Professional Documents
Culture Documents
Etnoecologia ou Etnoecologias?
Encarando a diversidade conceitual
Apresentação
A etnoecologia é um campo de conhecimentos que
foi designado formalmente no meio acadêmico há
pouco mais de meio século e tem gerado muitas
discussões, inclusive em seus aspectos teóricos e
conceituais. Ainda que a quantidade de publicações
e de autores tenha aumentando nos últimos anos,
são muitas ainda as dúvidas e imprecisões
encontradas. Muitas destas, certamente, têm sua
gênese no fato de a etnoecologia estar situada nas
interfaces entre conhecimentos distintos (porém
relacionáveis) como as ciências naturais, sociais e
humanas, em um sistema que inclui inter, multi e
transdisciplinaridades. Este capítulo, longe de
pretender resolver definitivamente essas questões,
retoma-as para lançar algumas luzes sobre a
diversidade conceitual existente no campo da
etnoecologia, visando contribuir para uma melhor
compreensão e valorização dos saberes locais
relacionados aos recursos naturais e seu manejo.
Introdução
E é possível fazer pontes que atravessem os rios
sem colunas ou qualquer outro meio de
sustentação (...). Mas não precisas ficar
preocupado se não existem ainda, porque não
quer dizer que não existirão. (ECO 1986)
1
Usa-se “etnociência clássica”, neste contexto, para referir-se à etnociência praticada nos
EUA, a partir da segunda metade do século XX, diferenciando-a de outras abordagens
semelhantes (e aproximadamente simultâneas) desenvolvidas por europeus como Claude
Lévi-Strauss e André-Georges Haudricourt (Marques 2002; Campos 2002)
Etnoecologia ou Etnoecologias? 19
Tabela 2. (Continuação)
AUTORES E DEFINIÇÕES E COMENTÁRIOS
TEMAS
Etnoecologia “Percepções indígenas das divisões ‘naturais’ no mundo
(Frecchione et biológico e das relações solo-planta-animal-homem
al. 1989) dentro de cada divisão. Essas categorias ecológicas,
cognitivamente definidas, não existem isoladamente;
portanto a etnoecologia deve também lidar com as
percepções das inter-relações entre as divisões naturais”.
Etnoecologia “Um modo de abordagem da relação entre os seres
(Nazarea humanos e o ambiente natural, enfatizando o papel da
1999) cognição na organização do comportamento”.
Etnoecologia “... o estudo das interações entre a humanidade e o resto
(Marques da ecosfera, através da busca da compreensão dos
1995). sentimentos, comportamentos, conhecimentos e crenças
a respeito da natureza, característicos de uma espécie
biológica (Homo sapiens) altamente polimórfica,
fenotipicamente plástica e ontogeneticamente dinâmica,
cujas novas propriedades emergentes geram-lhe
múltiplas descontinuidades com o resto da natureza. Sua
ênfase, pois, deve ser na diversidade biocultural e o seu
objetivo principal, a integração entre o conhecimento
ecológico tradicional e o conhecimento ecológico
científico ”
Etnoecologia “...o campo de pesquisa (científica) transdisciplinar que
(Marques estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças),
2001). sentimentos e comportamentos que intermediam as
interações entre as populações humanas que os possuem
e os demais elementos dos ecossistemas que as incluem,
bem como os impactos ambientais daí decorrentes”
2
Nos casos em que o saber local fornecer informações novas e inesperadas sobre algo que
ainda não tenha sido publicado formalmente no meio acadêmico a respeito de algum
organismo vivo ou de suas relações ecológicas, pode surgir a oportunidade de gerar novas
hipóteses a serem testadas formalmente, de modo a estabelecer uma “ponte metodológica e
teórica para interligar a pesquisa científica com o conhecimento tradicional” (Posey 2001).
3
A expressão inglesa “indigenous” (e.g. “indigenous knowledge”, “indigenous soil
knowledge”, “indigenous knowledge about soils”) é freqüente na literatura etnocientífica,
significando aproximadamente “autóctone”, não somente em referência a populações
“tribais”.
28 Alves & Souto (2010)
“Nós pescador também a gente tem que reparar as coisas. Tem que
pesquisar também porque a gente tem que saber como trabalha o marisco.
A gente tem que ter a curiosidade de procurar saber como tá trabalhando
o marisco. Eu não pesco à toa não! Porque a pesca é uma pesquisa na
natureza. Você tem que procurar pesquisar ela. Você tem que saber como
o marisco anda, como dorme, aonde ele vai dar. Você tem que pesquisar
isso tudo, tá entendendo?”
4
Considera-se aqui o termo “local” na mesma acepção sugerida por Winkler-Prins (1999)
para “local soil knowledge” (saber pedológico local): conhecimento de propriedades e manejo
do solo por pessoas vivendo num determinado ambiente por um determinado período de
tempo”.
5
No dicionário “Aurélio” (http://www1.uol.com.br/bibliot/), “-logo” consta como elemento de
composição que significa ‘palavra’, ‘tratado’, ‘estudo’, ‘ciência’; ‘que estuda’, ‘que trata’.
Capturado em junho de 2004.
30 Alves & Souto (2010)
Figura 1. Uma etnoecóloga considera dois modelos diferentes de apropriação humana dos
ecossistemas: o seu (à direita) e o de uma informante camponesa (à esquerda). A camponesa
realiza suas práticas produtivas (C = praxis) a partir de suas próprias crenças (A = kosmos) e
conhecimentos (B = corpus). A etnoecóloga também se apropria simbolicamente (A’),
cognitivamente (B’) e materialmente (C’) do ecossistema. Adaptado de Toledo (1992) e
Barrera-Bassols & Toledo (2005). Foto: Ângelo G. C. Alves.
6. Etnoecologia no Brasil
Entre os primeiros autores que se basearam explicitamente em
teorias e métodos da etnociência clássica para estudar práticas e
conhecimentos locais de uma população brasileira a respeito do ambiente
natural, pode-se destacar Johnson (1971; 1972). A partir de um trabalho de
campo realizado em 1966-67 com “moradores” de uma fazenda no sertão
do Ceará, este autor detectou oito categorias locais de “terras”: “roçado
novo”, “capoeira”, “capoeira velha”, “campestre”, “coroa”, “rio”, “lagoa” e
“salgada”. Naquele contexto, dois critérios principais eram usados pelos
camponeses para estabelecer distinções: a fertilidade (“terras fracas” e
“terras fortes”) e a capacidade de retenção de umidade (“terras quentes” e
“terras frias”). Observou ainda uma “considerável” correspondência entre o
conhecimento (dados cognitivos) das “terras” e a sua utilização agrícola
(dados comportamentais) pelos camponeses. Etnoecologia foi por ele
32 Alves & Souto (2010)
6
Comparando as abordagens êmica e ética (também chamadas, respectivamente, “emicista e
“eticista”), Harris (2000) salientou que a primeira constitui-se de descrições e interpretações
que enfatizam o ponto de vista dos participantes, enquanto nesta última enfatiza-se o ponto de
vista dos observadores. Assim, os enunciados êmicos descrevem os sistemas sociais de
pensamento e comportamento cujas distinções, entidades ou fatos se constituem de contrastes
e discriminações percebidos pelos próprios participantes como similares ou diferentes, reais,
representativos, significativos ou apropriados. Os enunciados éticos, por sua parte, dependem
de distinções consideradas apropriadas por uma comunidade de observadores com instrução
científica formal. Em estudos etnoecológicos, os participantes podem ser camponeses,
indígenas, ou mesmo populações urbanas, e os observadores podem ser pessoas com formação
acadêmica relacionada ao tema da pesquisa.
34 Alves & Souto (2010)
Referências
1. Agrawal, A. 1995. Indigenous and scientific knowledge. Indigenous Knowledge
and Development Monitor 3(3): 3-38.
3. Alves, A.G.C.; Silva, I.F.; Queiroz, S.B. & Rosas, M.R. 2007. Sodium-affected
Alfisols as known by peasants and agronomists in the Agreste region, State of
Paraíba. Scientia Agricola 64(5): 495-505.
4. Alves, A. G. C.; Souto, F.J.B. & Leite, A.M. 2002. Etnoecologia dos cágados-
d’água Phrynops spp. (Testudinomorpha: Chelidae) entre pescadores artesanais no
açude Bodocongó, Campina Grande, Paraíba, nordeste do Brasil. Sitientibus, Série
Ciências Biológicas 2(1/2): 62-68.
15. Conklin, H. 1954b. The relation of the Hanunóo to the plant world. Tese de
Doutorado (Antropologia). New Haven, Yale University.
17. Fowler, C.S. 1977. Ethnoecology, pp. 215-243. In: Hardesty, D.L. Ecological
Anthropology. Nova Iorque, John Wiley & Sons.
19. Frechione, J.; Posey, D.A. & Silva, L.F. 1989. The perception of ecological
zones and natural resources in the Brazilian Amazon: an ethnoecology of Lake
Coari. Advances in Economic Botany 7:260-282.
36 Alves & Souto (2010)
21. Hecht, S.B. & Posey, D.A. 1989. Preliminary results on soil management
techniques of the Kayapó indians. Advances in Economic Botany 7: 174-188.
26. Lago, A. & Pádua, J.A. 1991. O que é ecologia. 10. ed. São Paulo, Brasiliense.
32. McCurdy, D.W.; Spradley, J.P.; Shandy, D.J. 2005. The cultural experience:
ethnography in complex society. Long Grove (Illinois), Waveland Press.
34. Moran, E.F. 1981. Developing the amazon. Bloomington, Indiana University.
36. Murray, S.O. 1982. The dissolution of “classical ethnoscience”. Journal of the
History of the Behavioral Sciences 18: 163-175.
40. Pawluk, R.R.; Sandor, J.A. & Tabor, J.A. 1992. The role of indigenous soil
knowledge in agricultural development. Journal of Soil and Water Conservation.
47(4): 289-302.
41. Posey, D.A. 1986. Etnobiologia: Teoria e Prática. pp 15-25. In: Ribeiro, B.
Suma Etnológica Brasileira. Vol. 1, Etnobiologia. Petrópolis, Vozes.
42. Posey, D.A. 2000. Introductory statements. p 5. In: Barrera-Bassols, N. & Zinck
J.A. Ethnopedology in a worldwide perspective. Enschede, International Institute
for Aerospace and Earth Sciences (ITC).
43. Posey, D.A. 1979. Kayapó controla inseto com uso adequado do ambiente.
Revista de Atualidade Indígena 3(14): 47-58.
45. Posey, D.A. & Overall, W.L. (orgs). 1990. Ethnobiology: implications and
applications. In: International Congress of Ethnobiology. Belém, Museu Paraense
Emílio Goeldi.
49. Roth , W.E. & Etheridge, R. 2010. Ethnological Studies Among The North-
West-Central Queensland Aborigines. Charleston, BiblioBazaar (lançado
originalmente em 1897).
50. Serres, M. 1999. Roda Viva. Entrevistador: Paulo Markun. São Paulo, TV
Cultura. DVD (ca 55 min) Legendado.
52. Sturtevant, W.C. 1964. Studies in ethnoscience. In: Romney, A.K. &
D’andrade, R.G. Transcultural Studies in Cognition. American Anthropologist
66(3): 99-131.
54. Toledo, V.M. 1992. What is Ethnoecology? Origins, scope and implications of
a rising discipline. Etnoecológica 1(1): 5-21.
56. Vale-Júnior, J.F.; Schaefer, C.E.G.R. & Costa, J.A.V. 2007. Etnopedologia e
transferência de conhecimento: diálogos entre os saberes indígena e técnico na
Terra Indígena Malacacheta, Roraima. Revista Brasileira Ciências do Solo 31(2):
403-412.
58. Warren, D.M.; Slikkerveer, L.J. & Brokensha, D. 1995. The cultural
dimensions of development: indigenous knowledge systems. Londres,
Intermediate Technology Publications.
59. Whiteford. LM. 1997. The ethnoecology of dengue fever. Med. Anthropol. Q.
11(2): 202-23.
60. Williams, B.J. 1975. Aztec soil science. Boletín del Instituto de Geografía
(UNAM) 7:115-120.
Etnoecologia ou Etnoecologias? 39
62. Winkler-Prins, A.M.G.A. 1999. Local soil knowledge: a tool for sustainable
land management. Society and Natural Resources 12: 151-161.
63. Winkler-Prins, A.M.G.A. 2001. why context matters: local soil knowledge and
management among an indigenous peasantry on the lower amazon foodplain,
Brazil. Etnoecológica 5(7): 6-20.
64. Winkler-Prins, A.M.G.A. & Sandor, J. A. 2003. Local soil knowledge: insights,
applications and challenges. In: Winkler-Prins, A.M.G.A. & Sandor, J. A.
Ethnopedology. Geoderma 111 (3-4): 165-170.
65. Zimmerer, K.S. 1994. Local soil knowledge: answering basic questions in
highland Bolivia. J. Soil Water Conserv. 49(1): 29-34.