeite de embolia paradoxal podem
aurícula direita para a esquerda, através constituir indicação para o encerramento
de uma solução de continuidade do septo de FOP. Actualmente, a oclusão percutânea
interauricular, o foramen ovale, descompri- tornou-se o método terapêutico de escolha,
mindo o ventrículo direito e dispensando a substituindo com vantagens a abordagem
oxigenação pelos pulmões ainda não desen- cirúrgica em doentes seleccionados.
volvidos. Durante os primeiros movimentos
respiratórios do recém-nascido, a pressão Classicamente, o procedimento de encer-
na aurícula esquerda aumenta e favorece o ramento percutâneo de FOP era monito-
encerramento funcional desta comunicação. rizado por ecocardiografia transesofágica
Na maioria dos indivíduos, a oclusão com- (ETE), pois esta permitia a avaliação pre-
pleta ocorre até aos dois anos de vida. cisa da anatomia septal, a caracterização e
localização do FOP, tendo ainda um papel
Contudo, estudos ecocardiográficos e ne- fundamental para a monitorização do ade-
crópsicos evidenciam que, em cerca de 25- quado posicionamento e libertação dos dis-
30% da população adulta, o foramen ovale positivos utilizados para este encerramento.
não encerra completamente, passando a de- No entanto, a ETE causa desconforto ao
signar-se foramen ovale permeável (FOP).1,2 doente durante a passagem e manipulação
da sonda esofágica, agravado pelo facto do
Embora com um nível de risco reduzido, o procedimento ter uma duração prolongada
FOP pode estar relacionado com a ocorrên- (semelhante à do procedimento invasivo
cia de embolismo paradoxal. A corroborar de encerramento do FOP), levando muitas
este risco potencial está a identificação de vezes à necessidade de anestesia geral com
doentes que desenvolviam shunt direito-es- intubação endotraqueal. Para obviar estes
querdo durante a prática de exercício físico, inconvenientes, foi proposta a utilização de
levando a hipóxia.2 Independentemente da sondas ecocardiográficas intracardíacas.4,5
possibilidade de ocorrência de fenómenos
trombo-embólicos, habitualmente os doen- Actualmente, a ecocardiografia intracardía-
tes são assintomáticos e não necessitam de ca tem vindo a assumir um papel importan-
ser submetidos a encerramento do FOP, re- te na monitorização deste procedimento. De
querendo apenas profilaxia dos fenómenos facto, a via intracardíaca parece ser mais
embólicos com anti-agregantes plaquetares. vantajosa do que a transesofágica pois per-
mite a obtenção de imagens de maior quali-
Por outro lado, foi possível documentar dade (uma vez que o transdutor se encontra
que a incidência de FOP é mais elevada em dentro da aurícula direita), além de permitir
doentes com história de acidente vascular uma melhor avaliação do septo interauri-
cerebral (AVC) criptogénico (de origem des- cular póstero-inferior, próximo à veia cava
conhecida), comparados com doentes com inferior. Nesta localização, o septo pode
AVC de causa conhecida.3 muitas vezes apresentar orifícios adicionais
ou possuir características anatómicas que
Assim, quadros clínicos que relatem a exis- dificultem o procedimento.5
tência de fenómenos embólicos em que
A ECOCARDIOGRAFIA INTRACARDÍACA COMO SUPORTE AO ENCERRAMENTO PERCUTÂNEO DE FORAMEN OVALE PERMEÁVEL.
PRIMEIRO CASO DO HOSPITAL DA LUZ
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 55 anos de ida- membros inferiores sem oclusões, mas com
de, obesa, submetida em Setembro de 2009 insuficiência venosa.
a intervenção cirúrgica bariátrica (gastrecto-
mia em sleeve). Às 30 horas do período pós- · Ecocardiograma transtorácico que se re-
operatório, e após fazer o primeiro levante, velou normal. Documentação de FOP, com
tem quadro de AVC isquémico com afasia, shunt direito-esquerdo e aneurisma do septo
assimetria da fala e diplopia. interauricular no ecocardiograma transeso-
fágico (Fig. 1 e 2 e Vídeos 1 e 2).
Realiza exames de rotina para avaliação da
possível causa do AVC isquémico: A doente realizou ainda ressonância
magnética (RM) e angiografia com RM
· Doppler carotídeo e Doppler transcrania- (angio-RM) que não mostraram anomalias
no, sem alterações relevantes e Doppler dos vasculares.
Fig.1 ETE visualizando-se a passagem de bolhas Fig. 2 ETE visualizando-se aneurisma do septo
da AD para a AE, sinal de existência de shunt interauricular (ANSIA)
direito/esquerdo, comprovando a permeabilidade AD - aurícula direita
do foramen ovale AE - aurícula esquerda
AD - aurícula direita AO - aorta
AE - aurícula esquerda
AO - aorta
75
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
COMENTÁRIOS E CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
1. Hagen PT, Scholz DG, Edwards WD. Incidence and size of patent 5. Hijazi Z, Wang Z, Cao Q, Koenig P, Waight D, Lang R.
foramen ovale during the first 10 decades of life: an autopsy study Transcatheter closure of atrial septal defects and patent foramen
of 965 normal hearts. Mayo Clin Proc 1984;59:17-20. ovale under intracardiac echocardiographic guidance: feasibility
and comparison with transesophageal echocardiography. Catheter
2. Wilmhurst P, Nightingale S. Relationship between migraine and Cardiovasc Interv 2001;52:194-9.
cardiac and pulmonary right-to-left shunts. Clin Sci 2001;100:215-20.
6. Koenig PR, Abdulla RI, Cao QL, Hijazi ZM. Use of
3. Nedeltchev K, Arnold M, Wahl A, et al. Outcome of patients with intracardiac echocardiography to guide catheter closure of atrial
cryptogenic stroke and patent foramen ovale. J Neurol Neurosurg communications. Echocardiography 2003;20:781-7.
Psychiatry 2002;72:347-50.
77
UM CASO CLÍNICO DE ABORDAGEM
INTERDISCIPLINAR EM CUIDADOS
PALIATIVOS
Interdisciplinary approach in palliative care.
Case report
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de uma The authors present the clinical case of a
doente com carcinoma do pulmão, já em es- patient with lung cancer, already in stage IV
tadio IV aquando do seu diagnóstico e con- at the time of diagnosis and admission in the
sequente internamento na Unidade de Cui- palliative care unit of Hospital da Luz, to
dados Paliativos do Hospital da Luz para symptoms control and global intervention
controlo sintomático e intervenção global within the context of suffering associated
no sofrimento associado ao contexto descri- with advanced disease and multiple
to. Descrevem em pormenor a intervenção associated losses. The multidisciplinary
multidisciplinar e os seus objectivos durante intervention and its objectives during about
cerca de 15 meses, até ao falecimento da do- 15 months, until the death of the patient, is
ente, tanto nos períodos de internamento na- described, both in periods of hospitalization
quela unidade, como de seguimento em am- and during follow-up as an outpatient.
bulatório. Finalmente, os autores concluem Finally, the authors conclude that this case
que este caso é demonstrativo da importân- demonstrates the importance for a patient
cia para um doente e sua família da referen- and family of an early and timely referral
ciação precoce e atempada para cuidados pa- to palliative care, and of the possibility,
liativos, bem como da possibilidade, também also beneficial, of interdisciplinary care in
benéfica, de cuidados interdisciplinares e par- this context, in which different specialties,
79
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
tilhados neste contexto, em que diferentes es- under the overall direction of palliative
pecialidades, sob gestão global dos cuidados care, provide adequate and not futile
paliativos, oferecem intervenções proporcio- interventions in disease within a framework
nadas e não fúteis, dirigidas à doença, sempre of seeking benefits to the patient and clinical
num quadro de procura de obtenção de be- excellence.
nefícios para o doente e de excelência clínica.
INTRODUÇÃO
Os Cuidados Paliativos, enquanto cuida- há nada a fazer”, sempre em oposição e
dos de saúde especializados na abordagem excluindo os cuidados curativos – para um
interdisciplinar das situações de sofrimento “modelo cooperativo com intervenção nas
condicionadas por doença grave e/ou avan- crises” (Fig. 1), em que, com base nas ne-
çada, incurável e progressiva, centram-se cessidades dos doentes e na evolução da do-
nas necessidades globais das pessoas doen- ença, se faz uma passagem progressiva para
tes nessas circunstâncias.1 Não devem ser os Cuidados Paliativos, que assumem maior
oferecidos com base num prognóstico (ape- relevância, sem nunca pôr de parte a inter-
nas para moribundos) ou num diagnóstico venção de outras especialidades.3
(devem ser prestados a doentes oncológicos
e não oncológicos, estes últimos correspon- Existem diferentes tipologias de doentes
dendo até a um grupo mais numeroso que com necessidade de Cuidados Paliativos: um
o primeiro), e não excluem a possibilidade doente paliativo não será necessariamente
de intervenções multiprofissionais dirigidas um doente terminal (prognóstico estimado
à doença, de forma partilhada, se essas se de 3 - 6 meses de via) ou moribundo (com
traduzirem em benefício para os doentes.2 dias ou horas de vida). Um doente paliativo
Passou-se assim de um “modelo de cuidados pode, muitos meses ou anos antes de fale-
separados” – os Cuidados Paliativos esta- cer, carecer essencialmente de intervenções
vam remetidos apenas para o fim de vida, dirigidas ao seu bem-estar e sofrimento e ser
na ideia de só servirem para “quando não visto como um doente reabilitativo.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 76 anos de ida- inferior do pulmão esquerdo com diâmetro
de, caucasiana, de nacionalidade americana, máximo de 29 mm, com SUV máx de 5,98;
professora e directora em actividade de um duas adenopatias no hilo pulmonar contrala-
colégio, casada há 55 anos, com 3 filhos teral com 3,81 de SUV máx; hipercaptação
adultos e netos, que não coabitavam, sendo em D12, L1, L2 e L4, traduzindo lesões se-
o marido o cuidador principal. Apresentava cundárias ósseas e envolvimento de partes
como antecedentes pessoais mais relevantes moles circundantes. A biópsia revelou tratar-
hipertensão arterial (HTA) e arritmia cardía- -se de adenocarcinoma do pulmão, de acordo
ca controladas, pólipo benigno do cólon ex- com os outros resultados obtidos, em estadio
tirpado em 2009, e era fumadora desde os 20 IV (osso e pulmão contralateral – estadio
anos até ao primeiro internamento na Uni- T1N3M1). Após consulta de Pneumologia, e
dade de Cuidados Paliativos, com uma carga por apresentar dor não controlada, incapa-
tabágica de 60 unidades maço ano (UMA). cidade funcional marcada nas diferentes ac-
tividades de vida diárias (AVD) e ansiedade/
Em Fevereiro de 2009 iniciou queixas de angústia relacionada com as perdas associa-
dor dorso-lombar moderada a severa, com das ao diagnóstico recente de neoplasia em
irradiação à região inguinal e face interna fase avançada, foi-lhe proposto internamento
da coxa, bilateralmente. Por agravamento em 25 de Fevereiro de 2009 na Unidade de
dessa dor foi observada em ambulatório, fez Cuidados Paliativos do Hospital da Luz, para
tomografia compotorizada (TC) do tórax optimização do controlo sintomático.
e abdómino-pélvica e posteriormente uma
tomografia por emissão de positrões (PET). A doente mostrou-se desde o início muito
estóica, controladora e centralizadora das
Ainda em Fevereiro de 2009 foi observada decisões, comunicando que pretendia estar
em consulta de Pneumologia do Hospital na posse de toda a informação sobre a sua
da Luz, tendo efectuado broncofibroscopia doença – com dados concretos sobre dia-
com biópsia. A PET mostrou, para além de gnóstico e prognóstico - e sobre as possíveis
adenopatias mediastínicas, um nódulo hiper- opções terapêuticas a tomar. Referia que o
metabólico no segmento superior do lobo processo de doença é “normal” (sic), fazen-
81
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Bem-Estar
A prioridade no início do internamento foi
Dispneia
claramente para o controlo sintomático,
25-02-2009 23-04-2009
após aplicação da escala habitualmente usa-
da na Unidade – ESAS, Edmonton System Fig. 3 Resultados da aplicação da Escala de
Assessing Symptom (Fig. 2), nomeadamente Avaliação de Sintomas de Edmonton no primeiro
a incapacidade da doente para se mobilizar internamento
e a dor de características somáticas e neu-
ropática, condicionada pelas várias lesões ajustes terapêuticos, tendo iniciado morfina
ósseas dorso-lombares e com componente de acção rápida, com posterior passagem
de compressão. A doente não apresentava para fentanil transdérmico (TD), que se foi
tosse ou dispneia (Fig. 3). Assim, iniciou depois aumentando progressivamente de 50
analgésicos opióides fortes e corticotera- µg/h para 125 µg/h.
pia (dexametasona) e gabapentina como
co-adjuvantes. Foram necessários diversos Nesta altura foi também realizada uma reu-
Por favor assinale o número que melhor descreve a intensidade dos seguintes sintomas neste momento.
(Também se pode perguntar a média durante as últimas 24 horas)
83
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
astenia progressiva e necessidade de suporte nal até 3 dias antes deste internamento.
transfusional. No final de Maio de 2010 a
doente colocou a possibilidade de suspender Era portadora de uma TC toraco-abdomi-
a QT, decisão que se discutiu e confirmou nal recente, de controlo, que revelava pro-
aquando do internamento que se seguiu. gressão marcada da doença a nível torácico
e também metástases hepáticas múltiplas de
Por agravamento das queixas dorso-lomba- novo. O raio-x realizado à entrada confir-
res e início de dor (valor 7 numa escala de mou a progressão da doença, a infecção res-
10 pontos) na anca e região inguinal direitas, piratória e a ausência de derrame pleural. No
condicionadoras de incapacidade funcional, exame objectivo realizado na mesma altura
bem como por aparecimento de cansaço a destacavam-se alguns nódulos palpáveis so-
médios esforços e episódios de tosse com bre a grelha costal, axila direita e apêndice
farfalheira e expectoração hemoptóica, foi xifóide, compatíveis com metástases cutâne-
reinternada na Unidade de Cuidados Palia- as múltiplas, um abdómen mais distendido
tivos em 6 de Maio de 2010. Importa referir com hepatomegália não dolorosa e discretos
que a doente manteve a actividade profissio- edemas maleolares, e alterações auscultató-
85
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
parecer que a doente, no seu pragmatismo, pelo nariz e cavidade oral. A terapêutica ini-
estava focalizada numa atitude de “à espera cial por bolus, foi alterada rapidamente para
da morte”. Assim, a doente foi sendo abor- uma perfusão contínua subcutânea com an-
dada sobre a diferença entre “estar vivo até ticolinérgicos (butilescopolamina), morfina,
morrer” e “estar à espera da morte”, foi haloperidol e midazolan, ficando a doente
valorizada a sua narrativa de vida e foi in- sem dispneia e sem farfalheira, e sedada logo
centivada a viver o dia-a-dia, aproveitando após o início das hemoptises. Face a esta cri-
aquilo que podia desfrutar, nomeadamente se representativa de agravamento franco e
a presença atenta e assídua do marido, ten- ao seu ao impacto na família, foram realiza-
do sempre por base uma esperança realista e das várias conferências familiares, quer pela
adaptada ao novo agravamento da doença. médica de serviço, quer pela enfermeira que
Estes objectivos foram atingidos, até pela acompanhou a doente até ao final. Foi ainda
aceitação da ida a casa, que referiu ter con- necessário administrar ácido aminocapróico
seguido desfrutar. A doente saiu duas vezes intravenoso e vitamina K. A hemorragia foi
para o seu domicílio e teve oportunidade de atenuada com tamponamento nasal mas
reunir a família em duas celebrações festi- sem reversão completa pelo que se recorreu
vas. Na última saída, registou-se um agra- também ao uso de cobertores escuros para
vamento do quadro respiratório (farfalheira minimizar o impacto da hemorragia na fa-
e tosse com expectoração hemoptoica fran- mília, presente ao longo das últimas 24 ho-
ca),11 com um regresso antecipado à Unida- ras. A doente esteve sempre confortável mas
de de Cuidados Paliativos. Nesse contexto, dada a exuberância do quadro houve que
foi assegurado à doente que seriam tomadas reforçar o apoio à família. Esta verbalizou-
todas as medidas para garantir o seu bem- nos que só o facto de ver a sua familiar “sem
estar, não a deixando em sofrimento (mani- sofrer” e de se estar a cumprir a sua vontade
festava grande medo relativamente à possi- os deixava francamente tranquilos e apazi-
bilidade de asfixiar), que não seria adoptada guados na sua dor. A doente veio a falecer
qualquer medida de suporte artificial e que, tranquilamente, na presença da enfermeira,
caso isso fosse essencial, se poderia optar da filha e de uma nora, na madrugada de
por sedação,12,13 aspectos com os quais ma- 26 de Maio de 2010, 15 meses depois de ter
nifestou o seu acordo. O agravamento ob- contactado pela primeira vez com a equipa
jectivou-se com o aparecimento de dispneia da Unidade de Cuidados Paliativos.
franca e episódios de hemoptise, de início
intermitentes e posteriormente contínuos,
COMENTÁRIOS E CONCLUSÕES
87
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
para Cuidados Paliativos. Não se tratava de autonomia, com retoma da actividade pro-
uma doente com indicação para uma abor- fissional e no seguimento prolongado em
dagem centrada no modelo de agudos, de ambulatório.
ataque à doença, nem tão pouco de uma do-
ente terminal. Assim, beneficiou claramente O episódio final remete para a existência de
de um tratamento numa lógica de cuidados crises previsíveis e conhecidas em Cuidados
de saúde partilhados, interdisciplinares, tipi- Paliativos, verdadeiras emergências que re-
ficando uma intervenção activa e coordena- querem intervenção adequada, o que não
da no sofrimento. Foi alvo da intervenção significa remeter estes doentes para recur-
de várias especialidades, nomeadamente de sos de agudos, sujeitando-os a intervenções
terapêuticas cirúrgicas, verdadeiramente que, longe de resolverem a situação major
pertinentes e, neste caso, proporcionadas, de base que determina essas intercorrências,
atendendo ao seu estado geral, aos benefí- podem agravar o sofrimento do doente e
cios/malefícios devidamente equacionados gerar expectativas inadequadas na família.
e revistos com a doente e ao prognóstico Neste contexto, impõe-se o domínio das
estimado (previsão de aproximadamente matérias em torno da sedação paliativa, do
9-12 meses de vida). Foi sempre claro que tipo de discussão em que o doente e famí-
o intuito das terapêuticas/intervenções não lia devem ser envolvidos, nomeadamente
era curativo e, como tal, impunha-se o pri- no que concerne a questões de prognóstico
mado da qualidade de vida e de não enve- e diferenças com a prática de eutanásia.12,13
redar pela obstinação terapêutica. Criou-se
espaço para a discussão de um testamento Esta doente esteve cerca de 15 meses a re-
vital e das questões em torno da cessação ceber Cuidados Paliativos, na sua acepção
de terapêuticas desadequadas, num modelo plena e mais pertinente, naquilo que, no en-
em que, para além disso, se respeitou clara- tender dos autores, constitui um caso bem
mente o perfil controlador, fechado e estóico sucedido.
da doente. Nessa matéria, não foi possível
explorar de forma explícita, por vontade da A evidência mais recente publicada, um es-
própria, as questões mais profundas do seu tudo comparativo que incluiu 151 doentes
sofrimento nem o da sua família. com carcinoma pulmão (não-pequenas cé-
lulas) metastático recém diagnosticado, dis-
Foi conseguido um controlo sintomático tribuídos aleatoriamente por dois grupos,
razoável, objectivado quer através da ob- em que os doentes de um dos grupos foram
servação clínica, quer da auto-valorização objecto de cuidados standard de oncologia
pela doente usando escalas seriadas de ESAS e os do outro a uma intervenção mista de
(Fig.3 e 6). Recorreu-se a diferentes vias de cuidados paliativos e oncologia, confirma
administração de fármacos, desde a oral à que os doentes neste último caso têm melhor
transdérmica e subcutânea, em modo regu- qualidade de vida, menor depressão e vivem
lar (bolus) e em perfusão contínua, e entre até mais tempo.14
o arsenal terapêutico destaca-se o recurso a
diferentes opióides, por exemplo para tra-
tar dispneia, bem como a psicoestimulantes,
para tratar astenia. Isso repercutiu-se na
qualidade de vida da doente, no ganho de
UM CASO CLÍNICO DE ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR EM CUIDADOS PALIATIVOS
AGRADECIMENTOS
À Doente e à sua Família, pelo seu exem- sectores do Hospital, que colaboraram no
plo e pela permissão para divulgar o caso. tratamento desta doente. A todos os nossos
A todos os colegas do Hospital da Luz das Doentes, verdadeiros Heróis do quotidiano,
diferentes especialidades médicas, da Uni- que nos ajudam a persistir.
dade de Cuidados Paliativos e dos restantes
BIBLIOGRAFIA
1. Twycross RG. The challenge of palliative care. Int J Clin Oncol 9. Neto IG. Utilização da via subcutânea na prática clínica. Rev Port
2002;7:271-8. Med Int 2008;4:277-83.
2. Davies E, Higginson IJ, eds. Palliative care. The solid facts. 10. Dorman S, Jolley C, Abernethy A. Researching breathlessness
Geneva: World Health Organization; 2004. in palliative care: consensus statement of the National Cancer
Research Institute Palliative Care Breathlessness Subgroup.
3. Barbosa A, Neto IG (eds). Manual de Cuidados Paliativos. Palliative Med 2009;23: 213-27.
Fundação Calouste Gulbenkian e Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa, 2006. 11. Nauck F, Alt-Epping B. Crises in palliative care - a comprehensive
approach. Lancet Oncol 2008;9:1086-91.
4. Feeg VD, Elebiary H. Exploratory study on end-of-life issues:
Barriers to palliative care and advance directives. Am J Hosp Palliat 12. The Board of the European Association for Palliative Care.
Care 2005;22:119.24. European Association for Palliative Care (EAPC) recommended
framework for the use of sedation in palliative care. Palliative Med
5. Bruera E, Lawlor P. Defining palliative care Interventions. J 2009;23:581-93.
Palliative Care 1998;14:23-4.
13. Maltoni M, Pittureri C, Scarpi E. Palliative sedation therapy
6. Messenger-Rapport BJ, Baum EE, Smith ML. Advance care does not hasten death: results from a prospective multicenter study.
planning: Beyond the living will. Cleve Clin J Med 2009;76:276-85. Annals of Oncology 2009;20:1163-9.
7. Rushing DA. Physical, psychological and spiritual transformation 14. Temel JS, Greer JA, Muzikansky A, et al. Early Palliative care for
at life’s end: Toward a theory of convergence. J Support Oncol patients with metastatic non-small-cell lung cancer. N Eng J Med
2005;3:439-43. 2010;363:733-42.
89
SÍNDROME DE PESSOA-RÍGIDA PLUS.
DIAGNÓSTICO E ABORDAGEM
TERAPÊUTICA
Stiff person plus syndrome. Diagnosis and
therapeutic approach
BRUNO MIRANDA++
JOÃO COSTA+,++
LUÍSA ALBUQUERQUE+,++
MÁRIO MIGUEL ROSA++
JOSÉ FERRO+,++
ANABELA MOUQUINHO+++
RAQUEL GIL-GOUVEIA+
+
Departamento de Neurologia
++
Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar de Lisboa Norte
+++
Centro de Medicina de Reabilitação do Alcoitão
RESUMO Abstract
Os autores relatam o caso clínico de uma do- The authors report the clinical case of
ente com um síndrome de pessoa-rígida plus a patient with a severe stiff person plus
grave, com anticorpos anti-descarboxilase syndrome, and positive glutamic acid
do ácido glutâmico positivos. Este caso pro- decarboxylase antibodies. This case
cura ilustrar as dificuldades diagnósticas de illustrates the diagnostic difficulties of a
uma doença neurológica rara e a necessidade neurological rare entity and the importance
de uma abordagem multidisciplinar para um of a multidisciplinary approach for the
diagnóstico e tratamento correctos. Reflecte correct diagnosis and treatment. It also
também a importância da cooperação entre reflects the importance of the cooperation
instituições, tirando partido dos conhecimen- between institutions, taking advantage of
tos e experiência das várias áreas de especia- knowledge and expertise from different
lidade, de forma a assegurar a prestação dos specialties, to ensure the provision of the
melhores cuidados de saúde. best healthcare to the patients.
91
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A síndrome de pessoa-rígida é uma doen- e corticais originando um disparo tónico
ça neurológica rara, debilitante e com um contínuo dos neurónios motores e espasmos
diagnóstico habitualmente difícil e tardio. musculares lentos.4 Os critérios de diagnós-
Clinicamente, caracteriza-se por uma rigi- tico da síndrome de pessoa-rígida incluem:5
dez progressiva e flutuante, envolvendo pre-
dominantemente a musculatura proximal, i) rigidez muscular da musculatura axial e
associando-se ainda espasmos musculares dos membros,
frequentes e dolorosos.
ii) contracção concomitante dos músculos
Os primeiros casos de síndrome de pessoa- agonistas e antagonistas (clinicamente ou
rígida foram descritos em 1956.1 Esta sín- por electromiografia),
drome foi considerada inicialmente como
uma patologia com provável base psicogé- iii) espasmos musculares episódicos sobre-
nica, dada a associação estreita com sinto- postos à contractilidade contínua,
matologia psicológica, o carácter flutuante
das queixas motoras e a relativa ausência de iv) resposta ao diazepam,
alterações no exame neurológico.2 Contudo,
descobertas científicas recentes na área da v) ausência de qualquer outra patologia que
imunologia do sistema nervoso permitiram possa explicar a sintomatologia.
um conhecimento mais aprofundado do
problema e atribuíram um carácter orgânico Os autores descrevem um caso clínico de
à doença. A detecção de anticorpos anti-des- síndrome de pessoa-rígida plus grave com
carboxilase do ácido glutâmico (anti-GAD) anticorpos anti-descarboxilase do ácido glu-
em doentes com a síndrome foi determinan- tâmico (anti-GAD) positivos. Procuram en-
te para esse conhecimento.3 A excessiva res- fatizar as dificuldades diagnósticas associa-
posta imunológica contra a descarboxilase das a esta entidade clínica, nomeadamente
do ácido amino-glutâmico reduz a produção no diagnóstico diferencial com perturbações
de ácido γ-aminobutírico (GABA) a nível funcionais ou doença psiquiátrica.
dos inter-neurónios inibitórios medulares
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 58 anos de As suas queixas tinham-se iniciado em No-
idade, caucasiana, recorre ao Atendimento vembro de 2009, altura em que a doente
Médico Permanente do Hospital da Luz a refere dificuldades ocasionais em movimen-
24 de Novembro de 2009 por história de tar a perna direita quando da marcha e es-
agravamento marcado de rigidez e espasmos pasmos musculares intermitentes no mesmo
musculares do membro inferior direito com membro. Desde muito cedo, a sintomatolo-
um mês de evolução. gia parecia ter uma relação de agravamento
importante com períodos de maior stress
emocional. Após poucos dias do início dos
SÍNDROME DE PESSOA-RÍGIDA PLUS. DIAGNÓSTICO E ABORDAGEM TERAPÊUTICA
sintomas, tinha sido observada pelo seu mé- · Aos 32 anos e no contexto de problemas
dico assistente que não detectou quaisquer de saúde graves do seu filho mais novo, a
alterações no exame objectivo. Neste con- doente refere período com três meses de du-
texto, foi-lhe prescrita terapêutica analgési- ração de queixas de contracturas e espasmos
ca e diazepam e, tendo em conta a história musculares da região lombar. Para além dis-
de eventos passados semelhantes, foi acon- so, descreve quedas frequentes com rigidez
selhada a consultar o seu psiquiatra. Apesar abrupta das pernas, desencadeadas por ir-
de uma ligeira melhoria associada à terapêu- regularidades do piso ou estímulos sonoros
tica com diazepam, os sintomas foram-se intensos e inesperados. Estes eventos origi-
agravando progressivamente. Passadas duas naram medo associado a algumas activida-
semanas, a doente mal conseguia movimen- des no exterior e a doente começou a evitar
tar a perna e a marcha tornou-se instável. andar em ruas com calçada portuguesa e em
Os espasmos musculares tornaram-se cada locais muito movimentados.
vez mais frequentes e dolorosos ao nível
do membro inferior direito e começaram a · O segundo episódio ocorreu aos 46 anos
envolver a musculatura lombar. Devido ao e envolveu contractura intensa e espasmos
rápido agravamento dos sintomas e à limi- musculares da perna direita. Estas queixas
tação funcional, a doente dirigiu-se ao ser- duraram aproximadamente seis meses e cor-
viço de urgência do hospital da sua área de responderam a um período de internamento
residência. Aqui, foi observada pela equipa do filho mais velho por acidente de viação
de Psiquiatria que tendo em conta a história grave. Em ambas as ocasiões a doente foi
prévia de eventos semelhantes, a flutuação observada por vários neurologistas e neuro-
dos sintomas sem alterações no exame ob- cirurgiões que não objectivaram alterações
jectivo e a boa resposta ao diazepam con- e realizou ressonância magnética (RM) crâ-
siderou tratar-se de um distúrbio funcional. nio-medular e electromiograma que foram
A doente teve alta medicada com sertralina, normais.
risperidona e zolpidem. Nos dias seguintes,
as dificuldades de mobilização e os espas- Durante aproximadamente os dez anos se-
mos musculares progrediram gradualmente guintes, a doente manteve seguimento e te-
para a outra perna, ficando em poucos dias rapêutica psiquiátrica com o diagnóstico de
incapaz de andar ou de se colocar de pé. síndrome depressivo. Tinha a vacinação an-
Apresentava ainda instabilidade postural ti-tetânica não actualizada, mas não havia
importante na posição sentada. epidemiologia compatível com tétano. Os
antecedentes familiares eram irrelevantes e a
Dias antes de ser internada no Hospital da doente não tomava medicação crónica des-
Luz, o quadro clínico já tinha evoluído com de há um ano, altura em que tinha suspendi-
aumento de contractilidade e espasmos da do a terapêutica anti-depressiva prévia.
musculatura cervical e abdominal inferior,
incontinência urinária, visão turva e perío- Na observação inicial a doente apresentava
dos de diplopia. sudorese generalizada, opistótono, trismo e
uma postura lombar hiperlordótica, com con-
Os antecedentes médicos da doente incluí- tractura muscular nos quadrantes abdominais
am apenas dois eventos prévios semelhan- inferiores e em ambos os membros inferiores,
tes, mas menos graves: sem capacidade de mobilização espontânea.
93
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 2A Blink reflex: observa-se ausência de Após a alta, a doente foi transferida para o
respostas R1 e R2 com respostas R2’ ligeiramente Centro de Medicina de Reabilitação do Al-
atrasadas. Estas alterações apontam para uma coitão, onde cumpriu programa de reabili-
lesão pôntica com relativa preservação da região
tação durante seis meses, que lhe permitiu
bulbar e transição bulbo-protuberancial.
B. Períodos de silêncio (SP) do músculo mas- readquirir a marcha com apoio e uma au-
seter após estimulação do nervo mentoniano: tonomia parcial para as actividades básicas
identifica-se um SP1 incompleto, que mais uma da vida diária.
vez sugere disfunção pôntica
Mantém actualmente medicação regular
terapêutico, trabalho intenso de Medicina com imunoglubulina humana e corticote-
Física e de Reabilitação e apoio psicológico, rapia oral, em regime de desmame progres-
em regime de internamento no Hospital Re- sivo. Dos defeitos mencionados, apenas a
sidencial do Mar. ataxia e titubação se mantém resistentes às
medidas terapêuticas instituídas, embora
Após quatro semanas verificou-se agrava- com intensidade mais reduzida.
mento clínico, com recrudescência da rigi-
DISCUSSÃO
No caso apresentado, a sintomatologia o clínico para outros diagnósticos possí-
inicial foi interpretada como um distúrbio veis. As fobias e a ansiedade na síndrome
funcional dada a história de eventos pré- de pessoa-rígida são secundárias a aspectos
vios semelhantes sem alterações no exame intrínsecos da própria doença e não devidas
objectivo e na investigação complementar. a uma neurose fóbica endógena.6 O atra-
No entanto, importa referir que as quedas so em vários anos no diagnóstico clínico é
e a fobia específica para algumas activida- habitual nas fases iniciais de síndrome. No
des (evitar andar em ruas com calçada por- entanto, esta última apresentação clínica da
tuguesa) são achados pouco habituais nas doença destaca-se pela sua evolução rápida
perturbações psicogénicas e devem alertar e grave, com envolvimento de outras regiões
95
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
corporais (face, musculatura cervical), frac- excluir outras doenças auto-imunes (p. ex.
tura vertebral devida aos espasmos intensos diabetes mellitus, tiroidite, anemia pernicio-
e rabdomiólise. sa, entre outras) habitualmente associadas à
síndrome de pessoa-rígida. Outra etiologia
Um aspecto muito interessante do caso clíni- possível desta síndrome é a síndrome para-
co apresentado é o facto de estarem presen- neoplásica. No entanto, habitualmente, esta
tes características neurológicas adicionais, está associada a anticorpos anti-ampifisina.7
atípicas para a síndrome clássica de pessoa- Assim, a avaliação complementar deve pro-
rígida, nomeadamente o nistagmo marcado, curar também excluir patologia neoplásica
a ataxia apendicular e da marcha e a disfun- oculta, nomeadamente neoplasia da mama.
ção autonómica. A avaliação neurofisiológi-
ca com blink reflex e a avaliação masseteria- O tratamento actual da síndrome de pessoa-
na após estimulação do nervo mentoniano rígida inclui intervenção farmacológica com
comprovou também disfunção ao nível da sedativos e ansiolíticos (diazepam, clonaze-
protuberância. Estes achados estão de acor- pam), anti-espasmódicos (baclofeno e tiza-
do com o conceito de síndrome de pessoa- nidina) e imunoterapia.9 No que se refere
rígida plus descrito num trabalho datado ao tratamento imunológico, apenas a imu-
de 1999,8 em que se alerta para variantes noglobulina humana dispõe de evidências
atípicas e se adicionam à síndrome clássica científicas dos seus efeitos. Contudo, o uso
características clínicas que incluem sinais do de corticosteróides ou outros agentes imu-
tronco cerebral, de vias longas, de segun- nossupressores (azatioprina, ciclofosfamida)
do neurónio motor, mioclonias, alterações é também aconselhado em casos de resistên-
cognitivas ou disfunção autonómica. Estas cia à terapêutica habitual. O papel do trata-
variantes apresentam ainda resistência à te- mento não farmacológico, com fisioterapia
rapêutica habitual e um prognóstico pior. e acompanhamento psicológico, é determi-
nante e foi crucial para a recuperação fun-
Embora o diagnóstico da síndrome de cional da doente descrita neste trabalho.
pessoa-rígida seja baseado sobretudo em
critérios clínicos ou electromiográficos, o Em conclusão, este caso clínico ilustra bem
resultado positivo dos anticorpos anti-GAD, os problemas inerentes a uma patologia
foi muito importante neste caso clínico. Ac- neurológica rara e complexa, bem como os
tualmente, a doença é cada vez mais con- benefícios de uma abordagem multidisci-
siderada como um distúrbio auto-imune plinar e uma boa relação entre instituições,
que na maioria dos casos leva à formação que permitiram assegurar a prestação dos
desses anticorpos. É também crucial um es- melhores cuidados de saúde.
tudo complementar detalhado, de forma a
SÍNDROME DE PESSOA-RÍGIDA PLUS. DIAGNÓSTICO E ABORDAGEM TERAPÊUTICA
BIBLIOGRAFIA
1. Mersch FP, Woltman HW. Progressive fluctuating muscular 6. Ameli R, Snow J, Rakocevic G, Dalakas MC. A neuropsychological
rigidity and spasm (“stiff-man” syndrome): report of a case and assessment of phobias in patients with stiff person syndrome.
some observations in 13 other cases. Mayo Clin Proc 1956;31:421-7. Neurology 2005;64:1961-3.
2. Hennringer P, Clement U, Kuckenhoff J, Simon F, Meinck M. 7. De Camilli P, Thomas A, Cofiell R, et al. The synaptic vesicle-
Psychological factors in the diagnosis and pathogenesis of stiff-man associated protein amphiphysin is the 128-kD autoantigen to Stiff-
syndrome. Neurology 1996;47:38-42. Man syndrome with breast cancer. J Exp Med 1993;178:2219-23.
3. Solimena M, Folli F, Denis-Donini S, et al. Autoantibodies to 8. Brown P, Marsden CD. The stiff man and stiff man plus
glutamic acid decarboxylase in a patient with stiff-man syndrome, syndromes. J Neurol 1999;246:648-52.
epilepsy, and type I diabetes mellitus. N Engl J Med 1988;318:1012-
20. 9. Dalakas MC. Stiff Person Syndrome: Advances in Pathogenesis
and Therapeutic Interventions. Current Treat Options Neurol
4. Levy LM, Dalakas MC, Floeter MK. The stiff-person syndrome: 2009;11:102-10.
an autoimmune disorder affecting neurotransmission of gamma-
aminobutyric acid. Ann Intern Med 1999;131:522-30.
97
ATAXIA-DISARTRIA PAROXÍSTICA NA
ESCLEROSE MÚLTIPLA
Paroxysmal ataxia-dysarthria in multiple
sclerosis
RESUMO Abstract
A esclerose múltipla é uma doença desmieli- Multiple sclerosis is a central nervous
nizante do sistema nervoso central, em que system demyelinating disease, presenting
os sintomas clássicos são défices neurológi- most frequently with recurrent neurological
cos evoluindo por surtos. Numa minoria de deficits. Paroxysmal episodes occur in a
casos podem surgir eventos paroxísticos, que minority of patients, usually in advanced
são mais frequentes em formas avançadas da forms of the disease. The authors report a
doença. Os autores descrevem um caso clí- clinical case of multiple sclerosis presenting
nico de esclerose múltipla, forma surto-re- with an episode of paroxysmal dysarthria
missão, em que o episódio que levou ao dia- and ataxia, that led to the diagnosis.
gnóstico foi um quadro paroxístico de ataxia Following carbamazepine therapy a total
e disartria. Após terapêutica com carbamaze- remission of the paroxysmal events was
pina, verificou-se remissão total dos eventos achieved.
paroxísticos.
99
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A esclerose múltipla (EM) é uma doença Na EM também podem surgir sintomas paro-
desmielinizante do sistema nervoso central xísticos, com incidência variável, referida com
(SNC) afectando predominantemente a valores entre 3 e 17% por vários autores.1,2
substância branca dos hemisférios cerebrais. As formas mais comuns são: ataxia e disartria
A sua forma mais comum, surto-remissão, paroxísticas, diplopia paroxística, crises tóni-
caracteriza-se por episódios recorrentes de cas, acinesia paroxística, alterações sensitivas
perda de função neurológica, ou seja, hi- (incluindo prurido) e dor paroxistica.3 A ne-
poestesia, parésia, diminuição da visão, di- vralgia do trigémio é um dos eventos paroxís-
plopia, entre outros, dependendo da locali- ticos descritos e surge em cerca de 1,5% dos
zação das lesões no SNC. Estes défices têm doentes.3 Os eventos paroxísticos podem ser
uma duração de dias a semanas e tendem a o primeiro sintoma, ou surgir até mais de 20
melhorar espontaneamente. anos depois do início da doença, sendo mais
frequentes na doença estabelecida.4
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 34 anos de cha de base alargada, difícil em linha mas
idade, com antecedentes, sete anos antes, de possível sem apoio, provas de coordenação
vertigem e desequilíbrio da marcha de insta- motora dos membros inferiores sem disme-
lação aguda, que persistiram durante uma se- trias mas mal realizadas, reflexos miotácticos
mana com remissão espontânea. Sem queixas patologicamente vivos nos quatro membros,
neurológicas até cerca de três semanas antes Babinski bilateral, ausência défices motores
da consulta. ou sensitivos significativos, ausência de alte-
rações de pares cranianos.
Recorreu à consulta de Neurologia do Hos-
pital da Luz por episódios paroxísticos de Da investigação realizada destacou-se de
alterações da articulação verbal e da coorde- positivo:
nação motora com desequilíbrio impedindo
a marcha, com duração de segundos, que · Ressonância magnética crânio-encefálica
surgiam espontaneamente, podendo também (RM CE): múltiplas imagens na substância
ser desencadeados pela emoção e exercício branca periventricular, tronco cerebral e ce-
físico. A sua frequência era variável, desde rebelo, sugerindo doença desmielinizante do
duas a três por hora a mais de 20 por hora, e SNC com extenso envolvimento mesence-
a recuperação era completa. fálico sendo que, no pedúnculo cerebeloso
esquerdo, uma das lesões captava contraste
Durante a consulta ocorreu um episódio se- sugerindo doença em actividade (Fig. 1),
melhante aos descritos pelo doente, que ficou
subitamente disártrico e atáxico, com disme- · RM medular: múltiplas lesões de predomí-
tria dos quatro membros e incapaz de andar nio cervical e dorsal com características de
sem apoio. O episódio durou sete segundos. doença desmielinizante do SNC,
O exame neurológico pós-ictal revelou mar-
ATAXIA-DISARTRIA PAROXÍSTICA NA ESCLEROSE MÚLTIPLA
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
A ataxia-disartria paroxística caracteriza-se critos em 1959 por Andermann e Cosgro-
por episódios de dificuldade transitória na ve.8-10 Podem também surgir noutras situa-
iniciação, controle e/ou coordenação da fala ções, como acidentes vasculares cerebrais
e movimentos, de início súbito, padrão es- e doença autoimune com envolvimento do
tereotipado, curta duração e ocorrendo vá- SNC.8,11 A correlação anatomoclínica não
rias vezes por dia. Os episódios podem ser está completamente esclarecida, mas sugere
desencadeados pelo exercício, calor, tabaco, uma ou mais lesões mesencefálicas envol-
emoções, flexão súbita do pescoço e movi- vendo os pedúnculos cerebelosos na origem
mentos oculares.5-7 São bem conhecidos no dos episódios.11,12
contexto de EM tendo sido inicialmente des-
101
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Osterman PO, Westerberg CE. Paroxysmal attacks in multiple 8. Akman-Demir FG, Eraksoy M, Gurvit IH, Saruhan-Direskenely
sclerosis. Brain 1975;98:189-202. G, Aral O. Paroxysmal dysarthria and ataxia in a patient with
Behçet’s disease. J Neurol 1995;242:344-7.
2. Netsell R, Kent RD. Paroxysmal ataxic dysarthria. J Speech
Hearing Dis 1976;41:93-109. 9. Gorard DA, Gibberd FB. Paroxysmal dysarthria and ataxia:
associated MRI adnormality. J Neurol Neurosurg Psychiatry
3. Twomey JA, Espir MLE. Paroxysmal symptoms as the first 1989;52:1444-5.
manifestations of multiple. J Neurol Neurosurg Psychiatry
1980;43:296-304. 10. Andermann F, Cosgrove JBR, Lloyd-Smith D, Walters AM.
Paroxysmal dysarthria and ataxia in multiple sclerosis. Neurology
4. Ropper AH, Samuels MA. Multiple sclerosis and alied 1959;9:211-5.
demyelinating diseases. In: Adams and Victor’s Principles of
Neurology. 9th edition. Mc GrawHill 2009;874-902. 11. Blanco Y, Compta Y, Graus F, Salz A. Midbrain lesions and
paroxysmal dysarthria in multiple sclerosis. Multiple sclerosis
5. McAlpine D, Lumsden C, Acheson ED. Multiple sclerosis: 2008;14:694-7.
a reappraisal. 2nd edition. Edinburgh: Churchill Livingstone
1972;112-8. 12. Matsui M, Tomimoto H, Sano K, Hashikawa KK, Fukuyama
H, Shibasaki H. Paroxysmal dysarthria and ataxia after midbrain
6. Lhermitte J, Bollack J, Nicolas M. Les douleurs à type de décharge infarction. Neurology 2004;63:345-7.
électrique consecutives à la flexion céphalique dans la sclérose em
plaques. Revue Neurol 1924;31:56-62.
7. Davis FA, Bergen D, Schauf C, McDonald I, Deutsch W.
Movement phosphenes in optic neuritis: a new clinical sign.
Neurology (minneap) 1976;26:1100-4.
MIOCARDIOPATIA DILATADA GRAVE NO
CONTEXTO DE SÍNDROME DE CUSHING
Severe dilated cardiomyopathy in
a patient with Cushing’s syndrome
RESUMO Abstract
Os autores descrevem o caso clínico de uma The authors report the clinical case of a
doente de 58 anos de idade com o diagnós- 58-year old female with the diagnosis of
tico de miocardiopatia dilatada grave, secun- dilated cardiomyopathy, resulting from
dária a síndrome de Cushing. Dado o agra- a Cushing’s syndrome. As the clinical
vamento progressivo da situação clínica e situation worsened and a safe etiologic
na impossibilidade de obter um diagnóstico diagnosis was not possible, it was decided to
etiológico seguro e rápido, foi decidido efec- proceed with a bilateral adrenalectomy. The
tuar adrenalectomia bilateral. A resolução normalization of the cortisol levels allowed
rápida do hipercortisolismo permitiu a me- the improvement of congestive heart failure
lhoria clínica, com regressão do quadro de and the achievement of a better clinical
insuficiência cardíaca. São discutidos os as- status. Cushing’s syndrome diagnosis and
pectos diagnósticos e terapêuticos da síndro- treatment are discussed, as well as this
me de Cushing, bem como as indispensáveis patient necessity of a long term clinical
medidas de vigilância em termos de futuro. surveillance regimen.
103
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A síndrome de Cushing endógena é uma megália, isquemia do miocárdio e hipertro-
entidade rara, com uma incidência de 2-3 fia ventricular esquerda, bem como a outros
casos por milhão habitantes por ano.1 Re- factores de risco como a dislipidemia, coa-
presenta frequentemente um desafio dia- gulopatia e diabetes mellitus. No entanto, a
gnóstico e terapêutico. As manifestações do insuficiência cardíaca raramente é reportada
excesso de produção de cortisol são sistémi- como uma manifestação predominante des-
cas e originam expressões clínicas variadas. ta patologia.
O diagnóstico etiológico pode ser díficil e
implica a utilização de vários exames dife- Apresenta-se um caso clínico em que o hi-
renciados. percortisolismo condicionava em grande
medida um quadro de insuficiência cardíaca
Quando Harvey Cushing descreveu esta sín- grave, motivando uma intervenção clínica
drome em 1932 intitulou-a de "doença mor- rápida e pragmática. A resolução da situa-
tífera", em virtude das complicações cardio- ção de hipercortisolismo permitiu a correc-
vasculares associadas.2 Estas manifestações ção da insuficiência cardíaca e uma melho-
cardiovasculares são geralmente atribuídas ria clínica franca.
à hipertensão arterial e consequente cardio-
CASO CLÍNICO
Doente de sexo feminino, de 58 anos de ida- valor de cortisol urinário de 1416 µg/24h
de, submetida em Setembro de 2009 a inter- (valores de referência (VR): 29 – 214 µg/24h)
venção cirúrgica de urgência por diverticulite e adenocorticotrofina (ACTH) de 26 pg/mL
complicada com perfuração de víscera, com (VR: <46 pg/mL). Uma nova colheita labo-
colocação de colostomia. Foi enviada para ratorial detectou cortisol urinário de 1731
observação em consulta de Endocrinologia µg/24h, ACTH de 27 pg/mL, testosterona
por obesidade de predomínio abdominal total de 0,8 ng/mL (VR: 0,1-0,8 ng/mL), sul-
[120 kg; índice de massa corporal (IMC) fato de dihidroandrosterona (SDHEA) de 44
- 39,2 kg/m2], com aumento de peso acen- µg/dL (VR: <430 µg/dL). O valor de cortisol
tuado e equimoses fáceis durante o último salivar matinal era de 47 ng/mL (VR: <60
ano. Referia história de hipertensão arterial, ng/mL), enquanto o valor de cortisol salivar
habitualmente bem equilibrada com valsar- nocturno era de 48 ng/mL (VR: <15 ng/mL).
tan e hidroclorotiazida, e intolerância à gli- Foi pedida ressonância magnética (RM) da
cose. Apresentava queixas de cansaço fácil, sela turca, que não detectou alterações na
dispneia para pequenos esforços, dispneia glândula hipofisária. A tomografia compu-
paroxística nocturna, ortopneia e edema torizada (TC) abdominal revelou aspectos
acentuado dos membros inferiores. Foi pedi- compatíveis com hiperplasia das glândulas
da consulta de Cardiologia e uma avaliação supra-renais, sem nódulos detectáveis. Foi
laboratorial. pedida TC torácica, que detectou nodulari-
dade na loca tímica (maior nódulo com 12
Da avaliação laboratorial destacava-se um mm de diâmetro), sem lesões pulmonares.
MIOCARDIOPATIA DILATADA GRAVE NO CONTEXTO DE SÍNDROME DE CUSHING
75 45
25 15
0 0
1
5
9
57
97
17
37
41
53
93
13
21
25
29
33
45
49
61
65
69
73
77
81
85
89
101
105
109
113
117
121
125
Tempo (minutos)
DIA 0 2 5 10 15 30 45 60 90 120
ACTH (pg/mL) 17 28,1 48,1 56,7 90,5 90 47,9 38,9 40,5 30,6
Cortisol sérico 28,3 27,3 28,2 38,4 37,1 45,4 55,2 48 37 37,1
(ng/mL)
105
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
a uma franca melhoria clínica com redução normais, com imagem discretamente hipo-
progressiva da sintomatologia de insuficiên- captante com 4 mm de diâmetro. Os valores
cia cardíaca. Observou-se também redução de ACTH encontram-se estáveis desde a ci-
progressiva do peso corporal (ao fim de 1 rurgia (251 pg/mL em Dezembro 2009, 279
mês 14 kg; ao fim de 4 meses 31 kg). pg/mL em Junho de 2010).
DISCUSSÃO
O presente caso clínico retrata uma forma de standard para o diagnóstico diferencial da
apresentação rara da síndrome de Cushing síndrome de Cushing ACTH-dependente,
com insuficiência cardíaca congestiva que, principalmente na ausência de imagem com-
pela sua gravidade, exigiu uma intervenção patível com adenoma na RM hipofisária, é
terapêutica rápida e eficaz. o cateterismo dos seios petrosos para dosea-
mento da ACTH (diferencial ACTH seios
A síndrome de Cushing endógena resulta da petrosos: ACTH periférica). A gravidade da
exposição crónica ao excesso de glucocorti- situação clínica e os riscos inerentes a este
cóides produzidos pelo córtex supra-renal. procedimento inviabilizaram a sua realiza-
Em 80-85% dos casos a etiologia é ACTH- ção no caso em estudo. No entanto, a prova
dependente, geralmente provocada por um de CRH, com aumento dos níveis de ACTH
adenoma hipofisário produtor de ACTH > 100% e de cortisol > 50%, é fortemente
(doença de Cushing) ou, mais raramente, por compatível com uma origem hipofisária da
um tumor extra-hipofisário (por produção hiperprodução de ACTH.
ectópica de ACTH ou CRH), geralmente de
localização torácica. Em 15-20% dos casos Estão descritos na bibliografia diversos ca-
a etiologia é ACTH-independente, quando a sos de insuficiência cardíaca no contexto da
síndrome é causada pelo excesso de produ- síndrome de Cushing.3-7 Nestes doentes, a
ção de cortisol por um tumor adrenocortical insuficiência cardíaca é geralmente secun-
ou por uma hiperplasia nodular bilateral do dária a uma miocardiopatia hipertrófica. Os
córtex supra-renal. No presente caso, a au- mecanismos pelos quais o hipercortisolismo
sência de supressão da ACTH (ACTH >10 está correlacionado com a hipertrofia ven-
pg/mL) permitiu suspeitar de uma síndrome tricular esquerda permanecem ainda mal es-
de Cushing ACTH-dependente, reforçada clarecidos. Foi sugerido que o excesso de se-
pelos achados da TC abdominal. O gold creção de cortisol poderia aumentar a síntese
MIOCARDIOPATIA DILATADA GRAVE NO CONTEXTO DE SÍNDROME DE CUSHING
BIBLIOGRAFIA
1. Nieman L, Biller B, Findling J, et al. The diagnosis of Cushing's 4. Petramala L, Battisti P, Lauri G, et al. Cushing’s syndrome
syndrome: an Endocrine Society clinical practice guideline. J Clin patient who exhibited congestive heart failure. J Endocrinol Invest
Endoc Metab 2008;93:1526-40. 2007;30:525-8.
2. Cushing H. The basophil adenomas of the pituitary body and their 5. Sugihara N, Shimizu M, Kita Y, et al. Cardiac characteristics
clinical manifestations. Bull Johns Hopkins Hosp 1932;50:127-95. and postoperative courses in Cushing’s syndrome. Am J Cardiol
1992;69:1475-80.
3. Younge PA, Shmidt D, Wiles PG. Cushing’s syndrome: still a
potential killing disease. J R Soc Med 1995;88:174P-5P.
107
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
6. Marazuela M, Aguilar-Torres R, Benedicto A, Gómez-Pan A. 10. Struthers AD. Pathophysiology of heart failure following
Dilated cardiomyopathy as a presenting feature of Cushing’s myocardial infaction. Heart 2005; 91:14-6.
syndrome. Intern J Cardiol 2003;88:331-3.
11. Biller B, Grossman A, Steward P, et al. Treatment of
7. Ma R, So WY, Tong P, Chan J, Cockram CS, Chow CC. Adiposity adrenocorticotropin-dependent Cushing’s syndrome: a consensus
of the heart revisited: reversal of dilated cardiomyopathy in a statement. J Clin Endoc Metab 2008;93:2454-62.
patient with Cushing’s syndrome. Intern J Cardiol 2010 May 19.
[Epub ahead of print]. 12. Young WF Jr, Thompson GB. Laparoscopic adrenalectomy for
patients who have Cushing’s syndrome. Endocrinol Metab Clin
8. Morgan HE, Baker KM. Cardiac hypertrophy – Mechanical, North Am 2005;34:489-99.
neural and endocrine dependence. Circulation 1991;83:13-25.
ANABELA MARTINS
FRANCISCO SOBRAL DO ROSÁRIO
EVELINA MENDONÇA
LUIS GARGATÉ
OLÍMPIA CID
LEONE DUARTE
TERESA FERREIRA+
ANA CATARINO
ANTÓNIO GARRÃO
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de um The authors report the clinical case of a
homem de 28 anos de idade que recorreu à 28-year old male patient with the diagnosis
consulta de Endocrinologia do Hospital da of hypothyroidism and a diffuse enlarged
Luz com um quadro clínico de hipotiroidis- thyroid gland, initially considered based
mo e aumento difuso da glândula tiroideia, on clinical and laboratory evidence to be
muito sugestivo de tiroidite linfocítica. Após an autoimmune thyroiditis. After a clinical
avaliação clínica e investigação por biópsia evaluation and biopsy the final diagnosis
é-lhe diagnosticado carcinoma papilar da was a diffuse sclerosing papillary carcinoma.
tiroideia, variante esclerosante difusa. São Diagnosis and treatment are discussed,
discutidos o diagnóstico diferencial e a te- as well as the importance that the clinical
rapêutica deste caso, bem como a importân- suspicion may play in this context.
cia que a suspeita clínica pode assumir nes-
te contexto.
109
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
O carcinoma da tiroideia apresenta-se geral- Os autores apresentam o caso clínico de um
mente como um nódulo tiroideu ou adeno- homem de 28 anos de idade cujo quadro de
patias cervicais. A presença de um aumento hipotiroidismo revelou ser uma manifesta-
difuso da tiroideia, acompanhado de um ção clínica de um carcinoma da tiroideia.
quadro clínico e laboratorial de hipotiroidis- São discutidos os aspectos diagnósticos e
mo, é muito sugestivo de patologia benigna. terapêuticos deste caso com apresentação
clínica invulgar.
CASO CLÍNICO
Doente de sexo masculino, de 28 anos de que era fibrótica e não elástica, como seria
idade, recorreu em Março de 2010 à con- de esperar numa tiroidite linfocítica, e em
sulta de Endocrinologia do Hospital da que se observaram linfócitos, células folicu-
Luz por quadro de hipotiroidismo franco lares isoladas, grandes, com citoplasma vas-
associado a aumento difuso da glândula to e núcleos irregulares com alguns sulcos,
tiroideia. As queixas consistiam em intole- sem a morfologia habitual das células de
rância ao frio, cansaço fácil, pele seca, lenti- Hurthle expectáveis neste contexto clínico,
ficação psico-motora, ganho ponderal (7 kg, mas que, pelo contrário, sugeriam a hipótese
aumento superior a 10% do peso inicial) e de neoplasia, foi decidido repetir o exame.
aumento de volume cervical com início em Efectuou-se então uma segunda punção,
Agosto de 2009. À observação apresentava cuja amostra apresentava maior celularida-
edema palpebral e tiroideia aumentada bila- de e em que se observaram numerosas célu-
teralmente (cerca de quatro vezes o volume las epiteliais com características típicas do
normal), mas com lobo esquerdo de consis- carcinoma papilar da tiroideia, com núcleos
tência pétrea. irregulares, claros, sulcados, com inclusões
intranucleares e citoplasma denso, ocasio-
Laboratorialmente, o valor de triiodoti- nalmente formando pequenas papilas, a
ronina (T3) era inferior ao limite de detec- par de agregados de células pavimentosas
ção [valores de referência (VR): 3,50 - 6,50 metaplásicas, linfócitos e inúmeros corpos
pmol/L] e o valor de hormona estimulante psamomatosos, dispersos ou no centro dos
da tiroideia (TSH) era de 144 µU/mL (VR: agregados celulares (Fig. 1). Foi a presença
0,35 - 5,50 µU/mL). Os valores de anticorpos simultânea destas características morfo-
antiroideus eram francamente positivos, com lógicas, interpretada no contexto clínico,
anticorpos anti-tiroglobulina (AATg) >3000 que conduziu ao diagnóstico citológico de
UI/mL (VR: <60 UI/mL) e anti-peroxidase variante esclerosante difusa do carcinoma
(AATPO) >1000 UI/mL (VR: <60 UI/mL). papilar da tiroideia.1
O doente efectuou citologia aspirativa que A ecografia cervical demonstrou uma glân-
numa primeira passagem obteve material dula tiroideia com aumento da ecogenici-
escasso. Atendendo à consistência da lesão, dade, um padrão francamente heterogéneo,
VARIANTE ESCLEROSANTE DIFUSA DE CARCINOMA PAPILAR DA TIROIDEIA. CASO CLÍNICO
Fig. 1 Citologia aspirativa por agulha fina Fig. 2 Ecografia da tiroideia com aumento difuso
(CAAF). Agregados de células foliculares com ca- de ecogenicidade e atenuação acústica posterior
racterísticas típicas do carcinoma papilar, corpos
psamomatosos e folhetos de células metaplásicas
num fundo de linfócitos (PAP, x100) deia com padrão esclerosante difuso, com
envolvimento difuso de toda a glândula e
sem lesões nodulares intra-parenquima- infiltração focal da cápsula da glândula, sem
tosas, sem alterações do padrão vascular invasão dos tecidos extra-tiroideus. Foram
e com uma marcada atenuação acústica identificadas 25 metástases ganglionares, bi-
posterior (Fig. 2). Foram detectadas várias laterais, do compartimento cervical central,
adenomegálias cervicais, bilaterais, apresen- cadeias jugulo carotídeas e mediastino supe-
tando focos hiperecogénicos intralesionais, rior. Este padrão histológico caracteriza-se
muito sugestivos de microcalcificações (Fig. por uma fibrose intensa, um infiltrado lin-
3). Efectuou-se um estudo por tomografia focitário intenso, focos de metaplasia pavi-
computorizada (TC) a nível cervical e to- mentosa e numerosos corpos psamomatosos
rácico, que revelou aumento de volume da (Fig. 5).2
tiroideia com uma densidade muito hetero-
génea e sugestiva de microcalcificações (Fig.
4), bem como a existência de vários gânglios
cervicais com densidade semelhante à da
glândula tiroideia. Foi também detectada
uma adenopatia latero-traqueal esquerda no
mediastino com as mesmas características.
111
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
DISCUSSÃO
O caso apresentado tem a particularidade de A semelhança que existe entre a apresenta-
ser uma forma de apresentação clínica infre- ção clínica do tumor descrito neste caso e
quente, raramente descrita, de uma variante um quadro de hipotiroidismo por tiroidite
pouco comum de carcinoma da tiroideia. linfocítica com bócio difuso associado, bas-
VARIANTE ESCLEROSANTE DIFUSA DE CARCINOMA PAPILAR DA TIROIDEIA. CASO CLÍNICO
tante mais comum, poderia ter resultado esclerosante difusa só foi possível pela in-
num diagnóstico tardio. tegração dos aspectos morfológicos com a
apresentação clínica.1
De facto, o carcinoma da tiroideia não é
geralmente tido como hipótese diagnóstica Alguns dados da avaliação imagiológica
quando se está na presença de uma tiroi- apontavam também no sentido deste dia-
deia difusamente aumentada, sem nódulos gnóstico. A ecografia demonstra uma hiper-
individualizados, comprovada ecografica- -ecogenicidade do parênquima, que em con-
mente, como ocorreu no caso presente. Na junto com a atenuação acústica posterior
presença de um hipotiroidismo com expres- sugere uma lesão infiltrativa da tiroideia
são clínica (mixedema, intolerância ao frio com calcificações parenquimatosas, um pa-
e lentificação psicomotora) e laboratorial drão ecográfico já descrito na literatura para
(elevação franca dos valores de TSH e níveis a variante esclerosante difusa do carcinoma
reduzidos de T3) clássicas, associadas a au- papilar da tiroideia.4,5 Estes achados estão
mento do título de anticorpos antitiroideus correlacionados com a fibrose difusa, os cor-
num doente pertencente a uma faixa etária pos psamomatosos e o infiltrado inflamató-
jovem, o diagnóstico óbvio seria o de uma rio que se encontram na avaliação histoló-
tiroidite linfocítica com bócio.3 Numa faixa gica.4 No entanto, apenas por ecografia não
etária mais elevada poderia igualmente ser é possível efectuar o diagnóstico diferencial
considerada a hipótese de linfoma da tiroi- em relação a situações como o linfoma da
deia, com o hipotiroidismo a resultar da in- tiroideia ou a tiroidite.1
filtração da glândula por células linfóides.1
A existência de adenopatias bilaterais não
Face aos vários aspectos apresentados, im- é rara em casos de tiroidite linfocítica. No
porta salientar os pontos que permitiram entanto, as características ecográficas dos
efectuar um diagnóstico correcto. gânglios identificados, semelhantes ao pa-
renquima da glândula, com microcalci-
A consistência pétrea do lobo esquerdo ti- ficações, fazem suspeitar da presença de
roideu, menos frequente e potencialmente doença metastática. Neste contexto, num
associada a malignidade, foi o aspecto que indivíduo com doença ganglionar metastá-
motivou a realização de uma citologia as- tica múltipla, era importante realizar uma
pirativa. TC, de forma a permitir um estadiamento
pré-operatório correcto com avaliação do
Foi também a consistência fibrótica da área mediastino. Foi identificada uma adenopa-
puncionada, diferente da consistência firme tia mediastínica.
mas elástica, que é característica da tiroidite
linfocítica, que contribuiu para a valoriza- O carcinoma papilar da tiroideia corres-
ção dos critérios citológicos presentes na ponde a cerca de 80% dos carcinomas da
amostra inicialmente obtida e que justifica- tiroideia.6 Existem variantes histológicas,
ram a obtenção de uma segunda amostra, com características e prognósticos distin-
num doente pouco colaborante. O padrão tos entre si.2,6 A variante esclerosante difu-
citológico dos segundos esfregaços, mais sa ocorre geralmente em crianças e adultos
representativos, era já característico de car- jovens (como sucede no caso presente) e
cinoma papilar. O diagnóstico da variante corresponde a cerca de 2% dos carcinomas
113
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
papilares.2,5,7 Caracteriza-se pelo envolvimen- a que se pode seguir uma terapêutica com
to difuso por parte do tumor de um ou dos Iodo-131.6,8 A estratégia cirúrgica resulta do
dois lobos tiroideus, apresentando-se como estadiamento imagiológico prévio.6,8 Neste
um bócio com ou sem nódulos palpáveis.3,5,7 caso decidiu-se, na presença de imagens de
A extensão extratiroideia é frequente,2,7 não metastização ganglionar bilateral e medias-
existindo no caso descrito. A metastização tínica, proceder a um esvaziamento ganglio-
ganglionar cervical é encontrada em 80% nar extenso.
dos casos,2,7 sendo com frequência numero-
sa e bilateral, tal como também se constatou. A gamagrafia corporal efectuada após a tera-
Em cerca de 15% dos casos encontram-se pêutica permite, em conjunto com o valor de
metástases à distância, geralmente pulmona- tiroglobulina sob estímulo com TSH, efec-
res.2 Dado o envolvimento difuso da glându- tuar um estadiamento pós-cirúrgico mais
la e a existência frequente de metastização, completo e, desta forma, estabelecer uma
a variante esclerosante é considerada geral- estratégia terapêutica futura mais correcta.8
mente como sendo agressiva. No entanto, No entanto, neste caso, a existência de um
a sobrevivência é de 93% aos 10 anos de título de anticorpos anti-tiroglobulina eleva-
follow-up, similar à taxa encontrada para os do impossibilitou uma interpretação correc-
doentes com padrão clássico de carcinoma ta do valor de tiroglobulina. Este facto exige
papilar da tiroideia, o que poderá estar re- que no futuro seja efectuada uma vigilância
lacionado com a idade jovem da maior parte mais apertada.
dos doentes que a manifestam.2,7
Em doentes com carcinoma do epitélio fo-
A existência de hipotiroidismo não é repor- licular da tiroideia, já submetidos a tiroi-
tada com frequência,3,5 embora estejam des- dectomia total, a terapêutica com hormona
critos alguns casos.3 Estão também descri- tiroideia não é apenas substitutiva, devendo
tos títulos de auto-anticorpos antitiroideus ser feita de forma a suprimir a secreção da
elevados, associados ou não a hipotiroidis- TSH, reduzindo a taxa de recidivas.8
mo.3,5 O hipotiroidismo, quando presente,
pode ser explicado pela substituição do teci- Em conclusão, este caso clínico demonstra
do tiroideu normal pelo tumor ou pelo pro- que na clínica nem tudo é o que aparenta ser.
cesso auto-imune que se encontra frequente- O que parecia ser um caso de hipotiroidis-
mente associado a esta variante tumoral. Os mo por tiroidite linfocítica veio a revelar-se
valores aumentados de TSH, pelo seu efeito como sendo uma variante rara de carcinoma
estimulador da replicação das células folicu- papilar da tiroideia.
lares da tiroideia, poderão ter contribuído
para uma maior progressão tumoral.
BIBLIOGRAFIA
1. Bongiovanni M, Triponez F, McKee TA, Kumar N, Matthes T, 5. Fujimoto Y, Obara T, Ito Y, Kodama T, Aiba M, Yamaguchi K..
Meyer Pl. Fine needle aspiration of the diffuse sclerosing variant Diffuse sclerosing variant of papillary carcinoma of the thyroid.
of papillary thyroid carcinoma masked by florid lymphocytic Clinical importance, surgical treatment and follow-up study. Cancer
thyroiditis; a potential pitfall: a case report and review of the 1990;66:2306-12
literature. Diagn Cytopathol 2009;37:671-5.
6. Schlumberger M. Papillary and follicular thyroid carcinoma. N
2. Lam A, Lo CY Lam K. Papillary carcinoma of thyroid: A 30- Engl J Med 1998;338:297-306.
yr clinicopathological review of the histological variants. Endocr
Pathol 2006;16:323-30. 7. Lam A, Lo CY. Diffuse Sclerosing variant of papillary carcinoma
of the thyroid: A 35-year comparative study at a single institution.
3. Wu P, Leslie P, McLaren K, Toft A. Diffuse slerosing pappilary Ann. Surg. Onc. 2006;13: 176-81.
carcinoma of thyroid: A wolf in sheep´s clothing. Clin Endocrinology
(Oxford) 1989;31,535-40. 8. Pacini F, Schlumberger M, Dralle H, et al. European consensus
for the management of patients with differentiated thyroid cancer
4. Kwak JI, Kim E, Hong SW, et al. Diffuse sclerosing variant of of the follicular epithelium. Eur J Endocrinol 2006; 154:787-803.
papillary carcinoma of the thyroid gland: Specimen radiographic
features with histopathological correlation. J Clin Endocrinol.
Metab. 2009;94:1491-2.
115
HIPERSENSIBILIDADE A MÚLTIPLOS
CORTICOSTERÓIDES EM DOENTE
ASMÁTICA
Multiple corticosteroids hypersensitivity in
an asthmatic patient
SARA PRATES
PAULA LEIRIA PINTO
TERESA VAU
JOSÉ ROSADO PINTO
Departamento de Imunoalergologia
RESUMO Abstract
Apesar do seu efeito anti-inflamatório e imu- Despite their anti-inflammatory and
nossupressor, os corticosteróides podem cau- immunosuppressive actions, corticosteroids
sar raramente reacções de hipersensibilidade. can rarely be responsible for hypersensitivity
A maior parte dos casos refere-se a derma- reactions. Most cases concern allergic
tites de contacto a corticosteróides tópicos, contact dermatitis to topic cutaneous
sendo mais rara a alergia a corticosteróides steroids. Allergy to systemic administered
sistémicos. Os autores apresentam o caso clí- corticosteroids is particularly rare. The
nico de uma doente com asma e rinite que authors report the clinical case of a female
lhes foi referenciada por reacção anafiláctica patient, suffering from asthma and rhinitis,
a um corticosteróide não identificado, admi- referred to them due to corticosteroids
nistrado por via endovenosa, e um episódio allergy. She had an anaphylactic episode after
de erupção cutânea máculo-papular pruri- intravenous administration of an unidentified
ginosa após inalação de budesonido. Tinha corticosteroid and one episode of pruritic
contra-indicação para todos os corticoste- rash after budesonide inhalation. She had
róides, dificultando o adequado tratamento been advised to avoid all corticosteroids
da sua alergia respiratória. Uma investigação treatment and her respiratory allergy was
diagnóstica detalhada permitiu incriminar difficult to control. A detailed diagnostic
três fármacos diferentes (budesonido, mome- investigation allowed the identification
tasona e hidrocortisona) e identificar alter- of three sensitizing drugs (budesonide,
nativas terapêuticas adequadas, tanto para a mometasone and hydrocortisone) and two
corticoterapia inalada como sistémica (fluti- well tolerated alternatives for inhalation as
casona e prednisolona). well as for systemic therapy (fluticasone and
prednisolone).
117
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
Os corticosteróides são fármacos com uma ções de hipersensibilidade retardada, como
actividade anti-inflamatória e imunossu- as dermatites de contacto (frequência de 2,9
pressora potente, sendo utilizados na tera- a 6%), mas mais raramente podem ocorrer
pêutica de numerosas patologias, entre as reacções de tipo imediato a corticosteróides
quais as doenças alérgicas. No caso particu- administrados por via tópica ou sistémica
lar da asma e da rinite, os corticosteróides, (frequência <1%).1,2
administrados por via inalatória, constituem
a base da terapêutica. Os autores apresentam o caso clínico de
uma doente com alergia a diferentes corti-
Paradoxalmente, estão descritas reacções de costeróides, com manifestações após admi-
hipersensibilidade a fármacos deste grupo, nistração sistémica, inalada (brônquica e
com uma prevalência que é ainda mal co- nasal) e tópica cutânea.
nhecida. Habitualmente, trata-se de reac-
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 38 anos de cutânea pruriginosa máculo-papular pre-
idade, não fumadora, com história de asma dominantemente nos membros superiores e
brônquica e rinite desde a adolescência. face. Teve resolução rápida dos sintomas e
Cerca de 10 anos antes da apresentação desde então não voltou a fazer corticotera-
actual, durante uma exacerbação de asma pia inalada ou nasal.
em que necessitou de recorrer a um serviço
de urgência hospitalar, desencadeou erite- Adicionalmente, referia ligeiro prurido pal-
ma generalizado e agravamento súbito da mar, sem lesão cutânea visível, quando apli-
dispneia, segundos após a administração cava creme de hidrocortisona a 1% nas le-
endovenosa de corticosteróide que não sabe sões de eczema atópico do filho.
identificar. Nessa altura foi administrada te-
rapêutica que desconhece e teve alta horas Em 2009, durante a segunda gravidez, no-
mais tarde com a informação de que tinha tou agravamento das queixas de asma e ri-
tido uma reacção alérgica a um corticoste- nite. Após o parto, por apresentar sintomas
róide e de que no futuro deveria evitar fazer persistentes, recorreu a consulta de Pneumo-
medicação com este tipo de fármacos. Não logia onde foi medicada com montelucaste e
lhe foi fornecida qualquer informação escri- salmeterol, com melhoria parcial, tendo sido
ta. Na época só fazia terapêutica de alívio então referenciada à consulta de Imunoaler-
com broncodilatadores e anti-histamínicos. gologia do Hospital da Luz para investiga-
ção da alergia a corticosteróides.
Alguns anos mais tarde, foi medicada com
budesonido inalado (Pulmicort Turboha- A abordagem teve como objectivo, para além
ler®) que interrompeu ao terceiro dia de da confirmação do diagnóstico, a identifica-
terapêutica por aparecimento de erupção ção de alternativas terapêuticas toleradas.
HIPERSENSIBILIDADE A MÚLTIPLOS CORTICOSTERÓIDES EM DOENTE ASMÁTICA
No passo seguinte, foram efectuados testes A doente ficou com indicação para fazer te-
cutâneos por picada, com leitura aos 20 mi- rapêutica de manutenção da asma e rinite
nutos, com diversos corticosteróides, alguns com fluticasona tópica nasal e brônquica e
de aplicação tópica nasal, outros para admi- foi-lhe fornecida informação escrita referin-
nistração parentérica. Com as formulações do a existência de alergia à hidrocortisona e
parentéricas foram também efectuados tes- preconizando o recurso à prednisolona, no
tes intradérmicos com diluições de 1:100. caso de ser necessária terapêutica sistémica.
119
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
De acordo com os resultados da investiga- As manifestações clínicas podem ser de tipo
ção diagnóstica realizada, concluiu-se que imediato, surgindo menos de uma hora
esta doente apresentava alergia a diferentes após a administração, como no caso des-
corticosteróides, nomeadamente, hidrocor- ta doente, ou não imediato, de início mais
tisona, budesonido e mometasona. A hidro- tardio, geralmente após 24 a 48 horas.1,2
cortisona, com a qual se obteve um teste O espectro de gravidade é amplo, podendo
intradérmico positivo, terá sido, provavel- ir, no caso das reacções imediatas, desde a
mente, o fármaco responsável pela reacção simples urticária até à reacção anafiláctica,
anafiláctica, dado que frequentemente é potencialmente fatal.1,2 A doente em causa
administrada em serviço de urgência. Junto apresentou uma reacção imediata, de tipo
com a metilprednisolona é um dos corticos- anafiláctico, a um corticosteróide adminis-
teróides mais vezes implicados em reacções trado por via sistémica e reacções também
sistémicas.1,3 Tendo em consideração o resul- imediatas, de menor gravidade, a diferentes
tado dos testes cutâneos e a história de reac- corticosteróides tópicos cutâneos e inalados.
ção anafiláctica, optou-se por não submeter
a doente ao risco de uma prova de provoca- A abordagem diagnóstica, tal como na aler-
ção com hidrocortisona. A dexametasona e gia medicamentosa em geral, passa numa
a prednisolona não desencadearam reacção primeira fase pela realização de diferentes
no teste intradérmico e a segunda foi tolera- tipos de testes cutâneos, seleccionados de
da sem problemas na prova de provocação acordo com o fármaco envolvido e com o
oral. Quanto aos corticosteróides inalados, o tipo de reacção.5 No caso em estudo, uma
budesonido, implicado pela doente em reac- vez que se tratava de reacções imediatas, op-
ção máculo-papular, é o mais frequentemente tou-se pela realização de testes cutâneos por
responsabilizado por reacções de hipersensi- picada e intradérmicos. Para os corticoste-
bilidade.1,2 No caso descrito, optou-se por róides utilizados por via tópica procedeu-se
testar apenas os fármacos alternativos – mo- à realização de testes epicutâneos. Aos testes
metasona e fluticasona. Os testes cutâneos cutâneos, seguem-se, quando indicado, pro-
foram ambos negativos, mas a prova de pro- vas de provocação.1,2,5,6
vocação por aplicação nasal foi positiva com
a mometasona, confirmando a alergia a este No caso dos corticosteróides, a avaliação
fármaco, habitualmente menos implicado em dos resultados dos testes cutâneos é por
reacções de hipersensibilidade.4 A prova de vezes dificultada pelo seu potente efeito
provocação com fluticasona foi negativa. anti-inflamatório, que pode inibir o apare-
cimento da reacção, motivando resultados
Felizmente as reacções de hipersensibilidade falsamente negativos.1,2 Terá sido provavel-
aos corticosteróides são raras. A sua preva- mente este o caso dos testes epicutâneos da
lência é mal conhecida. Geralmente, trata-se doente, que foram negativos, inclusivamente
de reacções de contacto a corticosteróides com a mometasona, com a qual se obteve
tópicos cutâneos, sendo mais raras as reac- uma prova de provocação positiva e com
ções a corticosteróides administrados por a hidrocortisona que foi depois fortemente
via sistémica (<1%).1 positiva no teste intradérmico.
HIPERSENSIBILIDADE A MÚLTIPLOS CORTICOSTERÓIDES EM DOENTE ASMÁTICA
BIBLIOGRAFIA
1. Torres MJ, Canto G. Hypersensitivity reactions to corticosteroids. 4. Räsänen l, Tuomi ML. Cross-sensitization to mometasone furoate
Curr Opin Allergy Clin Immunol 2010;10:273-9. in patients with corticosteroid contact allergy. Contact Dermatitis
1992;27:323-5.
2. Ventura MT, Calogiuri GF, Muratore L, et al. Cross-reactivity in
cell-mediated and IgE mediated hypersensitivity to glucocorticoids. 5. Brockow K, Romano A, Blanca M, Ring J, Pichler W, Demoly P.
Curr Pharma Des 2006;12:3383-91. General considerations for skin test procedures in the diagnosis of
drug hypersensitivity. Allergy 2002;57:45-51.
3. Koutsostathis N, Vovolis V. Severe immunoglobulin E-mediated
anaphylaxis to intravenous methylprednisolone succinate in a 6. Messaad D, Sahla H, Benahmed S, Godard P, Bousquet J, Demoly
patient who tolerated oral methylprednisolone. J Investig Allergol P. Drug provocation tests in patients with a history suggesting
Clin Immunol 2009;19:321-39. an immediate drug hypersensitivity reaction. Ann Intern Med
2004,140:1001-6.
121
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
7. Coopman S, Degreef H, Dooms-Goossens A. Identification of 9. Caimmi S, Caimmi D, Bousquet P-J, Demoly P. Succinate as
cross-reaction patterns in allergic contact dermatitis from topical opposed to glucocorticoid itself allergy. Allergy 2008,63:1641-3.
corticosteroids. Br J Dermatol 1989;121:27-34.
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de um The authors report the clinical case of
jovem de 11 anos de idade, com queixas de 11-year old boy followed in Pediatric
opressão torácica e pieira desencadeada pelo Allergology outpatient clinic of Hospital
exercício físico, seguido em consulta de Aler- da Luz, complaining of chest tightness
gologia Pediátrica do Hospital da Luz. Rea- and wheezing, following physical exercise.
lizou provas de função respiratória que re- Respiratory function tests revealed mild
velaram obstrução ligeira das vias aéreas de obstruction of smaller size airways, not
menor calibre, não reversível ao broncodi- reversible by bronchodilators. After
latador. Na sequência de pneumonia recor- recurrent episodes of lower left lobe
rente do lobo inferior esquerdo, efectuou pneumonia, the patient underwent a CT
tomografia computorizada torácica que evi- chest scan that showed a lesion located at the
denciou uma lesão neoformativa localizada à entrance of the left lower lobe bronchus. A
entrada do brônquio do lobo inferior esquer- biopsy revealed a neuroendocrine carcinoma
do. A biópsia da lesão revelou tratar-se de um of the lung - typical carcinoid. The patient
carcinoma neuroendócrino do pulmão - car- underwent a left lower lobectomy with
cinóide típico. O doente foi submetido a uma complete remission of the symptoms.
lobectomia inferior esquerda, com remissão
completa da sintomatologia.
123
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
Na população pediátrica os tumores epite- O tumor carcinóide tem origem nas células
liais malignos primários do pulmão são en- neurosecretoras da mucosa brônquica. É
tidades raras com tipos histológicos muito considerado de baixo grau de malignidade
diversos. As mais frequentes são o blasto- devido ao seu potencial de invasão local,
ma pleuropulmonar e o tumor carcinóide, tendência para recorrência local e metasti-
seguidos do tumor miofibroblástico, sarco- zação ocasional. O tipo histológico – carci-
mas, carcinomas e mesotelioma.1-4 Dada a nóide típico – de localização central e cres-
raridade destes tumores os atrasos de dia- cimento endobrônquico, caracteriza-se pela
gnóstico são comuns. sua menor agressividade, sendo a cirurgia
habitualmente curativa.5
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 9 anos de ida- Efectuou na consulta provas de sensibilida-
de, recorre à consulta de Alergologia Pediá- de cutânea, com resultados negativos para
trica do Hospital da Luz em Abril de 2007 os alergenos habituais, e provas de função
devido a sintomas de opressão torácica, tos- respiratória que evidenciaram um padrão
se e pieira desencadeados pelo exercício. São de obstrução dependente das vias aéreas de
descritos vários episódios de bronquiolites menor calibre não reversível aos broncodila-
de repetição durante a infância, com um tadores. Na mesma altura, uma radiografia
intervalo livre de sintomas entre os quatro do tórax (Fig. 1) não evidenciou alterações.
e os nove anos de idade. Nos antecedentes
pessoais salientava-se ainda um colesteato- O doente foi medicado com corticosteróides
ma operado um ano antes e otites externas por via inalatória e antagonistas dos recep-
frequentes. tores dos leucotrienos, não se verificando
125
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
127
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
ratória. O tecido pulmonar restante apre- velou positividade das células da neoplasia
sentava alterações decorrentes de obstrução com marcadores neuroendócrinos.
com dilatação brônquica (bronquiectasias)
e inflamação associada, sendo as alterações Passados dois anos sobre a data da interven-
parenquimatosas localizadas e consistentes ção cirúrgica, o doente não voltou a referir
com pneumopatia obliterativa. Os gânglios qualquer sintomatologia relacionada com as
linfáticos isolados no hilo lobar não apre- vias aéreas inferiores. A avaliação funcional
sentavam infiltração neoplásica, bem como respiratória evidenciou uma recuperação
os restantes gânglios isolados nas cadeias in- progressiva dos volumes pulmonares.
terlobares. O estudo imunocitoquímico re-
DISCUSSÃO
Os tumores primários do pulmão são difí- precursor uptake and decarboxylation),
ceis de diagnosticar nas crianças, não só pela têm capacidade para sintetisar serotonina
sua raridade, como pelos sintomas inespecí- (5-hidroxitriptamina), 5-hidroxitriptofano,
ficos, que frequentemente são atribuídos a adenocorticotrofina (ACTH), norepinefrina,
entidades clínicas comuns. O tumor carci- bombesina, calcitonina, hormona anti-diu-
nóide, com cerca de 11 a 13% da incidência rética e bradiquinina.
de tumores em crianças, é um dos tumores
pulmonares mais frequentes nesta faixa etá- A observação macroscópica dos especíme-
ria.1-4 Contudo os tumores carcinóides loca- nes tumorais evidencia habitualmente um
lizados no pulmão são raros, constituindo aspecto digital, massas polipóides ou esféri-
cerca de 12 a 15 % de todos os tumores cas com cerca de 3 a 4 cm, de crescimento
carcinóides. endobrônquico, podendo também envolver
o parenquima pulmonar caracterizando as
Os carcinóides brônquicos pertencem ao “lesões em botão”. Podem também ter um
grupo dos tumores neuroendócrinos. Este crescimento predominante extraluminal
grupo abrange uma variedade histológica “lesão tipo iceberg”. Muitas lesões estão
que se estende desde o carcinóide brônqui- confinadas aos brônquios principais com a
co, de baixa malignidade, até ao carcinoma mucosa em redor intacta.
de pequenas celulas ou tumor neuroendócri-
no de grandes células, de elevada agressivi- Histologicamente, os tumores carcinóides
dade.5 estão divididos em dois grupos: o carcinoma
de células de Kulthitsky (KCC) I, designados
Os tumores carcinóides brônquicos têm a por carcinóides típicos, e o KCC II, ou car-
sua origem nas células de Kulchitshy (cé- cinóides atípicos.
lulas argentafins) da mucosa brônquica.
Estas células predominam na bifurcação Os KCC I correspondem aos carcinóides
dos brônquios lobares, são neurosecreto- brônquicos típicos, de baixa agressividade,
ras pertencendo ao sistema APUD (amino habitualmente bem definidos, cerca de 2,5
CARCINOMA PULMONAR NEUROENDÓCRINO NUMA CRIANÇA
129
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Yu DC, Grabowski MJ, Kozakewich HP, et al. Primary lung 7. Eriksson B, Bergtrom M, Orlefors H, et al. Use of PET in
tumors in children and adolescents: a 90-year experience. J Pediatr neuroendocrine tumors. In vivo application and in vitro studies. Q J
Surg 2010;45:1090-5. Nucl Med 2000;44:68-76.
2. Dishop MK, Kuruvilla S. Primary and metastatic lung tumors 8. Brokx HA, Risse EK, Paul MA, et al. Initial bronchoscopic
in the pediatric population: a review and 25-year experience at a treatment for patients with intraluminal bronchial carcinoids. J
large children's hospital. Arch Pathol Lab Med 2008;132:1079-103. Thorac Cardiovasc Surg 2007;133:973-8.
3. Lal DR, Clark I, Shalkow J, et al. Primary epithelial lung 9. Rizzardi G, Marulli G, Bortolotti L, Calabrese F, Sartori F, Rea
malignancies in the pediatric population. Pediatr Blood Cancer F. Sleeve resections and brochoplastic procedures in typical central
2005;45:683-6. carcinoid tumors. Thorac Cardiovasc Surg 2008;56:42-5.
4. Cohen MC, Kaschula RO. Primary pulmonary tumors in 10. Brokx HA, Risse EK, Paul MA, et al. Initial bronchoscopic
childhood: a review of 31 years' experience and the literature. treatment for patients with intraluminal bronchial carcinoids. J
Pediatr Pulmonol 1992;14:222-32. Thorac Cardiovasc Surg 2007;133:973-8.
5. Travis WD, Rush W, Flieder DB, et al. Survival analysis of 200 11. Fuks L, Fruchter O, Amital A, Fox BD, Abdel Rahman N,
pulmonary neuroendocrine tumors with clarification of criteria for Kramer MR. Long-term follow-up of flexible bronchoscopic
atypical carcinoid and its separation from typical carcinoid, Am J treatment for bronchial carcinoids with curative intent. Diagn Ther
Surg Pathol 1998; 22:934-44. Endosc 2009:782961. Epub 2010 Feb 7.
133
BYPASS GÁSTRICO EM Y-DE-ROUX
TOTALMENTE ASSISTIDO POR ROBOT.
CASO CLÍNICO
Totally robotic Roux-en-Y gastric bypass.
Case report
CÉSAR RESENDE
PAULO ROQUETE
JOSÉ DAMIÃO FERREIRA
JOÃO REBELO DE ANDRADE
CRISTINA PESTANA
CARLOS VAZ
RESUMO Abstract
A introdução da laparoscopia na abordagem The introduction of laparoscopy as a
cirúrgica, apesar dos importantes benefícios surgical approach allowed better standards
que trouxe para os doentes, veio criar tam- of care to patients; however, some severe
bém várias dificuldades de execução opera- difficulties and limitations in surgical
tória. A aplicação da robótica à cirurgia tem performance became evident as well. Joining
permitido porém desenvolver sistemas ca- robotics and surgery together allowed
pazes de minimizar essas limitações, restau- the development of surgical systems able
rando o controlo e a ergonomia operatórias. to minimize those limitations, restoring
Os autores descrevem o caso clínico de uma control and ergonomics. The authors report
doente obesa, com um índice de massa cor- the clinical case of an obese patient (body
poral de 39 kg/m2, proposta para bypass mass index 39 kg/m2) submitted to a totally
gástrico em Y-de-Roux (RYGB) totalmen- robotic Roux-en-Y gastric bypass (RYGB),
te assistido por robot. No contexto desta in- discussing the operative technique and the
tervenção, os autores discutem a técnica ope- differences to the conventional laparoscopic
ratória, salientando as diferenças em relação approach. The totally robotic RYGB is
à abordagem laparoscópica convencional. O feasible and apparently at least as safe as
RYGB totalmente assistido por robot é exe- the conventional laparoscopic operation.
quível e aparentemente tão seguro quanto a However, there isn’t enough evidence at this
técnica laparoscópica convencional. Contu- time to definitively conclude on this subject.
do, não existe ainda evidência que permita
esclarecer definitivamente este tema.
135
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
Quando, na década de 80, surgiram as pri- sição real dos mesmos no doente), não tem
meiras publicações sobre cirurgia laparos- necessidade de contrariar a resistência exer-
cópica,1 foram evidentes algumas limitações cida pela parede abdominal e tem uma ima-
inerentes à técnica: os instrumentos tradicio- gem de alta definição e tridimensional na
nais seriam substituídos por versões monta- direcção natural dos seus olhos. Além disso,
das em extensões de 30 a 40 cm, que dis- recupera-se a noção de profundidade, perdi-
põem apenas de quatro graus de liberdade da na laparoscopia: o sistema é totalmente
(avanço, recuo, rotação esquerda e direita), binocular, desde a captação até à projecção
que ampliam o tremor e diminuem a per- da imagem em dois monitores na consola de
cepção táctil, passando através de um fulcro trabalho, um para cada olho do cirurgião.
(parede abdominal) que torna contra-intui- As imagens assim obtidas são justapostas
tiva a movimentação dos mesmos. De uma pelo cérebro de quem as observa, recons-
visão natural e em posição naturalmente truindo a tridimensionalidade.
ergonómica passou-se para uma representa-
ção da realidade tridimensional num moni- Nas suas versões actuais estes dispositivos
tor plano (bidimensional), cuja localização robóticos apresentam ainda duas limita-
é condicionada pela organização e pelo ções maiores. Em primeiro lugar, perde-se
desenho da sala operatória; a posição do completamente o retorno táctil que a lapa-
cirurgião torna-se refém da localização dos roscopia ainda permitia; os manipuladores
trocartes de acesso e da posição do monitor, do robot estão perfeitamente equilibrados,
sendo frequentemente anti-ergonómica.2 de forma que parecem não ter peso e não
oferecem resistência à mobilização; todos
Apesar disso, as vantagens para os doentes os gestos são aferidos apenas pela visão, na
provaram ser tão relevantes que fez sentido ausência total de propriocepção. Em segun-
insistir; as dificuldades foram ultrapassadas do lugar, a relativa imobilidade dos braços
e a cirurgia laparoscópica foi, provavelmen- operatórios torna o robot menos útil em in-
te, a maior revolução técnica no campo da tervenções cirúrgicas que interessem vários
Cirurgia Geral dos últimos 100 anos! quadrantes abdominais.3
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 57 anos de Após o estabelecimento do pneumoperi-
idade, com um índice de massa corporal toneu, abordou-se a cavidade peritoneal
de 39 kg/m2, apresentando concomitante- com trocarte óptico de 12 mm extra-longo
mente artroses importantes. Foi avaliada e realizou-se uma primeira inspecção da
nas consultas de Dietética e Nutrição e de cavidade peritoneal com uma câmara la-
Psicologia Clínica, após o que lhe foi pro- paroscópica convencional. Colocaram-se
posta a realização de um RYGB. Foram-lhe as restantes portas sob visão directa e ava-
explicadas as particularidades do sistema liou-se a existência de aderências do grande
Da Vinci Si HD que aceitou. epíplon que foram seccionadas nesta fase.
Seguiu-se a acoplagem (docking) do carro
Descrição operatória operatório do sistema cirúrgico Da Vinci
System Si HD, após o que o cirurgião pas-
Foi administrada uma dose única de antibió- sou para a consola.
tico profiláctico e aplicados os dispositivos de
pressão intermitente nos membros inferiores. A técnica operatória seguiu os passos ha-
bituais do bypass gástrico em Y-de-Roux,
Com a doente em decúbito dorsal e com as diferindo apenas na responsabilidade pela
pernas em adução, fizeram-se as marcações manipulação de instrumentos como as su-
das portas antes da insuflação do abdómen turas mecânicas e com o aplicador de clips
(Fig. 1). São usadas seis portas, mais uma hemostáticos, que no caso da cirurgia robó-
do que na técnica laparoscópica convencio- tica são manipulados pelo ajudante.
nal, sendo a porta adicional de 12 mm para
acesso do ajudante. Com a doente em Trendelemburg invertido
acentuado, realizaram-se a dissecção e sec-
ção gástricas da forma habitual, expondo o
6 hiato esofágico e ângulo de His. Após a con-
fecção da bolsa gástrica é necessário modi-
ficar o posicionamento do doente, ou seja,
3 2 1 4
5 desfazer o Trendelemburg invertido. Para
este efeito e devido à concepção do sistema,
é necessário proceder à remoção dos bra-
ços robóticos (undocking), os quais serão
recolocados logo após o reposicionamento
(re-docking). Após 13 casos operados, todo
este processo consome 10 minutos. Foi feita
a medição da ansa biliopancreática, seccio-
nado o jejuno e confeccionada uma anas-
137
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
tomose jejuno-jejunal latero-lateral com O tempo operatório total foi de 215 minu-
stapler linear e encerramento manual da tos. O Vídeo 1 apresenta um resumo desta
enterotomia. Foi depois medida a ansa ali- intervenção cirúrgica.
mentar e realizada uma anastomose gastro-
jejunal término-lateral com sutura manual, Pós-operatório
em dois planos contínuos de Vicryl 3/0, cali-
brada por uma sonda de 32 Fr. Procedeu-se O pós-operatório decorreu sem complicações.
ao encerramento das brechas mesentéricas
com uma sutura contínua linear de seda 2/0. A doente teve alta hospitalar ao terceiro dia
O procedimento terminou com um teste da pós-operatório.
anastomose proximal com azul de metileno
e colocação de dreno passivo.
DISCUSSÃO
Apesar das poucas séries de doentes publica- como outros aspectos carecem contudo de
das4,5 e da ausência de estudos prospectivos confirmação em estudos a realizar.
que o confirmem, é convicção dos autores
que a adopção do sistema robótico na cirur- Com uma curva de aprendizagem relativa-
gia bariátrica resultará num aumento da se- mente plana em equipas com experiência la-
gurança e da eficácia. paroscópica prévia,5 o sistema de cirurgia
robótica leva a uma optimização e execução
A introdução de sistemas robóticos de cirur- rápida de gestos classicamente tidos como
gia parece facilitar a execução de gestos la- difíceis no contexto da laparoscopia conven-
paroscópicos complexos, como sejam a ma- cional.
nipulação intestinal, a sutura e anodação
intracorpórea, pelo que a sua aplicabilidade Apesar do aumento do tempo operatório, os
na cirurgia bariátrica surge de forma eviden- autores têm constatado que os doentes pa-
te. A dissecção controlada pela visão que o recem ter menos dor no pós-operatório e a
sistema proporciona e a adopção de anasto- média dos tempos de internamento para os
moses manuais calibradas permitirão obter primeiros 13 casos apresenta-se sistematica-
ainda melhores resultados, tanto no que diz mente inferior (3 dias), comparativamente à
respeito à segurança e diminuição das com- abordagem laparoscópica habitual (4 dias),
plicações pós-operatórias, como em relação na qual os autores têm experiência conside-
à eficácia do procedimento. rável.
Por outro lado, o facto de o movimento dos De acordo com a experiência dos autores, o
braços do robot se realizar tendo por pivot maior obstáculo à introdução deste instru-
um ponto fixo do trocarte na parede abdo- mento de trabalho reside na relação custo-
minal, condiciona menor traumatismo da benefício, consequência do preço do equipa-
mesma e, muito naturalmente, deverá levar a mento de base e do uso de instrumentos com
uma redução da dor no pós-operatório. Este um número limitado de utilizações, proble-
BYPASS GÁSTRICO EM Y DE ROUX TOTALMENTE ASSISTIDO POR ROBOT. CASO CLÍNICO
mas que também são referidos por outros verá evoluir e os tempos operatórios dimi-
grupos.3,6 O tempo operatório é, também, nuirão com o aumento da experiência.
mais prolongado; contudo, este aspecto de-
COMENTÁRIOS FINAIS
O bypass gástrico totalmente assistido por importante vantagem da cirurgia robótica
robot é exequível e aparentemente pelo me- na área da Cirurgia Geral resultará da sua
nos tão seguro como a técnica laparoscópica aplicação à cirurgia por porta única7 ou à
convencional; no entanto, ainda não existe cirurgia por orifícios naturais: os sistemas
evidência científica sustentada que permita robotizados permitirão resolver muitas das
concluir definitivamente sobre este tema. limitações técnicas importantes relaciona-
das com estas novas abordagens.
Os autores acreditam e antevêem que a mais
BIBLIOGRAFIA
1. Semm K. Robotics and the future of laparoscopy. JSLS 5. Mohr CJ, Nadzam GS, Curet MJ. Totally robotic Roux-en-Y
1999;3:87-8. gastric bypass. Arch Surg 2005;140:779-86.
2. Hanly E, Talamini, M. Robotic abdominal surgery. Am J Surg 6. Scozzari G, Rebecchi F, Millo P, Rocchietto S, Allieta R, Morino
2004;188:S19-S 26. M. Robot-assisted gastrojejunal anastomosis does not improve the
results of the laparoscopic Roux-en-Y gastric bypass. Surg Endosc
3. Herron DM, Marohn M. SAGES-MIRA Robotic Surgery 2010 [Epub ahead of print] PubMed PMID: 20625770.
Consensus Group. A consensus document on robotic surgery. Surg
Endosc 2008;22:313-25. 7. Joseph RA, Goh AC, Cuevas SP, et al. "Chopstick" surgery: a
novel technique improves surgeon performance and eliminates
4. Yu SC, Clapp BL, Les MJ, et al. Robotic assistance provides arm collision in robotic single-incision laparoscopic surgery. Surg
excellent outcomes during the learning curve for laparoscopic Endosc 2010;24:1331-5.
Roux-en-Y gastric bypass: results from 100 robotic-assisted
gastric bypasses. Am J Surg 2006;192:746-9.
139
ABORDAGEM LAPAROSCÓPICA
DO ABDÓMEN AGUDO NA GRÁVIDA.
CASO CLÍNICO
Laparoscopic approach of acute abdomen
during pregnancy. A case report
CÉSAR RESENDE
JOSÉ LOURENÇO REIS
PAULO ROQUETE
CARLOS VAZ
JOÃO REBELO DE ANDRADE
JOSÉ DAMIÃO FERREIRA
RESUMO Abstract
A grávida que se apresenta com um quadro The pregnant woman presenting with acute
de abdómen agudo é sempre avaliada com abdomen is always a cause of concern. The
especial preocupação. A presença de pato- presence of intraperitoneal inflammatory
logia inflamatória intraperitoneal representa disease is a significant risk to miscarriage,
um risco significativo para a gravidez, pro- proportional to the history length of the
porcional ao período de evolução da pato- disease. The relation between surgery
logia. É ainda conhecida a associação da ci- and miscarriage or premature labor is
rurgia com o desencadear de aborto ou parto well known. The authors describe the
prematuro. Os autores descrevem o caso clí- clinical case of a 27 week pregnant patient
nico de uma grávida de 27 semanas que se presenting in the emergency room of
apresentou no Atendimento Médico Perma- Hospital da Luz with abdominal pain and
nente do Hospital da Luz com um quadro vomiting. The symptoms evolution and the
de dor abdominal e vómitos que se mante- clinical investigation lead to the proposal
ve após tratamento sintomático e que condu- of an exploratory laparoscopy. During
ziu à proposta de laparoscopia exploradora. the procedure a complete torsion of the
Nesta intervenção identificou-se uma torção right adnexal structures was identified and
completa do anexo direito que foi resolvi- solved. The authors describe the necessary
da. A este propósito os autores descrevem as changes of laparoscopic techniques due
modificações necessárias no padrão das té- to the physiologic changes of pregnancy
cnicas de laparoscopia devido às alterações and to the volume that uterus occupy in
141
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
fisiológicas da grávida e ao volume que o úte- the abdominal cavity, and conclude that if
ro ocupa na cavidade abdominal e concluem adapted to pregnancy changes, laparoscopic
que desde que seja adaptada em conformi- approach of the pregnant patient is not only
dade, a abordagem laparoscópica da doente feasible but advantageous to the mother and
grávida é exequível e vantajosa tanto para a safe for the foetus.
mãe como para o feto.
INTRODUÇÃO
A grávida com dor abdominal constitui laparoscopia na grávida prendiam-se com
um desafio de avaliação e diagnóstico na o risco potencial para o feto decorrente da
urgência. Estima-se que 1 em 500 grávidas introdução dos trocartes, com os efeitos da
necessitarão de ser operadas por urgência pressurização da cavidade peritoneal com
não obstétrica, sendo a suspeita de apendi- dióxido de carbono e com as dificuldades
cite a causa mais frequente.1-3 As preocupa- técnicas em conseguir uma exposição ade-
ções iniciais respeitantes à aplicabilidade da quada na presença do útero grávido.4
CASO CLÍNICO
Grávida de 33 anos, G1P0, com 27 semanas quadro, decidiu-se propor laparoscopia ex-
de gestação, espontânea e sem intercorrên- ploradora para esclarecimento do quadro.
cias até ao episódio actual, recorreu ao Aten-
dimento Médico Permanente do Hospital da Com a doente em decúbito dorsal, reali-
Luz por quadro de dor persistente nos qua- zou-se abordagem aberta da cavidade pe-
drantes direitos do abdómen, acompanhada ritoneal através de incisão supra-umbilical,
de náuseas e vómitos. Do exame objectivo onde se introduziu trocarte rombo (USS®).
destacavam-se sinais de irritação peritoneal, Procedeu-se então à insuflação lenta
nomeadamente dor à palpação do flanco (2 L/min) de dióxido de carbono, estabele-
direito, com defesa e dor viva à percussão. cendo-se pneumoperitoneu a 12 mmHg sem
O fundo uterino palpava-se aproximada- intercorrências. Colocou-se um rolo sob o
mente 5 cm acima do umbigo. Não estavam hemicorpo direito e procedeu-se à inspec-
presentes outros achados objectivos. A eco- ção da cavidade peritoneal. Identificou-se
grafia não demonstrava alterações, tendo torção completa, dupla, do anexo direi-
um fluxo sanguíneo anexial avaliado por to com congestão do mesmo. Contíguo a
Doppler normal. Analiticamente verificou- este encontrava-se o cego, sendo possível
-se a presença de leucocitose com neutrofilia visualizar um apêndice macroscopicamen-
e um valor para a proteína C reactiva (PCR) te normal. Colocaram-se sob visão directa
de 0,54 mg/dL. dois trocartes, um suprapúbico mediano e o
outro em posição epigástrica também
Após período de observação e tratamen- mediana (Fig. 1).
to sintomático e perante a manutenção do
ABORDAGEM LAPAROSCÓPICA DO ABDÓMEN AGUDO NA GRÁVIDA.
CASO CLÍNICO
DISCUSSÃO
A presença de um quadro inflamatório in- mãe no período intra-operatório estão na
traperitoneal está associada a um risco base do maior risco para a gestação na grá-
significativo de aborto ou parto pré-termo, vida operada. A hipoperfusão uterina é con-
proporcional à sua gravidade e extensão. O sequente à diminuição do retorno venoso
atraso no diagnóstico e a consequente evolu- materno e este é multifactorial, consequên-
ção do quadro levam a que, no caso da apen- cia do aumento da pressão abdominal e da
dicite aguda, se passe de um risco de cerca de compressão da veia cava inferior pelo úte-
4% de perda fetal no quadro não complica- ro grávido.
do, para 20-25% com risco de mortalidade
materna na apendicite perfurada.5 São conhecidas a hipercapnia e a acidose
fetais, descritas em estudos animais como
Na maioria dos casos, a torção anexial está consequência da pressurização da cavida-
associada a um aumento do volume dos de peritoneal com dióxido de carbono. Não
ovários.6 Durante a gravidez expontânea a existindo medições directas da pressão par-
torção anexial é rara, com uma incidência cial do dióxido de carbono no sangue ar-
de 1-5/10 000 grávidas. Nos casos de gra- terial (PaCO2) fetal em humanos, usa-se a
videz medicamente assistida com hiperesti- capnografia materna como referência, sa-
mulação ovárica aquele valor pode aumen- lientando-se que existe de facto uma correla-
tar para 16%.7 ção entre o desenvolvimento de hipercapnia
materna e a duração da intervenção. Não
A manipulação do útero grávido, a irritação existe contudo evidência de efeitos a longo
peritoneal e a sensibilidade útero-fetal às al- prazo no Homem, decorrentes da exposição
terações hemodinâmicas e respiratórias da ao pneumoperitoneu.2 Em contrapartida,
143
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
uma melhor visualização da cavidade perito- do, estando a laparotomia reservada para os
neal permite uma menor manipulação uteri- casos em que a situação clínica assim o exija.4
na e que a menor utilização de opióides mini- Embora exista algum consenso em relação à
mize a depressão fetal pós-operatória.2,8 exequibilidade de procedimentos laparoscó-
picos até às 28 semanas de gravidez, estão
A laparoscopia é considerada actualmente a também descritas na bibliografia internacio-
forma de abordagem cirúrgica de eleição tan- nal séries de intervenções laparoscópicas rea-
to para a confirmação diagnóstica como para lizadas em todos os trimestres da gravidez.8
a intervenção terapêutica no abdómen agu-
COMENTÁRIOS FINAIS
As alterações fisiológicas da mulher grávida · Planear a estratégia de posicionamento das
e o volume ocupado pelo útero na cavidade portas adaptando-as à presença de um úte-
abdominal implicam alterações no padrão ro volumoso em pleno abdómen, de modo a
das técnicas empregues, entre as quais são minimizar a obstrução da linha de visão bem
de destacar as seguintes: como dos trajectos de manipulação cirúrgica;
· Minimizar o tempo operatório.
· Preferência pela abordagem aberta da cavi-
dade peritoneal introduzindo-se o primeiro A abordagem laparoscópica tem por objec-
trocarte sob visão directa; tivo minimizar a agressão anestésico-cirúr-
· Pressurizar a cavidade peritoneal apenas gica materno-fetal. Desde que adaptada às
até obter o espaço estritamente necessário particularidades fisiológicas e anatómicas
à visualização e manipulação segura das es- da doente grávida a abordagem laparoscó-
truturas, não ultrapassando os 12 mmHg; pica da doente grávida é não só exequível,
· Monitorizar continuamente o dióxido de como comprovadamente vantajosa para a
carbono materno expirado, fazendo os ajus- mãe e segura para o feto.
tes ventilatórios necessários à sua estabiliza-
ção durante o acto operatório;
REFERÊNCIAS
1. Dietrich CS, Hill CC, Hueman M. Surgical diseases presenting in 5. Kilpatrick CC, Monga M. Approach to the acute abdomen in
pregnancy. Surg Clin N Am 2008;88:403-19. pregnancy. Obstet Gynecol Clin N Am 2007;34:389-402.
2. Jackson H, Granger S, Price R, et al. Diagnosis and laparoscopic 6. McWilliams GD, Hill MJ, Dietrich CS. Gynecologic emergencies.
treatment of surgical diseases during pregnancy: an evidence-based Surg Clin N Am 2008; 88:265-83.
review. Surg Endosc 2008;22: 1917-27.
7. Hasson J, Tsafir Z, Azem F, et al. Comparison of adnexal torsion
3. Parangi S, Levine D, Henry A, et al. Surgical gastrointestinal between pregnant and nonpregnant women. Am J Obstet Gynecol
disorders during pregnancy. Am J Surg 2007;193:223-32. 2010;202:536.e1-6.
4. Society of American Gastrointestinal and Endoscopic Surgeons 8. Lu EJ, Curet MJ. Surgical procedures in pregnancy. In: Gabbe
(SAGES). Guidelines for diagnosis, treatment and use of laparoscopy SG, Niebyl JR, Simpson JL, eds. Gabbe: Obstetrics: Normal and
for surgical problems during pregnancy. 2007 In: http://www.sages. Problem Pregnancies, 5th ed. 2007 In: http://www.mdconsult.com
org/sagespublication.php?doc=23
VOLUMOSO ANEURISMA PÓS-
-TRAUMÁTICO DA CARÓTIDA INTERNA
SIMULANDO TUMOR NEUROGÉNIO.
TRATAMENTO CIRÚRGICO
Large post traumatic internal carotid artery
aneurysm simulating a neurogenic tumor.
Surgical management
A. DINIS DA GAMA
AUGUSTO MINISTRO
CRISTINA PESTANA
PEDRO OLIVEIRA
RESUMO Abstract
Os autores descrevem o caso clínico de uma The authors report the clinical case of a
mulher de 60 anos de idade, a quem foi dia- 60-year old female who, incidentally, had
gnosticado, incidentalmente, um “tumor” de the diagnosis of a retropharyngeal tumor,
localização retrofaríngea, com deslocamen- causing the anterior dislocation of the
to anterior da amígdala direita. A avaliação right tonsil. Imagiological studies (CT and
imagiológica inicial (TC e RM) foi compatí- NMR scans) were compatible with the
vel com o diagnóstico de “tumor neurogénio” diagnosis of “neurogenic tumor” or “vagal
ou “paraganglioma do vago” e uma tentativa paraganglioma” and an attempt to a biopsy
de biópsia foi fracassada, dando apenas saída was failed, having collected only blood. An
a sangue. Uma angio-RM permitiu formular angio-RM allowed the definitive diagnosis
o diagnóstico definitivo de volumoso aneu- of a large sacular aneurysm of the internal
risma sacular da artéria carótida interna, de carotid artery, of unknown etiology. The
etiologia ignorada. A doente foi submetida a patient underwent surgical management,
tratamento cirúrgico, que consistiu na ressec- consisting in the resection of the aneurysm
145
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
Os aneurismas das artérias carótidas são ra- Os traumatismos cervicais, quer sejam aber-
ros, particularmente os da carótida interna e tos (feridas penetrantes), quer fechados
caracterizam-se por uma grande diversida- (contusões) podem ser causa de aneurismas
de etiológica, topográfica, de manifestações carotídeos, os quais podem passar desperce-
clínicas e formas ou modalidades de trata- bidos na fase aguda e vir a revelar-se mais
mento. Existem poucas séries significativas tarde por sintomatologia diversa, de aci-
publicadas na literatura, quer reportando dentes tromboembólicos cérebrovasculares
experiências individuais, quer institucionais, a sintomatologia compressiva de órgãos ou
as quais enaltecem as circunstâncias etioló- estruturas anatómicas de vizinhança, simu-
gicas mais comuns, como sejam a doença lando tumores neurogénios, tal como su-
degenerativa aterosclerótica, a fibrodispla- cedeu com o presente caso clínico, que foi
sia arterial e os traumatismos. Causas mais objecto de tratamento cirúrgico com êxito e
raras incluem a dissecção espontânea da ca- que se passa a descrever.
rótida, os aneurismas infecciosos e a doença
de Behçet.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 60 anos de ida- rotina, particularmente destinado a avaliar
de, com dois filhos. Fora sempre saudável, discreto défice auditivo, que foi contudo in-
não mencionando acontecimentos relevan- conclusivo. No decurso da observação, ao
tes na sua história pregressa, nem factores exame da orofaringe, foi notada a existência
de risco para doenças cardiovasculares. Em de uma tumefacção da região faríngea direi-
Julho de 2009, consultou um otorrinolarin- ta, incluindo da amígdala, que se encontrava
gologista para a realização de um exame de projectada para a frente. Porém, não referia
VOLUMOSO ANEURISMA PÓS-TRAUMÁTICO DA CARÓTIDA INTERNA SIMULANDO TUMOR NEUROGÉNIO.
TRATAMENTO CIRÚRGICO
quaisquer sintomas, mesmo com os movi- não se podendo excluir outras hipóteses tais
mentos de deglutição. como paraganglioma do corpo carotídeo,
que parece menos provável”.
O restante exame físico, incluindo o pesco-
ço, era completamente normal, nomeada-
mente não se palpavam quaisquer massas
cervicais ou adenopatias.
147
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
149
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
DISCUSSÃO
Os aneurismas das artérias carótidas, par- 1959, totalizando 298 aneurismas das ca-
ticularmente os da carótida interna, são rótidas os quais confrontados com 17 854
referidos como dos mais raros aneurismas operações de desobstrução carotídea reali-
periféricos encontrados na prática clínica e zadas naquelas instituições no decurso do
existem poucas séries de casos publicados mesmo período de tempo, correspondem a
na literatura, reportando quer experiências 1,54% do total daquelas cirurgias, o que
individuais, quer institucionais. demonstra, uma vez mais, a sua raridade.2
151
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
alta na carótida interna, são difíceis de abor- Numa época caracterizada pela expansão e
dar, particularmente o seu segmento distal desenvolvimento do tratamento endovascu-
pós aneurisma e nesta conformidade estará lar, torna-se tentador utilizá-lo neste contex-
indicada a efectivação de controlo hemos- to, nomeadamente com o intuito de obviar
tático e reconstrução por via intrasacular, as complicações nervosas periféricas, tão
utilizando catéteres de Fogarty introduzidos frequentemente reportadas em consequência
no ostium distal do aneurisma, tal como da cirurgia aberta ou convencional. Todavia,
foi levado a efeito no presente caso clínico. trata-se de um método selectivo, exige uma
Uma outra alternativa utilizada em aneuris- anatomia vascular “favorável” e será por-
mas muito altos, que se estendem até à base ventura ineficaz face à existência de sintomas
do crânio, recorre a acessos cirúrgicos espe- compressivos, visto o aneurisma permanecer
ciais, que implicam a luxação do maxilar in- in situ. Para além disso, existem poucas expe-
ferior, a transecção do seu ramo ascendente riências consistentes ou credíveis e desconhe-
e a secção de parte da apófise mastoideia cem-se os seus resultados a médio e a longo
do osso temporal, operações levadas a efei- termo.20 Tal como sucede com a patologia
to, por vezes, em associação com cirurgiões obstrutiva da carótida, o tratamento endo-
otorrinolaringologistas.3,16,19 vascular é credor de riscos e complicações
peri-procedurais, que levou alguns autores a
Finalmente, em circunstâncias de grande considerá-lo “perigoso”,23 razão pela qual se
destruição da parede arterial, como sucede pode eleger ainda nos dias de hoje a cirurgia
com os aneurismas infecciosos ou com a do- convencional ou aberta como o gold stan-
ença de Behçet e na impossibilidade absolu- dard para o tratamento dos aneurismas das
ta de reconstrução arterial, não resta outra artérias carótidas, como o caso presente tão
alternativa que não seja a laqueação dos exemplarmente pode documentar.
topos proximal e distal e exclusão ou ressec-
ção do aneurisma, manobra que cursa com
elevado risco vital ou de défice neurológico
definitivo.19,22
BIBLIOGRAFIA
1. Schechter DC. Cervical carotid aneurysms. NY State J Med 6. McCollum CH, Wheeler WG, Noon GP. et al Aneurysms of the
1979;79:892-901. extracranial carotid artery: twenty-one years’ experience. Am J Surg
1979;137:196-200.
2. El-Sabrout R, Cooley DA. Extracranial carotid artery aneurysms:
Texas Heart Institute experience. J Vasc Surg 2000;31:701-12. 7. Pratcheke E, Schafer K Reiner J, et al. Extracranial aneurysms of
the carotid artery. Thorac Cardiovasc Surg 1980;28:354-8.
3. Rosset E, Albertini JN, Magnon PE, et al. Surgical treatment
of extracranial internal carotid artery aneurysms. J Vasc Surg 8. Zowlak RM, Whitehouse WM Jr, KnaKe JE, et al. Atherosclerotic
2000;31:713-23. extracranial carotid artery aneurysms. J Vasc Surg 1984;1:415-22.
4. Welling RE, Talisa A, Tarum G. Extracranial carotid artery 9. Morcau P, Albert B, Thevenet A. Surgical treatment of extracranial
aneurysms. Surgery 1983;93:319-23. internal carotid artery aneurysm. Ann Vasc Surg 1994;8:409-16.
5. Rhodes LE, Stanley JC, Hoffman GL, et al. Aneurysms of the 10. Faggioli G, Freysie A, Stella A, et al. Extracranial internal carotid
extracranial carotid artery. Arch Surg 1976;111:339-43. artery aneurysms: results of a surgical series with long-term follow-
up. J Vasc Surg 1996;23:587-95.
VOLUMOSO ANEURISMA PÓS-TRAUMÁTICO DA CARÓTIDA INTERNA SIMULANDO TUMOR NEUROGÉNIO.
TRATAMENTO CIRÚRGICO
11. Pulli R, Gatti M, Credi G, et al. Extracranial carotid artery 18. Patra P, Ricco JB, Costargent A, et al. Aneurysms infectieux des
aneurysms. J Cardiovasc Surg 1997;38:339-46. artéres cervicales e des membres. Ann Chir Vasc 2001;15:197-205.
12. Dinis da Gama A, Rosa A, Martins C, Carmo G, Sá DC, Moura 19. Malikov S, Thomassin JM, Magnan PE, et al. Open surgical
C, Romero M, Rodriguez JM. Aneurismas primários da bifurcação reconstruction of the internal carotid artery aneurysm at the base of
carotídea: Tratamento cirúrgico. Rev Port Cir Cardiotorac Vasc the skull. J Vasc Surg 2010;51:323-9.
2005;3:163-8.
20. Zhou W, Lin PH, Bush RL, et al. Carotid artery aneurysm:
13. Welsh P. Fibromuscular dysplasia of the distal cervical internal Evolution of management over two decades. J Vasc Surg
carotid artery. J Cardiovasc Surg 1981;22:321-6. 2006;43:493-6.
14. Fox CJ, Gillepsie DL, Weber MA, et al. Delayed evaluation of 21. Moreau P, Albat B, Thevenet A. Surgical treatment of
combat-related penetrating neck trauma. J Vasc Surg 2006;44:86- extracranial internal carotid artery aneurysm. Ann Vasc Surg
92. 1994;8:409-16.
15. Cox MW, Whittaker DR, Martinez C, et al. Traumatic 22. Hertzer NR. Extracranial carotid aneurysms: a new look at an
psedoaneurysms of the head and neck: Early endovascular old problem. J Vasc Surg 2000;31:823-5.
intervention. J Vasc Surg 2007;46:1227-33.
23. May J, White GH, Waugh R, Brennan J. Endoluminal repair
16. Alimi Y, Dimauro P, Fiacre E, et al. Blunt injury to the internal of internal carotid artery aneurysm: A feasible but hazardous
carotid artery at the base of the skull: Six cases of venous graft procedure. J Vasc Surg 1997;26:1055-60.
restoration. J Vasc Surg 1996;24:249-57.
17. Sandmann W, Hennerici M, Aulich A, et al. Progress in carotid
artery surgery at the base of skull. J Vasc Surg 1984;1:734-43.
153
CIRURGIA MINIMAMENTE INVASIVA
DE VARIZES DOS MEMBROS INFERIORES
POR RADIOFREQUÊNCIA
Minimally invasive surgery for varicose veins
with radiofrequency ablation
SÉRGIO SILVA
HUGO VALENTIM
RESUMO Abstract
A ablação endoluminal por radiofrequência Radiofrequency endovenous ablation is a
é um procedimento minimamente invasivo minimally invasive treatment procedure
dedicado ao tratamento da doença venosa for chronic venous disease, that uses
crónica, que utiliza energia de radiofrequên- radiofrequency to seal diseased saphenous
cia para o colapso das veias safenas e veias and perforators veins and address the
perfurantes e permite tratar o síndrome va- underlying cause of severe varicose veins.
ricoso. O catéter VNUS ClosureFastTM liber- The VNUS ClosureFast™ catheter used
ta energia de radiofrequência através de um for the treatment of venous reflux delivers
eléctrodo, que aquece a parede da veia, leva radiofrequency energy to a heating element,
à contracção das suas fibras de colagénio e causing contractions of collagen fibers
promove o colapso do vaso. Os autores des- within the vein walls and shrinkage and
crevem a aplicação desta técnica numa do- collapse of the vessel. The authors report
ente de 41 anos de idade. O procedimento the use of this technique in a female patient
consistiu na introdução de um catéter na of 41-year old. The procedure consists
veia insuficiente através de uma incisão mi- in the insertion of the catheter into the
limétrica, colocando-o posteriormente, sob diseased vein through a very small incision
visualização ecográfica, na origem da veia and threading the device through the vessel
(junção com o sistema venoso profundo). A up to his origin (junction with the deep
energia de radiofrequência foi então aplica- venous system). Radiofrequency energy was
da em segmentos de 7 centímetros durante applied to the vein in 20-second intervals
um período de 20 segundos, conseguindo- to sequentially ablate the vein in seven
-se obter assim a ablação sequencial. Após o centimeter segments. After the treatment of
tratamento de cada segmento, o catéter é re- each segment, the ClosureFast catheter was
posicionado no segmento inferior da veia e manually withdrawn down the vein and the
o processo foi repetido, até que a totalidade process was repeated until the entire length
155
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
tenha sido tratada. O fluxo venoso foi então of the vein has been ablated. Blood flow was
automaticamente redireccionado para os re-routed through healthier veins. Six weeks
vasos competentes. Seis semanas após o pro- after the procedure the adequate ablation
cedimento, confirmou-se a correcta ablação of veins treated and the maintenance of the
das veias tratadas e a manutenção da per- normal permeability of the deep venous
meabilidade do sistema venoso profundo. system were assessed and confirmed.
INTRODUÇÃO
A insuficiência venosa crónica dos membros Os avanços recentes no tratamento mini-
inferiores, é a doença vascular mais frequen- mamente invasivo das varizes, conduziram
te e representa um importante problema de ao desenvolvimento de um catéter com um
saúde pública.1 Afecta cerca de 40% das eléctrodo que permite a libertação de ener-
mulheres e 25% dos homens. Os principais gia de radiofrequência directamente na pa-
factores de risco que condicionam o seu de- rede da veia, levando à sua ablação (RFA ou
senvolvimento incluem a hereditariedade, radiofrequency ablation). Esta técnica, que
sexo, idade e número de gestações. O ortos- tem ganho grande aceitação na prática clí-
tatismo prolongado, a obesidade, os trata- nica, teve o seu início na Europa em 1998 e
mentos hormonais e os traumatismos po- nos Estados Unidos em 1999.3 Desde então
dem contribuir para o seu agravamento.1 A foram realizados mais de 600 000 procedi-
insuficiência da veia safena interna é a causa mentos em todo o mundo. A sua seguran-
mais frequente desta entidade clínica; os sin- ça e eficácia estão bem documentadas em
tomas mais comuns incluem dor, sensação mais de 60 artigos publicados na literatura,
de peso, edema, alteração da coloração da incluindo estudos randomizados, compa-
pele e ulceração. O tratamento clássico des- rando-a e demonstrando as suas vantagens
ta condição clínica consiste na laqueação da relativamente ao tradicional stripping.4-11
junção safeno-femoral, seguida da excisão
por stripping do tronco da veia safena inter-
na e de flebectomias electivas.2
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 41 anos de ecografia com estudo de Doppler codifica-
idade, caucasiana, multípara. A sua história do a cores, do sistema venoso dos membros
clínica remonta a 2008, altura em recorre inferiores, a qual revelou ectasia e insufici-
ao médico de família com queixas de dor e ência de ambas as veias safenas internas. Na
sensação de peso dos membros inferiores, mesma altura foi-lhe prescrita diosmina (1
acompanhados de edema perimaleolar, com g por dia) e contenção elástica de ambos os
agravamento vespertino. Perante o quadro membros inferiores, após o que referiu me-
descrito foi-lhe proposta a realização de lhoria do quadro sintomático.
CIRURGIA MINIMAMENTE INVASIVA DE VARIZES DOS MEMBROS INFERIORES POR RADIOFREQUÊNCIA
Perante este diagnóstico a doente foi pro- dade da pele. O raio-X do tórax, o electro-
posta para tratamento cirúrgico minima- cardiograma e a avaliação laboratorial não
mente invasivo – ablação de ambas as veias mostravam alterações significativas.
safenas internas e da veia safena externa por
radiofrequência. A doente foi operada sob anestesia local por
intumescência. Realizou-se o mapeamento
No momento da admissão encontrava-se venoso pré-operatório e com a doente em
hemodinamicamente estável, sem dores, posição de anti-Trendelenburg e sob visuali-
consciente e orientada no tempo e espaço. zação ecográfica, obteve-se o acesso de am-
O exame vascular periférico revelava a inte- bas as veias safenas internas (infra-genicu-
gridade de todos os pulsos periféricos e não lar) e da colateral antero-externa à esquerda
existiam alterações da coloração ou integri- (ao nível do terço médio da coxa) (Fig. 2)
157
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 4 Oclusão da veia safena interna com per- Fig. 5 Oclusão da veia safena externa com per-
meabilidade da veia epigástrica e femorais meabilidade da veia popliteia
CIRURGIA MINIMAMENTE INVASIVA DE VARIZES DOS MEMBROS INFERIORES POR RADIOFREQUÊNCIA
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Pelo seu carácter minimamente invasivo, o por stripping. Os doentes apresentam assim
procedimento é realizado sob anestesia local uma recuperação para as suas actividades de
e melhor tolerado no pós-operatório. Causa vida diária e profissional mais precoce.4-12 A
menos dor e equimoses e menos complica- cirurgia de varizes por radiofrequência é as-
ções como parestesias, hiperpigmentação ou sim um procedimento seguro e eficaz no tra-
flebites, apresentando ainda um resultado tamento da insuficiência das veias safenas.
estético muito superior à cirurgia clássica
BIBLIOGRAFIA
1. Dietzek AM. Endovenous radiofrequency ablation for the 8. Nicolini P and the Closure group. Treatment of primary
treatment of varicose veins. Vascular 2007;15:255-61. varicose veins by endovenous obliteration with the VNUS Closure
system: Results of a prospective multicentre study. Eur J Vasc
2. Philip W. Fenney surgical treatment of varicose veins: A survey Endovasc Surg 2005;29:433-9.
of the methods of treatment with a description of intraluminary
stripping and Its results. Ann Surg 1951;133:386-93. 9. Lurie F, Creton D, Eklof, B, et al. Prospective randomized study
of endovenous radiofrequency obliteration (closure procedure)
3. Gohel MS, Davies AH. Radiofrequency ablation for versus ligation and stripping in selected patient population
uncomplicated varicose veins. Phlebology. 2009;24:42-9. (EVOLVeS Study). J Vasc Surg 2003;38:207-14.
4. Zan S, Contessa L, Varetto G, et al. Radiofrequency minimally 10. Bergen B, Kumins N, Owens E, Sparks S. Surgical and
invasive endovascular treatment of lower limbs varicose veins: endovascular treatment of lower extremity venous insufficiency. J
clinical experience and literature review. Minerva Cardioangiol Vasc Interv Radiol 2002;13:563-68.
2007; 55:443-58.
11. RautioT, Ohinmaa A, Perala J, et al. Endovenous obliteration
5. Vasquez M. The utility of the venous clinical severity score in versus conventional stripping operation in the treatment of
682 limbs treated by radiofrequency saphenous vein ablation. J primary varicose veins: A randomized controlled trial with
Vasc Surg 2007;45:1008-14; discussion 1015. comparison of the costs. J Vasc Surg 2002;35:958-65.
6. Marston WA, Owens LV, Davies S, Mendes RR, Farber 12. Almeida Jl. Recovery trial interim results. 34th Veith
MA, Keagy BA. Endovenous saphenous ablation corrects the Symposium. Nov 14-18, 2007 New York.
hemodynamic abnormality in patients with CEAP clinical class
3-6 CVI due to superficial reflux. Vasc Endovascular Surg.
2006;40:125-30.
159
ANGINA ABDOMINAL POR DISPLASIA
FIBROMUSCULAR DO TRONCO CELÍACO.
TRATAMENTO CIRÚRGICO
Abdominal angina due to fibromuscular
dysplasia of the celiac axis. Surgical
management
DIOGO CUNHA E SÁ
ANTÓNIO ROSA
GERMANO DO CARMO
TIAGO COSTA
CRISTINA PESTANA
ALEXANDRA HORTA
ANA CATARINO
A. DINIS DA GAMA
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de um The clinical case of a 27-year old man
indivíduo do sexo masculino de 27 anos de with the diagnosis of chronic mesenteric
idade, a quem foi formulado o diagnóstico ischemia (“abdominal angina”) is reported,
de isquemia intestinal crónica (“angina ab- whose chief complaints were severe post-
dominal”), caracterizada por epigastralgia prandial pain and remarkable weight
intensa pós-prandial e acentuado emagreci- loss, for the last 4 months. Following an
mento, com quatro meses de evolução. Após inconclusive observation in gastroenterology,
observação em gastrenterologia, inconclusi- he underwent an angiographic-CT examination,
va, foi submetido a estudo angiográfico (an- that disclosed a critical stenosis at the
gio-TC) que revelou a existência de uma le- origin of the celiac axis. The remaining
são estenosante crítica da origem do tronco digestive vessels, superior and inferior
celíaco. As restantes artérias digestivas, me- mesenteric arteries, were found free of
sentérica superior e inferior, encontravam- lesions. The patient was submitted to a
-se livres de lesões. O doente foi submeti- revascularization procedure, consisting in
do a tratamento cirúrgico que consistiu na the celiac axis resection and its replacement
ressecção do tronco celíaco e sua substitui- by a prosthetic graft, arising from the
ção por um enxerto protésico proveniente supraceliac aorta. The post-operative course
da aorta supracelíaca. O pós-operatório de- was uneventfull, followed by a complete
161
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
correu normalmente, sem complicações, as- remission of the pain and a progressive
sistindo-se à remissão completa da sintoma- weight gain. The histopathological study of
tologia dolorosa e a um notável incremento the removed artery revealed the diagnosis
ponderal, nas semanas que se seguiram à of arterial fibrodysplasia, a very rare entity
operação. O estudo histológico da artéria in clinical practice, of unknown etiology,
removida revelou tratar-se de uma doença affecting predominantely young people
fibrodisplásica, uma entidade muito rara na and in a decreasing order of frequency
prática clínica, de etiologia desconhecida, the renals, the internal carotids and the
que afecta predominantemente indivíduos external iliac arteries. The localization of
jovens e atinge, em ordem de frequência de- the fibrodysplastic disease to the celiac axis
crescente, as artérias renais, as carótidas in- seems to be a unique case, never reported
ternas e as ilíacas externas. A localização da before in the literature, thus justifying its
doença fibrodisplásica ao tronco celíaco as- publication and dissemination.
sume foros de caso clínico único, nunca an-
tes reportado na literatura, o que justifica a
sua apresentação e divulgação.
INTRODUÇÃO
A angina abdominal caracteriza-se por um A irrigação arterial do tubo digestivo depen-
quadro de dor na região epigástrica e um- de do TC, das artérias mesentérica superior
bilical, por vezes irradiada para a região e inferior, das artérias ilíacas internas e das
dorsal, com características de dor contínua intercomunicações que existem entre estes
ou em cólica; surge cerca de 15 a 30 minu- vasos. Cerca de 90% dos quadros de angina
tos após a refeição, podendo durar de uma abdominal devem-se a doença oclusiva da
a três horas. É possível que a fisiopatologia artéria mesentérica superior, sendo que em
da angina abdominal esteja relacionada com 80% destes doentes existe doença oclusiva
a hipoperfusão gástrica por doença arterial concomitante do TC.7 São pouco frequentes
oclusiva do tronco celíaco (TC), ou com o as situações de angina abdominal por doen-
roubo desta mesma circulação gástrica para ça isolada do TC. A principal etiologia da
o território irrigado pela artéria mesentérica doença oclusiva destas artérias é a ateroscle-
superior quando existem lesões desta.1 Para rose, verificando-se, através de estudos por
prevenir as dores, o doente evita determina- ecodoppler e por autópsia, que a maioria
dos alimentos e restringe a ingestão, o que, destas lesões é assintomática, o que se expli-
frequentemente, leva a uma perda acentua- ca pelas conexões que existem entre os di-
da de peso,2-5 configurando um quadro co- ferentes territórios da circulação visceral.8-10
nhecido como “medo de comer”. A perda
ponderal referida parece assim estar muito Os autores descrevem o caso clínico de um
mais relacionada com a fraca ingestão ca- homem de 27 anos de idade com um qua-
lórica do que com qualquer quadro de má- dro típico de angina abdominal, na presença
absorção.6 de uma estenose pré-oclusiva do TC, com
ANGINA ABDOMINAL POR DISPLASIA FIBROMUSCULAR DO TRONCO CELÍACO. TRATAMENTO CIRÚRGICO
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 27 anos de
idade, fumador de cerca de 20 cigarros por
dia, sem outros factores de risco ateroscleró-
tico. No prazo de quatro meses, desenvolve
um quadro de dor epigástrica pós-prandial
de intensidade importante, com início no fi-
nal da refeição e que melhorava ao fim de
três horas. A dor agravava-se com as refei-
ções mais abundantes, o que o tinha levado
a restringir as quantidades ingeridas, com
uma perda ponderal consequente de 8 kg.
Para além desta queixa, não havia qualquer
outro dado relevante na história clínica.
163
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 2 Imagem operatória com isolamento do tronco celíaco, artéria hepatica e esplénica
Fig. 4 Corte histológico em pequena ampliação da artéria do tronco celíaco com alterações endolumi-
nais e da média compatíveis com displasia fibramuscular (Mallory, A.x50, B.x200)
São Paulo, veio a revelar-se surpreendente, guma desorganização das fibras musculares
ao mostrar-se compatível com uma displasia lisas com áreas de rarefação celular e depo-
fibromuscular do subtipo medial e intimal sição de colagénio; fenda focal na parede
(Fig 4). Assim, na histologia, entre outros (microdissecção?)
aspectos típicos, desta entidade devem ser
salientados: · Adventícia dentro dos limites da normali-
dade
· Uma redução acentuada do lúmen
Nos primeiros meses o doente recuperou e
· Um espessamento irregular da túnica ín- peso perdido e ficou completamente assinto-
tima e projecções luminais à custa de pro- mático. Nesta fase abandonou o seguimen-
liferação de fibras musculares lisas; pontos to e suspendeu a terapêutica anti-agregante
de ruptura da limitante elástica interna com plaquetária (ácido acetilsalicílico) que lhe
enrolamento/empilhamento das suas fibras havia sido prescrita.
DISCUSSÃO
A angina abdominal decorrente de doença O presente caso clínico, referente a um do-
arterial isolada do TC é uma entidade clí- ente jovem com um quadro clínico muito su-
nica pouco frequente e, em doentes jovens, gestivo da angina abdominal, na presença de
está relacionada habitualmente com a com- uma estenose pré-ocluvisa do TC, facilmen-
pressão extrínseca desta artéria pelo liga- te se enquadraria na suposição diagnóstica
mento arqueado do diafragma.11-15 de um quadro de síndrome de compressão
165
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Poole JW, Sammartano RJ, Boley SJ. Hemodynamic basis of the 13. Reilly LM, Ammar AD, Stones RJ, et al. Late results following
pain of chronic mesenteric ischemia. Am J Surg 1987;153:171-6. operative repair for celiac artery compression syndrome. J Vasc
Surg 1985;2:79-91.
2. Johnston KW, Lindsay TF, Walker PM, Kalman PG. Mesenteric
arterial bypass grafts: early and late results and suggested surgical 14. Delis K, Gloviczki P, Altuwaijri M, et al. Median arcuate
approach for chronic and acute mesenteric ischemia. Surgery ligament syndrome: open celiac artery reconstruction and ligament
1995;118:1-7. division after endovascular failure. J Vasc Surg 2007; XIV:227-31.
3. Marston A, Clarke JM, Garcia GJ, Miller AL. Intestinal 15. Romero M, Castelbranco O, Martins C, Dinis da Gama A. A
function and intestinal blood supply: a 20 year surgical study. Gut cirurgia de revascularização da isquemia intestinal crónica após
1985;26:656-66. fracasso do tratamento endoluminal. Rev Port Cir Cardiotorac
Vasc 2007;XIV:227-31.
4. Jimenez JG, Huber TS, Ozaki CK, et al. Durability of antegrade
synthetic aortomesenteric bypass for chronic mesenteric ischemia. 16. Rushton AR. The genetics of fibromuscular dysplasia. Arch
J Vasc Surg 2002;35:1078-84. Intern Med 1980;140: 233-6.
5. Matsumoto AH, Angle JF, Spinosa DJ, et al. Percutaneous 17. Pannier-Moreau I, Grimbert P, Fiquet-Kempf B, et al. Possible
transluminal angioplasty and stenting in the treatment of chronic familial origin of multifocal renal artery fibromuscular dysplasia. J
mesenteric ischemia: results and longterm followup. J Am Coll Hypertens 1997;15:1797-801.
Surg 2002;194:S22-31.
18. Luscher TF, Lie JT, Stanson AW, Houser OW, Hollier LH,
6.Kruger AJ, Walker PJ, Foster WJ, et al. Open surgery for Sheps SG. Arterial fibromuscular dysplasia. Mayo Clin Proc 1987;
atherosclerotic chronic mesenteric ischemia. J Vasc Surg 62:931-52.
2007;46:941-5.
19. Sang CN, Whelton PK, Hamper UM, et al. Etiologic factors
7. Foley MI, Moneta GL, Abou-Zamzam Jr AM, et al. in renovascular fibromuscular dysplasia: a case-control study.
Revascularization of the superior mesenteric artery alone for Hypertension 1989;14:472-9.
treatment of intestinal ischemia. J Vasc Surg 2000; 32:37-47.
20. Sottiurai VS, Frey WJ, Stanley JC. Ultrastructure of medial
8. Wilson DB, Mostafavi K, Craven TE, et al. Clinical course of smooth muscle and myofibroblasts in human arterial dysplasia.
mesenteric artery stenosis in elderly americans. Arch Intern Med Arch Surg 1978;113:1280-8.
2006;166:2095-100.
21. Luscher TF, Keller HM, Imhof HG, et al. Fibromuscular
9. Croft RJ, Menon GP, Marston A. Does “intestinal angina” hyperplasia: extension of the disease and therapeutic outcome:
exist? A critical study of obstructed visceral arteries. Br J Surg results of the University Hospital Zurich Cooperative Study on
1981;68:316-8. Fibromuscular Hyperplasia. Nephron 1986; 44:109-14.
10. Valentine RJ, Martin JD, Myers SI, et al. Asymptomatic celiac 22. Guill CK, Benavides DC, Rees C, Fenves AZ, Burton EC. Fatal
and superior mesenteric artery stenoses are more prevalent among mesenteric fibromuscular dysplasia: a case report and review of
patients with unsuspected renal artery stenoses. J Vasc Surg the literature. Arch Intern Med 2004;164:1148-53.
1991;14:195-9.
23. Insall RL, Chamberlain J, Loose HW. Fibromuscular dysplasia
11. Dinis da Gama A, Ministro A, Cabral G, Pestana C, Inácio of visceral arteries. Eur J Vasc Surg 1992;6:68-72.
J, Fernandes A. Síndrome de compressão extrínseca do tronco
celíaco pelo ligamento arqueado do diafragma. Tratamento 24. Harrison EG Jr, McCormack LJ. Pathologic classification of
cirúrgico. Rev Port Cir Cardiotorac Vasc 2009;XVI:31-6. renal arterial disease in renovascular hypertension. Mayo Clin
Proc 1971;46:161-7.
12. Lord RS, Tracy GD. Celiac artery compression. Br J Surg
1980;67:590-3.
167
REVISÃO MÚLTIPLA DE LIGAMENTO-
PLASTIA DO LIGAMENTO CRUZADO
ANTERIOR
Multiple revision of anterior cruciate ligament
reconstruction
Departamento de Ortopedia
+
Hospital Garcia de Horta
++
Hospital de São José
RESUMO Abstract
O número de ligamentoplastias por rotura The number of anterior cruciate ligament
do ligamento cruzado anterior tem vindo a reconstructions has been increasing
aumentar e naturalmente o número de revi- continuously and so did the number of
sões tem acompanhado esse incremento. As revisions. Multiple revisions are technically
revisões múltiplas colocam problemas técni- demanding procedures and represent a
cos e desafios cirúrgicos complexos. Os auto- complex surgical challenge. The authors
res apresentam um caso de segunda revisão present a second revision clinical case
tratado em dois tempos utilizando tendão do that required a two stage procedure using
quadricípede, com bom resultado funcional. quadriceps tendon, obtaining a good
functional result.
169
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A falência de uma ligamentoplastia do liga- funcionais, como também nas opções cirúr-
mento cruzado anterior (LCA) constitui um gicas disponíveis no caso de ser necessário
grande desafio cirúrgico. As causas princi- proceder à sua revisão.8
pais desta falência incluem uma posição in-
correcta da plastia, uma fixação inadequada Os autores apresentam um caso clínico de
e novos traumatismos. revisão de ligamentoplastia com tendão do
quadricípede, em doente previamente sub-
A discussão actual sobre as vantagens e des- metido a plastia primária com OTO e plas-
vantagens das técnicas cirúrgicas mais utili- tia de revisão com IT.
zadas na ligamentoplastia primária, “osso-
-tendão-osso (OTO)”, “isquio-tibiais (IT)”
e, mais recentemente, “técnica do duplo fei-
xe”1-7 focam-se, não apenas nos resultados
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 37 anos de de fixação respectivo, e ao preenchimento
idade, recorreu à consulta de Ortopedia dos túneis femoral e tibial com enxerto ós-
do Hospital da Luz após duas cirurgias do seo autólogo da crista ilíaca.
LCA realizadas noutra unidade de saúde.
O doente sofrera uma rotura aguda traumá- · No segundo tempo, aos seis meses, foi rea-
tica do LCA em Janeiro de 2007, tendo sido lizada nova ligamentoplastia utilizando
realizada uma plastia primária em Maio do como plastia o tendão quadricipital, já que
mesmo ano utilizando enxerto de tendão nesse joelho tinham sido usados nas plastias
rotuliano (OTO). Por falência desta, foi rea- anteriores o tendão rotuliano e os isquio-
lizada revisão da plastia em Agosto de 2008 tibiais.
utilizando enxerto de IT.
O pós-operatório imediato decorreu sem
Após novo traumatismo, em Dezembro de complicações. O doente realizou programa
2008, o doente sofre rotura do LCA confir- de reabilitação pós-operatório sem intercor-
mada clínica e imagiologicamente, necessi- rências e com boa evolução, tendo retoma-
tando assim uma segunda revisão da plastia. do aos sete meses de pós-operatório a sua
actividade profissional como funcionário de
O grande alargamento dos túneis ósseos uma empresa de segurança.
(Fig. 1) levou à planificação da revisão em
dois tempos:
171
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Cheatham SA, Johnson DL. Anatomic revision ACL 6. van Eck CF, Schreiber VM, Liu TT, Fu FH. The anatomic
reconstruction. Sports Med Arthrosc 2010;18:33-9. approach to primary, revision and augmentation anterior
cruciate ligament reconstruction. Knee Surg Sports Traumatol
2. Herbenick M, Gambardella R. Revision anterior cruciate Arthrosc 2010;18:1154-63.
ligament reconstruction using a unique bioabsorbable interference
screw for malpositioned tunnels. Am J Orthop (Belle Mead 7. Wegrzyn J, Chouteau J, Philippot R, Fessy MH, Moyen B. Repeat
NJ) 2008;37:425-8. revision of anterior cruciate ligament reconstruction: a retrospective
review of management and outcome of 10 patients with an average
3. Franceschi F, Longo UG, Ruzzini L, Papalia R, Maffulli 3-year follow-up. Am J Sports Med 2009;37:776-85.
N, Denaro V. Quadriceps tendon-patellar bone autograft for
anterior cruciate ligament reconstruction: a technical note. Bull 8. Wolf RS, Lemak LJ. Revision anterior cruciate ligament
NYU Hosp Jt Dis 2008;66:120-3. reconstruction surgery. J South Orthop Assoc 2002;11:25-32.
173
UTILIZAÇÃO DE PRÓTESE BICOMPARTI-
MENTAL DO JOELHO NO TRATAMENTO
DA GONARTROSE. CASO CLÍNICO
The use of a bicompartmental knee
arthroplasty device in the treatment
of osteoarthritis. Case report
ÁLVARO MACHADO
Departamento de Ortopedia
RESUMO Abstract
O autor apresenta um caso clínico de tra- The author reports a clinical case of arthritis
tamento da artrose do joelho com próte- treatment with bicompartmental knee
se bicompartimental, em que preserva os prosthesis, which preserves the cruciate
ligamentos cruzados e o capital ósseo. A ino- ligaments and bone. This device tends to
vação deste dispositivo é a possibilidade de eliminate pain, to give stability, to preserve
eliminar a dor, conferir estabilidade, preser- the proprioception and favors an earlier
var a proprioceptividade e retomar a activi- return to activity. Medial and patellofemoral
dade mais precocemente. O envolvimento ar- involvement is quite common in many
trósico interno e patelo-femoral é frequente active midstage arthritic patients. The
em muitos doentes. O dispositivo bicompar- bicompartmental device is tailored to treat
timental serve para tratar apenas a área afec- the pathologic area, with the benefit of
tada, com benefício da função e da conserva- improved function and bone conservation.
ção de tecido ósseo.
175
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
No passado, o tratamento da gonartrose · Tem menos perdas de sangue
GIII e GIV estava limitado à prótese total
do joelho ou à unicompartimental.1,2 · A dor no pós-operatório é menor
Muitas próteses totais são colocadas em Apenas 6% dos doentes têm indicação para
doentes com artrose nos compartimentos este tipo de tratamento.4,6 Constitui a esco-
interno e patelo-femoral enquanto o com- lha ideal para doentes jovens e activos,5 não
partimento externo está livre.5,6 requerendo libertações internas, externas
ou posteriores, e mantendo toda a proprio-
Em comparação com a prótese total, a pró- ceptividade.
tese bicompartimental apresenta as seguin-
tes vantagens:6,7 Por ser constituída por oxínio oxidado e
zircónio, pelo seu desenho específico e por
· A incisão é menor respeitar as estruturas anatómicas, a próte-
se bicompartimental é mais deslizante, mais
· Preserva todos os ligamentos do joelho leve, melhor tolerada e mais funcional.3,5
Permite uma maior semelhança ao funcio-
· Preserva 60% de osso namento de um joelho normal que é tridi-
mensional.1
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 55 anos de ida- trose e pseudo bloqueios que se arrastam há
de, recorre à consulta de Ortopedia do Hos- cerca de dois anos.
pital da Luz com queixas de dores mecâni-
cas do joelho esquerdo, com agravamento Ao exame objectivo e em pé, apresentava
progressivo, episódios de sinovite, hidrar- aumento de volume em comparação com o
UTILIZAÇÃO DE PRÓTESE BICOMPARTIMENTAL DO JOELHO NO TRATAMENTO DA GONARTROSE. CASO CLÍNICO
joelho contrário, uma marcha claudicante, A doente foi operada sob anestesia raquidia-
atrofia da coxa e joelho varo. na e com garrote.
Em decúbito dorsal palpava-se uma hidrar- Utilizou-se uma abordagem para-patelar in-
trose ligeira com choque de rótula. Manifes- terna e trans-vasto.
tava-se dor à palpação da interlinha inter-
na, mas sem sinais clínicos de instabilidade Observaram-se lesões osteocondrais de GIV
ligamentar. a nível do planalto e côndilo internos que se
prolongavam para a tróclea e rótula e lesão
O exame radiográfico antero-posterior, em complexa do menisco interno. Os ligamen-
carga do joelho mostra desalinhamento em tos cruzados, planalto e côndilo externo,
varo com diminuição da interlinha articular não apresentavam alterações (Fig. 2).
interna, esclerose subcondral e osteofitos
marginais. Em perfil, observam-se sinais ra- Procedeu-se ao plano de preparação e cortes
diológicos semelhantes na rótula e tróclea, para colocação da prótese, segundo o ins-
o que traduz artrose femoro-tibial interna trumental respectivo que, como se observa
e artrose patelo-femoral, respectivamente. nas Fig. 3 e 4, respeita os ligamentos e as
Não se encontraram sinais de artrose no regiões ósseas não afectadas.
compartimento externo.
Após os cortes, foram colocados os compo-
Foi diagnosticada uma artrose mecânica bi- nentes de prova a nível do fémur e planalto.
compartimental que atingia o compartimen- Foi testada a estabilidade ligamentar e por
to interno e patelo-femoral (Fig. 1). fim colocados os componentes definitivos
que se cimentaram (Fig. 5).
177
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 2 Lesões das estruturas do joelho esquerdo Fig. 3 Preparação para colocação da prótese
Fig. 4 Preparação para colocação da prótese Fig. 5 Colocação dos componentes definitivos
UTILIZAÇÃO DE PRÓTESE BICOMPARTIMENTAL DO JOELHO NO TRATAMENTO DA GONARTROSE. CASO CLÍNICO
DISCUSSÃO
BIBLIOGRAFIA
1. Rolston L, Siewert K. Assesment of knee aligment after 2. Riddle DL, Jiranek WA, McGlynn FJ. Yearly incidence of
bicompartmental knee arthroplasty. J Arthroplasty 2009;24:1111-4. unicompartmental knee arthroplasty in the United States. J
Arthroplasty. 2008;23:408-12.
179
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
3. Laurencin CT, Zelicof SB, Scott RD, Ewald FC. Unicompartmental 6. Rolston L. Bicompartmental knee arthroplasty using a monolithic
versus total knee arthroplasty in the same patient. Clin Orthop implant design. J Arthroplasty 2009;20:161-3.
1991;273:151-6.
7. Rolston L, Bresch J, Engh G, et al. Bicompartmental knee
4. Rougraff BT, Heck DA, Gibson AE. A comparison of arthroplasty: a bone-sparing, ligament-sparing, and minimally
tricompartmental and unicompartmental arthroplasty for the invasive alternative for active patients. Orthopedics 2007;30:70-3.
treatment of gonartrosis. Clin Orthop. 1991;273:157-64.
ÁLVARO LIMA
BRUNO SANTIAGO
Departamento de Neurocirurgia
RESUMO Abstract
A fusão intersomática lombar é uma técnica Lumbar interbody fusion is an effective
comprovadamente eficaz no tratamento da technique for the management of
espondilolistese degenerativa. Durante a úl- degenerative spondylolisthesis. During the
tima década têm sido desenvolvidas técnicas last decade, minimally invasive techniques
minimamente invasivas que permitem a reali- have been developed allowing the fusion
zação da fusão intersomática, reduzindo a le- techniques with reduced access-induced
são muscular induzida pelo acesso. Estas té- muscle injury. These techniques have also the
cnicas permitem diminuir as perdas hemá- advantages of reducing intraoperative blood
ticas intra-operatórias, o tempo de inter- loss, postoperative pain and the hospital stay,
namento e o consumo de analgésicos, bem with a shorter recovery and earlier return to
como acelerar a recuperação e o retorno à active life. The authors present the clinical
vida activa. Apresenta-se um caso clínico de case of a degenerative spondylolisthesis L4-
uma espondilolistese degenerativa L4-L5 tra- L5 surgically treated through a minimally
tada cirurgicamente por uma abordagem mi- invasive approach, canalar decompression,
nimamente invasiva, com descompressão ca- interbody transforaminal fusion using a
nalar e fusão intersomática transforaminal, PEEK cage, autologus bone grafting and
utilizando espaçador, enxerto ósseo autólogo percutaneous transpedicular fusion.
e fusão transpedicular percutânea.
181
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A fusão vertebral é uma técnica fundamen- cação de apenas um espaçador, de maior
tal para o tratamento de diversas patologias dimensão e colocado transversalmente de
da coluna vertebral, sempre que esteja em forma a garantir um suporte adequado.
causa a estabilidade da coluna vertebral e o A técnica transforaminal é portanto mais
adequado desempenho das suas funções de segura, menos invasiva, mais rápida e igual-
suporte do organismo e protecção das estru- mente eficaz.
turas nervosas.
A evolução mais recente nas técnicas de
As técnicas de fusão intersomática foram fusão vertebral consistiu na utilização de
descritas pela primeira vez em 1953,1 con- abordagens minimamente invasivas. A fusão
sistindo na colocação de enxerto ósseo no vertebral realizada da forma clássica obri-
espaço discal, com o objectivo de promo- ga a uma extensa dissecção muscular e à
ver a artrodese entre os corpos vertebrais. retracção prolongada da musculatura para-
Em virtude de resultados clínicos pouco con- vertebral e, em consequência, são induzidas
sistentes, a técnica foi abandonada e, mais lesões isquémicas e atrofia muscular. Pelo
tarde, viria a ser retomada de forma melho- contrário, nas técnicas minimamente inva-
rada, através da colocação de espaçadores, sivas, são utilizados afastadores tubulares
de materiais diversos, colocados no espaço que afastam as fibras musculares reduzindo
discal. Os espaçadores intersomáticos têm a lesão muscular iatrogénica. Desta forma
como função manter a altura do espaço dis- conseguem-se reduzir as perdas hemáticas
cal e garantir o suporte necessário ao cres- intra-operatórias, o tempo de internamento,
cimento do osso entre os pratos vertebrais. o recurso a medicação analgésica e acelerar
A colocação destes espaçadores pode ser fei- a recuperação e o regresso à vida activa.5,6
ta por via posterior, entre a faceta articular
e o saco tecal, por via póstero-lateral ou por A fusão intersomática lombar transforami-
via transforaminal. A via transforaminal im- nal por via minimamente invasiva foi descri-
plica a remoção da faceta articular para ga- ta inicialmente em 2002;7 desde então a sua
nhar acesso ao espaço discal, mas permite a popularidade tem vida a aumentar.
colocação do espaçador sem fazer retracção
do saco tecal e, consequentemente, com me- Os autores apresentam o caso clínico de
nor risco de lesão neurológica.2-4 Por outro um doente com uma espondilolistese dege-
lado, enquanto na técnica posterior é neces- nerativa L4-L5, condicionando estenose do
sária a abordagem bilateral e a colocação de canal raquidiano lombar, tratado com fusão
dois espaçadores, na técnica transforaminal, intersomática lombar transforaminal, por
a abordagem é unilateral e permite a colo- técnica minimamente invasiva.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 63 anos de quadro de lombalgias crónicas, com vários
idade, sem antecedentes relevantes. Tinha anos de evolução, agravado no último ano,
FUSÃO INTERSOMÁTICA LOMBAR TRANSFORAMINAL, POR TÉCNICA MINIMAMENTE INVASIVA, NO TRATAMENTO DE
ESPONDILOLISTESE DEGENERATIVA LOMBAR
Fig. 1 Radiografia da coluna lombar. Estudo dinâmico em extensão (A) e em flexão (B) que revela uma
espondilolistese degenerativa L4-L5 (grau I/IV), com agravamento da listese na posição de flexão ante-
rior do tronco
por irradiação ao membro inferior direito. Perante o diagnóstico foi proposta ao doente
A dor no membro inferior direito era acom- uma intervenção cirúrgica que foi aceite. Foi
panhada de dormência no trajecto radicular então realizada uma fusão intersomática lom-
da raiz de L5, agravava com a marcha e com bar transforaminal (TLIF) sob anestesia geral
a posição de pé parado e aliviava com a po- e em posição de decúbito ventral (Vídeo 1).
sição de sentado ou deitado. Estas queixas
condicionavam claudicação neurogénea da Com apoio de intensificador de imagem fo-
marcha. ram colocados parafusos pediculares percu-
tâneos (CD-Legacy, Medtronic) em L4 e L5,
No exame neurológico não se observaram do lado esquerdo. A conectar os parafusos
alterações da força muscular, dos reflexos foi colocada uma barra utilizando o sistema
osteotendinosos ou das sensibilidades super- Sextante (Medtronic) (Fig. 3). À direita foi
ficiais ou profundas dos membros inferiores. feita uma incisão com cerca de 3 cm, pa-
ramediana e centrada à região do maciço
A radiografia da coluna lombar, em carga articular L4-L5. Depois da incisão cutânea,
revelou uma espondilolistese degenerativa fez-se a incisão da fascia lombar seguida de
L4-L5, que agravava na posição de flexão uma incisão romba entre os músculos lon-
anterior do tronco (Fig. 1). gissimus e multifidus, de acordo com a técni-
ca descrita por Wiltse. Em seguida, utilizan-
A ressonância magnética (RM) da coluna do dilatadores tubulares, ganhou-se acesso
lombar confirmou a espondilolistese degene- ao espaço intertransversário e colocou-se
rativa L4-L5 (Fig. 2A), com grave deforma- um afastador Quadrant (Medtronic) (Fig.
ção das facetas articulares, particularmente, 3). Depois de identificar as estruturas que
à direita, condicionando estenose do canal permitiram orientar a intervenção, o maciço
raquidiano lombar e sofrimento das raízes articular, as apófises transversas e o espaço
de L5 nos recessos laterais subarticulares extraforaminal, procedeu-se à remoção da
(Fig. 2B). faceta articular inferior de L4, utilizando
183
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 3 Imagem intra-operatória que mostra a forma de colocação de parafusos pediculares percutâne-
os e barra, com sistema Sextante e a colocação afastador tubular Quadrante, através do qual é feita a
descompressão do canal raquiadiano
FUSÃO INTERSOMÁTICA LOMBAR TRANSFORAMINAL, POR TÉCNICA MINIMAMENTE INVASIVA, NO TRATAMENTO DE
ESPONDILOLISTESE DEGENERATIVA LOMBAR
Fig. 5 Imagens radiológicas antero-posterior (A) e de perfil (B) de controlo intra-operatório que mostram
os parafusos pediculares, as barras e o espaçador intersomático
185
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
DISCUSSÃO
A fusão intersomática lombar transforaminal pode provocar lesões isquémicas musculares.
(TLIF) foi descrita inicialmente por Harms A importância destes factores está bem docu-
em 19982 e surgiu como alternativa à fusão mentada na literatura13-15 e considera-se que
intersomática posterior (PLIF), com o objec- estas podem provocar dor lombar crónica que
tivo de obter uma fusão intervertebral a 360º, anule os benefícios da cirurgia. Foram tam-
por abordagem póstero-lateral. Na técnica bém estudados prospectivamente 20 doentes
transforaminal remove-se a faceta articular submetidos a artrodese lombar.16 Os autores
e obtém-se acesso ao espaço discal mais ex- dividiram os doentes em dois grupos submeti-
ternamente, permitindo com uma abordagem dos a tempos diferentes de retracção da mus-
unilateral, colocar um único espaçador de culatura paravertebral (<80 e >80 minutos).
forma oblíqua, evitando a retracção do saco A avaliação pós-operatória da força muscular
tecal. Desta forma mantêm-se as estruturas ós- dos extensores lombares e da sua estrutura
seas e o complexo ligamentar da linha média, por ressonância magnética permitiu concluir
que são fundamentais como banda de tensão, que existia uma relação directa entre as le-
e evita-se a dissecção do espaço epidural con- sões anatómicas e fisiológicas musculares e a
tralateral. duração da retracção muscular paravertebral
durante a cirurgia.
A eficácia do método de fusão intersomática
na obtenção de uma artrodese intervertebral Através das abordagens minimamente invasi-
foi comprovada em várias séries.8,9 A superfí- vas pretendem-se obter os mesmos objectivos
cie do prato vertebral é uma extensa área para cirúrgicos que nas abordagens clássicas, “aber-
obtenção da fusão intervertebral e a utilização tas”, utilizando um acesso menos traumático
do espaçador garante o suporte anterior e a para as estruturas musculares. Desta forma,
preservação da altura do espaço discal. Desta será possível reduzir as perdas sanguíneas
forma consegue-se corrigir a lordose, reduzir intra-operatórias, a utilização de medicação
a listese e manter a descompressão foraminal. analgésica no pós-operatório e os tempos de
internamento. As abordagens paramedianas
A fusão intersomática lombar posterior trans- utilizando retractores tubulares condicionam
foraminal (TLIF), à semelhança da técnica menor lesão muscular permitindo obter uma
posterior (PLIF), está indicada em situações de recuperação mais rápida, um regresso à vida
discopatia degenerativa, hérnia discal lombar activa mais precoce e uma redução da eventu-
recidivante, instabilidade segmentar iatrogéni- al dor lombar sequelar. Alguns autores defen-
ca ou pós-traumática e espondilolistese grau I dem que as técnicas minimamente invasivas
e II de Meyerding.10-12 reduzem a possibilidade de degenerescência
do espaço discal adjacente.17
As técnicas clássicas de fusão vertebral obri-
gam a uma incisão lombar mediana e à dis- A fusão intersomática lombar transforami-
secção muscular posterior de vários níveis, nal por via minimamente invasiva, utilizando
de forma a expor adequadamente as zonas afastadores tubulares, tem vindo a ser utili-
de aplicação do material de instrumentação. zada com frequência crescente e nos últimos
Além disso, a necessária utilização de retrac- anos têm sido publicados os resultados de
ção da musculatura paravertebral prolongada várias séries clínicas.18,19 No entanto, para
FUSÃO INTERSOMÁTICA LOMBAR TRANSFORAMINAL, POR TÉCNICA MINIMAMENTE INVASIVA, NO TRATAMENTO DE
ESPONDILOLISTESE DEGENERATIVA LOMBAR
demonstrar a vantagem teórica das técnicas trumentos próprios. Outro problema das in-
minimamente invasivas são necessários estu- tervenções minimamente invasivas é a neces-
dos comparativos com as técnicas clássicas, sidade de utilização de controlo radiológico
randomizados e com avaliações a longo pra- sucessivo e a consequente exposição excessiva
zo. Actualmente, os estudos comparativos são aos raios-X.
escassos, de qualidade insuficiente e apresen-
tam algum enviesamento que diminui o valor A realização de abordagens minimamente
das conclusões atingidas.20,21 A comparação de invasivas faz particular sentido nas situações
um grupo de doentes operados por via aberta de fusão vertebral, em que são necessárias ex-
segundo a técnica de Wiltse, com um grupo de tensas dissecções musculares e utilizações pro-
doentes operados por via minimamente inva- longadas de retractores musculares, tal como
siva, sugeriu resultados clínicos semelhantes.22 no caso descrito. A menor lesão muscular tem
um efeito imediato no pós-operatório possibi-
Foram também comparados retrospectiva- litando uma recuperação mais rápida e menos
mente dois grupos de doentes submetidos a dolorosa. Do ponto de vista teórico, pensa-se
fusão intersomática lombar transforaminal que será igualmente vantajosa a longo prazo,
por via aberta e por via minimamente invasiva na redução da frequência e intensidade de dor
e, nestas abordagens, observaram-se menores lombar e da gravidade da degenerescência do
perdas hemáticas intra-operatórias e tempos espaço discal adjacente. Até agora, não foram
de internamento, mas os tempos operatórios realizados estudos randomizados, com análise
e as avaliações clínicas finais foram sobrepo- da evolução dos doentes a longo prazo, que
níveis.23 confirmem a aparente vantagem das técnicas
minimamente invasivas.
As principais limitações das técnicas mini-
mamente invasivas incluem a longa curva de À semelhança das múltiplas séries publicadas,
aprendizagem, que está relacionada com a no presente caso, a evolução clínica até à data
dificuldade em realizar o procedimento por tem sido muito favorável, sendo um dos ca-
um espaço limitado. Esta situação levanta di- sos que contribui para encorajar os autores a
ficuldades no reconhecimento da anatomia, continuar a realizar as técnicas minimamente
na descompressão das estruturas nervosas, na invasivas no tratamento de patologias que ne-
realização da discectomia e na colocação dos cessitem de fusão vertebral intersomática.
espaçadores intersomáticos. Para aumentar a
segurança da intervenção e garantir uma des-
compressão adequada do saco tecal e raízes,
julga-se ser fundamental o uso do microscópio
óptico. Por outro lado, o sucesso desta inter-
venção depende da obtenção de uma fusão
adequada e para esta, por sua vez, é impres-
cindível realizar uma discectomia exaustiva
e a colocação de enxerto ósseo abundante. A
remoção do disco intervertebral e a adequada
preparação dos pratos vertebrais é difícil atra-
vés de um espaço limitado e por um acesso
unilateral, mas possível com o apoio de ins-
187
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Cloward RB. The treatment of ruptured intervertebral discs by 14. Mayer TG, Vanharanta H, Gatchel RJ, et al. Comparison of
vertebral body fusion. I. Indications, operative technique, after care. CT scan muscle measurements and isokinetic trunk strength in
J Neurosurg 1953;10: 154-68. postoperative patients. Spine 1989;14:33-6.
2. Harms JG, Jeszenszky D. The unilateral transforaminal approach 15. Styf JR, Willen J. The effects of external compression by
for posterior lumbar interbody fusion. Orthop Traumatol three different retractors on pressure in the erector spine muscles
1998;6:88-99. during and after posterior lumbar spine surgery in humans. Spine
1998;23:354-8.
3. Lowe TG, Tahernia AD. Unilateral transforaminal posterior
lumbar interbody fusion. Clin Orthop Relat Res 2002;394:64-72. 16. Gejo R, Matsui H, Kawaguchi Y, et al. Serial changes in
trunk muscle performance after posterior lumbar surgery. Spine
4. Moskowitz A. Transforaminal lumbar interbody fusion. Orthop 1999;24:1023-8.
Clin North Am 2002;33:359-66.
17. Levin DA, Hale JJ, Bendo JA. Adjacent segment degeneration
5. Foley KT, Gupta SK. Percutaneous pedicle screw fixation of following spinal fusion for degenerative disc disease. Bull NYU
the lumbar spine: preliminary clinical results. Neurosurg Focus Hosp Jt Dis 2007;65:29-36.
2001;10:E10.
18. Schwender J, Holly LT, Rouben DP, Foley KT. Minimally
6. Foley KT, Holly LT, Schwender JD. Minimally invasive lumbar invasive transforaminal lumbar interbody fusion (TLIF). J Spinal
fusion. Spine 2003;28:S26-35. Disord Tech 18, 2005;Suppl 1:S1-6.
7. Foley KT, Lefkowitz MA. Advances in minimally invasive spine 19. Isaacs RE, Podichetty VK, Santiago P, et al. Minimally invasive
surgery. Clin Neurosurg 2002;49:499–517. microendoscopy-assisted transforaminal lumbar interbody fusion
with instrumentation. J Neurosurg Spine 2005;3:98-105.
8. McLaughlin MR, Haid RW Jr, Rodts GE, et al. Posterior
lumbar interbody fusion: indications, techniques, and results. Clin 20. Fourney DR, Dettori JR, Norvell DC, Dekutosti MB. Does
Neurosurg 2000;47:514-27. Minimal Access Tubular Assisted Spine Surgery Increase or
Decrease Complications in Spinal Decompression or Fusion? Spine
9. Rivet DJ, Jeck D, Brennan J, et al. Clinical outcomes and 2010;35:857-65.
complications associated with pedicle screw fixation-augmented
lumbar interbody fusion. J Neurosurg Spine 2004;1:261-6. 21. Park P, Foley KT. Minimally invasive transforaminal lumbar
interbody fusion with reduction of spondylolisthesis: technique and
10. Lowe T, Tahernia AD, O'Brien MF, Smith DA. Unilateral outcomes after a minimum of 2 years’ follow-up. Neurosurg Focus
transforaminal posterior lumbar interbody fusion (TLIF): 2008;25:E16.
indications, technique, and 2-year results. J Spinal Disord Tech
2002;15:31-8. 22. Scheufler KM, Dohmen H, Vougioukas VI. Percutaneous
transforaminal lumbar interbody fusion for the treatment of
11. Rosenberg W, Mummaneni PV. Transforaminal lumbar degenerative lumbar instability. Neurosurgery 2007;60:203-12;
interbody fusion: technique, complications, and early results. discussion 212-3.
Neurosurgery 2001;48:569-75.
23. Dhall SS, Wang MY, Mummaneni PV. Clinical and radiographic
12. Lauber S, Schulte TL, Liljenqvist U, Halm H, Hackenberg L. comparison of mini–open transforaminal lumbar interbody
Clinical and radiologic 2-4-year results of transforaminal lumbar fusion with open transforaminal lumbar interbody fusion in 42
interbody fusion in degenerative and isthmic spondylolisthesis patientswith long-term follow-up. J Neurosurg Spine 2008;9:560-5.
grades 1 and 2. Spine 2006;31:1693-8.
13. Kawaguchi Y, Matsui H, Tsuji H. Back muscle injury after
posterior lumbar spine surgery. A histologic and enzymatic analysis.
Spine 1996;21:9414.
TRATAMENTO CIRÚRGICO DA ESPON-
DILOLISTESE TRAUMÁTICA DO ÁXIS
Surgical treatment of traumatic
spondylolisthesis of the axis
ÁLVARO LIMA
BRUNO SANTIAGO
Departamento de Neurocirurgia
RESUMO Abstract
A espondilolistese traumática do áxis é uma Traumatic spondylolisthesis of the axis is
lesão pouco frequente da coluna cervical, que a rare lesion of the cervical spine, that is
está associada a acidentes de viação e quedas. associated with vehicle accidents and falls.
Habitualmente benigna e muito raramente Usually benign and very rarely accompanied
acompanhada de compromisso neurológi- by neurological compromise, it may cause
co, pode condicionar quadros de dor cróni- chronic cervical pain complaints if incorrectly
ca cervical quando incorrectamente diagnos- diagnosed or treated. The authors present
ticada ou tratada. Os autores apresentam o the clinical case of an unstable traumatic
caso clínico de uma espondilolistese traumá- spondylolisthesis of the axis, causing severe
tica do áxis com sinais de instabilidade grave, cervical pain and dislocation of C2 over C3,
queixas álgicas intensas e deslizamento de C2 of about 5 mm. As the fracture presented
sobre C3, de cerca de 5 mm. Em função das characteristics of instability, it was treated
características de instabilidade, esta situação with C2-C3 discectomy and arthrodesis
foi tratada com discectomia C2-C3 e artro- using iliac bone graft and plate between
dese com enxerto de osso ilíaco e placa entre C2 and C3. The authors preference goes
C2 e C3. A preferência pela abordagem ante- to the anterior approach in stabilizing such
rior na estabilização deste tipo de fracturas, fractures, as it is simpler and safer, and
deve-se ao facto de se tratar de uma via sim- reveling to be more effective in the long term
ples e segura, reunindo as condições necessá- in obtaining a bone fusion, when compared
rias para uma maior eficácia a longo prazo to the posterior approach.
para a obtenção de uma fusão óssea, quan-
do comparada com a abordagem posterior.
189
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A espondilolistese traumática é a segunda Tipo I - a lesão é provocada por um mo-
fractura mais frequente do áxis, a segunda vimento de extensão e carga axial, em que
vértebra da coluna cervical (C2). Nesta le- existe apenas um traço de fractura a nível
são traumática ocorre uma fractura bilateral dos pedículos, sem afastamento significativo
do arco de C2, envolvendo habitualmente a dos topos ósseos.
pars interarticularis, ou os pedículos, com
grau variável de deslizamento de C2 sobre Tipo II - caracteriza-se por um mecanismo
C3, por compromisso do disco interverte- de hiperextensão seguido de uma flexão
bral e dos ligamentos comum vertebral an- grave e observa-se um deslocamento ante-
terior, posterior, ou ambos, dependendo do rior do corpo do áxis e uma lesão do disco
mecanismo da lesão. intervertebral.
A espondilolistese traumática do áxis foi ini- Tipo IIA - caracteriza-se por um mecanismo
cialmente descrita em 1866 em associação de flexão/distracção e, não existindo signi-
aos enforcamentos judiciais.1 No início do ficativo deslocamento anterior do corpo do
século XX foi também descrito o mecanis- áxis, esta fractura distingue-se pela sua an-
mo de lesão nos enforcamentos em que o nó gulação em relação a C3.
era colocado sob o queixo. A tracção cervi-
cal brusca, com desvio posterior da cabeça, Tipo III - caracteriza-se por um mecanismo
provocava a fractura do arco de C2.2 de flexão/compressão e, além do grave des-
locamento anterior do corpo de áxis, existe
Na década de 60 surgiram os primeiros tra- um encravamento das facetas articulares de
balhos que descreviam lesões traumáticas C2 em C3.
semelhantes, relacionadas com quedas e
acidentes de viação.3,4 Posteriormente, sé- Apesar do significativo avanço na caracte-
ries publicadas sobre patologia traumática rização fisiopatológica da espondilolistese
do áxis confirmaram que a espondilolistese traumática do áxis o seu tratamento con-
traumática é uma lesão pouco frequente, ra- tinua a ser controverso. Com excepção da
ramente acompanhada de défice neurológi- fractura tipo I, em que é consensual a in-
co. Habitualmente estável, é uma lesão com dicação para tratamento conservador, nos
indicação para tratamento conservador.5,6 outros tipos de fractura, alguns autores pre-
ferem o tratamento conservador, com colar
Ao longo dos anos foram surgindo várias cervical tipo Filadélfia, SOMI ou Minerva,
classificações, de acordo com as caracterís- outros preferem uma imobilização rígida
ticas patológicas, que se revelaram funda- com Halo-Vest e outros ainda optam pelo
mentais para a orientação do tratamento. tratamento cirúrgico. A estabilização cirúr-
As classificações mais usadas são a de Effen- gica desta fractura pode ser feita por via
di,7 que caracteriza os aspectos radiográficos anterior, com uma artrodese intersomática
e a evolução clínica e a de Levine e Edwar- C2-C3, ou por via posterior, com parafusos
ds,8 que relaciona os aspectos morfológicos nos pedículos de C2 e massas laterais de C3.
com os mecanismos de lesão, distinguindo
os seguintes tipos de lesões: Os autores apresentam o caso clínico de
TRATAMENTO CIRÚRGICO DA ESPONDILOLISTESE TRAUMÁTICA DO ÁXIS
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 53 anos de nica inicial não revelou lesões traumáticas e
idade, saudável, vítima de acidente de via- o doente iniciou repouso e medicação anal-
ção do qual resultou traumatismo craniano gésica, sem qualquer imobilização da coluna
e entorse da coluna cervical. A avaliação clí- cervical. Por persistência de cervicalgias in-
tensas, efectuou tomografia computorizada
(TC) da coluna cervical que diagnosticou
fractura do áxis. Não havia queixas associa-
das sugestivas de compromisso neurológico,
nomeadamente, alterações da sensibilida-
de ou diminuição da força muscular dos
membros. O doente referia dor e limitação
funcional da cintura escapular direita rela-
cionadas com traumatismo directo. Não se
observaram alterações no exame neurológi-
co. A fractura do áxis revelada pela TC da
coluna cervical tinha uma orientação trans-
versal, ligeiramente oblíqua, interessando a
pars articularis à direita e o corpo vertebral à
esquerda, com deslizamento anterior de C2
Fig. 1 Corte axial de TC a nível da pars interarti- sobre C3 numa extensão de cerca de 5 mm
cularis de C2
(Fig. 1 e 2). A ressonância magnética (RM)
da coluna cervical demonstrou a patên-
cia do espaço de líquido céfalo-raquidiano
(LCR) perimedular e não revelou alterações
da morfologia ou do sinal da medula (Fig.
3 e 4).
191
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 5 Radiografia pós-operatória da coluna cervi- Fig. 6 Radiografia pós-operatória da coluna cervi-
cal (perfil, posição neutra) cal (antero-posterior)
TRATAMENTO CIRÚRGICO DA ESPONDILOLISTESE TRAUMÁTICA DO ÁXIS
Fig. 7 Radiografia pós-operatória da coluna cervi- Fig. 8 Radiografia pós-operatória da coluna cervi-
cal (perfil, em flexão) cal (perfil, em extensão)
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
A espondilolistese traumática do áxis, tam- zado por radiografia simples de perfil, com
bém conhecida como “fractura do enforcado” excepção das fracturas tipo I, de Levine, por
pelas suas similitudes com as fracturas cervi- não haver deslizamento de C2 sobre C3, nem
cais descritas nas vítimas de enforcamentos afastamento dos topos ósseos. Nestes casos
judiciais, representa 7% a 20% das fracturas é fundamental a suspeição clínica, de acordo
cervicais e 20% a 23% das fracturas do áxis.9 com o tipo de traumatismo e a persistência de
Esta lesão está associada a acidentes de via- cervicalgias intensas.
ção e quedas e, habitualmente, não tem lesão
neurológica associada e tem bom prognóstico. O principal problema no tratamento da es-
pondilolistese traumática do áxis é a definição
Na maioria dos casos, o diagnóstico é reali- de instabilidade e a consequente alternativa
193
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Haughton S. On hanging, considered from a mechanical and 11. Coric D, Wilson JA, Kelly DL Jr. Treatment of traumatic
physiological point of view. Philo Mag J Sci 1866; 32:23-34. spondylolisthesis of the axis with nonrigid immobilization:
a review of 64 cases. J Neurosurg 1996;85:550-4.
2. Wood-Jones F. The ideal lesion produced by judicial hanging.
Lancet 1913;1:53-4. 12. Vaccaro AR, Madigan L, Bauerle WB, et al. Early halo
immobilization of displaced traumatic spondylolisthesis of the axis.
3. Garber JN. Abnormalities of the atlas and axis vertebrae – Spine 2002;27:2229-33.
congenital and traumatic. J Bone Joint Surg 1964;46:1782-91.
13. Verheggen R, Jansen J. Hangman’s fracture: arguments in favor
4. Schneider RC, Livingston KE, Cave AJE. “Hangman’s fracture” of surgical therapy for type II and III according to Edwards and
of the cervical spine. J Neurosurg 1965;22:141-54. Levine. Surg Neurol 1998:49:253-61.
5. Hadley MN, Browner C, Sonntag VK. Axis fractures: 14. Samaha C, Lazennec JY, Laporte C, et al Hangman’s fracture:
a comprehensive review of management and treatment in 107 the relationship between asymmetry and instability. J Bone Joint
cases. Neurosurgery 1985;17: 281-90. Surg Br 2000;82:1046-52.
6. Hadley MN, Dickman CA, Browner CM. Acute axis fractures 15. Ying Z, Wen YZ, Xinwei W, et al. Anterior Cervical Discectomy
a review of 229 cases. J Neurosurg 1989;71:642-7. and Fusion for Unstable Traumatic Spondylolisthesis of the Axis.
Spine 2008;33:255-8.
7. Effendi B, Roy D, Cornish B, Daussault RG, Laurin CA. Fractures
of the ring of the axis: a classification based on the analysis of 131 16. Duggal N, Chamberlain RH, Perez-Garva LE, Espinoza-
cases. J Bone Joint Surg 1981;63:319-27. Larios A, Sonntag VKH, Crawford NR. Hangman’s fracture:
A biomechanical comparision of stabilization techniques. Spine
8. Levine AM, Edwards CC. The management of traumatic 2007;32:182-7.
spondylolisthesis of the axis. J Bone Joint Surg 1985;67:217-26.
17. Chittiboina P, Wylen E, Ogden A, et al. Traumatic
9. Boullosa JL, Colli BO, Carlotti CG Jr, Tanaka K, dos Santos MB. spondylolisthesis of the axis: a biomechanical comparison of
Surgical management of axis’ traumatic spondylolisthesis. Arq clinically relevant anterior and posterior fusion techniques.
Neuropsiquiatr 2004;62:821-6. J Neurosurg Spine 2009;11:379-87.
195
NEVRALGIA DO NERVO TRIGÉMIO
ASSOCIADA A SINUSITE FÚNGICA
Trigeminal neuralgia associated to fungal
sinusitis
HERÉDIO SOUSA
EZEQUIEL BARROS
ANTÓNIO LARROUDÉ
Departamento de Otorrinolaringologia
RESUMO Abstract
Apesar do progresso da medicina, apenas Despite medical advances, only a small
numa pequena percentagem dos casos a etio- percentage of patients with trigeminal
logia da nevralgia do trigémio é identificada. neuralgia cases have its etiology identified.
Os autores apresentam o caso clínico de um The authors present the case of a
septuagenário, diabético, com dor nevrálgica septuagenarian diabetic patient with left
do trigémio, em que os exames imagiológicos trigeminal nerve pain. The image studies
mostravam uma massa no esfenóide esquer- showed a mass in the left sphenoid,
do compatível com bola fúngica, associada consistent with fungus ball, associated to a
a paquimeningite a nível do seio cavernoso e pachymeningitis at cavernous sinus level and
nevrite dos nervos maxilar superior (V2) e in- upper and lower maxillary nerve neuritis.
ferior (V3). Foi efectuada esfenoidotomia por Sphenoidotomy was performed with an
via endonasal sob controlo endoscópico, com endonasal approach, under endoscopic
remoção total da lesão e confirmada a sua na- control, with total removal of the lesion.
tureza fúngica (Aspergillus glaucus). O alívio Its fungal origin was confirmed (Aspergillus
total da dor foi obtido ao terceiro dia pós- glaucus). Total pain relief was achieved by
operatório. O estudo bibliográfico permite the third postoperative day. The literature
concluir que a compressão da raiz do nervo review shows that the compression of
trigémio por ansa vascular aberrante e a es- the trigeminal nerve root by an aberrant
clerose múltipla são as principais causas da vascular loop and multiple sclerosis are
nevralgia do trigémio. No entanto, a patolo- the main causes of trigeminal neuralgia.
gia infecciosa nasosinusal deve ser também However, sinus infectious pathology should
valorizada, principalmente perante a ausência also be considered, especially in the absence
de alterações clínicas e radiológicas que fun- of clinical and radiological evidences that
damentem os factores etiológicos clássicos. may justify the classical etiologic entities.
197
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A nevralgia do nervo trigémio é a dor nevrál- Os autores apresentam um caso clínico atí-
gica facial mais frequente. Classicamente pico de nevralgia do trigémio no contexto
caracteriza-se por ser uma dor paroxística, de sinusite esfenoidal fúngica não invasiva
muito intensa, de curta duração e apareci- (bola fúngica) causada por Aspergillus glau-
mento súbito, quase sempre unilateral, cuja cus. Tanto quanto é do conhecimento dos
localização compreende, sobretudo os terri- autores, o presente caso clínico representa
tórios dos ramos V2 e V3 do nervo trigémio. o primeiro caso de rinosinusite fúngica as-
A compressão da raiz do nervo por ansa sociada a nevralgia do trigémio descrito na
vascular aberrante e a esclerose múltipla são literatura nacional ou internacional.
as principais causas identificáveis, sendo a
rinosinusite, normalmente, um achado clíni-
co e não um factor etiológico associado à
nevralgia do trigémio.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo masculino, de 75 anos de
idade, com antecedentes pessoais de dia-
betes mellitus tipo II, hipertensão arterial e
hipercolesterolemia que inicia cinco dias an-
tes de dar entrada no Hospital da Luz, dor
episódica da hemiface esquerda localizada
a nível do maxilar inferior com irradiação
para o ouvido homolateral, desencadeada
esporadicamente por palpação local, muito
intensa e lancinante, tipo queimadura e com
duração de segundos. No entanto, o doente
refere alguns episódios de dor com duração
superior a dois minutos. Nessa altura procu-
ra assistência médica no serviço de urgência
de uma unidade hospitalar, onde lhe foi pres-
Fig. 1 RM Corte axial, T2 fat sat sem contraste.
crita uma dose diária de 400 mg de carbama- Falsa impressão de o seio estar parcialmente
zepina. Refere o doente que dois dias antes permeável o que contrasta com a imagem das
do aparecimento da dor facial, teve cefaleia restantes figuras
holocraniana ligeira que cedia a paracetamol,
dor essa desvalorizada e que associou a epi- da descreve dor nevrálgica da hemiface es-
sódio de coriza afebril. Devido ao aumento querda (território do V2 e V3), sem trigger;
da frequência diária e da intensidade da dor, os exames objectivos, otorrinolaringológico
bem como de astenia gradual e tonturas, o e neurológico, não evidenciaram alterações.
doente recorre ao Hospital da Luz. À entra-
NEVRALGIA DO NERVO TRIGÉMIO ASSOCIADA A SINUSITE FÚNGICA
199
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 4 TC SPN em corte axial. Preenchimento do Fig. 5 Bola fúngica no seio esfenoidal esquerdo
seio sem sinais de erosão óssea
Fig. 6 Seio esfenoidal após emoção total da bola
fúngica; evidência de hiperplasia da mucosa e
das procidências da artéria carótida interna e do
nervo óptico
DISCUSSÃO
A dor clássica da nevralgia do trigémio carac- correspondem ao território enervado pelo V2
teriza-se por ser uma dor intensa e lancinante, e V3, enquanto apenas 5% dos doentes apre-
recorrente, com a duração de alguns segundos sentam envolvimento do território enervado
mas que pode atingir até dois minutos. É mui- pelo ramo oftálmico (V1). O mesmo estudo
tas vezes desencadeada por estímulos mecâni- documenta que o envolvimento em simultâ-
cos ou sensoriais (p. ex. barbear, comer, beber, neo de mais de um dos ramos ocorre em 24%
maquilhar, vento, entre outros) e localiza-se dos doentes.1,2 A dor da nevralgia do trigémio
em pequenas áreas da face enervadas por um surge em surtos por períodos semanais ou
dos três ramos terminais do nervo trigémio. mensais, com remissões espontâneas que po-
Os territórios mais frequentemente envolvidos dem durar meses ou anos. Com a evolução da
NEVRALGIA DO NERVO TRIGÉMIO ASSOCIADA A SINUSITE FÚNGICA
doença os episódios de dor tendem a tornar-se fibras adjacentes contribuindo, deste modo,
mais constantes e os períodos de remissão são para o aparecimento da dor.7
cada vez menores. Estão ainda descritas for-
mas atípicas de nevralgia do trigémio, como No caso clínico em apreço, a referência de
por exemplo, nevralgia pré-trigeminal, carac- dor episódica com duração superior a dois
terizada por dor atípica com duração de vá- minutos, que não se enquadra na definição
rias horas e desencadeada por movimentos do clássica de nevralgia do trigémio, bem como
maxilar ou ingestão de líquidos.1,3 a astenia, tonturas e resistência a terapêutica
com carbamazepina, precipitaram a reali-
A incidência da nevralgia do trigémio é de zação de RM-CE e dos SPN. A evidência de
aproximadamente 4,5 por 100 000 habitantes bola fúngica e de hiperplasia da mucosa, de
por ano e atinge sobretudo doentes com ida- processo inflamatório na região do seio caver-
des superiores a 60 anos.4 noso e dos ramos V2 e V3 do nervo trigémio
a nível dos buracos grande redondo e oval,
Em apenas 15% dos casos a sua etiologia é respectivamente, traduzidos radiologicamente
identificada. Neste grupo, a compressão da por captação de contraste, podem explicar o
raiz do nervo por ansa vascular aberrante, quadro subagudo de nevralgia atípica do tri-
quando este emerge da protuberância, ocorre gémio. Porém, a maior evidência clínica reside
em cerca de 80 a 90% dos casos.1,4 A artéria no alívio total dos sintomas ao terceiro dia de
cerebelosa póstero-superior é a artéria mais pós-operatório.
vezes envolvida neste processo, seguida da
artéria vertebral e da artéria basilar. As doen- Na literatura disponível, a etiologia da ne-
ças desmielinizantes correspondem a 2% dos vralgia do trigémio não engloba rinosinutes
casos, sendo que a esclerose múltipla deve ser infecciosas. Não obstante, existem definições
considerada especialmente em doentes jovens pontuais de casos clínicos de infecções dos
e com sintomas bilaterais. Mais raramente, a seios perinasais acompanhadas de dor facial
nevralgia do trigémio pode ser causada por atípica e/ou nevralgia do trigémio. Está descri-
qualquer lesão que ocupe espaço na fossa to um caso de nevralgia do trigémio associada
posterior ou no ângulo ponto cerebeloso, no- a rinosinusite aguda bacteriana esfenoidal,5
meadamente schwannomas do acústico ou do bem como um caso fatal de rinosinusite com
trigémio, meningiomas, quisto epidermóide, envolvimento intracraniano e nevralgia do tri-
lipomas e coristomas. As lesões infiltrativas, gémio.2
como os carcinomas e a amiloidose da cabeça
e pescoço, são causas ainda mais raras.5 A bola fúngica localizada no seio esfenoidal
apresenta habitualmente um curso clínico
A fisiopatologia subjacente à nevralgia do indolente, parco em sintomas e sinais. A ca-
trigémio não é totalmente conhecida. Foi pro- cósmia é quase sempre o único sintoma e o
posta a diminuição da actividade inibitória tratamento é cirúrgico, por via endoscópica
pré-sináptica a nível do núcleo espinhal como endonasal. Esta técnica consiste numa abor-
principal causa de dor recorrente,6 sendo tam- dagem conservadora e minimamente invasiva
bém sugerido que a lesão do revestimento que respeita simultaneamente a arquitectura
mielínico dos axónios provoca desmieliniza- natural do seio, criando uma via de drenagem
ção focal, mironeuromas, hiperexcitabilidade mais funcional.8
dos axónios e transmissão efáptica entre as
201
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Num doente diabético, a sinusite fúngica esfe- carótida, o nervo óptico, o seio cavernoso, o
noidal quando não é diagnosticada e tratada nervo motor ocular externo, o nervo maxilar
atempadamente pode resultar em complica- superior e o nervo vidiano.
ções graves e fatais decorrentes da erosão ós-
sea induzida por reacção inflamatória excessi- No caso clínico descrito, o diagnóstico preco-
va e, consequentemente, invasão de estruturas ce aliado à rápida intervenção cirúrgica foram
nobres que se localizam nas proximidades fundamentais para o sucesso terapêutico.
das paredes do seio, designadamente a artéria
BIBLIOGRAFIA
1. Siccoli MM, Basseti CI, Sándor PS. Facial pain: clinical differential 6. Kugelberg E, Lindblom U. The mecanism of the pain in trigeminal
diagnosis. Lancet Neurol 2006;5:257-67. neuralgia. J Neurol Neurosurg Psychiatry 1959;22:36-43.
2. Lin X-W, Lin S-K, Weng I-H. Fatal paranasal sinusitis presenting 7. Kerr FW, Miller RH. The pathology of trigeminal neuralgia.
as trigeminal neuralgia. Headache 2006;46:174-8. Electron microscopic studies. Arch Neurol 1966;15:308-19.
3. Fromm GH, Graff-Radford SB, Terrence CF, Sweet WH. Pre- 8. Klossek JM, Serrano E, Peloquin L, Percodani J, Fontanel JP,
trigeminal neuralgia. Neurology 1990;40:1493-95. Pessey JJ. Funcional endoscopic sinus surgery and 109 mycetomas
of paranasal sinuses. Laryngoscope. 1997;107:112-7.
4. Love S, Coakham HB. Trigeminal neuralgia pathology and
pathogenesis. Brain 2001;124:2347-60.
5. Sawaya RA. Trigeminal neuralgia associated with sinusitis. J
Otorhinolaryngol Relat Space 2000;62:160-3.
ESCLEROSE MÚLTIPLA E HIPERACTIVI-
DADE VESICAL. TRATAMENTO COM
TOXINA BOTULÍNICA
Multiple sclerosis and detrusor overactivity.
Treatment with botulinum toxin
VIRGÍLIO VAZ
Departamento de Urologia
RESUMO Abstract
A esclerose múltipla (EM) é uma doença des- Multiple sclerosis is a demyelinising disease
mielinizante do sistema nervoso central. Os of central nervous system. Its symptoms result
seus sintomas resultam de alterações neuro- from the neurological compromise of the
lógicas nos órgãos-alvo. O autor apresenta o target organs. The author report the clinical
caso clínico de uma mulher de 50 anos de case of a 50-year old woman with 15 years
idade, com EM sob a forma secundária pro- of secondary progressive multiple sclerosis.
gressiva, com 15 anos de evolução. Sofria de She has a bad quality of life, associated to leg
má qualidade de vida resultante da hipotonia and arms hypotony and disartry. However, it
dos membros e de disartria. Todavia, era a was the urge incontinence, that prevents her
incontinência miccional que mais a perturba- from having a social life. Previous treatment
va, porque a impedia de ter vida social. Fora with anticolinergics resulted in a partial
medicada com anticolinérgicos tendo obti- improvement, but with intolerable adverse
do melhoria parcial, mas com efeitos secun- side effects and abandon of the treatment.
dários intoleráveis e consequente abandono Following botulinum toxin (Botox®)
do tratamento. Em alternativa, recorreu-se injection in the urinary bladder wall, she
à injecção de toxina botulínica (Botox®) na obtained a progressive and durable recovery.
parede vesical, com melhoria progressiva e The patient is becoming asymptomatic for
sustentada da incontinência. A doente está the last six months.
assintomática nos últimos seis meses.
203
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A esclerose múltipla (EM) é uma doença A disfunção miccional resulta das lesões nas
desmielinizante do sistema nervoso central vias de condução e nos centros que no sis-
(SNC). A sua primeira descrição científica tema nervoso central (SNC), controlam as
data do século XVIII. Deve-se a Jean-Martin fases de enchimento e esvaziamento vesical.
Charcot (1825-1893) a descrição pormeno- Esta disfunção é objectivada com o estudo
rizada desta doença e o seu reconhecimento urodinâmico que, em geral, vai demonstrar
como entidade clínica. aumento de pressão no detrusor de forma
sustida (hipertonia e baixa compliance) ou
A EM afecta mais a mulher que o homem, contracções não inibidas, que se traduzem
com uma relação 4:1, sendo conhecidos em clinicamente em urgência miccional, pola-
Portugal mais de cinco mil casos. quiúria e incontinência.
Esta doença pode apresentar três formas Os doentes estão quase sempre multimedi-
de evolução: surto/remissão ou recorrente cados com imunomoduladores, imunossu-
remissiva; surto/remissão secundariamente pressores, corticosteróides, antidepressivos,
progressiva e primariamente progressiva.1 anti-espasmódicos, analgésicos, entre outros
fármacos, havendo em consequência, um
O grau de invalidez e a perda da qualida- risco acrescido de complicações por interac-
de de vida resultam de alterações motoras ção e efeitos adversos dos medicamentos.
(parésia), visuais (nevrite óptica e perda de
visão), dolorosas (nevralgia do trigémio) e A polaquiúria e a incontinência são habi-
cognitivas (demência, doença bipolar), da tualmente tratadas com anticolinérgicos,
disfunção miccional e dos efeitos secundá- compostos que frequentemente têm efeitos
rios da medicação.2 secundários intoleráveis.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 50 anos de ida- Tem descoordenação e hipotonia muscular
de, recorreu pela primeira vez à consulta de dos membros superiores e inferiores, mais
Urologia do Hospital da Luz há cerca de 3 acentuada nos últimos três a quatro anos.
anos. Tem EM recorrente remissiva, com 15 Desloca-se em cadeira de rodas, com a ajuda
anos de evolução. Apresenta queixas de in- de uma auxiliar, de quem também depende
continência diurna e nocturna, quatro a 10 para as tarefas diárias.
vezes por dia, e infecção urinária recorrente,
desde há vários anos. Apresenta ligeira disartria, com discur-
ESCLEROSE MÚLTIPLA E HIPERACTIVIDADE VESICAL. TRATAMENTO COM TOXINA BOTULÍNICA
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
A EM é uma doença inflamatória dismielini- cal a baixa pressão e manter a continência
zante do sistema nervoso central, sem factor urinária.
etiológico definido. As alterações degenera-
tivas do SNC na EM, traduzem-se por per- O tratamento inclui alterações comporta-
turbação funcional nos órgãos-alvo. mentais e dietéticas, fisioterapia do pavi-
mento pélvico, fármacos anticolinérgicos
Os sintomas associados à hiperactividade (oxibutinina e outros) antidepressivos tricí-
vesical, encontram-se entre os que mais in- clicos (imipramina), bloqueio da inervação
terferem com a qualidade de vida dos do- vesical aferente (instilação intravesical de
entes. Dado o carácter imprevisível, evolu- capsaicina e resiniferatoxina), injecção na
tivo e por surtos da EM, o tratamento da parede vesical de neurotoxina botulínica, e
hiperactividade vesical deve usar meios con- intervenções para colocação de neuromode-
servadores tendo como objectivos preser- ladores ou para ampliação ou substituição
var ou recuperar o tracto urinário superior vesical (enterocistoplastia).
eventualmente afectado pela pressão eleva-
da do detrusor ou por refluxo vésico-renal, A toxina botulínica é a neurotoxina mais
minimizar os episódios de infecção urinária, potente conhecida. É produzida pela bacté-
permitir o enchimento e esvaziamento vesi- ria anaeróbia Gram-positiva Clostridum bo-
205
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
· Em primeiro lugar, não existe uma terapêu- Em conclusão, a injecção de toxina botulíni-
tica alternativa válida. A capsaicina e resife- ca na parede vesical representa uma alterna-
rotoxina têm bons resultados, mas provocam tiva, sem riscos, com um efeito duradouro e
cistite inicial intensa. A cirurgia de aumento com uma boa relação custo-benefício, para
vesical é uma operação grande, invasiva e o tratamento da bexiga hiperactiva refractá-
com resultados nem sempre favoráveis. ria ao tratamento farmacológico.
ESCLEROSE MÚLTIPLA E HIPERACTIVIDADE VESICAL. TRATAMENTO COM TOXINA BOTULÍNICA
BIBLIOGRAFIA
1. Ferreira MLB, Machado MIM, Vilela ML, et al. Epidemiologia 7. Bell MS, Vermeulen LC, Sperling KB. Pharmacotherapy with
de 118 casos de esclerose múltipla com seguimento de 15 anos no botulinum toxin: harnessing nature's most potent neurotoxin.
Centro de Referência do Hospital da Restauração de Pernanbuco. Pharmacotherapy 2000;9:1079-91.
Arq Neuropsiquiatr 2004;62:1027-32.
8. Dykstra DD, Sidi AA, Scott AB, Pagel JM, Goldish GD. Effects
2. Rocha CG, Fenelon SB, Pinto RMC, et al. Qualidade de of botulinum A toxin on detrusor-sphincter dyssynergia in spinal
vida em portadores de esclerose múltipla. Arq Neuropsiquiatr cord injury patients. J Urol 1988;139:919-22.
2007;65:454-60.
9. Schurch B, Stöhrer M, Kramer G, et al. Botulinum-A toxin for
3. Betts CD, D'Mellow MT, Fowler C J. Urinary symptoms and the treating detrusor hyperreflexia in spinal cord injured patients: a
neurological features of bladder dysfunction in multiple sclerosis. J new alternative to anticholinergic drugs? Preliminary results. J
Neurol Neurosurg Psychiatry 1993;56:245-50. Urol 2000;164:692-7.
4. Apostolidis A, Dasgupta P, Fowler CJ, et al. Proposed mechanism 10. Karsenty G, Denys P, Amarenco G. et al. Botulinum toxin A
for the efficacy of injected botulinum toxin in the treatment of (Botox) intradetrusor injections in adults with neurogenic detrusor
human detrusor overactivity. Eur Urol 2006: 49;644-50. overactivity/neurogenic overactive bladder: a systematic literature
review. Eur Urol 2008;53:275-87.
5. Stoehrera M, Wolffa A, Kramera G, et al. Treatment of
neurogenic detrusor overactivity with botulinum toxin A: The first 11. Kalsi V, Gonzales G, Popat R, et al. Botulinum injections for
seven years. Urol Int 2009;83:379-85. the treatment of bladder symptoms of multiple sclerosis. Ann
Neurol 2007;62:452-7.
6.Mizuma EK, Takeshita MS, Suaid HJ, et al. Efeito do cloridrato
de oxibutinina na hiperatividade vesical consequente a cistite
hemorrágica. Acta Cir Bras [online] 2003;18:24-7.
207
PEDIATRIA
GINECOLOGIA-OBSTETRÍCIA
RADIOTERAPIA
IMAGIOLOGIA
209
INFECÇÃO A STAPHYLOCOCCUS
AUREUS. CASO CLÍNICO
Staphylococcus aureus infection.
Case report
RESUMO Abstract
O Staphylococcus aureus é o agente patogé- Staphylococcus aureus is the most common
nico mais frequentemente encontrado nas in- pathogen found in the skin and soft tissue
fecções da pele e tecidos moles. Dependendo infections. According to the host condition
do estado do hospedeiro e da estirpe bacte- and the bacterial strain, a variety of clinical
riana envolvida surgem quadros clínicos de manifestations occur, with different severity
gravidade variável. Os autores apresentam o degrees. The authors report the clinical case
caso clínico de uma criança do sexo femini- of a five-year old girl with a staphylococcal
no de cinco anos de idade com uma infecção systemic infection starting in a flesh wound
estafilocócica sistémica, que teve como ponto in one knee.
de partida uma ferida ao nível de um joelho.
211
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da doença estafilocó- como a osteomielite, artrite séptica, abces-
cica está relacionado com a resistência do sos, pneumonia e empiema. Certas estirpes
hospedeiro à infecção, com a virulência do de S. aureus produtoras de toxinas dão ori-
agente causal e com deficiências da barreira gem a patologias como intoxicação alimen-
mucocutânea provocadas por exemplo por tar, escarlatina estafilocócica, síndrome de
feridas, traumatismos, cirurgias ou queima- pele escaldada e síndrome de choque tóxico.
duras, o que condiciona o risco infeccioso.1 Em casos de infecção recorrente deverá ser
feita investigação da imunidade, sobretudo
O Staphylococcus aureus (S. aureus) é a cau- no que se refere à disfunção dos neutrófilos.1
sa mais frequente de infecções da pele e dos
tecidos moles como o impétigo, a celulite, Os autores descrevem um caso clínico que se
os abcessos e as feridas infectadas. Caso enquadra no grupo de patologias mediadas
ocorra bacteriemia (primária e secundária) por toxinas.
pode estar associado ou causar infecções
CASO CLÍNICO
Criança do sexo feminino, de 5 anos de ida- globina (Hb) 11,2 g/dL, proteína C reactiva
de, aparentemente saudável até cerca de 10 (PCR) 2,3 mg/dL, parâmetros de coagula-
horas antes do internamento, altura em que ção normais. Foram realizadas colheitas
surge rash escarlatiniforme, febre alta, vó- para hemocultura, urocultura e exame bac-
mitos e supuração de ferida aparentemente teriológico do pus da ferida. A criança fez
cicatrizada do joelho esquerdo, pelo que re- ainda radiografias de tórax e do joelho em
corre ao Atendimento Médico Permanente que não se observaram alterações.
de Pediatria do Hospital da Luz.
A criança foi internada e iniciou-se terapêutica
À entrada a criança apresentava-se pálida, com flucloxacilina endovenosa 100 mg/kg/dia.
febril (temperatura auricular 38,3oC), sem
sinais meníngeos, hemodinamicamente está- Cerca de 5 horas após o início da antibiotera-
vel (tensão arterial 101-62 mmHg, frequên- pia verificou-se o aparecimento de exantema
cia cardíaca 130 bpm), com rash cutâneo petequial nas regiões subaxilares, membro
escarlatiniforme no tronco e membros, hi- superior direito, tórax e abdómen.
peremia conjuntival bilateral e edema pal-
pebral, orofaringe hiperemiada, sem exante- Neste contexto a criança fez reavaliação la-
ma das mucosas, ferida supurada no joelho boratorial que revelou subida dos parâme-
esquerdo. O exame objectivo não revelou tros infecciosos, nomeadamente PCR 6,7 mg/
outras alterações. dL. Manteve-se hemodinamicamente estável
com parâmetros de coagulação normais.
A avaliação laboratorial revelou 11 300
leucócitos, sendo 89% neutrófilos, hemo- No segundo dia de internamento, a criança
INFECÇÃO A STAPHYLOCOCCUS AUREUS. CASO CLÍNICO
DISCUSSÃO
213
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
CONCLUSÃO
Embora rara a doença estafilocócica inva- endovenosa, mantendo-a até 72 horas de
siva deve ser considerada num doente com apirexia.
febre, rash cutâneo e ferida. Deve ser realiza-
da monitorização hemodinâmica contínua e Estas medidas permitem evitar o agrava-
avaliação laboratorial seriada. É essencial mento do quadro clínico para uma situação
iniciar de imediato terapêutica antibiótica potencialmente mais grave ou fatal.
BIBLIOGRAFIA
1. Todd JK. Staphylococcus. In: Kliegman RM, Behrman RE, 3. Baddour LM. Skin abcesses, furuncles, and carbuncles. 2010 In:
Jenson HB, Stanton BF, eds. Nelson Textbook of Pediatrics. 18th ed. http://www.uptodate.com (Consulta em Outubro 2010)
Philadelphia: Saunders Elsevier; 2007;1123-30.
SUSANA COUTINHO
HENRIQUE NABAIS
BLANDINA HASSELMANN+
AUGUSTO GASPAR
PEDRO OLIVEIRA
Departamentos de Ginecologia-Obstetrícia e de
Anatomia Patológica, Centro de Imagiologia
+
Hospital de Santiago
RESUMO Abstract
O tumor trofoblástico do leito placentar Placental site trophoblastic tumors (PSTT)
(TTLP) é uma entidade rara e particular are rare, slowly growing malignant
dentro do grupo das doenças do trofoblas- tumors, accounting for less than 0.2%
to gestacional, estando descrito em menos de of all cases of gestational trophoblastic
0,2% destas neoplasias. Tem origem nas cé- diseases. These tumors are derived from
lulas do trofoblasto intermediário, extra-vi- intermediate cytotrophoblast cells that are
loso, no local de implantação da placenta e present in the placenta. PSTT can occur
é um tumor de crescimento lento. Pode ocor- after any kind of gestation, and generally
rer após qualquer tipo de gravidez, manifes- become symptomatic months to years later.
tar-se precoce ou tardiamente até mais de 10 More than 30% of patients have already
anos depois, e apresenta um espectro variado metastases at the clinical presentation.
em termos de comportamento tumoral, com Management includes surgical removal, as
metastização, à data do diagnóstico, superior PSTT it is highly resistant to chemotherapy.
a 30% dos casos descritos. A cirurgia é o tra- The authors report the clinical case of PSTT
tamento de primeira linha, pois este tumor é in a 33-year old woman with localized
quimioresistente. Os autores descrevem um disease, in which the tumor excision by
caso de TTLP não metastático numa mulher hysteroscopic resection was performed,
de 33 anos de idade, em que foi tentado tra- followed by hysterectomy.
tamento cirúrgico conservador por ressecção
histeroscópica e que foi submetida posterior-
mente a histerectomia.
215
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
As doenças do trofoblasto gestacional vaginal. Dado que estes tumores segregam
(DTG), com origem na proliferação das cé- pequenas quantidades de ßHCG, por não
lulas trofoblásticas da placenta, constituem haver proliferação do sinciciotrofoblasto,4
um grupo heterogéneo de entidades que par- pode estar presente um grande volume tu-
tilham a caraterística única de ter uma ori- moral com títulos relativamente baixos, sen-
gem tumoral fetal. Cerca de 90% das DTG do frequente um valor inferior a 100 mUI/
são benignas, e compreendem as molas hi- mL.5 O diagnóstico é feito pela biópsia,
datiformes parcial e completa.1 Os restantes obtida por curetagem/aspiração uterina ou,
10% incluem neoplasias com potencial para idealmente, por histeroscopia.
invasão local e metastização, que são maio-
ritáriamente molas invasivas ou coriocarci- Histologicamente o TTLP caracteriza-se por
noma, ou ainda tumores raros como o tu- células trofoblásticas de tipo intermediário,
mor trofoblástico do leito placentar (TTLP) monomórficas e predominantemente mo-
e o tumor trofoblástico epitelióide (TTE). O nonucleadas, que infiltram o miométrio em
TTLP e o TTE têm origem nas células do fileiras ou camadas, afastando as fibras mus-
trofoblasto extraviloso ou intermediário, culares entre si. O preenchimento vascular
respectivamente, no local de implantação da é proeminente, assim como a presença de
placenta ou do migratório noutros locais da material fibrinóide. A caracterização imu-
estrutura placentar. As gravidezes molares e nocitoquímica revela positividade para a
o coriocarcinoma derivariam do trofoblasto hormona lactogéneo placentário (HPL), po-
viloso (sinciciotrofoblasto).2 sitividade para alfa-inibina e citoqueratina
8/18, fraca ou ausente expressão de HCG e
Os TTLP são tumores malignos muito ra- marcadores negativos para o músculo liso.6
ros, de crescimento lento, que podem surgir
após qualquer tipo de gestação, embora a O factor prognóstico mais importante é
maioria se desenvolva após uma gravidez dado pelo estadiamento tumoral [classifica-
de termo. Constituem menos de 0,2% de ção da Federação Internacional de Gineco-
todos os casos de DTG, tendo sido descri- logia e Obstetrícia (FIGO)], com uma sobre-
tos na literatura apenas cerca de 300 casos.3 vivência aos 10 anos de 90% para o estadio
A maioria é diagnosticada meses ou anos I (tumor confinado ao útero) e de cerca de
após a gestação causal, quando surgem sin- 50% para os restantes estadios.4 Outros
tomas. Geralmente, as manifestações clíni- factores de mau prognóstico são o maior
cas incluem metrorragias ou amenorreia, e intervalo de tempo desde a gestação ante-
a presença de uma formação tumoral com rior (>24 meses), a idade >40 anos, os níveis
envolvimento da cavidade uterina. Mais de mais elevados de ßHCG sérico e caracterís-
30% das doentes apresentam metástases na ticas histológicas, como um índice mitótico
data do diagnóstico e em 6% dos casos exis- elevado e áreas necróticas tumorais.4,6
te atingimento ganglionar.3
Ao contrário das outras DTG malignas, que
A avaliação diagnóstica inclui o doseamen- respondem bem à quimioterapia e têm uma
to da subunidade beta da hormona corió- taxa de cura elevada, o TTLP é muito resis-
nica humana (ßHCG) e o exame ecográfico tente à quimioterapia.1,3,6 A extensão da do-
TUMOR TROFOBLÁSTICO DO LEITO PLACENTAR. CASO CLÍNICO
ença para além do útero dificulta o controlo conservadora pode ser considerada, estan-
tumoral e embora se consigam remissões do já descritos casos tratados com excisão
prolongadas com quimioterapia combinada tumoral por histerotomia e resseção histe-
associada à cirurgia, a mortalidade é eleva- roscópica.7,8 Para além dos exames imagio-
da. As metástases surgem mais frequente- lógicos de estadiamento, a informação dada
mente nos pulmões, cérebro, fígado e gân- pelas ecografias e a ressonância magnética
glios. Na ausência de doença metastática, (RM) pélvicas, ou mesmo a tomografia por
o tratamento é unicamente cirúrgico, quase emissão de positrões (PET), são fundamen-
sempre a histerectomia. Nas mulheres que tais no planeamento da ressecção local.7,8
pretendem preservar a fertilidade a cirurgia
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 33 anos de · Função tiroideia e prolactina normais.
idade, referenciada para a consulta de Gi-
necologia do Hospital da Luz em Janeiro de · Hormona estimulante dos folículos (FSH)
2009 por amenorreia secundária desde o úl- 3,6 mUI/mL, hormona luteinizante (LH)
timo parto e formação intracavitária uterina 10,9 mUI/mL, estradiol (E2) 134,6 pg/mL.
na ecografia vaginal. Tinha duas gestações e
dois partos anteriores, eutócicos e de termo, · Marcador tumoral CA 125 normal.
o segundo há 16 meses, tendo amamenta-
do durante cinco meses e feito contracepção · Citologia cervical negativa.
hormonal oral desde o parto até três meses
antes da consulta (durante a amamentação · Ecografia vaginal de Novembro de 2008
com progestativo contínuo e depois com es- em que apresentava útero com linha endo-
troprogestativo cíclico). Desde o puerpério metrial de 7 mm e presença de imagem no-
manteve-se em amenorreia, tendo por isso dular ecodensa intracavitária com 3,0 x 2,7
consultado um ginecologista em Novembro cm; os ovários de dimensões normais apre-
de 2008, que realizou ecografia vaginal re- sentavam microfolículos bilaterais (Fig. 1).
velando formação nodular ecodensa intra-
cavitária sugestiva de mioma submucoso. Foi então programada uma histeroscopia
Nos antecedentes pessoais relevantes há a diagnóstica em regime externo, realizada a
referir hipertensão arterial ligeira, só medi- 26 de Fevereiro de 2009, em que se detecta
cada durante ambas as gravidezes, e hiper- uma neoformação, que não sugeria nem pa-
colesterolemia em análise recente. tologia endometrial nem miometrial, eventu-
almente conteudo placentar retido, que ocu-
Era portadora dos seguintes exames e resul- pava a metade superior da cavidade uterina,
tados: de que se colheu biópsias, tendo o restante
endométrio aspecto inactivo (Fig. 2).
· Análises de hemograma e bioquímica nor-
mais, excepto colesterol com 260 mg/dL. O resultado histológico refere “fragmentos
217
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 1 Imagens de ecografia vaginal revelando formação nodular ecodensa intracavitária com diâmetros
entre 2 e 3 cm
Fig. 2 Imagem do tumor obtida por histeroscopia Fig. 3 Tumor do leito placentar. A. Dissociação
diagnóstica, sugerindo resto placentar ou neofor- miometrial e crescimento infiltrativo arterial
mação atípica (H&E, x50). B. Invasão neoplásica da parede
arterial (H&E, x400)
TUMOR TROFOBLÁSTICO DO LEITO PLACENTAR. CASO CLÍNICO
Fig. 4 Imagens de TC pélvica. Formação nodular uterina hipodensa e hipocaptante. Vista coronal (A) e
transversal (B)
Fig. 5 Imagens de RM pélvica. Formação uterina isodensa com miométrio. Vista sagital (A) e transversal (B)
219
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
DISCUSSÃO
Como a monitorização do nível de ßHCG xo risco, como era o caso descrito, pois ao
não é feita após uma gravidez não molar, e contrário das outras DTG malignas, o TTLP
o TTLP surge maioritariamente após uma é muito resistente à quimioterapia. O tra-
gestação de termo, a grande maioria destes tamento de eleição é a histerectomia neste
casos tem um diagnóstico tardio. Também a estadio, mas a resseção local do tumor pode
sua raridade e o seu crescimento lento origi- ser considerada quando se deseja preservar
nam diagnósticos até 14 anos após a gesta- a fertilidade. Estão descritos casos em que
ção causal e na menopausa.9 A extensão do se efectuou tumorectomia por histerotomia
tumor para além do útero agrava muito o e, recentemente, também por resseção his-
prognóstico, o que torna importante alertar teroscópica, com sucesso.7,8 No caso des-
para a sua possibilidade perante queixas de crito a doente já tinha dois filhos, pelo que
metrorragias ou amenorreia associadas a al- se optou pela histerectomia. No entanto,
terações intracavitárias na ecografia vaginal, caso se tratasse de uma mulher sem filhos,
em mulheres já gestantes. haveria a possibilidade de efectuar uma se-
gunda ressecção histeroscópica para excisão
Perante a suspeita de TTLP, a informação do tumor residual. Para este tipo de abor-
dos exames de imagem sobre o grau de vas- dagem conservadora os exames de imagem
cularização do tumor é muito importante, são fundamentais, ao precisarem a localiza-
desde logo na escolha dos procedimentos ção, dimensões e limites da massa tumoral,
operatórios de diagnóstico. Os tumores com bem como o tipo de vascularização.10 Com
vascularização proeminente, que podem o avanço das técnicas radiológicas de in-
também associar-se a malformações arté- tervenção, a embolização selectiva arterial
riovenosas, podem causar uma hemorragia poderia também permitir a preservação do
grave na sequência duma aspiração-cureta- útero.9
gem uterinas.7,8 A histeroscopia com bióp-
sias guiadas é assim a opção mais segura. O papel da linfadenectomia pélvica e para-
-aórtica no estadio I não está definido,11
Existe um interesse crescente no papel po- tendo-se optado neste caso pela sua realiza-
tencial da cirurgia como único tratamento ção por estar descrito um atingimento gan-
curativo para o estadio I com score de bai- glionar de 6%.
221
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Disaia PJ, Creasman WT. Gestational trophoblastic disease. In: 7. Leiserowitz GS, Webb MJ. Treatment of placental site
Disaia PJ, Creasman WT, eds. Clinical Gynecology Oncology 6. St. trophoblastic tumor with hysterotomy and uterine reconstruction.
Louis, Mosby-Year Book, 2002;185-206. Obstet Gynecol 1996; 88:696-9.
2. Benirschke K, Kaufmann P, Baergen RN. Pathology of the Human 8. Liszka L, Wilk M, Wodolazski A, Palen P, Sikora J. Successful
Placenta. 5th ed. New York: Springer, 2006;191. treatment of placental site trophoblastic tumor in twin pregnancy
without hysterectomy. Tumori 2009;95:108-11. (abst)
3. Baergen RN, Rutgers JL, Young RH, et al. Placental site
trophoblastic tumor. A study of 55 cases and review of the literature 9. Piura B. Placental site trophoblastic tumor: a challenging rare
emphasizing factors of prognostic significance. Gynecol Oncol entity. Eur J Gynaecol Oncol. 2006;27:545-51.
2006;100:511-20.
10. Brandt KR, Coakley KJ. MR appearance of placental site
4. Schmidt P, Nagai Y, Agarwal R, et al. Prognostic markers and trophoblastic tumor: a report of three cases. AJR 1998;170:485-7.
long-term outcome of Placental site trophoblastic tumors: a
retrospective observational study. Lancet 2009;374:48-55. 11. Papadopoulos AJ, Foskett M, Seckl MJ, et al. Twenty-five years'
clinical experience with PST tumors. J Reprod Med 2002;47:460-4.
5. Feltmate CM, Genest DR, Wise L, Bernstein MR. Placental site
trophoblastic tumor: a 17-year experience at the New England
Trophoblastic Disease Center. Gynecol Oncol 2001;82:415-9.
LEONOR SANTOS
LUÍS VIEIRA PINTO
ANA CATARINO
Departamentos de Ginecologia-Obstetrícia
e de Anatomia Patológica
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de uma The authors report the clinical case of a
mulher de 32 anos de idade que recorreu à 32-year old woman that was referred for
consulta de Ginecologia do Hospital da Luz hysteroscopy because of a densely echogenic
por queixas de infertilidade secundária com band occupying most of the endometrial
dois anos de duração. Nos seus anteceden- cavity on ultrasonography. She underwent a
tes tinha uma interrupção voluntária da gra- pregnancy termination 10 years before and
videz aos 22 anos de idade, com misoprostol. had failed to conceive for the last two years.
Durante a avaliação complementar diagnós- Hysteroscopy revealed a white meshwork of
tica, a ecografia pélvica revelou a existência solid tissue in the uterine cavity. Histology
de uma imagem hiperecogénica com 20 mm of the solid tissue fragments was consistent
de extensão, sugestiva de calcificação endo- with the diagnosis of osseous metaplasia of
metrial, que motivou a realização de uma the endometrium.
histeroscopia. Durante este procedimen-
to visualizou-se uma estrutura esbranquiça-
da, espiculada, que ocupava toda a cavidade
uterina, semelhante a um fragmento ósseo.
O resultado do exame anatomopatológico
mostrou tratar-se de uma ossificação distrófi-
ca do endométrio.
223
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A metaplasia óssea do endométrio caracte- A etiologia da metaplasia óssea do endomé-
riza-se pela presença de tecido semelhante a trio é controversa, mas a maioria dos casos
osso na cavidade uterina. É mais frequen- surge a partir da transformação do tecido
te entre os 20 e 40 anos de idade, sendo endometrial em tecido ósseo em resposta à
uma patologia rara, com uma incidência de inflamação crónica e trauma após um abor-
0,15%. Surge geralmente em mulheres com to.3 O período de tempo que decorre desde
infecções pélvicas recorrentes, aborto ou in- um aborto até ao desenvolvimento comple-
fertilidade.1 A metaplasia óssea é uma causa to da ossificação pode variar entre oito se-
rara de infertilidade.2 manas e 14 anos.4
CASO CLÍNICO
Doente de 32 anos de idade, G1P0, que re- uma histeroscopia em ambulatório. Utili-
correu à consulta externa de Ginecologia- zou-se um histeroscópio de 5,5 mm (Karl
Obstetrícia por queixas de infertilidade Storz) e o meio de distensão da cavidade
secundária com dois anos de duração. Nos uterina usado foi soro fisiológico. Durante
seus antecedentes referiu uma interrupção o procedimento visualizou-se uma estrutu-
voluntária da gravidez realizada aos 22 anos ra esbranquiçada, espiculada, que ocupava
de idade, com misoprostol. O estudo do ca- toda a cavidade uterina, semelhante a um
sal, nomeadamente as análises hormonais e fragmento ósseo, que foi removida com uma
o espermograma, foi normal. A doente tinha pinça na sua totalidade (Fig 2). O resulta-
ciclos menstruais regulares e estava assinto- do do exame anatomopatológico mostrou
mática. Durante a avaliação complementar tratar-se de uma ossificação distrófica do
diagnóstica, a ecografia pélvica revelou uma endométrio.
imagem hiperecogénica, longitudinal, com
20 mm, sugestiva de calcificação endome- No mês seguinte à histeroscopia a doente
trial (Fig. 1), que motivou a realização de engravidou espontaneamente; no entanto às
sete semanas de gravidez foi diagnosticado cidiu realizar uma curetagem para evacua-
um aborto retido. Fez terapêutica médica ção uterina.
com misoprostol, sem efeito, pelo que se de-
COMENTÁRIOS
Habitualmente a metaplasia óssea endome- formas de tratamento da metaplasia óssea
trial cursa com irregularidades menstruais, uterina.3 No entanto, a histeroscopia permi-
menorragias, algias pélvicas, leucorreia e in- te uma abordagem terapêutica sob visuali-
fertilidade, podendo também ser assintomá- zação directa, sendo assim uma opção mais
tica. No caso clínico descrito a única queixa favorável.1
era infertilidade secundária com dois anos
de duração. Apesar de rara, a metaplasia O diagnóstico é confirmado com a avaliação
do endométrio deve ser considerada no dia- histológica, sendo importante que as forma-
gnóstico de infertilidade, sobretudo no con- ções de metaplasia óssea se encontrem em
texto de um aborto anterior. O tecido ósseo zonas de endométrio com glândulas de tipo
funciona como um dispositivo intra-uterino inactivo pois é feito o diagnóstico diferen-
impedindo a fertilização.3,5 cial com fragmentos ósseos fetais.3
No caso clínico descrito a etiologia parece O caso clínico descrito neste trabalho evi-
ter tido como factor preponderante o aborto dencia a importância do diagnóstico his-
realizado 10 anos antes. tológico para a confirmação de metaplasia
óssea e do conhecimento da etiopatogenia
Perante a possibilidade de metaplasia óssea, desta entidade clínica e sua associação com
a ecografia é muito importante porque per- antecedentes de aborto.
mite evidenciar uma imagem hiperecogénica
na cavidade uterina muito sugestiva desta O prognóstico da metaplasia óssea é favo-
patologia. rável quando o processo é bem conduzido.
Habitualmente as doentes retomam a ferti-
A curetagem uterina ou a remoção dos frag- lidade até um ano após a remoção dos fra-
mentos por histeroscopia são as principais gmentos.
225
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Parente RCM, Freitas V, Neto, RSM, et al. Metaplasia óssea 4. Bathia N, Hoshiko M. Uterine osseous metaplasia. Obstet
endometrial: quadro clínico e seguimento após tratamento. Rev Gynecol 1982;60:256-9.
Bras Ginecol.Obstet 2010;32:33-8.
5. Ganem K, Parsons L, Friedell G. Endometrial ossification. Am J
2. Pinto AP, Guedes GB, Tuon FFB. Metaplasia óssea do endométrio: Obstet Gynecol 1962;83:1592-4.
relato de caso. Bras Patol Med Lab 2005;41:287-9.
ANTÓNIO SETÚBAL
FÁTIMA FAUSTINO
OLGA LAVADO
LUÍS VIEIRA PINTO
Departamento de Ginecologia-
Obstetrícia
RESUMO Abstract
A evisceração através da cúpula vaginal é The evisceration through the vaginal cuff is
uma complicação rara da histerectomia to- a rare complication of total hysterectomy.
tal. Após a deiscência da cúpula vaginal, o After dehiscence of the vaginal cuff,
conteúdo abdominal ou pélvico pode ser abdominal or pelvic contents may be
exteriorizado através da cúpula vaginal. expelled throught the vaginal opening.
A evisceração do intestino pode levar a Bowel evisceration can lead to serious
complicações sérias incluindo peritonite, sequelae, including peritonitis, bowel
lesão do intestino, necrose ou sépsis. Para injury and necrosis or sepsis. Early surgical
evitar este tipo de complicações é necessá- and medical interventions are required to
ria uma rápida intervenção médico-cirúrgi- prevent such complications. Appropriate
ca. O tratamento adequado requer um dia- management includes prompt diagnosis,
gnóstico imediato, uma avaliação minuciosa thorought assessement of the herniated
dos órgãos prolapsados e a reparação cirúr- viscera and surgical repair of the vaginal
gica da deiscência vaginal. Os autores apre- defect. The authors present the clinical case
sentam o caso de uma mulher de 54 anos of a 54 year-old woman with a vaginal
de idade em que, três meses após uma histe- cuff dehiscence, three months after a total
rectomia total laparoscópica, ocorreu uma laparoscopic hysterectomy. The bowel was
deiscência da cúpula vaginal. O prolapso do replaced and the defect in the vaginal wall
intestino foi reduzido e o defeito da cúpula was repaired by laparotomy by demand
vaginal foi reparado por laparotomia, a pe- of the patient. After surgery there was a
dido da doente. Após a cirurgia, verificou- complete regression of symptoms with
se uma completa regressão da sintomatolo- successful outcome.
gia e um pós-operatório sem complicações.
227
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A deiscência da cúpula vaginal é uma com- pode levar a complicações sérias incluindo
plicação rara após uma histerectomia total, peritonite, lesão do intestino, necrose ou
mas com potencial morbilidade. Após a re- sepsis. Para evitar este tipo de complicações
moção do útero a incisão vaginal (cuff vagi- é necessária uma intervenção médico-cirúr-
nal) é suturada. A deiscência da cúpula vagi- gica rápida.
nal consiste na abertura da incisão vaginal.
Os autores descrevem um caso clínico raro
Após a deiscência, o conteúdo abdominal de deiscência da cúpula vaginal após uma
ou pélvico pode ser exteriorizado através da histerectomia total laparoscópica.
cúpula vaginal. A evisceração do intestino
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 54 anos de Na consulta de revisão às seis semanas de
idade, caucasiana, multípara (2 partos de pós-operatório observou-se correcta cicatri-
termo, eutócicos, recém-nascidos com 3 400 zação da cúpula vaginal.
e 3 500 g de peso ao nascer), seguida na con-
sulta de Ginecologia por menorragias gra- Cerca de 3 meses depois da cirurgia, após
ves e metrorragias, sem dismenorreia Nos esforço de defecação, a doente refere apare-
antecedentes pessoais destacava-se cirurgia cimento de “massa/tumor” na vagina, pelo
anterior por cancro da mama com quadran- que recorreu ao Atendimento Médico Per-
tectomia e radioterapia posterior. Fazia tera- manente do Hospital da Luz. Da observação
pêutica com tamoxifeno até três meses antes resultou evidência de evisceração do intesti-
da histerectomia. no através da cúpula vaginal.
DISCUSSÃO
A incidência da deiscência da cúpula vaginal Os factores de risco potenciais para a deiscên-
após histerectomia total é de 0,24%.1-3 A in- cia da cúpula vaginal incluem:1,2,4,7-9,13,14
cidência de deiscência vaginal após qualquer
cirurgia pélvica é cerca de 0,03%.4 A percen- · Histerectoma total laparoscópica
tagem é ligeiramente superior após histerecto-
mia laparoscópica (0,79% a 1,5%), quando · Histerectoma total laparoscópica assistida
comparada com histerectomia realizada por por robot
laparotomia (0,1% a 0,26%) ou por via va-
ginal (0,08 a 0,25%).1-3,5,6 A cirurgia robótica · Infecção ou hematoma da cúpula vaginal
parece incrementar este tipo de complicação
para cerca de 4,1%.7 Na realidade, a verdadei- · Prolapso dos órgãos pélvicos
ra incidência deste tipo de complicação não é
bem conhecida devido à insuficiência de dados · Radioterapia pélvica
na laparoscopia, robótica ou não.
· Obesidade, tabagismo, obstipação, tosse
A deiscência da cúpula vaginal é uma compli-
cação rara, o que torna difícil estabelecer quais · Anemia, diabetes, imunossupressão
os seus factores predisponentes. Alguns estu-
dos revelam diferentes factores de risco entre No caso descrito pode também ser especula-
mulheres em período pós-menopausa versus do um efeito possível da terapêutica com ta-
mulheres em período pré-menopausa.1,2,4,6,8-12 moxifeno até a uma data muito próxima da
cirurgia.
Em geral, a deiscência está associada a factores
que condicionam uma cicatrização deficiente Há ainda a referir que o uso de energia térmi-
dos tecidos, aumento da pressão sobre a inci- ca na incisão vaginal poderá ser responsável
são vaginal ou defeitos do pavimento pélvico. pela necrose tecidular levando a uma pior ci-
No entanto, em alguns casos pode também catrização da cúpula vaginal. Também a me-
ocorrer espontaneamente.1,2,4,8 lhor visualização da imagem na cirurgia lapa-
roscópica poderá condicionar o encerramento
229
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
da cúpula com um bordo inferior a 1 cm. Por Nas mulheres em pós-menopausa, a deiscên-
outro lado, a habilidade do cirurgião na reali- cia está mais frequentemente associada a pro-
zação de nós intra ou extracorporais poderá, lapso dos órgãos pélvicos, acontecendo vários
por falta de técnica ou experiência, aumentar anos após a cirurgia.2,4,8,9 As estruturas mais
o risco desta complicação.1 frequentemente evisceradas através da vagina
são o intestino, epíplon, trompas de Falópio
As manifestações clínicas mais frequentemen- e apêndice.1,2,4,8,11,13
te associadas à deiscência da cúpula vaginal
incluem:1,2,4,6,8,13 A deiscência da cúpula vaginal, com ou sem
evisceração, é de diagnóstico clínico, sendo
· Dor pélvica (em 60% dos casos) para isso essencial o exame pélvico. Na au-
sência de evisceração e com a doente estável,
· Hemorragia vaginal (em 30% a 60% dos o defeito poderá ser reparado por via vaginal.
casos) Todas as situações de evisceração deverão ser
consideradas uma emergência cirúrgica. A me-
· Perda de fluidos vaginais (em 30% dos casos) lhor via para a resolução depende da condição
clínica da doente e da experiência do cirur-
· Sensação de pressão ou massa vaginal (em gião. São opções possíveis a reparação cirúrgi-
30% dos casos) ca por via vaginal, laparotomia, laparoscopica
ou uma combinação das referidas, todas des-
Em alguns casos, a deiscência da cúpula vagi- critas na literatura.1,4
nal ocorre mais de cinco anos após a cirurgia.1,2
Numa revisão alargada (59 casos de eviscera- No caso presente, na opção por resolução por
ção) o intervalo de tempo entre a cirurgia e a laparotomia teve peso a decisão da doente.
complicação foi de 6 a 20 meses.8 Para as mu-
lheres em pré-menopausa, a deiscência é em
geral mais precoce (dois a cinco meses depois
da cirurgia) e mais comum depois da primeira
relação sexual após a cirurgia.1,2,8,11,13
BIBLIOGRAFIA
1. Hur HC, Guido RS, Mansuria SM, Hacker MR, Sanfilippo JS, Lee 4. Croak AJ, Gebhart JB, Klingele CJ, Schroeder G, Lee RA,
TT. Incidence and patient characteristics of vaginal cuff dehiscence Podratz KC. Characteristics of patients with vaginal rupture and
after different modes of hysterectomies. J Minim Invasive Gynecol evisceration. Obstet Gynecol 2004;103:572-6.
2007;14:311-7.
5. Robinson, BL, Liao, JB, Adams, SF, Randall, TC. Vaginal cuff
2. Iaco PD, Ceccaroni M, Alboni C, et al. Transvaginal evisceration dehiscence after robotic total laparoscopic hysterectomy. Obstet
after hysterectomy: is vaginal cuff closure associated with a reduced Gynecol 2009;114:369-71.
risk? Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol 2006;125:134-8.
6. Agdi, M, Al-Ghafri, W, Antolin, R, et al. Vaginal vault dehiscence
3. Donnellan, NM, Hur, HC, Mansuria, SM, Lee, TT. Incidence of after hysterectomy. J Minim Invasive Gynecol 2009; 16:313-7.
vaginal cuff dehiscence after different modes of hysterectomy: A
follow-up study to a single institution's experience. 2010 (aguarda
publicação).
EVISCERAÇÃO INTESTINAL APÓS HISTERECTOMIA LAPAROSCÓPICA. CASO CLÍNICO
7. Kho, RM, Akl, MN, Cornella, JL, et al. Incidence and 13. Yuce, K, Dursun, P, Gultekin, M. Posthysterectomy intestinal
characteristics of patients with vaginal cuff dehiscence after robotic prolapse after coitus and vaginal repair. Arch Gynecol Obstet 2005;
procedures. Obstet Gynecol 2009;114:231-5. 272:80-1.
8. Ramirez, PT, Klemer, DP. Vaginal evisceration after hysterectomy: 14. Purakal, J, Moyer, G, Burke, W. Vaginal cuff dehiscence after
a literature review. Obstet Gynecol Surv 2002;57:462-7. hysterectomy in a woman with systemic lupus erythematosus: a case
report. J Reprod Med 2008;53:305-7.
9. Kowalski, LD, Seski, JC, Timmins, PF, Kanbour AI, Kunschner
AJ,. Kanbour-Shakir A. Vaginal evisceration: presentation 15. Nezhat, CH, Nezhat, F, Seidman, DS, Nezhat, C. Vaginal vault
and management in postmenopausal women. J Am Coll Surg evisceration after total laparoscopic hysterectomy. Obstet Gynecol
1996;183:225-9. 1996;87:868-70.
10. Soper DE. Bacterial vaginosis and trichomoniasis vaginitis are 16. Joy, SD, Phelan, M, McNeill, HW. Postcoital vaginal cuff
risk factors for cuff cellulitis after abdominal hysterectomy. Am J rupture 10 months after a total vaginal hysterectomy. A case report.
Obstet Gynecol 1990;163:1016-21. J Reprod Med 2002;47:238-40.
11. Cardosi, RJ, Hoffman, MS, Roberts, WS, Spellacy, WN. Vaginal 17. Nasr, AO, Tormey, S, Aziz, MA, Lane, B. Vaginal herniation:
evisceration after hysterectomy in premenopausal women. Obstet case report and review of the literature. Am J Obstet Gynecol
Gynecol 1999;94:859-60. 2005;193:95-7.
12. Walsh, CA, Sherwin, JR, Slack, M. Vaginal evisceration 18.Kambouris, AA, Drukker, BH, Barron, J. Vaginal evisceration.
following total laparoscopic hysterectomy: case report and review A case report and brief review of the literature. Arch Surg 1981;
of the literature. Aust N Z J Obstet Gynaecol 2007;47:516-9. 116:949-51.
231
PÓLIPOS DO ENDOCOLO E GRAVIDEZ.
A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO
Endocervical polyps in pregnancy.
A case report
LEONOR SANTOS
ANA CHUNG
Departamento de Ginecologia-Obstetrícia
RESUMO Abstract
As autoras apresentam o caso clínico de uma The authors report the clinical case of a
grávida de 38 anos de idade, com cinco se- 38-year old woman, five weeks pregnant,
manas de gravidez, que recorreu ao Atendi- presented to the emergency room of
mento Médico Permanente do Hospital da Hospital da Luz, complaining of moderate
Luz por queixas de perda hemática vaginal. vaginal bleeding. On physical examination,
A observação ginecológica revelou a exis- an endocervical polyp, measuring 4 cm
tência de uma formação exofítica, sangran- of size was detected. Based on this case,
te, com 4 cm de comprimento, a exteriorizar- management of the endocervical polyps
-se pelo colo do útero. A propósito deste caso during pregnancy is discussed.
clínico é discutida a abordagem dos pólipos
endocervicais durante a gravidez.
233
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
Os pólipos do endocolo surgem em cerca de Existem poucos dados na bibliografia acerca
10% das mulheres, especialmente nas com da sua abordagem durante a gravidez.3
mais de 20 anos de idade e que já tiveram fi-
lhos. São geralmente assintomáticos; podem O presente caso clínico descreve uma grávi-
manifestar-se ocasionalmente com leucor- da de 38 anos de idade, com cinco semanas
reia abundante, coitorragias, infecções va- de gravidez que recorreu ao Atendimento
ginais recorrentes ou hemorragia vaginal.1,2 Médico Permanente do Hospital da Luz por
queixas de perda hemática vaginal. A obser-
A grande maioria tem dimensões inferiores vação ginecológica revelou uma formação
a 2 cm de comprimento. A sua etiologia não exofítica, sangrante, com 4 cm de compri-
está completamente esclarecida; podem es- mento a exteriorizar-se pelo colo do útero,
tar associados a inflamação crónica, a uma sugestiva de pólipo. A propósito deste caso
resposta local anormal à elevação de estro- é discutida a abordagem dos pólipos endo-
génios ou a uma congestão venosa dos vasos cervicais durante a gravidez.
cervicais.1,2
CASO CLÍNICO
Grávida de 38 anos de idade, com cinco se- (dimensões 4,2 x 2 x 1,3 cm). Foi medicada
manas de gravidez, recorreu ao Atendimento com amoxicilina e ácido clavulânico per os
Médico Permanente do Hospital da Luz por durante sete dias.
queixas de perda hemática vaginal. A obser-
vação ginecológica revelou uma formação A grávida foi seguida na consulta de alto ris-
exofítica, sangrante, com 4 cm de compri- co do Departamento de Ginecologia-Obste-
mento, com inserção justa no orifício inter- trícia do Hospital da Luz por antecedentes
no, que se exteriorizava pelo orifício externo de obesidade, hipertensão arterial crónica
do colo do útero, sendo sugestiva de pólipo. e patologia tiroideia. Não se verificaram
A ecografia pélvica com sonda vaginal reve- complicações obstétricas até às 36 semanas,
lou um saco gestacional in utero com 14 mm, altura em que se verificou aumento tensio-
com vesícula vitelina e placa embrionária. nal apesar da medicação anti-hipertensiva.
Este aumento tensional justificou a indução
Face ao quadro clínico e dimensões da for- do trabalho de parto às 39 semanas. Foi
mação detectada, decidiu-se realizar histe- realizada cesariana por distócia. O recém-
roscopia para excisão do pólipo. nascido, do sexo masculino, pesava 3 430 g
e teve um índice de Apgar de 10/10.
Quatro dias depois a grávida realizou histe-
roscopia em ambulatório, fez excisão total
da formação com Gynecare Versapoint®
(Ethicon). O resultado anatomopatológico
revelou pólipo fibroglandular do endocolo
PÓLIPOS DO ENDOCOLO E GRAVIDEZ: A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO
COMENTÁRIOS
A informação sobre as eventuais alterações
cervicais provocadas por um pólipo duran-
te a gravidez é bastante escassa. Dados bi-
bliográficos sugerem que a presença destas
neoformações pode modificar a consistência
e as propriedades enzimáticas do colo do
útero, com aumento do risco de infecções e
corioamnionite.1
235
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Panayotitis C, Alhwalic A. Cervical polypectomy during 3. Robertson M, Scott P, Ellwood DA, Low S. Endocervical
pregnancy: Is there any management advances on the last decades? polyp in pregnancy: gray scale and color Doppler images and
The Internet Journal of Gynecology and Obstetrics 2005;5. In: essential considerations in pregnancy. Ultrasound Obstet Gynecol
http://www.ispub.com/ostia/index.php?xmlFilePath=journals/ijgo/ 2005;26:583-4.
vol5n1/polyp.xml
4. Ohwada M, Suzuki M, Hironaka M, Irie T, Sato I. Neuroendocrine
2. Younis M, Iram S, Anwar B, Ewies A. Women with asymptomatic small cell carcinoma of the uterine cervix showing polypoid growth
cervical polyps may not need to see a gynecology and or have and complicated by pregnancy. Gynecol Oncol 2001;81:117-9.
them removed: an observational retrospective study of 1126 cases.
Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol 2010;150:190-4.
GRAVIDEZ OVÁRICA. TERAPÊUTICA
CONSERVADORA MINIMAMENTE INVASIVA
Ovarian pregnancy. Minimally invasive
conservative management
Departamentos de Ginecologia-Obstetrícia
e de Anatomia Patológica
RESUMO Abstract
A gravidez ovárica é considerada uma emer- The ovarian pregnancy is an extremely rare
gência ginecológica. Constitui uma situação gynecological emergency. Its incidence has
extremamente rara, que ocorre em 1/7 000 been reported as 1 in 7 000 pregnancies
gestações uterinas e em 0,5 a 3% das gravi- and accounts for 0.5 to 3% of all ectopic
dezes ectópicas.1,2 O seu diagnóstico é mui- gestations. The authors report the clinical
tas vezes intra-operatório. Os autores apre- case of a patient with a ruptured ovarian
sentam o caso clínico de uma doente com pregnancy diagnosed by a transvaginal
gravidez ovárica complicada por rotura, sub- ultrasonographic exam The diagnosis is
metida a tratamento cirúrgico laparoscópico often intricate and based on perioperatative
conservador. observations. The authors report the clinical
case of an ovarian pregnancy treated by
conservative laparoscopic surgery.
237
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A gravidez ectópica rota é considerada uma sua suspeição, a laparoscopia é o gold stan-
urgência ginecológica, representando uma dard no diagnóstico de gravidez ovárica.3
das principais complicações do primeiro A presença de tecido ovárico à volta do saco
trimestre. A gravidez ovárica, no entanto, gestacional na peça anatomopatológica é
constitui numa condição extremamente essencial para a sua confirmação.
rara. Ocorre em 1/7 000 gestações uterinas
e em 0,5 a 3% das gravidezes ectópicas.1,2 Os autores apresentam o caso clínico de
uma doente com gravidez ovárica compli-
A gravidez ovárica coloca ainda alguns pro- cada por rotura, submetida a tratamento
blemas de diagnóstico. Embora, nalguns cirúrgico laparoscópico conservador.
casos, a ecografia endovaginal possa levar à
CASO CLÍNICO
Mulher de 36 anos de idade, saudável, re- do colo do útero e dor à mobilização uterina
correu ao Atendimento Médico Permanente e área anexial direita. No exame ecográfico
de Ginecologia-Obstetrícia do Hospital da pélvico, identificou-se uma formação hete-
Luz por algias pélvicas desde há dois dias rogénea com 52 x 37 mm na área anexial
com agravamento progressivo e amenorreia direita, com vascularização periférica, DIU
de seis semanas. Apresentava como antece- in situ e sangue em quantidade moderada
dentes ginecológicos-obstétricos um parto no fundo de saco posterior (FSP) (>100
eutócico há nove anos, ciclos menstruais mL), que no contexto clínico era sugestivo
irregulares e colocação de dispositivo intra- de gravidez extra-uterina (GEU) rota. Este
uterino (DIU) há dois meses. Ao exame gi- diagnóstico foi confirmado por doseamento
necológico, apresentava fios de DIU visíveis, de ß-HCG com um valor de 6 482 UI/L.
perda hemática escassa pelo orifício externo
O DIU foi retirado e decidiu-se fazer abor-
dagem cirúrgica de emergência através
de laparoscopia. Intra-operatoriamente,
confirmou-se a presença de sangue na pel-
ve em quantidade moderada, útero e área
anexial esquerda sem alterações (Fig. 1) e
saco gestacional roto implantado no ovário
direito, rodeado por coágulos aderentes ao
tecido trofoblástico com trompa direita ín-
tegra sem contacto com o ovário (Fig. 2 e 3).
Procedeu-se à remoção do saco gestacional
e tecido trofoblástico por dissecção romba
Fig. 1 Útero e área anexial esquerda sem altera- com pinça atraumática e coagulação do lei-
ções to do ovário com pinça bipolar (Fig. 4). O
GRAVIDEZ OVÁRICA: TERAPÊUTICA CONSERVADORA MINIMAMENTE INVASIVA
COMENTÁRIOS
Existe alguma controvérsia em relação aos em pelo menos uma das trompas ou a pre-
factores de risco para gravidez ovárica. Teo- sença de uma fístula que permita a passa-
ricamente, são os mesmos da gravidez ectó- gem do espermatozóide ou do embrião.4
pica, embora seja essencial a permeabilidade
239
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
No entanto, a contracepção com DIU pare- · o saco gestacional deve estar implantado
ce ser um factor de risco mais importante no ovário;
para a gravidez ovárica do que para os ou-
tros tipos de gravidez ectópica.5 · o saco gestacional está em contacto com
o útero através do ligamento útero-ovárico;
No caso clínico apresentado não é sur-
preendente o facto de o diagnóstico ter · o exame anatomopatológico confirma a
sido laparoscópico. Na maioria das vezes, presença de tecido ovárico aderente ao saco
o diagnóstico de gravidez ovárica é feito gestacional.
intra-operatoriamente, através da identifi-
cação de uma massa hemorrágica aderente Confirmou-se a presença de todos os crité-
à superfície do ovário, separada da trompa rios na doente descrita neste trabalho.
ipsilateral que se encontra integra.6 Mesmo
intra-operatoriamente, é por vezes difícil o Até há alguns anos, o tratamento passava
seu diagnóstico diferencial com um corpo pela ooforectomia ou ressecção em cunha
amarelo hemorrágico ou com um quisto do ovário por laparotomia.8 Actualmente,
do ovário. Neste contexto, a determinação a cirurgia minimamente invasiva permite
laboratorial da ß-HCG torna-se essencial. preservar ao máximo o tecido ovárico com
Um valor superior a 1500 UI/L na ausên- o mínimo de aderências pélvicas e hemorra-
cia de saco gestacional in utero, é altamente gia, factores de importância reconhecida nas
sugestivo de GEU. Deste modo, se ambas as mulheres em idade fértil. A rápida recupe-
estruturas tubárias estão íntegras, torna-se ração pós-operatória e regresso à actividade
mandatória a avaliação das superfícies ová- profissional, encontram-se entre outros fac-
ricas. A presença de lesão hemorrágica deve tores a considerar.9
levantar a suspeita de GEU ovárica.
A terapêutica médica da GEU ovárica atra-
Em 1878 foram sugeridos7 quatro critérios, vés da utilização de metotrexato poderá ter
ainda hoje utilizados no diagnóstico diferen- apenas indicação em casos seleccionados de
cial entre GEU ovárica primária e GEU tubá- ressecção incompleta de tecido trofoblásti-
ria distal com posterior envolvimento ovárico: co, demonstrada pela persistência de níveis
aumentados de ß-HCG. Ao contrário do
· a trompa e suas fímbrias devem estar ínte- que acontece com a GEU tubária, após GEU
gras e separadas do ovário; ovárica não existe um risco aumentado de
recorrência.
BIBLIOGRAFIA
1. Grimes HG, Nosal RA, Gallagher JC. Ovarian prenancy: a series 3. Donnez J. Specific sites of ectopic pregnancy. Atlas of Operative
of 24 cases. Obstet Gynecol 1983;61:174-80. Laparoscopy and Hysteroscopy 2008:164-5.
2. Hallat J. Primary ovarian pregnancy. A report of twenty-five 4. Hsu CC,Yang TT, Hsu CT. Ovarian pregnancy resulting
cases. Am J Obstet Gynecol 1982;143:50-60. from corneal fistulae in a woman who had undergone bilateral
salpingectomy. Fertil Steril 2005;83:205-7.
GRAVIDEZ OVÁRICA: TERAPÊUTICA CONSERVADORA MINIMAMENTE INVASIVA
5. Ercal T, Cinar O, Mumcu A, et al. Ovarian Pregnancy; relationship 8. Raziel A, Golan A, Pansky M, et al. Ovarian pregnancy: a
to an intrauterine device. Aust NZ J Obst Gynaecol 1997;37:362-4. report of twenty cases in one institution. Am J Obstet Gynecol
1990;163:1182-5.
6. Chelli D, Gatri C, Boudaya F, et al. Ovarian pregnancy. Report of
three cases. Tunis Med. 2009;87:797-800. 9. Odejinmi F, Rizzuto MI, Macrae R, Olowu O, Hussain M.
Diagnosis and laparoscopic management of 12 consecutive cases
7. Spiegelberg O. Zur Kasuistik der Ovarialschwangerschaff. Arch of ovarian pregnancy and review of literature. J Minim Invasive
Gynekol 1878;13:73-5. Gynecol.2009;16(3):354-9.
241
REMOÇÃO LAPAROSCÓPICA TRANSVESI-
CAL DE PRÓTESE INTRAVESICAL. CASO
CLÍNICO
Laparoscopic transvesical removal of
intravesical mesh. A case report
ANTÓNIO SETÚBAL
JOÃO ALVES
FÁTIMA FAUSTINO
FILIPA OSÓRIO
DUARTE VILARINHO
JOÃO VARELA
Departamentos de Ginecologia-Obstetrícia
e de Urologia
RESUMO Abstract
Durante os últimos anos a cirurgia da incon- During the last few years, surgical approach
tinência urinária de stress tem sofrido altera- of stress urinary incontinence changed
ções importantes. Da cirurgia gold standard significantly, from the gold standard Burch
de Burch evoluiu-se para os slings retropú- operation, to retropubic and, more recently
bicos e depois para os transobturadores. Os to transobturator slings. The reasons for
motivos subjacentes a esta evolução da tera- these changes are related to better results,
pêutica cirúrgica residem na procura de me- less invasive surgery and less complication
lhores resultados, de procedimentos menos rate associated with this type of techniques.
invasivos e de um menor índice de compli- The authors report the clinical case of a
cações associadas aos procedimentos. Os au- female patient with atypical complaints
tores descrevem o caso clínico de uma com- due to a complication of a retropubic sling,
plicação associada à colocação de um sling with perforation of the bladder, diagnosed
retropúbico, associado a queixas atípicas da six years after surgery. The well known
doente, com perfuração da bexiga diagnos- difficulty associated with the removal of
ticada seis anos após a cirurgia. Dada a difi- those slings through a vaginal approach
culdade conhecida de remoção dos slings por ou cistoscopy, and the authors experience
via vaginal ou por cistoscopia e também pela on laparoscopy lead to the decision of
sua experiência laparoscópica, os autores op- performing a laparoscopic approach to
taram por esta abordagem cirúrgica para re- the sling removal. The mesh was removed
moção do sling. A prótese foi removida sem successfully with less than an overnight stay
intercorrências e a doente teve alta hospi- at the Hospital. As far as the authors believe
243
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
talar um dia depois. Tanto quanto é do co- there are no other reports in the literature on
nhecimento dos autores trata-se do primeiro a laparoscopy approach to a sling removal.
caso descrito na bibliografia de remoção de
uma prótese intravesical por via laparoscópi-
ca transvesical.
INTRODUÇÃO
A correcção cirúrgica da incontinência uri- mais comuns a perfuração intra-operatória
nária de esforço sofreu alterações significa- da bexiga e a retenção urinária.5-7 Apesar de
tivas durante os últimos anos, no sentido do ser uma complicação comum, a perfuração
desenvolvimento de técnicas menos invasi- da bexiga durante o procedimento retropú-
vas e mais eficazes, associadas a um tempo bico não apresenta, na maioria dos casos
operatório curto e a uma recuperação rápi- sequelas graves, nem reduz a taxa de cura.7,8
da dos doentes.1,2 A erosão da uretra e vagina e a migração
tardia para órgãos adjacentes, encontram-
Actualmente, a colocação de próteses por -se entre outras complicações menos habi-
via vaginal é o tratamento de eleição para turais.9 Outras complicações, mais raras e
a incontinência urinária. Estes procedimen- graves, incluem os hematomas do espaço de
tos vaginais, bem como os procedimen- Retzius, a perfuração intestinal, a lesão de
tos retropúbicos ou transobturadores, são vasos major e a morte.10
vulgarmente conhecidos por slings. A via
transobturadora tem ultrapassado a via Os autores descrevem o caso clínico de uma
retropúbica, pelo menor índice de compli- doente submetida a um sling retropúbico
cações e também pela maior simplicidade com malha de polipropileno microporosa
da técnica. Embora em número mais redu- e polifilamentar há seis anos, mantendo no
zido, as complicações são semelhantes às pós-operatório sintomatologia pouco es-
da via retropúbica.1,3,4 Na persistência de pecífica de algias pélvicas e dificuldade em
queixas pós operatórias deve ser tida em urinar. Após investigação verificou-se que
consideração uma associação com a cirur- se tratava de sintomatologia relacionada
gia, sendo imprescindível uma investigação com uma perfuração da bexiga por um dos
detalhada. Este aspecto assume particular braços da prótese. A prótese intravesical foi
relevância quando se usam próteses, pelas removida com êxito por via laparoscópica
complicações que estão associadas a estes transvesical.
dispositivos. Entre estas incluem-se como
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 62 anos de ida- recorreu à consulta de Ginecologia-Obste-
de, menarca há 13 anos, menopausa aos 54 trícia do Hospital da Luz com queixas de di-
anos de idade, G2P2 (dois partos eutócicos), ficuldade de micção acompanhada de disú-
REMOÇÃO LAPAROSCÓPICA TRANSVESICAL DE PRÓTESE INTRAVESICAL. CASO CLÍNICO
245
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
DISCUSSÃO
Hoje em dia os procedimentos de eleição para associada. Assim, a taxa de perfuração pode
correcção de incontinência urinária de esfor- variar entre 0,8%5 e 15%,4 conforme a expe-
ço são as correcções com sling por via retro- riência do cirurgião, com um valor médio de
púbica ou transobturadora, sendo em geral a 6,6% nos últimos estudos.6
segunda a preferida.1 A maior utilização das
malhas macroporosas e monofilamentares, A cistoscopia está aconselhada na suspeita de
com utilização do material polipropileno e o lesão vesical,7 sendo no entanto possível que
desuso de outro tipo de materiais, veio aumen- esta não seja visualizada.8
tar a tolerância biológica dos doentes a estas
próteses, levando a um menor número de re- As principais complicações a longo prazo des-
jeições2,3 e a um menor índice de complicações critas para o sling retropúbico incluem pro-
a longo prazo (menor taxa de rejeição e de lapso assintomático dos órgãos pélvicos
migração). (7,8%), urgência urinária de novo (6,3%) e
infecções urinárias recorrentes (7,5%), com
Vários autores referem que o índice de compli- uma taxa de cura aos sete anos de cerca de
cações está associado à experiência do cirur- 80%.9
gião e que existe uma curva de aprendizagem
COMENTÁRIOS FINAIS
Os slings retropúbicos foram, durante anos, A utilização de uma abordagem laparoscó-
a terapêutica gold standard para a inconti- pica como método de eleição para a remo-
nência urinária de esforço. A simplificação ção de próteses intravesicais justifica-se pela
introduzida pela via transobturadora redu- sua simplicidade e eficácia, com uma visua-
ziu o índice de complicações e aumentou a lização directa e ampla da bexiga e pélvis
eficácia da terapêutica. (permitindo a exclusão de próteses retropú-
bicas intra-abdominais) e, desta forma, pos-
O caso clínico relatado foi diagnosticado sibilitanto a formulação do diagnóstico e a
com base nas queixas atípicas da doente, na correcção das complicações. A experiência
clínica e no recurso imediato a cistoscopia. laparoscópica dos autores permitiu optar
A não valorização dos sintomas da doente e por esta abordagem, com resolução adequa-
o excesso de exames executados durante seis da e minimamente invasiva do caso. Tanto
anos, revelam a importância da clínica, pa- quanto é do conhecimento dos autores tra-
tente neste, como noutros casos. A ausência ta-se do primeiro caso de remoção de uma
de complicações mais graves, nomeadamen- prótese intravesical por via laparoscópica
te fístulas ou infecções, não determinou uma transvesical descrito na bibliografia.
investigação simples e atempada.
247
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Latthe PM, Foon R, Toozs-Hobson P. Transobturator and 6. Kristensen I, Eldoma M, Williamson T, Wood S, Mainprize
retropubic tape procedures in stress urinary incontinence: T, Ross S. Complications of the tension-free vaginal tape procedure
a systematic review and meta-analysis of effectiveness and for stress urinary incontinence. Int Urogynecology J Pelvic Floor
complications. BJOG.2007;114:522-31. Dysfunct 2010;21:1353-7.
2. Ostergard DR. Primary slings for everyone with genuine stress 7. ACOG Practice Bulletin number 63, June2005, reaffirmed 2009.
incontinence? The argument against. Int Urogynecol J Pelvic Floor Urinary incontinence in Women.
Dysfunct 1997;8:321-2.
8. McLennan MT, Melick CF. Bladder perforation during tension-
3. Kuuva N, Nilsson CG. Long-term results of the tension-free free vaginal tape procedures: analysis of learning curve and risk
vaginal tape operation in an unselected group of 129 stress factors. Obst Gynecol 2005;106:1000-4.
incontinent women. Acta Obstet Gynecol Scand 2006;5:482-7.
9. Nilsson CG, Falconer C, Rezapour M. Seven-year follow-up of
4. Bodelsson G, Henriksson L, Osser S, Stjernquist M. Short term the tension-free vaginal tape procedure for treatment of urinary
complications of the tension free vaginal tape operation for stress incontinence. Obstet Gynecol 2004;104:1259-62.
urinay incontinence in womem. BJOG 2002;109:556-9.
10. Daneshgari F, Kong W, Swartz M. Complications of mid
5. Schraffordt Koops SE, Bisseling TM, Heintz AP, Vervest HA. urethral slings: important outcomes for futures clinical trials. J Urol
Prospective analysis of complications of tension-free vaginal tape 2008;180:1890-7.
from The Netherlands Tension-Free Vaginal Tape Study. Am J
Obstet Gynecol 2005;193:45-52.
TUMOR DESMÓIDE DURANTE A
GRAVIDEZ. A PROPÓSITO DE UM CASO
CLÍNICO
Desmoid tumour during pregnancy.
A case report
LEONOR SANTOS
LEONOR ASSIS RAMOS
LUÍS VIEIRA PINTO
RUTE JÁCOME
ANA CATARINO
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de uma The authors report the clinical case of a 32-
grávida de 32 anos de idade, internada às 38 -year old pregnant patient, that at the 38th
semanas e seis dias de gestação para a reali- week was submitted to a caesarean due
zação de uma cesariana electiva por suspeita to a suspicious large pediculated isthmus
de volumoso mioma ístmico pediculado. In- myoma. During the surgical procedure, a
tra-operatoriamente, constatou-se a presença large tumour was found adherent to the
de um tumor de grandes dimensões aderen- anterior abdominal wall, that was completed
te a toda a parede abdominal anterior. O tu- excised. The histological studies diagnosed a
mor foi objecto de uma excisão completa e desmoid tumour. The authors made a review
o resultado do exame anatomopatológico re- of the literature on the subject.
velou tratar-se de uma fibromatose extra-ab-
dominal subaponevrótica / tumor desmóide.
No contexto deste caso foi feita uma revisão
da bibliografia acerca do tema.
249
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
O tumor desmóide ou fibromatose profunda no pós-parto.5 Em 12% dos casos, surgem
é uma patologia benigna rara, representan- em doentes com história familiar de polipo-
do 0,03% de todos os tumores, com uma se familiar adenomatosa.2-4 Na maioria dos
incidência de dois a quatro casos novos por casos provocam apenas uma dor ligeira. Os
milhão de pessoas e por ano. Foi descrita tumores desmóides intra-abdominais po-
pela primeira vez em 1832.1-3 A sua etiologia dem manifestar-se por um quadro de obs-
está mal esclarecida, tendo já sido implica- trução ou isquemia intestinal.2,3
dos factores genéticos, hormonais e trauma
cirúrgico.3 As lesões têm origem no tecido O presente caso clínico refere-se a uma grá-
conjuntivo, fascia ou aponevrose4 e uma vida de 32 anos de idade, internada às 38 se-
localização mais comum na cabeça, pesco- manas e seis dias de gestação para realização
ço, ombros, tronco, parede torácica, coxa e de uma cesariana electiva por suspeita de
cavidade abdominal. Cerca de 30-50% des- volumoso mioma ístmico pediculado. Intra-
tes tumores surgem no abdómen. As lesões -operatoriamente constatou-se a presença
são volumosas e invadem os tecidos, com de um tumor de grandes dimensões, aderen-
tendência a recorrer. No entanto, pensa-se te a toda a parede abdominal anterior. Foi
que não metastizam.4 O tumor desmóide realizada uma tumorectomia total. O resul-
atinge com mais frequência as mulheres e, tado do exame anatomopatológico da peça
entre estas, as que se encontram em idade cirúrgica revelou fibromatose extra-abdomi-
fértil, especialmente durante a gravidez ou nal subaponevrótica / tumor desmóide.
CASO CLÍNICO
Grávida de 32 anos de idade, com idade ges- A cesariana foi então realizada; o recém-
tacional de 38 semanas e seis dias, segunda nascido do sexo feminino pesava 3 110 g
gravidez, um parto anterior por cesariana, e teve um índice de Apgar 9/10. Não se regis-
internada no Hospital da Luz para realiza- taram intercorrências durante o procedimen-
ção de uma cesariana electiva por suspeita to, tendo a doente recuperado bem e tido alta
de mioma volumoso supra-ístmico. Nas hospitalar ao terceiro dia pós-parto.
ecografias realizadas durante a gravidez sus-
peitou-se de fibromioma pediculado, supra- O resultado anatomopatológico da peça
ístmico esquerdo, de crescimento rápido, de cirúrgica revelou fibromatose extra-abdo-
6 cm no primeiro trimestre para 18 cm no minal subaponevrótica / tumor desmóide. A
final da gravidez. Por esta razão foi decidida lesão aparentou estar contida totalmente na
uma cesariana electiva. A cirurgia foi realiza- peça operatória.
da sob anestesia loco-regional. Após abertu-
ra da aponevrose constatou-se a presença de Durante os dois anos seguintes, a doente
um tumor de grandes dimensões aderente a realizou, de seis em seis meses, consulta de
toda a parede abdominal anterior (Fig.1). A Ginecologia-Obstetrícia e ecografia abdo-
abordagem uterina só foi possível após exe- minal e pélvica, não se detectando recidiva
rese completa do tumor que pesou 1 049 g. durante este período de follow-up.
TUMOR DESMÓIDE DURANTE A GRAVIDEZ: A PROPÓSITO DE UM CASO CLÍNICO
COMENTÁRIOS
Nesta grávida, o ambiente hormonal durante camente possível, a terapêutica cirúrgica com
a gravidez e a cicatriz da cesariana anterior ressecção total do tumor é o gold standard.2,3
parecem ter tido um papel importante no Aplica-se mais frequentemente nos tumo-
desenvolvimento do tumor desmóide. Apa- res extra-abdominais e da parede abdomi-
rentemente, o tumor parece ter tido origem nal, sendo mais difícil nos casos de tumores
na cicatriz da cesariana, apresentando cresci- intra-abdominais, pela invasão e destruição
mento rápido. de órgãos e tecidos. As doentes que não são
boas candidatas para cirurgia podem realizar
A ecografia é importante para realizar o dia- radioterapia e/ou quimioterapia.4
gnóstico diferencial com lesões dos tecidos
moles. A ressonância magnética pélvica ajuda Os tumores desmóides têm uma taxa de re-
a um melhor esclarecimento do grau de inva- corrência elevada, mesmo após ressecção
são dos tecidos e órgãos, embora o diagnósti- total.2,3 Os dados disponíveis na bibliografia
co final seja histológico.2 não são conclusivos relativamente ao acon-
selhamento da mulher que pretende ter mais
A terapêutica está indicada nos casos sinto- filhos após um tumor desmóide. As doentes
máticos, quando há risco de lesão dos órgãos devem ser informadas que estes tumores po-
adjacentes ou existem alterações cosméticas. dem ser dependentes de estrogénios, mas que
O tipo de terapêutica depende das caracterís- uma gravidez futura não representa necessa-
ticas e localização do tumor. Quando tecni- riamente um factor de risco para recorrência.6
251
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Não estão estabelecidos protocolos para zação de exame objectivo, ecografia pélvica e
follow-up após terapêutica. De acordo com abdominal cada seis meses nos primeiros três
a bibliografia existente preconiza-se a reali- anos e depois anualmente.
BIBLIOGRAFIA
1. MacFarlane J. Clinical reports on the surgical practice of Glasgow 5. Cian F, Delay E, Rudigoz RC, Ranchère D, Rivoire M. Desmoid
Royal Infirmary. Glasgow (Scotland): D. Robertson 1832:63-7. tumor arising in a cesarean section scar during pregnancy:
monitoring and management. Gynecol Oncol 1999;75:145-8.
2. Rampone B, Pedrazzani C, Marrelli D, Pinto E, Roviello F.
Updates on abdominal desmoid tumors. World J Gastroenterol 6. Jeffrey C, Beverly A. Desmoid tumour. The risk of recurrent
2007;13:5985-8. or new disease with subsequent pregnancy: a case report. Can J
Surg1999; 42:51-4.
3. Kumar V, Khanna S, Khanna AK, Khanna R. Desmoid tumors:
Experience of 32 cases and review of the literature. Indian J Cancer
2009;46:34-9.
4. Schlemmer M. Desmoid tumors and deep fibromatoses. Hematol
Oncol Clin N Am 2005;19:565-71.
RADIOTERAPIA DE INTENSIDADE MODU-
LADA GUIADA POR IMAGEM NA RECIDI-
VA DO CARCINOMA DA NASOFARINGE
Stereotactic radiotherapy with intensity
modulated arc therapy in the locally
recurrent nasopharyngeal carcinoma
FRANCISCO MASCARENHAS
SARA GERMANO
SOFIA FAUSTINO
CARLA MIGUEL
FERNANDO MARQUES
ROSÁRIO VIEIRA
PEDRO VILELA
RESUMO Abstract
O tratamento da recidiva do carcinoma da The treatment of locally recurrent
nasofaringe é um desafio difícil, pela mor- nasopharyngeal carcinoma is a difficult
bilidade, e mesmo mortalidade, devidas às challenge considering the related morbidity
abordagens adoptadas. A decisão terapêuti- and mortality caused by the different
ca depende de vários factores relacionados approaches. The therapeutic decision
com a recidiva em causa, assim como com a depends on several factors related to the
obtenção do controlo loco-regional. Os au- relapse and the achievement of locoregional
tores apresentam um caso clínico ilustrati- control. The authors report a clinical case
vo de uma abordagem com radioterapia de illustrating an approach with intensity
intensidade modulada por arcos dinâmicos modulated radiotherapy by dynamic arcs
(IMAT), com verificação de posicionamento (IMAT) with image guided approach
através do sistema Synergy XVI (X-ray Volu- through the Elekta Synergy XVI (X-ray
men Imaging), que utiliza a técnica de kilo- Volume Imaging) using the technique
voltage Cone-Beam CT (kV-CBCT). Foi con- of kV Cone-Beam CT (kV- CBCT). The
seguido o controlo loco-regional da doença e locoregional control of the disease was
253
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
garantida uma melhor qualidade de vida da obtained and promoted a better quality of
doente. A decisão de divulgação deste caso life of the patient. The importante of this
clínico deve-se à inexistência de consenso no case report lies in the lack of consensus
tratamento da recidiva loco-regional do car- concerning the treatment of locoregional
cinoma da nasofaringe e à escassa experiên- relapse of nasopharyngeal carcinoma and
cia de utilização desta técnica terapêutica na the limited experience achieved with this
patologia em causa. therapy in this pathology.
INTRODUÇÃO
A radioterapia (RT) é o tratamento mais efi- A recidiva local ocorre ainda em cerca de
caz no carcinoma da nasofaringe garantindo 25% a 30% dos doentes, estando estreita-
excelentes percentagens de controlo loco- mente relacionada com os estadios avança-
regional. Com o desenvolvimento de novas dos e representando nestes casos a principal
técnicas de RT, como a RT conformacional causa de morbilidade e mortalidade.
tridimensional (RTC3D), a RT de intensida-
de modulada (IMRT) e a RT estereotáxica, O tratamento da recidiva local do carcino-
e com a implementação de modalidades de ma da nasofaringe constitui uma abordagem
tratamento combinado de quimioterapia difícil, dada a localização da área envolvida,
(QT) e radioterapia, o controlo local e a a sua proximidade a estruturas críticas ad-
sobrevivência dos doentes com carcinoma jacentes e o carácter infiltrativo do próprio
da nasofaringe têm aumentado significati- processo patológico. A re-irradiação com
vamente. intenção curativa é o tratamento de escolha
para muitos doentes, constituindo contudo
Também tem sido demonstrada a eficácia te- um desafio difícil já que implica a adminis-
rapêutica do anticorpo monoclonal IgG1, que tração de radiação a estruturas radiossen-
inibe a ligação ao receptor do factor de cres- síveis, já previamente irradiadas com doses
cimento epidérmico (EGFR) cetuximab, como próximas dos seus limites de tolerância.
fármaco de primeira linha nos tumores recor-
rentes da cabeça e pescoço e principalmente o
seu benefício quando associado a RT.1
CASO CLÍNICO
Criança do sexo feminino, de 16 anos de não-esteróides. Uma ecografia cervical de
idade, refere em Janeiro de 2007 o apareci- 16 de Fevereiro de 2007 evidenciou aumen-
mento de uma tumefacção cervical direita. to do conglomerado adenopático, tendo
Recorreu ao médico de família que interpre- a criança sido referenciada a um hospital
tou como adenomegália inflamatória, tendo regional. Após observação pela Otorrinola-
iniciado terapêutica com anti-inflamatórios ringologia (ORL) efectua endoscopia naso-
RADIOTERAPIA DE INTENSIDADE MODULADA GUIADA POR IMAGEM NA RECIDIVA DO CARCINOMA DA NASOFARINGE
Entre Março e Maio de 2007, a doente foi Uma avaliação realizada por RM no iní-
submetida a quimioterapia com três ciclos cio de Março de 2009, após QT, revelou
de cisplatina (100 mg/m2) e epirrubicina (90 persistência de doença na região etmoidal
mg/m2), um dia em cada três semanas, se- posterior à esquerda com invasão da órbi-
guida de radioterapia externa convencional ta homolateral. Passado um mês a doente
com fotões de 6MV, entre Maio e Julho de foi submetida a cirurgia endoscópica nasal,
2007, através de dois campos nasocervicais com exame extemporâneo positivo seguido
laterais, paralelos e opostos, na dose total de etmoidectomia total, esfenoidectomia e
de 70 Gy em 35 fracções sobre o tumor e exentração da órbita esquerda com enxerto
adenopatias, e um campo cervical inferior cutâneo da órbita. O exame histopatológico
directo com reduções de volume aos 40, 50 da peça revelou infiltração tumoral de múl-
e 60 Gy. Foram efectuadas sobreimpressões tiplos fragmentos e de tecidos moles peri-
de 10 Gy em 5 fracções sobre ambas as ca- orbitários por carcinoma indiferenciado
deias cervicais posteriores com electrões de da nasofaringe, com tumor nos limites dos
7 MeV. Com a técnica de tratamento utili- fragmentos.
zada, as doses recebidas em ambas as pa-
rótidas e ambas as extremidades inferiores Uma RM de 6 de Maio de 2009 identificou
dos lobos temporais foram superiores a 60 componente de partes moles persistente na
Gy. Como toxicidade aguda registou-se ra- parede interna profunda da órbita esquerda.
diodermite facial e cervical, radiomucosite
orofaríngea e otite radiógena de grau 2/3, Uma tomografia por emissão de positrões
efectuando-se por isso corticoterapia em do- (PET) com fluorodesoxiglucose (FGD), re-
ses elevadas. alizada em meados de Junho de 2009 evi-
denciou acumulação difusa do radiofárma-
255
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 2 PET-CT de 15/09/2009 evidenciando captação de FDG sugestiva de recidiva tumoral no espaço
orbitário posterior esquerdo
tica de cabeça e pescoço (Dynart/Fix Head, 1 - Verificação da dose absoluta para cada
Elekta). O planeamento foi efectuado de arco e campo fixo, efectuada com um fanto-
acordo com o protocolo da instituição e ma Head & Torso (CIRS) e uma câmara de
com base na fusão de imagens de PET-CT ionização pinpoint (PTW31016);
de 15 de Outubro de 2009 e RM de 26 de
Setembro de 2009. 2 - Verificação da distribuição de dose num
plano axial efectuada no fantoma Head &
Foram delimitados o tumor (GTV - Gross Torso com uma película Gafchromic EBT
Tumor Volume) e o volume alvo clínico que posteriormente foi analisada com o sof-
(CTV – Clinical Target Volume), que incluiu tware OmniPro IMRT;
o tumor com uma margem de 2 e 3 mm.
Delimitaram-se também os órgãos de risco 3 - Verificação da distribuição de dose num
na proximidade do CTV, ou seja, o nervo plano coronal utilizando uma matriz de
óptico direito, cristalino direito, quiasma 1020 câmaras de ionização (IMRT Matri-
óptico, lobos temporais e hipófise. xx), o fantoma Multicube e o software Om-
niPro IMRT.
O planeamento do tratamento foi efectua-
do no sistema ERGO++ utilizando a técnica A confirmação do posicionamento da do-
de intensidade modulada com arcoterapia ente, antes da administração do tratamen-
(IMAT) utilizando o colimador dinâmico de to foi efectuada diariamente com o sistema
micro-multilâminas de 3 mm (DMLC3). O Synergy XVI (X-ray Volumen Imaging) que
plano de tratamento efectuado consistiu em 18 utiliza a técnica de kilovoltage Cone-Beam
arcos dinâmicos não coplanares de 10º e 20º e CT (kV-CBCT). Esta técnica consiste na re-
2 campos estáticos de fotões de 6MV (Fig. 3). construção de volumes em 3D a partir de
uma série de imagens bidimensionais obti-
Após a aprovação do planeamento e antes das com raios-X de baixa energia (kV), rea-
do início do tratamento foi efectuado o con- lizada com a doente na posição de tratamen-
trolo de qualidade dosimétrico do mesmo to. O volume reconstruído em 3D foi usado
que incluiu: para verificar e corrigir a posição da doente
257
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 3 Planeamento dosimétrico visualizando-se isodoses de irradiação, volume tumoral GTV, volume
tumoral planeado PTV e órgãos de risco.
na mesa do acelerador linear (AL) após fu- ao PTV foi de 57,81 Gy2, calculada pela fór-
são com as imagens da TC de planeamento. mula linear quadrática considerando um α/ß
de 16 e sem correcção para o factor tempo.
As correcções de posicionamento foram efec-
tuadas com a mesa robótica HexaPod que A doente foi reduzindo gradualmente a
possui 6 graus de liberdade, incluindo as de toma de analgésicos nos três meses após a
translação e de rotação, a qual permite cor- terapêutica. Na última observação, realizada
rigir desvios de translação com uma precisão oito meses após o termo da RT, apresentava
de 0,5 mm e de rotação com precisão de 0,1º. um bom estado geral, sem sintomatologia
dolorosa, sem evidência de recidiva tumoral
Foi administrada uma dose total de 50 Gy ou adenopática e sem evidência de toxicida-
em 20 fracções entre 3 de Novembro de 2009 de aguda ou tardia cumulativa à anterior-
e 2 de Dezembro de 2009 sendo a isodose mente instituída. A RM de 18 de Agosto de
de 95%, a envolvente do tumor e margens 2010 e a PET-CT de 26 de Julho de 2010
de 3 mm. A dose biológica equivalente (BED não identificaram sinais de doença tumoral
- biologically equivalent dose) administrada ou de lesão hipermetabólica (Fig. 4).
Fig. 4 RM de 18/8/2010 em T1 com gadolínio, imagens axial (A), coronal (B) e sagital (C) e PET-CT de
28/7/2010 (D) realizadas cerca de 8 meses após a radioterapia que demonstram apenas alterações fibro-
cicatriciais sem evidência de persistência ou recidiva de lesão hipermetabólica
RADIOTERAPIA DE INTENSIDADE MODULADA GUIADA POR IMAGEM NA RECIDIVA DO CARCINOMA DA NASOFARINGE
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Apesar dos excelentes resultados no contro- o seu sucesso de vários factores de pro-
lo loco-regional aos cinco anos (da ordem gnóstico, de acordo com o Prognostic Sco-
dos 80%), dos avanços dos meios de ima- re System desenvolvido por uma equipa do
gem, das técnicas de RT e do uso de mo- Queen Mary Hospital de Hong Kong.6 Esta
dalidade terapêutica combinada, a recidiva modalidade é extremamente importante nos
local ainda representa uma causa importan- casos de recorrências localizadas profunda-
te de mortalidade e morbilidade, principal- mente, tais como as da base do crânio ou
mente nos estadios avançados do carcinoma intracranianas, permitindo uma poupança
da faringe. extrema de estruturas críticas situadas junto
aos alvos, garantindo um rápido decaiamen-
Tem sido defendida uma atitude agressiva to de dose para além do tumor e evitando
como a melhor abordagem terapêutica nos uma agressão irrecuperável de tecidos que
casos de recidiva, garantindo ainda exce- não podem ser mais lesados pelas radiações.
lente probabilidade de controlo da doença.
Nos casos de recidiva localizada à nasofa- Não existem dados na literatura que permi-
ringe, têm sido usada nasofaringectomia e tam caracterizar adequadamente a eficácia
braquiterapia com um controlo tumoral a relativa das diversas técnicas terapêuticas
longo termo variável entre 52% a 72%.3,4 disponíveis para a re-irradiação das recidi-
Nos doentes com recorrências mais exten- vas do carcinoma da nasofaringe, dependen-
sas ou volumosas tem sido usada com mais do os resultados e a decisão terapêutica da
frequência a RT externa convencional, com extensão e local da recidiva, da experiência
resultados maioritariamente insatisfatórios, da equipa médica e da preferência do doente
com baixa probabilidade de controlo da do- e do médico.
ença, sobrevivência baixa dos doentes e ris-
co elevado de complicações graves tardias, No caso descrito optou-se pela realização de
como necrose dos lobos temporais, necrose IMRT com a técnica de IMAT com arcos di-
da mucosa, epistaxis fatais, mielopatias ra- nâmicos, hipofraccionada e guiada por ima-
diógenas, neuropatias cranianas e insufici- gem, associada a cetuximab, com uma BED
ência hipofisária. ≥ 55 Gy2 para o PTV. Tem sido demons-
trado que esta dose biológica equivalente
Mais recentemente, a IMRT tem contribuí- assegura um controlo local mais elevado e
do para um desfecho diferente na re-irradia- idêntico ao adquirido com a radiocirurgia
ção dos casos de recidiva, garantindo uma estereotáxica no re-tratamento de tumo-
maior poupança dos tecidos normais e pos- res localmente recorrentes da nasofaringe.8
sibilitando a administração de doses eleva- A opção por esta modalidade de RT, esteve
das de radiação nas recorrências tumorais, relacionada com o facto de assegurar uma
com uma baixa percentagem de complica- precisão elevada no posicionamento e na
ções graves.5 administração terapêutica, de garantir uma
excelente conformidade de dose ao tumor a
Também a RT estereotáxica tem vindo a ser erradicar e de reduzir ao máximo o risco de
usada com bastante sucesso nas recidivas toxicidade ou morbilidade.
do carcinoma da nasofaringe, dependendo
259
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Foi decidido não efectuar radiocirurgia es- diagnóstica por imagem tendo um elevado
tereotáxica por se tratar de um rT4 com valor preditivo negativo.10
um pobre índice de prognóstico (Prognostic
Score System >0,5) e por se pretender, so- Apesar do curto período de tempo passado
bretudo, dar prioridade a um baixo risco desde o último tratamento de RT, verifica-
de complicações tardias, face à irradiação -se que a doente melhorou significativa-
previamente efectuada. Tem sido descrita a mente em relação ao seu estado sintomático
ocorrência de morbilidade grave e mesmo de inicial encontrando-se actualmente sem evi-
mortalidade devido a hemorragias fatais.8,9 dência de doença e com uma qualidade de
vida mais favorável.
A avaliação da lesão residual ou recorrên-
cia tumoral constitui um importante desafio Pode assim concluir-se que a IMRT guiada
no seguimento dos doentes com tumores da por imagem é uma modalidade terapêutica
cabeça e pescoço. A cirurgia e a radiotera- eficaz nos tumores recidivantes da nasofa-
pia produzem alterações, tais como edema, ringe e que deverá ser considerada por equi-
hiperemia, fibrose e diminuição da diferen- pas experientes, na expectativa de um eleva-
ciação dos planos fasciais, que podem simu- do controlo loco-regional, de uma melhoria
lar lesão tumoral residual ou recorrente. O na qualidade de vida dos doentes e da mini-
recurso conjunto à avaliação morfológica mização da probabilidade de complicações
(por TC, RM) e metabólica (PET ou PET- tardias ou mesmo de morbilidade grave.
CT), melhora significativamente a acuidade
BIBLIOGRAFIA
1. Bonner JA, Harari PM, Giralt J, et al. Radiotherapy plus 7. Leung T-W, Wong, VYW, Tung SY. Stereotactic radiotherapy for
cetuximab for squamous-cell of head and neck. N Engl J Med locally recurrent nasopharyngeal carcinoma. Int J Radiat Oncol Biol
2006;354:567-78. Phys 2009;75:734-71.
2. AJCC Cancer Staging Manual, 6th Ed. Springer-Verlag New 8. Xiao XP, Xu, GZ, Miao YJ. Fractionated stereotactic radiosurgery
York, 2002. for 50 patients with recurrent or residual NPC. Int J Radiat Oncol
Biol Phys 2001;51:164-70.
3. Fee WE, Robertson JB, Goffinet DR. Long-term survival after
surgical resection for recurrent nasopharyngeal cancer after 9. Wu SX, Chua DT, Deng ML, et al. Outcome of fractionated
radiotherapy failure. Head Neck Surg 1991;117:1233-6. stereotactic radiotherapy for 90 patients with locally persistent and
recurrent nasopharyngeal carcinoma. Int J Radiat Oncol Biol Phys
4. Law SC, Lam WK, Ng MF, et al. Reirradiation of nasopharyngeal 2007;69:761-9.
carcinoma with intracavitary mold brachytherapy: An effective
means of local salvage. Int J Radiat Oncol Biol Phys 2002;54:1095- 10. Subramaniam RM, Truong M, Peller P, Sakai O, Mercier G.
113. Fluorodeoxyglucose–positron-emission tomography imaging
of head and neck squamous cell cancer. AJNR A Neuroradiol
5. Chua DT, Sham JS, Leung LH, Au KH. Reirradiation of 2010;31:598-604.
nasopharyngeal carcinoma with intensity-modulated radiotherapy.
Radiother Oncol 2005;77:290-4.
6. Chua DTT, Hung K-N, Lee V, Ng SCY, Tsang J. Validation of
a prognostic scoring system for locally recurrent nasopharyngeal
carcinoma treated by stereotatic radiosurgery BMC Cancer
2009;9:131.
ESTESIONEUROBLASTOMA DA REGIÃO
SELAR SIMULANDO UM MACROADENO-
MA DA HIPÓFISE. CASO CLÍNICO
Esthesioneuroblastoma of the sellar region
mimicking a macroadenoma of the pituitary.
A case report
FRANCISCO MASCARENHAS
SARA GERMANO
SOFIA FAUSTINO
FERNANDO MARQUES
CARLA MIGUEL
CARLOS MACHADO
JOSÉ MIGUENS
PEDRO OLIVEIRA
PEDRO VILELA
MÓNICA NAVE
RESUMO Abstract
O estesioneuroblastoma é um tumor neuro- Esthesioneuroblastoma is a rare neuro-
epitelial raro com origem no epitélio ol- epitelial tumor commonly arising from the
factivo da cavidade nasal ou área cribifor- olfactory epithelium in the nasal cavity
me e progride para os tecidos adjacentes. O or cribiform area and progression to the
seu desenvolvimento primário na região se- adjacent tissues. The ectopic development in
lar com extensão regional é extremamente the sella turcica or pituitary with locoregional
raro, encontrando-se reportados na literatu- extension is an extremely rare entity and
ra, até ao presente, apenas 15 casos. Os auto- only fifteen cases have been reported in the
res apresentam o caso clínico de uma mulher literature to date. The authors report the
de 59 anos de idade, com um estesioneuro- clinical case of a 59-year old female with an
blastoma com provável origem na sela tur- esthesioneuroblastoma with probable origin
ca, estadiado como T4N0M0 e simulando in the sellar region, staged as a T4N0M0
um macroadenoma da hipófise. Foi subme- and mimicking a macroadenoma of the
tida a multimodalidade terapêutica com ci- pituitary. The patient was submitted to a
rurgia transesfenoidal, quimioterapia com multimodal treatment with transphenoidal
261
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
O estesioneuroblastoma (ENB) ou neuro- O tratamento do estesioneuroblastoma tem
blastoma olfactivo é um tumor maligno, vindo a evoluir desde a excisão cirúrgica a
raro e agressivo que tipicamente se desen- regimes de multimodalidade terapêutica,
volve do epitélio olfactivo da cavidade na- permanecendo contudo por ser definida a
sal ou área cribriforme. Este tumor invade melhor abordagem terapêutica de acordo
os tecidos adjacentes em maior ou menor com o estado evolutivo da doença.
extensão e pode disseminar-se através da
corrente sanguínea ou linfática nos seus es- A radioterapia continua a ter um papel
tadios mais avançados. No entanto, os tu- preponderante no tratamento destes tumo-
mores que se desenvolvem ectopicamente na res que constituem um desafio terapêutico
região selar ou esfenoidal com característi- para os especialistas em radioterapia pela
cas histológicas de estesioneuroblastomas proximidade estreita do tumor a estruturas
são ainda mais raros. radiossensíveis, em que o factor limitativo
da administração de dose é a tolerância ra-
Dado que a maioria destes casos tem sido diógena desses tecidos normais, como os
encontrada em mulheres de meia-idade em olhos, os nervos ópticos, o quiasma óptico
estadios loco-regionalmente avançados, tem e o tronco cerebral.
sido defendido por alguns autores que po-
derão representar uma potencial entidade Pela raridade deste tumor, pela controvérsia
clínico-patológica específica.1 na abordagem destes casos e pelas poten-
cialidades terapêuticas actualmente dispo-
Estes tumores de crescimento silencioso, níveis, os autores descrevem a abordagem
sem sintomatologia inicial de alerta, apre- usada num um caso de estesioneuroblasto-
sentam-se sempre numa fase loco-regional ma da região selar em fase localmente avan-
avançada, com invasão de estruturas críti- çada.
cas, impossibilitando invariavelmente uma
ressecção cirúrgica completa ou major.
ESTESIONEUROBLASTOMA DA REGIÃO SELAR SIMULANDO UM MACROADENOMA DA HIPÓFISE.
APRESENTAÇÃO DE UM CASO CLÍNICO
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 59 anos de ida- to ao diagnóstico provável. Esta progressão
de, recorreu ao Hospital da Luz em finais de rápida do défice visual, bem como as dúvidas
Setembro de 2008 por quadro sintomático de iniciais quanto ao diagnóstico impuseram a
cefaleias, epistáxis e diminuição de visão com realização de uma cirurgia urgente.
hemianópsia bitemporal, sugestivo de paré-
sia do III par craniano, com quatro meses de A doente foi submetida em 6 de Janeiro de
evolução e de agravamento substancial nos 2009 a cirurgia por via transnasal e transes-
últimos dois meses. fenoidal, efectuando-se excisão parcial das
porções etmoidoesfenoidais do tumor. Não
Uma ressonância magnética (RM) realizada foram removidos os componentes selar e la-
em 24 de Novembro de 2008 revelou uma terais lesionais por envolvimento de ambas as
volumosa lesão expansiva extra-axial só- carótidas e seios cavernosos, assim como pela
lida com dimensões de 53 x 36 x 30 mm, extensa invasão óssea da base do crânio. Esta
associada a alargamento da sela turca por abordagem foi determinante não só para a
remodelação e erosão óssea esfenoidal, com caracterização histológica, mas também para
compressão do quiasma óptico, extensão la- uma rápida descompressão das vias ópticas,
teral e moldagem/invasão bilateral dos seios com melhoria imediata da acuidade visual e
cavernosos, extensão ao seio esfenoidal e cé- da hemianópsia bitemporal comprovada por
lulas etmoidais posteriores, prolongando-se campimetria oftalmológica de 19 de Feverei-
inferiormente pelos recessos pterigoideus bi- ro de 2009.
lateralmente e extensão posterior na cisterna
prépôntica. O diagnóstico anatomopatológico foi de es-
tesioneuroblastoma. O padrão morfológico
Laboratorialmente, apresentava insuficiência era o clássico, grau 2 de Hyams1 (Fig. 1A)
hipofisária parcial (corticotrófica) com uma com imunomarcação forte para a sinaptofisi-
hiperprolactinemia de 84 ng/mL, posterior- na e negatividade para citoqueratinas, aspec-
mente compensada farmacologicamente. to este importante que permite diferenciação
com adenomas hipofisários e com carcinoma
Foram equacionadas várias possibilidades de sinonasal neuroendócrino (Fig.1B).
diagnóstico diferencial, entre elas, um macro-
adenoma da hipófise, um craniofaringioma, O tumor foi estadiado como Kadish C e
uma metástase da base do crânio, um plas- T4N0M0 pelas classificações de Kadish2 e de
mocitoma, um linfoma, um carcinoma da Dulguerov e Calcaterra.3
nasofaringe, ou um cordoma.
Uma tomografia computorizada (TC) pós-
Embora a história e a caracterização imagio- operatória de 27 de Janeiro de 2009 confir-
lógica pudessem corresponder a um macro- mou exérese parcial e persistência de tumor,
adenoma da hipófise, a evolução em poucos com um volume de 50 x 35 x 25 mm, preen-
meses com instalação rápida de hemianópsia chendo os seios esfenoidais e com extensão
bitemporal, seguida por diminuição generali- superior e lateral condicionando destruição
zada da acuidade visual não é habitual nestes óssea da sela turca.
casos e levantou desde o início dúvidas quan-
263
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 2 Planeamento dosimétrico com sete campos conformacionais não coplanares, com cunhas
motorizadas de 60º no sistema XiO (CMS), individualizando-se a poupança do quiasma óptico, lobos
temporais e tronco cerebral
ESTESIONEUROBLASTOMA DA REGIÃO SELAR SIMULANDO UM MACROADENOMA DA HIPÓFISE.
APRESENTAÇÃO DE UM CASO CLÍNICO
Fig. 3 TC de planeamento (verde) e XVI (cone-beam CT) de verificação na posição de tratamento (rosa)
antes (A) e após (B) o registo automático de imagem (fusão), usando o software XVI Elekta. Visualiza-se
a branco a área de interesse para o registo de imagem
do volume alvo foi obtida com base no es- gem - XVI cone-beam CT, adquirido com o
tudo de uma TC de planeamento (Siemens protocolo padrão de cabeça e pescoço.
Emotion), de acordo com o protocolo do
Hospital da Luz e utilizando as imagens da No software do XVI Elekta, os desvios de
RM de Abril de 2009, tendo sido efectuada posicionamento foram determinados através
previamente uma fusão dos dois estudos. do registo automático de imagens da TC de
planeamento e do cone-beam CT (Fig. 3). O
O tratamento foi planeado com o sistema volume de interesse deste registo foi limitado
XiO (CMS, Elekta) definindo-se o tumor ao crânio da doente. A correcção dos desvios
ou Gross Tumor Volume (GTV), o Clinical de posicionamento nos 6 graus de liberdade
Target Volume (CTV) correspondente ao foi efectuada on-line antes do início de cada
tumor + margens de 5 mm e os órgãos de sessão de tratamento, através de uma mesa
risco, ou seja, os nervos ópticos, cristalinos, robótica (HexaPOD, Medical Intelligence).
glândulas lacrimais, quiasma óptico e os lo- Após a primeira sessão terapêutica foi efec-
bos temporais (Fig. 2). A aprovação do plano tuado um segundo XVI, de modo a verificar
de tratamento teve em consideração, tanto a imobilização adequada durante a sessão de
a conformidade e homogeneidade de dose tratamento.
para os volumes referidos, como os critérios
de tolerância de dose para os órgãos de risco A dose total administrada entre 18 de Maio
definidos. e 29 de Junho de 2009 foi de 54 Gy em 30
fracções, no isocentro, sendo a isodose de
O posicionamento da doente obedeceu a um 95% a envolvente do volume alvo.
protocolo de verificação diário através do sis-
tema de imagem volumétrica com kilovolta- A doente não desenvolveu qualquer toxicida-
265
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
Fig. 4 RM selar pós-cirurgia, pós-QT e pré-RT: imagens em T1 com gadolínio, coronal (A), axial (B) e
sagital (C) evidenciando volumoso tumor selar e supraselar com as extensões superior, condicionando
moldagem do quiasma óptico, laterais e posterior. RM selar 12 meses pós-RT: imagens em T1 com
gadolínio, coronal (D), axial (E) e sagital (F) evidenciando recidiva tumoral significativa com ausência de
expressão supraselar e compressão optoquiasmática
DISCUSSÃO
O estesioneuroblastoma é um tumor maligno vascularização, células uniformes com nú-
raro do neuroepitélio, com menos de 1 000 cleos com cromatina em sal e pimenta), é
casos descritos na literatura, e representa suportado pela marcação positiva para anti-
apenas cerca de 0,3% dos tumores malignos corpos como a cromogranina, a sinaptofisi-
do tracto aerodigestivo superior.3 Foi descrito na e enolase específica dos neurónios (NSE)
pela primeira vez em 19244 e só recentemen- bem como, ocasionalmente, pela presença de
te, através de estudos imunocitoquímicos e células sustentaculares S-100 positivas. A ne-
de microscopia electrónica, foi reconhecido gatividade para marcadores epiteliais ajuda
como uma entidade patológica distinta.5 no diagnóstico diferencial com outras neo-
plasias do tracto sinonasal com diferenciação
O ENB tem uma distribuição etária bimodal neuroendócrina, nomeadamente o carcinoma
predominante entre os 20 e 30 anos e entre sinonasal neuroendócrino indiferenciado e
os 60 e 70 anos.5 adenomas hipofisários.
nos estadios mais agressivos corresponderem pode disseminar-se para os gânglios linfáti-
à entidade designada de carcinoma sinonasal cos retrofaríngeos, subdigástricos, cervicais
indiferenciado e não a verdadeiros estesio- posteriores ou pré-auriculares. Também pode
neuroblastomas, pelo que a sua utilização em disseminar-se à distância, numa incidência
termos prognósticos tem sido abandonada incerta e que parece estar relacionada com
progressivamente. a histologia de alto grau e com os estadios
loco-regionalmente mais avançados.
Estes tumores têm sido objecto de análise
molecular e inicialmente os estudos aponta- O sistema de estadiamento estabelecido
vam para presença de genes de fusão do gru- de Kadish9 inclui três fases da doença
po EWS (sarcoma de Ewing), o que contudo ou estádios:
não foi confirmado em análises posteriores.
A - doença confinada à cavidade nasal,
O tumor desenvolve-se tipicamente na ca-
vidade nasal superior e estende-se habitual- B - doença confinada à cavidade nasal e seios
mente para as áreas contíguas. O desenvol- perinasais,
vimento ectópico, fora da região onde existe
o neuroepitélio olfactivo, é extremamente C - doença estendendo-se para além da cavi-
raro. O caso descrito pressupõe como pon- dade nasal ou seios perinasais.
to de partida a sela turca, com uma extensão
predominante para a cisterna suprasselar e Mais recentemente, em 1992, foi estabele-
recessos pterigoideus bilaterais, integrando cida outra classificação, designada Dulgue-
um grupo restrito de 15 casos relatados na rov e Calcaterra, baseada no sistema TMN
literatura desde 1975 até 2010.7,8 O ENB (Quadro I).10
CLASSIFICAÇÃO DE KADISH9
T1 Tumor envolvendo a cavidade nasal e/ou seios perinasais (excluindo o seio esfenoidal)
T2 Tumor envolvendo a cavidade nasal e/ou seios perinasais (incluindo o seio esfenoidal)
com extensão ou erosão da lâmina cribiforme
T3 Tumor estendendo-se para a órbita ou para a fossa craniana, sem invasão dural
T4 Tumor invadindo o cérebro
267
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
O tratamento mais adequado para o ENB técnicas de eleição, por permitirem uma ex-
permanece por definir claramente. Os doen- celente conformidade e homogeneidade de
tes com tumores localmente avançados ou dose e protecção máxima das estruturas crí-
de alto grau de malignidade deveriam rece- ticas normais adjacentes aos tumores.
ber tratamento agressivo com modalidades
combinadas. A ressecção endoscópica trans- Quanto à imobilização, diversos trabalhos
esfenoidal tem sido seleccionada como a revelaram que a radioterapia guiada por
abordagem de eleição para o ENB da região imagem usando máscaras termoplásticas
selar e esfenoidal.7,11 A cirurgia craniofacial para fixação da cabeça, permite obter uma
com uma abordagem bifrontal tem sido de- elevada precisão na administração do trata-
fendida por outros autores, considerando mento.14,15 Esta alta precisão é requerida de
que expõe melhor a base do crânio possi- modo a evitar um erro geográfico do alvo e
bilitando um maior grau de ressecabilidade sobredosagem dos órgãos críticos vizinhos.
tumoral.8 No entanto a invasão de estrutu- A RT guiada por imagem usando cone-beam
ras críticas, como as carótidas, impossibi- CT de kilovoltagem permite avaliar os des-
lita uma ressecção completa ou adequada. vios de posicionamento através do registo
A reconstrução da fossa craniana anterior é automático das imagens da TC de planea-
também uma fase crítica da intervenção ci- mento e do estudo de verificação cone-beam
rúrgica, com um risco inerente de fístula pós- CT efectuado na posição de tratamento.16
-operatória do líquido céfalo-raquidiano. A precisão do registo automático no softwa-
re XVI Elekta é extremamente elevada, ten-
Apesar de uma ressecção cirúrgica agressiva, do sido demonstrado através de estudos em
a recidiva local após cirurgia isolada ocorre fantomas, desvios inferiores a 0,5 mm.17,18
numa elevada percentagem de casos. É re- Todos os desvios, incluindo os rotacionais e
ferido um controlo local superior quando os translacionais, são corrigidos com a mesa
se realiza RT pós-operatória, comparativa- robótica, antes do início do tratamento.
mente à cirurgia isolada (87% vs 41%), com
inclusão de estadios mais avançados no gru- Este método de RT guiada por imagem per-
po submetido a modalidade combinada.12 mite eliminar os desvios de reposicionamen-
to com uma precisão extremamente elevada,
A radioterapia tem sido aconselhada nos sendo superior ao tratamento baseado ape-
casos avançados, mesmo após ressecção nas em coordenadas estereotáxicas.14,19
completa, por aumentar o controlo local do
tumor.11,12 A radioterapia guiada por imagem garan-
te uma precisão extremamente elevada e é
Ainda não se encontra definido o trata- hoje em dia usada por rotina no Hospital da
mento de radioterapia ideal no ENB, assim Luz. A excelente tolerância e o baixo risco
como a dose total de radiação a administrar; de complicações desta técnica encontram-
na maioria dos casos o controlo é realizado -se bem divulgados na bibliografia disponí-
com 45 e 65 Gy.13 vel.20,21
CONCLUSÕES
A maioria dos doentes com ENB encontra-se up prolongado, o que não foi ainda alcançado
em estadios loco-regionalmente avançados nesta doente. No entanto, os autores conside-
quando do diagnóstico. A raridade deste tu- ram que o ENB intracraniano deve ser tratado
mor, a sua localização atípica com invasão in- agressivamente, requerendo multimodalidade
tracraniana e a escassa experiência reportada terapêutica com cirurgia, radioterapia e, em
na literatura, torna difícil indicar recomenda- casos seleccionados, quimioterapia. A radiote-
ções terapêuticas como ideais. A história na- rapia deverá ser efectuada com técnicas mo-
tural do ENB está relacionada com uma alta dernas, como a radioterapia conformacional
percentagem de recidivas podendo ocorrer 3D guiada por imagem, de modo a garantir
por vezes vários anos depois do tratamento. A maior probabilidade de controlo local, menor
afirmação de sucesso da abordagem terapêuti- toxicidade e uma melhor qualidade de vida
ca usada no caso descrito carece de um follow- aos doentes.
BIBLIOGRAFIA
1. Mariani L, Schaller B, Weis J, Ozdoba C, Seiler RW. 8. Zhang L-W, Zhang M-S, Zhang JT, Li G-L, Luo L, Wang Z-C.
Esthesioneuroblastoma of the pituitary gland: a clinicopathological Management of intracranial invasive olfactory neuroblastoma.
entity? J Neurosurg 2004;101:1049-52. Chin Med J 2007;120:224-7.
2. Hymans VJ. Tumors of the upper respiratory tract and ear. In: 9. Kadish S, Goodman M, Wang C. Olfactory neuroblastoma:
Hymans VJ, Batsakis JG, Michaels L, eds. Atlas of tumor pathology. a clinical analysis of 17 cases. Cancer 1976;37:1571-6.
Second series, fascicle 25. Washinton, DC: Armed Forces Institute of
Pathology 1988;240-8. 10. Dulguerov P, Calcaterra T. Esthesioneuroblastoma: the UCLA
experience 1970-1990. Laryngoscope 1992;102:843-9.
3. Skarsgard DP, Groome PA, Mackillop WJ, et al. Cancers of the
upper aerodigestive tract in Ontario, Canada and United States. 11. Unger F, Haselsberger K, Walch C, Stammberger
Cancer 2000;88:1728-38. H, Papaefthymiou G. Combined endoscpic surgery and
radiosurgery as treatment modality for olfactory neuroblastoma
4. Berger L, Luc G, Richard D. L´esthesioneuroepitheliome olfactif. (esthesioneuroblastoma). Acta Neurochir (Wien) 2005;147:595-
Bull Assoc Franç Etude 1924;13:410-21. 601; discussion 601-2.
5. Stewart F, Frierson H, Levin P, Spaulding C. Esthesioneuroblastoma. 12. Foote RL, Morita A Ebersold MJ, et al. Esthesioneuroblastoma:
In: Williams JG, Krikorian MR, Green D, eds. Textbook of the role of adjuvant radiation therapy. Int J Radiat Oncol Biol Phys
uncommon cancer. Oxford: Wiley and Sons 1988:631-52. 1993;27:835-42.
6. Dulguerov P, Allal AS, Calcaterra TC. Esthesioneuroblastoma: 13. Benfari G, Fusconi M, Ciofalo A, et al. Radiotherapy alone for
a metaanalysis and review. Lancet 2001;2:683-90. local tumor control in esthesineuroblastoma. Acta Otorhinolaryngol
Ital 2008;28:292-7.
7. Lin JH, Tsai DH, Chiang YH. A primary sellar
esthesioneuroblastoma with unusual presentations: a case report
and reviews of literatures. Pituitary 2009;12:70-5.
269
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
14. Boda-Heggemann J, Walter C, Rahn A, et al. Repositioning 19. Guckenberger M, Meyer J, Vordermark D, et al. Magnitude
accuracy of two different mask systems-3D revisited: Comparison and clinical relevance of translational and rotational patient st-
using 3D/3D matching with cone-beam CT. Int J Radiat Oncol Biol up errors: A cone-beam CT study. Int J Radiat Oncol Biol Phys
Phys 2006;66:1568-75. 2006;65:934-42.
15. Guckenberger M, Baier K, Guenther I, et al. Reliability of the 20. Zabel A, Thilmann C, Milker-Zabel S, et al. The role
bone anatomy in image-guided stereotactic radiotherapy of brain of stereotactically guided conformal radiotherapy for local
metastases. Int J Radiat Oncol Biol Phys 2007;69:294-301. tumor control of esthesioneuroblastoma. Strahlenther Onkol
202;178:187-91.
16. Jaffray DA, Siewerdsen JH. Cone-beam computorized
tomography with a flat-panel imager: Initial performance 21. Daly ME, Chen AM, Bucci MK, El-Sayed I, Kaplan MJ, Eisele
characterization. Med Phys 2000;27:1311-23. DW. Intensity-modulated radiation therapy for malignancies of the
nasal cavity and paranasal sinues. Int J Radiat Oncol Biol Phys
17. Oldham M, Letourneau D, Watt L, et al. Cone-beam CT guided 2007;67:151-7.
radiation therapy: A model for on-line application. Radiother Oncol
2005;75:271-3. 22. Porter AB, Bernold DM, Giannini C, et al. Retrospective
review of adjuvant chemotherapy for esthesioneuroblastoma. J
18. Meyer J, Wilbert J, Baier K, et al. Positioning accuracy of cone- Neurooncol 2008;90:201-4.
beam computed tomography in combination with a HexaPOD robot
treatment table. Int J Radiat Oncol Biol Phys 2007;67:1220-28.
LOBULITE ESCLEROSANTE LINFOCÍTICA
DA MAMA. CASO CLÍNICO
Sclerosing lymphocytic lobulitis of the
breast. a case report
RESUMO Abstract
Os autores apresentam o caso clínico de uma The authors report the clinical case of a
doente com lobulite linfocítica esclerosan- bilateral sclerosing lobulitis of the breast in
te bilateral da mama, doença benigna cujo a female patient, a benign entity diagnosed
diagnóstico é essencialmente histológico, mas exclusively through histopathological means,
cuja apresentação clínica e imagiológica sus- in which where the clinical and imagiological
cita o diagnóstico diferencial de tumor ma- findings mimic often a malignant breast
ligno da mama. tumor.
271
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A lobulite linfocítica esclerosante faz par- Os critérios anatomopatológicos que defi-
te de uma constelação clinico-patológica nem esta entidade estão bem definidos e ca-
de entidades com nomes pluridiversos que racterizam-se por fibrose com hialinização
normalmente se agrupam na literatura sob do estroma com miofibroblastos epitelioides
a égide da “mastopatia diabética” e que se ocasionais, associada a infiltrado inflama-
caracterizam por esclerose estromal e infla- tório perivascular proeminente, periductal
mação ducto-lobular com tradução clínica e perilobular com predomínio de pequenos
e imagiológica.1 Descrita pela primeira vez linfócitos B, por vezes envolvendo e perme-
em 19842 como uma doença fibrótica da ando o epitélio dos lóbulos mamários com
mama em doente com diabetes mellitus tipo formação de lesões linfo-epiteliais e que
I e tiroidite, ficou denominada como “mas- condicionam, em estadios mais arrastados,
topatia diabética” pelos trabalhos subse- atrofia glandular.8
quentes.3-6
Apresenta-se clinicamente como massas du-
Trata-se de uma doença rara da mama, ras à palpação, mamograficamente como
fibro-inflamatória, caracterizada histologi- densidades assimétricas sem expressão fo-
camente por lobulite linfocítica, ductite e cal, únicas ou múltiplas, podendo coexistir
perivasculite com fibrose do estroma, que se distorções arquitecturais. Ecograficamente
apresenta sob a forma de um empastamento a apresentação é de massas hipoecogénicas
mamário e que tipicamente ocorre em mu- mal definidas, com forte atenuação poste-
lheres quer com diabetes mellitus tipo I de rior. A ressonância magnética com gadolinío
longa duração, quer com outros tipos de do- por vezes identifica massas sem realce, mas
ença auto-imune (neste caso designada por quando este está presente pode não permitir
“mastite linfocítica”). As associações que o diagnóstico diferencial com lesão maligna,
têm sido encontradas, tiroidite de Hashimo- incluindo o linfoma mamário.9-10
to e em doentes com vários auto-anticorpos
séricos sem diabetes, permitem admitir que A biópsia orientada por ecografia é o mé-
a patogénese é auto-imune.7 No entanto, todo de eleição para colheita de material
em alguns casos publicados não se registou para o exame histopatológico que permite
qualquer associação a outras doenças, como o diagnóstico.
aliás como ocorreu com o caso descrito nes-
te trabalho.
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 37 anos de lógico mamário, realizado 20 meses antes,
idade, referenciada pela presença de “zona tinha revelado alterações provavelmente
de maior consistência à palpação, dura, benignas à direita e compatíveis com a be-
na transição dos quadrantes superiores da nignidade à esquerda. Nos antecedentes fa-
mama esquerda”. O último estudo imagio- miliares constava tia materna com neoplasia
LOBULITE ESCLEROSANTE LINFOCÍTICA DA MAMA. CASO CLÍNICO
273
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
DISCUSSÃO
275
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Schmitt SJ, Collins LC. Biopsy interpretation of the breast 8. William PH, Rubin CM, Theaker JM. Sclerosing lymphocytic
reactive, inflammatory, and nonproliferative lesions. lobulitis of the breast. Clin Radiol 1995;50:165-7.
2. Soler NG, Khardori R. Fibrous disease of the breast, thyroiditis, 9. Valdez R, Thorson J, Finn WG, et al. Lymphocytic mastitis
and cheiroartrthropathy in type I diabettes mellitus. Lancet and diabetic mastopathy: a molecular, immunophenotypic, and
1984;1:193-5. clinicopathologic evaluation of 11 cases. Mod Pathol 2003;16:223-8.
3. Lakshman R, Clarke MJ, Putti T. Diabetetic fibrous mastopathy. 10. Utada Y, Watande T, Kajivara T, et al. A case of diabetic
Singapore Med J 2007;48:579-81. mastopathy with multiple lesions mimicking breast cancer. Breast
cancer 2003;10:371-8.
4. Ribeiro-Silva A. Lobulite linfocitária esclerosante em pacientes
com diabetes mellitus tipo 1. Medicina (Ribeirão Preto) 11. Lee AH, Zafrani B, Kafiri G, Rozan S, Millis RR . Sclerosing
2005;38:290-3. lymphocytic lobulitis in the male breast. J Clinic Pathol
1996;49:609-11.
5. Thorncroft K, Forsyth L, Desmond S, Audisio RA. The diagnosis
and management of diabetic mastopathy. Breast J 2007;13:607-13. 12. Oba M, Sasaki M, Li T, et al. A case of lymphocytic mastopaty
requiring differencial diagnosis from primary breast lymphoma.
6. Kudva YC, Reynolds C, O’Brien T, Powell C, Oberg AL, Crotty TB. Breast Cancer 2008;16:141-6.
Diabetic mastopathy or slerosing lymphocytic lobulitis, is strongly
associated with type I diabetes. Diabetes Care 2002;25:121-6.
7. Lammie GA, Bobrow LG, Staunton MD, Levison DA, Page G,
Millis RR. Sclerosing lymphocytic lobulitis of the breast—evidence
for an autoimmune pathogenesis. Histopathology 1991;19:13-20.
FÍSTULA ARTERIOVENOSA UTERINA.
CASO CLÍNICO
Uterine arteriovenous fistula. Case report
ADALGISA GUERRA
LEONOR RAMOS
RESUMO Abstract
As fístulas arteriovenosas uterinas são enti- Uterine arteriovenous fistulae are rare
dades raras na prática clínica. Clinicamente pathological entities in clinical practice. Its
apresentam-se com maior frequência sob a usual clinical presentation is an abundant
forma de menorragia abundante, sendo mui- menorrhagia, and asymptomatic cases are
to raras as doentes assintomáticas. Os auto- rare. The authors report the clinical case
res descrevem um caso clínico de fístula arte- of an iatrogenic asymptomatic uterine
riovenosa uterina assintomática iatrogénica, arteriovenous fistula following, probably,
adquirida provavelmente após curetagem an incomplete miscarriage with curetage,
por aborto incompleto, cujo diagnóstico foi whose diagnosis was well established by
bem estabelecido por meio de ecografia com means of color-Doppler ultrasonography
Doppler e correlação com ressonância ma- and correlation to magnetic resonance and
gnética e confirmado com angiografia. confirmed by angiography.
277
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
As fístulas arteriovenosas são ligações anó- po, estando menos de 100 casos descritos na
malas entre os vasos arteriais e venosos e literatura.4 As fístulas arteriovenosas uteri-
podem surgir em qualquer tecido do orga- nas adquiridas são mais comuns em mulhe-
nismo. Quando se trata de defeitos congé- res com mais de 30 anos de idade5 e surgem
nitos, designam-se malformações arteriove- normalmente após lesão do tecido uterino,
nosas (MAV) ou angiodisplasias. As MAV por doença trofoblástica, traumatismo pél-
uterinas têm origem numa anomalia do de- vico, curetagem, cesariana, endometriose,
senvolvimento embrionário e foram descri- infecção uterina, neoplasia cervical ou en-
tas pela primeira vez em 1926.1 Tal como as dometrial, dispositivo intra-uterino e expo-
fístulas arteriovenosas uterinas adquiridas, sição ao dietiletilbestrol.4
são situações clínicas raras. Em ambos os
casos, caracterizam-se histologicamente por A suspeita clínica de fístula arteriovenosa
uma estrutura formada por vasos de vários uterina é facilmente confirmada pelas suas
calibres, desde capilares a vasos com cama- características, quase sempre inequívocas,
da muscular de espessura diversa.2 Manifes- obtidas nos exames de imagem.
tam-se mais frequentemente sob a forma de
menorragia abundante, sendo os casos as- Os autores descrevem um caso de fístula
sintomáticos raros e normalmente achados arteriovenosa uterina assintomática iatrogé-
imagiológicos. nica consequente, provavelmente, de cureta-
gem por aborto incompleto.
Apesar das fístulas arteriovenosas uterinas
poderem ser congénitas (MAV) ou adquiri-
das,3 a maioria enquadra-se no segundo gru-
CASO CLÍNICO
Mulher de 38 anos de idade, saudável, se- curetagem, foi-lhe identificada uma massa
guida na consulta de Ginecologia do Hospi- uterina com cerca de 3 cm de diâmetro em
tal da Luz. Apresentava como antecedentes topografia ístmica esquerda, transmural, na
pessoais uma cesariana há 18 meses e uma região correspondente à histerorrafia prévia.
curetagem uterina por aborto retido há 3
meses, ambas realizadas neste hospital. Tan- A doente repetiu a ecografia pélvica com
to a cesariana como a curetagem uterina sob Doppler na qual foi observada uma massa
controlo ecográfico foram realizadas sem in- pélvica, de morfologia nodular, com ima-
tercorrências, não se identificando qualquer gens líquidas serpenginosas no seu interior,
anomalia uterina ou hemorragia excessiva. as quais correspondiam a vasos com preen-
Após a última intervenção a doente mante- chimento total no power-Doppler e padrão
ve-se assintomática, com ciclos menstruais em mosaico alternando de sinal no color-
regulares e de fluxo normal. Num exame Doppler, sugestivo de fluxo com diferentes
ecográfico pélvico de rotina posterior à sentidos. As curvas espectrais correspon-
FÍSTULA ARTERIOVENOSA UTERINA. CASO CLÍNICO
Fig. 1 Massa ecogénica uterina com nódulos anecoides no seu interior na espessura do miométrio na eco-
grafia pélvica endovaginal (A), preenchendo estes espaços anecóides com sinais coloridos homogéneos no
power-Doppler (B) e com sinais coloridos tipo mosaico no color-Doppler (C)
diam a um fluxo vascular de média resistên- neste caso não foram consideradas tendo em
cia (Fig. 1). conta a história clínica e o facto da ßHCG
ser negativa. O síndrome de congestão pél-
O estudo foi complementado com angiogra- vica seria também outra hipótese a pensar.
fia com ressonância magnética (angio-RM) Contudo, contrariamente ao que acontece-
pélvica, que revelou uma massa na espes- ria nesta circunstância, os restantes vasos
sura do miométrio com contacto endome- uterinos, peri-uterinos e as veias ováricas
trial, com sinal heterogéneo em T1 e T2, não estavam dilatados.
apresentando múltiplas imagens nodulares e
serpenginosas com void de sinal nestas duas A hipótese diagnóstica de fístula arterio-
sequências, as quais preenchiam com con- venosa uterina uterina foi confirmada por
traste com a mesma intensidade e da mesma angiografia selectiva das artérias uterinas,
forma dos restantes vasos pélvicos (Fig. 2). a qual demonstrou vasos uterinos tortuosos
e dilatados com a artéria uterina esquerda
Perante estas imagens a primeira hipótese dilatada e preenchimento precoce das veias
colocada foi de fístula arteriovenosa uteri- uterinas homolaterais (Fig 3).
na pós curetagem. As outras hipóteses ima-
giológicas que eventualmente poderiam ter Não se realizou qualquer tipo de tratamento
uma manifestação imagiológica semelhante pelo facto da doente ser assintomática, op-
seriam as doenças do trofoblasto, as quais tando-se pela colocação de implante subcu-
Fig 2. Massa com múltiplos void de sinal no seu interior, maioritariamente com hipossinal em T1 (A.
sequência T1 axial), sinal heterogéneo em T2 e com disrupção da zona de junção e aparente conexão
com a cavidade endometrial (B. sequência T2 axial, C. sequência T2 sagital, D. sequência T2 coronal).
No estudo angiográfico por RM (E) observam-se vasos tortuosos e dilatados no interior da lesão
279
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
tâneo contraceptivo com etonogestrol como mática, estando planeado no seu seguimen-
método contraceptivo. to uma nova reavaliação ecográfica.
Fig 3. Na angiografia clássica observa-se o ramo periférico da artéria uterina que vasculariza a lesão, a
comunicação artériovenosa (A) e o preenchimento precoce com contraste da veia uterina (B)
COMENTÁRIOS
No caso descrito, foi certamente a cureta- color-Doppler estes espaços quísticos pre-
gem uterina por aborto retido, a agressão enchem com sinais coloridos tipo mosaico
que deu origem à formação da fístula ar- representando o fuxo turbulento. Na análise
teriovenosa uterina, uma vez que nas eco- espectral-Doppler os vasos arteriais e veno-
grafias, prévias e intra-curetagem uterina, a sos apresentam fluxos de alta velocidade e
qual foi realizada sem intercorrências, não com baixa resistência.6
estava presente qualquer alteração vascular.
Ao contrário do habitual, a doente descrita Na angio-TC, as fístulas arteriovenosas ute-
neste trabalho manteve-se sempre assinto- rinas manifestam-se como uma massa hiper-
mática. Este facto pode provavelmente ser vascular na fase arterial dominante do con-
explicado pelo curto espaço de tempo entre traste com vasos dilatados.7 Nas sequências
a curetagem e o diagnóstico (3 meses). básicas da RM (T1 e T2) são representadas
por uma massa com múltiplos void de sinal
Têm sido usados vários métodos no dia- no seu interior, podendo ter também sinal
gnóstico de fístulas arteriovenosas uterinas: hiperintenso em T1 em relação com sangue.
ecografia pélvica, ecodoppler, ressonância Habitualmente, observa-se disrupção da
magnética (RM) e tomografia computoriza- zona de junção em T2 com envolvimento do
da (TC) com contraste e protocolo angio- miométrio. Estes vasos complexos captam
gráfico. Na ecografia, as fístulas arteriove- contraste com intensidade semelhante aos
nosas uterinas manifestam-se como massas vasos normais e no estudo angiográfico por
com espaços anecoides no seu interior. No RM é possível delimitar os vasos que ali-
FÍSTULA ARTERIOVENOSA UTERINA. CASO CLÍNICO
Sempre que existam dúvidas num dia- No caso descrito, visto tratar-se de uma
gnóstico provável de fístulas arteriovenosas mulher assintomática e fértil optou-se pela
uterinas, o método de abordagem definiti- vigilância e colocação de implante contra-
vo é a angiografia.6 O diagnóstico diferen- ceptivo subcutâneo com etonogestrel em
cial imagiológico não compreende muitas alternativa aos contraceptivos orais utiliza-
entidades, pelo facto da sua manifestação dos previamente pela doente. A mudança de
imagiológica tanto no estudo ecográfico método contraceptivo teve como objectivo
com Doppler, como na angiografia por TC evitar a sua toma irregular e futuras menor-
ou por RM ser praticamente patognomóni- ragias tão comuns neste tipo patologia.
ca. Contudo, existem outras entidades que
podem coexistir com este aspecto, como as
AGRADECIMENTOS
As autoras agradecem à equipa de Radiolo- grafia, bem como aos técnicos do Centro de
gia de Intervenção do Centro de Imagiologia Imagiologia do Hospital da Luz pelo empe-
do Hospital da Luz, na pessoa da Dr.ª Hélia nho e profissionalismo com que realizam o
Coimbra, a cedência das imagens de angio- seu trabalho.
281
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
BIBLIOGRAFIA
1. Dubreil G, Loubat E. Aneurysme cirsoide de l’uterus.Ann Anat 6. Polat P, Suma S, Kantarcy M, Alper F, Levent A. Color Doppler US
Pathol 1926;3:697-718. in the evaluation of uterine vascular abnormalities. RadioGraphics
2002;22:47-53.
2. Lowenstein L, Solt I, Deutsch M, Kerner H, Amit A. A life-
threatening event: uterine cervical arteriovenous malformation. 7. Hricak H, Akin A, Sala E, Asher S, Levine D, Reinhold C. Uterine
Obstet Gynecol 2004;103:1073-75. AVM. Section 2: Uterus. In: Hricak H, eds. Diagnostic Imaging:
Gynecology. Elsevier Saunders, Amirsys Inc., 2007;206-211.
3. Pastore A, Carnevale F, Moreira A, Kano A, Cerri G. Diagnóstico
de malformação arteriovenosa uterina por meio de ultra-sonografia 8. Lim AKP, Agarwal R, Seckl MJ, Newlands ES, Barrett NK,
com doppler colorido e achados à ressonância magnética: relato de Mitchell AWM. Embolization of bleeding residual uterine vascular
caso. Radiol Bras 2004;37(5):377-80. malformations in patients with treated gestational trophoblastic
tumors. Radiology 2002;222:640-4.
4. Brown J, Asrat T, Epstein H, Oglevie S, Goldstein B. Contemporary
diagnosis and management of a uterine arteriovenous malformation.
Obstet Gynecol 2008;112:467-70.
RESUMO Abstract
A angiopatia amilóide cerebral (AAC) é uma Cerebral amyloidal angiopathy is a
causa importante de hemorragia intracra- significant cause of intracranial haemorrhage
niana na população com idade superior a 65 in patients older than 65 years, being
anos, estimando-se que seja responsável por responsible for 29 – 50% of all spontaneous
29% a 50% de todas as hemorragias espon- haemorrhages in this particular age group.
tâneas, neste particular grupo etário. Neste In this paper, the authors report the
artigo os autores apresentam um caso clíni- clinical case of an amyloid encephalopathy
co de encefalopatia amilóide com manifes- presenting with imaging features of brain
tações imagiológicas de lesão expansiva in- space occupying lesion. The presence
tra-axial cerebral. A presença de um padrão of a pattern of brain haemorrhages and
de hemorragias/microhemorragias intracra- microbleeds compatible with cerebral
nianas compatível com AAC e a sua regres- amyloid angiopathy and the later regression
são com o decorrer do tempo confirmaram of the imaging findings, confirmed this
este diagnóstico. A encefalopatia amilóide é diagnosis. Amyloid encephalopathy is
uma forma clínica pouco frequente de AAC, an uncommon manifestation of cerebral
que pode simular uma lesão expansiva in- amyloid angiopathy, that can mimic
tracraniana, devendo ser incluída no dia- an expansible intracranial lesion, and
gnóstico diferencial de lesões intracranianas should be considered in the differential
com efeito de massa, sempre que associada diagnosis of brain lesions with mass effect,
a um padrão compatível com múltiplas he- whenever a pattern of multiple intracranial
morragias intracranianas. haemorrhages and microbleeds is found.
283
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
INTRODUÇÃO
A hemorragia intracraniana é a segunda A angiopatia amilóide cerebral (AAC) é
causa mais frequente de acidente vascular uma causa importante de hemorragia intra-
cerebral (AVC), logo após os infartos isqué- cerebral na população com idade superior a
micos de natureza trombótica e embólica.1 65 anos, sendo responsável por 29 – 50% de
A hemorragia intracraniana de causa não todas as hemorragias espontâneas neste gru-
traumática é responsável por cerca de 8 - po etário1,6,7 e tendo um elevado risco anual
15% dos AVC, mas em alguns países a sua de rehemorragia, estimado em 10%.1
incidência pode atingir 25% dos AVC.1-3 De
um modo geral, a incidência de hemorragia Neste artigo os autores apresentam um caso
intracraniana não traumática varia entre de encefalopatia amilóide com manifesta-
12-20 por 100 000, aumentando com o gru- ções imagiológicas de lesão expansiva intra-
po etário, ou seja duplicando a sua incidên- axial cerebral.
cia em cada década.1,4,5
CASO CLÍNICO
Doente do sexo feminino, de 84 anos de ida- ca (RM CE) que sugeriu a possibilidade
de, seguida em ambulatório em consulta de de encefalopatia amilóide, demonstrando
psiquiatria por depressão e demência, que a presença de extensas áreas confluentes
condicionavam alterações funcionais rele- de hipersinal T2 córtico-subcortical, pre-
vantes nas actividades de vida diária, com dominantemente subcortical, hemisféricas
dependência total de terceira pessoa. Estava cerebrais bilaterais em topografia frontal,
medicada em ambulatório com galantami- parietal e temporal de expressão assimétri-
na, venlafaxina, sinvastatina e acido acetil- ca, sendo maior o envolvimento subcortical
salicílico. e temporo-occipito-parietal direito. Estas
lesões tinham ligeiro efeito de massa com
É referenciada à consulta de Neurocirur- moldagem do corno occipital e átrio-ven-
gia do Hospital da Luz após a realização tricular direitos. Associavam-se múltiplas
de tomografia computorizada (TC) cranio- microhemorragias córtico-subcorticais, em
encefálica realizada noutra instituição, que topografia sobreponível às áreas de lesão da
sugeriu a hipótese diagnóstica de lesão(s) substância branca (Fig. 1).
expansiva(s) intracranianas(s).
O electroencefalograma (EEG) efectuado
Na avaliação clínica efectuada salientava-se, demonstrou actividade lenta e difusa da ac-
de positivo, o défice generalizado das fun- tividade de base, com associada actividade
ções nervosas superiores, nomeadamente ao lenta fronto-temporal e temporal posterior
nível da compreensão de material auditivo- bilateral e ausência de actividade epiléti-
verbal complexa e na capacidade mnésica. ca. A restante avaliação imagiológica (TC
toraco-abdomino-pélvica) e laboratorial
Realizou ressonância magnética encefáli- não demonstrou alterações valorizáveis,
ENCEFALOPATIA AMILÓIDE SIMULANDO LESÃO EXPANSIVA INTRACRANIANA. CASO CLÍNICO
Figura 2. RM encefálica de controlo aos 3 meses. Redução das dimensões e do efeito de massa da
lesão da substância branca subcortical temporo-occipito-parietal direita, com detecção de novo de
hemorragia subcortical parietal. (A,B) Axiais T2 DF (C) Axial T2*
DISCUSSÃO
A AAC é, cada vez mais, reconhecida como em doentes com idade superior a 65 anos,1,8-
uma importante causa de hemorragia intra- 12
Caracteriza-se predominantemente pela
craniana, sobretudo de hematomas lobares, deposição de amyloid-ß (Aß) nas artérias e
285
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
CONCLUSÃO
A encefalopatia é uma forma clínica pouco diferencial de lesões com efeito de massa
frequente de AAC, que se pode manifestar intracranianas, sempre que associada a um
sob a forma de lesão expansiva intracra- padrão de múltiplas hemorragias intracra-
niana, devendo ser incluída no diagnóstico nianas.
REFERÊNCIAS
1. Qureshi AI, Tuhrim S, Broderick JP, Batjer HH, Hondo H, 6. Okazaki H, Whisnant JP. Clinical pathology of hypertensive
Hanley DF. Spontaneous intracerebral hemorrhage. N Engl J Med intracerebral hemorrhage. In Mizukami M, Kogure K, Kanaya H,
2001;344:1450-60. Yamori Y, eds. Hypertensive Intracerebral Hemorrhage. New York:
Raven Press Publishers, 1983;177-80.
2. Kannel WB, Wolf PA, Verter J, McNamara PM. Epidemiologic
assessment of the role of blood pressure in stroke: The Framingham 7. Yamada M, Tsukagoshi H, Otomo E, Hayakawa M. Cerebral
Study 1970. JAMA 1996; 276:1269-78. amyloid angiopathy in the aged. J Neurol 1987;234:371-6.
3. Kimura, Y, Taishita, S, Muratani, H, et al. Demographic study of 8. Ojemann RG, Heros RC. Spontaneous brain hemorrhage. Stroke
first-ever stroke and acute myocardial infarction in Okinawa, Japan. 1983;14:468-75.
Intern Med 1998; 37:736-45.
9. Wakai S, Kumakura N, Nagai M. Lobar intracerebral
4. Gebel, JM, Broderick, JP. Intracerebral hemorrhage. Neurol Clin hemorrhage: a clinical, radiographic, and pathological study of 29
2000; 18:419-38. consecutive operated cases with negative angiography. J Neurosur
1992;76:231-8.
5. Broderick, JP, Brott, T, Tomsick, T, et al. Intracerebral hemorrhage
more than twice as common as subarachnoid hemorrhage. J 10. Vinters HV. Cerebral amyloid angiopathy: a critical review.
Neurosurg 1993;78:188-91. Stroke 1987;18:311-24.
287
CASOS CLÍNICOS HOSPITAL DA LUZ
11. Vonsattel JP, Myers RH, Hedley-Whyte ET, Ropper AH, Bird 19. Caulo M, Tampieri D, Brassard R, Christine Guiot M, Melanson
ED, Richardson EP Jr. Cerebral amyloid angiopathy without and D. Cerebral amyloid angiopathy presenting as nonhemorrhagic
with cerebral hemorrhages: a comparative histological study. Ann diffuse encephalopathy: neuropathologic and neuroradiologic
Neurol 1991;30:637-49. manifestations in one case. AJNR 2001;22:1072-6.
12. Masuda J, Tanaka K, Ueda K, Omae T. Autopsy study of 20. Oh U, Gupta R, Krakauer JW, Khandji AG, Chin SS, Elkind M.
incidence and distribution of cerebral amyloid angiopathy in Reversible leukoencephalopathy associated with cerebral amyloid
Hisayama, Japan. Stroke 1988;19:205-10. angiopathy Neurology 2004;62:494-7.
13. Revesz T, Holton JL, Lashley T, et al. Genetics and molecular 21. Safriel Y, Sze G, Westmark K, Baehring J. MR spectroscopy in
pathogenesis of sporadic and hereditary cerebral amyloid the diagnosis of cerebral amyloid angiopathy presenting as a brain
angiopathies. Acta Neuropathol 2009;118:115-30. tumor. AJNR 2004; 25:1705-8.
14. Knudsen, KA, Rosand, J, Karluk, D, Greenberg, SM. Clinical 22. Osumi AK, Tien RD, Felsberg GJ, Rosenbloom M. Cerebral
diagnosis of cerebral amyloid angiopathy: Validation of the Boston amyloid angiopathy presenting as a brain mass. AJNR 1995;16(4
criteria. Neurology 2001;56:537-9. Suppl):911-5.
15. Chao CP, Kotsenas AL, Broderick DF. Cerebral amyloid 23. De Broucker T, Hénin D, Claquin G, et al. Cerebral amyloid
angiopathy: CT and MR imaging findings. Radiographics 2006; angiopathy presenting as a pseudotumor: 2 cases with spontaneously
26:1517-31. favorable outcomes Rev Neurol (Paris) 2000;156:859-63.
16. Gray F, Dubas F, Roullet E, Escourolle R. Leukoencephalopathy 24. Gandhi D, Wee R, Goyal M. CT and MR imaging of
in diffuse hemorrhagic cerebral amyloid angiopathy. Ann Neurol intracerebral amyloidoma: case report and review of the literature.
1985;18:54-9. AJNR 2003;24:519-22.
17. Loes DJ, Biller J, Yuh W, et al. Leukoencephalopathy in cerebral 25. Kloppenborg RP, Richard E, Sprengers ME, Troost D,
angiopathy: MR imaging in four cases. AJNR 1990;11:485-8. Eikelenboom P, Nederkoorn PJ. Steroid responsive encephalopathy
in cerebral amyloid angiopathy: a case report and review of
18. Sarazin M, Amarenco P, Mikol J, Dimitri D, Lot G, Bousser MG. evidence for immunosuppressive treatment. J Neuroinflammation
Reversible leukoencephalopathy in cerebral amyloid angiopathy 2010;9:7-18.
presenting as subacute dementia. Eur J Neurol 2002;9:353-8.