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Uma publicação do INSTITUTO CARIOCA DE CRIMINOLOGIA
RELUME � DUMARÁ
)
DIREITO
l/Crime Organizado":
uma categorização
frustrada
EUGENIO RAÚL ZAFFARONI
45
acerca do delito multitudinário, dan mesmo remotos, porque entram em
do lugar a várias valorações das mul contradição com as próprias premis
tidões (1) e da responsabilidade pe sas classificatórias. É absolutamente
nai de seus líderes e condutores. (2) inútil buscar o crime organizado na
Antiguidade, na Idade Média, na Ásia
Em temas mais recentes, e por cer ou na China, na pirataria etc.(6L por
to vinculados à proibição de sindica que isso não faz mais que indicar que
lização dos trabalhadores, generali se há olvidado uma ou mais das ca
zou-se o conceito jurídico-penal de racterísticas em que se pretende fun
associação ilícita, de malfeitores ou dar a categoria, como são a estrutura
para delinqüir - tipo hoje comumen empresarial e, particularmente, o mer
te encontrado nos códigos penais de cado ilícito.
tradição européia continental, ainda
que existam dúvidas quanto a sua Se nos ativermos a essas duas ca
constitucionalidade. Todavia, este racterísticas - a estrutura empresari
conceito pouco tem a ver com a ca al e o mercado ilícito - é claro que
tegoria de crime organizado tal como quem fala de crime organizado não
se pretende na atualidade, entre ou está se referindo a qualquer plurali
tras coisas porque esta última é pro dade de agentes nem a qualquer as
duto da tradição norte-americana. sociação ilícita, senão a um fenôme
no distinto, que é inconcebível no
Tampouco se vinculam ao concei mundo pré-capitalista, onde não ha
to de crime organizado as qualifica via empresa nem mercado na forma
doras tradicionais de alguns tipos pe em que os conhecemos hoje. Remon
nais quando são cometidos em ban tar-se a essas antigas organizações
do, quadrilha ou por três ou mais delitivas não seria mais que mencio
agentes. No caso da pilhagem rural, nar formas anteriores de pluralidade
e, de modo geral, com relação ao bri de agentes ou de associações crimi
gantismo, também há antiga literatu nais que não são úteis para precisar
ra criminológica(3L assim como nos o pretendido conceito que se busca.
delitos políticos cometidos por orga
nizações(4L algumas das quais hoje Reconhecer que todas as tentativas
chamaríamos terroristas, como a pre de conceitualização partem do fenô
ocupação dos positivistas com o anar meno da pluralidade de agentes, mas
quismo.(5) Entretanto, a mais superfi que o mesmo, por sua amplitude, não
cial análise nos revela que todo este serve para este fim, corresponde men
campo é alheio ao que hoje se pre cionar os diferentes caminhos que se
tende entender como crime organiza tem ensaiado.
do.
3. O panorama das
o organized crime como tentativa conceitualizações
de categorização é um fenômeno de
nosso século e de pouco vale que os São muitos os autores que admi
autores se percam em descobrir seus tem com sinceridade a falta de defi
pretensos precedentes históricos, nição do chamado crime organizado,
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atribuindo-na, inclusive, ao domínio norte-americano o associou com o
de uma concepção "popular". Esses mercado ilegal, ou seja, com "Ia
mesmos autores advertem que os cri prohibición de bienes e servicios
minólogos não chegam a um acordo prohibidos" ("com a proibição de
e que a fronteira entre o organized bens e serviços proibidos/). (12) Este
crime e o white col/ar crime não está limite pré-científico do suposto con
clara pela falta de definição do pri ceito não deixa de ser saudável, por
meiro.(7) No campo político tampou que ao menos deixa fora de seu âm
co existe uma definição: o comitê bito atividades que, de outro modo,
assessor do governo dos Estados Uni dariam lugar a uma confusão maior,
dos concluiu, em 1976, não existir como a inclusão do terrorismo, ban
"uma definição suficientemente abran dos de ladrões, vândalos urbanos etc.
gente, que satisfaça as necessidades
dos indivíduos e grupos muito dife Não obstante, este limite pré-cien
rentes que possam usá-Ia como meio tífico abriu o debate acerca do eixo
para desenvolver um esforço contro das tentativas de categorização, e
lador do crime organizado."(8) desde então se discute se devem
tentá-Ia partindo do tipo de organiza
No plano legal, a situação não é ção ou do tipo de atividade criminal,
diferente, pois a Racketeer influenced sustentando outros que o correto é
and corrup t organizations, conhecida correlacionar ambos os tipos.(13)
com a sigla R ICO, integra o capítulo
96 do Federal Criminal Code and Na década passada foram muitos
Rules como instrumento legal especí os autores que se ocuparam destas di
fico de luta contra o crime organiza ficuldades. Dentre eles citaremos
do nos Estados Unidos, contendo dois, que fizeram um balanço das ten
uma larguíssima lista de atividades de tativas conceituais no plano teórico.
litivas, mas nenhuma categoriza Hagan revisou definições do crime or
ção.(9) Na Alemanha, a situação não ganizado compulsando treze autores,
é muito diferente, pois assinala-se tendo observado consenso entre eles
com sinceridade o enorme déficit de nos seguintes pontos: a) importa uma
conceitos teóricos e de base empíri empresa permanente, que opera ra
ca. (l O) O Brasil incorporou legalmen cionalmente para obter benefícios
te o conceito remetendo-o à tradici mediante atividades ilícitas; b) susten
onal associação ilícita(11), que o ex ta sua ação mediante violência real
cede notoriamente, mas que não faz ou fícta; c) implica corrupção de fun
mais que revelar a carência de outro cionários públicos. Acerca de outras
mais adequado. características, como monopólio de
serviços, códigos secretos e fecha
Desde um âmbito que lhe é estra mento do grupo, há muito pouco con
nho, a criminologia recebeu a tarefa senso doutrinário.(14) Maltz, por sua
de categorizar o crime organizado as vez, não avança muito a respeito do
sinalado por uma referência ao mer anterior, pois de sua pesquisa resulta
cado ilícito, pois desde a proibição apenas a abrangência de multiplicida
alcoólica, e mesmo antes, o público de de empresas, mas nega a necessi-
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dade do envolvimento em negócios maior entretenimento popular que o
i lícito s, a organização sobre paradig crime organizado" co mo o demons
ma mafioso e a sofisticação das mes tram o êxito de Os intocáveis e de O
mas.( 1 5 \ Bymun considera C\ue estes poderoso chefão e o te\e\lisionamen
aportes clarificam a questão, ainda to das audiências das comissões de
qUQ n5:o posso.m mai:; que reconhe investigdl,-dU UU Congresso norte
cer a ambigüidade e a falta de con americano.(19) Tal fato está vincula
senso que rodeiam o tema.(16) do ao sentido conspiratório com que
se tem interpretado o fenômeno den
4. O poder impõe à tro do paradigma mafioso. Ao gene
criminologia uma missão ralizar-se nos Estados Unidos a idéia
.. - . -
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McClillian em 1962 e a comissão de esse grau de servilismo e parcialidade.
1967. Os lucros políticos destes em
preendimentos não foram menores: Por fim, seguiram funcionando, por
Thomas Dewey, por duas vezes no um lado, o uso assistemático do ter
minado pelos republicanos como can mo pela polícia, pelos políticos, pe
didato a presidente dos Estados Uni los meios de comunicação e pelos au
dos, adquiriu fama com a perseguição tores de ficção; e, por outro, o des
a Lucky Luciano, enquanto E. Kefauver concerto criminológico: mal se podià
alcançou tal notoriedade com sua co construir uma categoria com base em
missão, que quase lhe valeu a nomi uma idéia conspiratória pouco crível.
nação a presidente pelos democratas
em 1952.(22) 5. Funcionalidade política da
versão cons piratória
Como está claro, a criminologia teve
muito pouco a ver com esta tentativa A idéia de que o organized crime é
de conceitualização - como não fosse uma conspiração nacional nos Estados
esta a recepção de uma tarefa enco Unidos - apesar de exercer o sólido
mendada pelo poder. Lamentavelmen atrativo popular de todas as teses
te não logrou cumpri-Ia, em que pese conspiratórias e de ser relativamente
não lhe faltar boa vontade, porque "o crível por parte de leigos, como tam
crime organizado e os mercados ilegais bém por ser impulsionada pelos própri
têm sido largamente utilizados como os delinqüentes, que desse modo apa
fontes de mitos, enquanto a realidade recem como mais poderosos e dignos
é muito menos atraente."(25) de admiração (especialmente se em
momentos de crise se acrescentam al
Os criminólogos não haviam se guns atributos de Robin Hood, reinvin
ocupado muito do tema até este sé dicadores ou benfeitores sociais) -
culo. Como é lógico, os primeiros tra cumpriu uma dupla finalidade nos anos
balhos importantes surgiram com a de sua consagração no pós-guerra: a)
"escola de Chicago"(26), e Sutherland por um lado, sua consagração política
considerou que o crime organizado naquele tempo (comissão Kefauver em
crescia em unidade e oposição à so 1951), em plena guerra fria, serviu para
ciedade, por efeito da debilidade do comparar o organized crime com os es
estado.(27) Será Cressey, muito mais tados ou regimes autoritários e totalitá
tarde e, quem se encarregará da ver rios; b) por outro, para atribuir a cons
são oficial do organized crime.(28) piração antinacional a grupos étnicos
externos e com conexões no exterior,
Todavia, ainda que a criminologia te ou seja, para colocar o mal em conspi
nha nascido muito vinculada ao poder ração estrangeira. Se a primeira funcio
e com grande permeabilidade ao mes nalidade desapareceu com a circunstân
mo - pelo que sempre se pode dizer cia que lhe deu lugar, a segunda se
que é ciência "suspeita" - neste caso mantém até a atualidade, com algumas
não alcançou fundar a tese oficial variantes quanto aos grupos étnicos
conspiratória, porque a sociologia esta envolvidos.
va demasiado desenvolvida para tolerar
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A idéia da conspiração com estru De alguma maneira, nesta explicação
tura totalitária, análoga a do comunis se pode visualizar um paralelo com a
mo ou do nazismo - que se manifes profecia auto-realizada dos judeus na
ta nos informes de Kefauver e conti Europa: reduziriam-lhes o espaço so
nua nas conclusões das conferências cial primeiro e logo lhes criticariam
de Oyster Bay, convocadas pelo go por fazer a única coisa que o espaço
vernador de Nova Iorque, Nélson social reduzido lhes permitia, ilO mes
Rockfeller, nos anos sessenta, (29) de mo tempo em que isso reforçaria os
onde se destaca o grande poder, a argumentos redutores do espaço.(36)
centralização do mesmo, um pequeno
grupo diretor e até uma estrutura parami Ainda que a versão oficial - que
litar, como o afirma Cressey(30) - era alguns criminólogos chamam de "or
ideal para os tempos de MacCarthy.(31) todoxa" - do organized crime não
Deste modo, a crença no controle tenha sustentação fática séria, pois
centralizado dos mercados constitui todos destacam até hoje a insuficiên
o coração da doutrina e da política cia de investigação empírica,(37) a
oficial na matéria.(32) mesma foi objeto de uma versão cri
minológica por parte de Cressey,(38)
Esta versão tem perdido importân considerada a mais coerente em sua
cia política em nossos dias, mas era linha, em que pese reconhecer que
acompanhada em seu tempo com a a mesma não traz qualquer dado
idéia de conspiração estrangeira, da que a sustente.(39)
qual era complementar naquele mo
mento: Tanto o comunismo como o Não podemos deixar de observar,
crime eram conspirações externas de passagem, que a atribuição do
que atentavam contra a democracia organized Crime aos grupos étnicos
e o american way of life. (33) Esta fun imigrados aos Estados Unidos combi
cionalidade tem a vantagem política na muito bem com toda a ideologia
de pôr o mal fora dos Estados Uni racista que tinha a política imigratória
dos, ocupando-se do mesmo como um desse país no período de entre-guer
fenômeno invasor externo à sociedade ras, que fora elogiada pelo próprio
norte-americana. Tal assertiva, contu Hitler em Mein Kampf (40) e que res
do, é quase tão grosseira em termos surge em nossos dias (41) até certo
científicos como útil em termos polí ponto apoiada financeiramente pelas
ticos, pois foram vários os autores mesmas fundações que sustentaram
que desde o começo apontaram que o racismo daqueles anos. (42)
se devia encarar o crime organizado
como um produto norte-americano e 6. A inconsistência
não como uma conspiração estrangei criminológica do paradigma
ra,(34) sendo Be", por exemplo, mafioso
quem, em 1953, por caminho próxi
mo ao funcionalismo mertoriano, des Em criminologia ninguém duvida
tacou que se devia entendê-lo como da existência da máfia ou de máfias
uma via inovadora de acesso ao po nos Estados Unidos, mas sim do que
der por parte de minorias étnicas.(35) se pode chamar legitimamente de o
50
paradigma mafioso na abordagem do que pese o fato de que muitos auto
crime organizado, ou seja: a) da afir res o criticaram seriamente, em espe
mação de que essas organizações têm cial porque muito poucas persecu
uma estrutura tão sofisticada, centra ções penais se puseram em funciona
lizada, hierarquizada, nacional etc. mento a partir dos dados proporcio
quer dizer, tão fortemente conspira nados, enquanto outros observaram
tória, que seja compatível compará que o mesmo era quase coincid.ente
las à bolchevique ou à nacional soci com as versões correntes na impren
alista; b) que respondam a fenôme sa e entre os policiais. (47) Em 1969
nos externos à sociedade norte-ame tratou-se de reforçar este testemunho
ricana e, fundamentalmente, a deter com registros magnetofônicos toma
minantes culturais ou biológicas de dos clandestinamente nos escritórios
grupos imigrados; e c) que se possa de um renomado mafioso ( De Caval
transferir o modelo máfia com essas cante).(48)
características a toda criminalidade
vinculada ao mercado ilegal de bens Dados tão escorregadios não po
ou serviços. dem fundamen�r seriamente um pa
radigma com o qual se pretende en
Em realidade, esse paradigma ca globar conceitualmente o crime orga
rece de dados sérios de sustentação nizado em sua totalidade, se por tal
empírica, (43) por mais que sejam se entende toda a criminalidade vin
muitos os documentos e autores que culada ao mercado ilícito. Posteriores
falam dos capos e dos capos de to investigações empíricas têm sustenta
dos os capos e que o mesmo tenha do que o FBI não pode trazer nenhu
sido adotado e difundido pelo comi ma prova sobre sua costumeira afir
tê Kefauver (1951), pelas conferênci mação de que o jogo proibido seja a
as de Oyster Bay, pela comissão de principal fonte de apoio político e
Law Enforcement and Administratian econômico da máfia, uma vez que
af justice de 1967, por J. Edgar tanto no jogo como na usura (ativi
Hoover, pela comissão de 1976 etc., dades típicas da categoria que se pro
(44) e - ainda - por mais que o mes jeta) em muito poucas circunstâncias
mo seja a descrição do crime organi é possível usar a violência para supri
zado que, formada na temporada pós mir a competição e que, em geral, a
guerra, influi desde então nas atitude máfia está menos centralmente coor
públicas daquele país e se introduz denada do que a lenda e a ideologia
como substrato ideológico dos manu popular nos podem fazer crer. (49)
ais de criminologia. (45) A principal
fonte de alimentação deste paradig As conclusões de Reuter a este res
ma são os testemunhos de "arrepen peito são sumamente importantes,
didos", tendo havido grande reper pois para aquele autor a imprensa e
cussão o prestado por um deles - a polícia se alimentam reciprocamen
Joseph Valachi -- perante o comitê te de um modo que assegura a sus
McClellan do Senado em 1963 - pois tentação da reputação da máfia. "Des
os aportes de dados da comissão de que o crime organizado é tratado
Kefauver foram mínimos (46) -- em amplamente nos jornais como diver-
51
são, estes informam sobre os bandos significativa: todos os autores são
delitivos conhecidos pelos leitores, o acordes no sentido de que o crime
que levanta a máfia. As agências pe organizado existia nos Estados Unidos
nais, compreensivelmente desejosas com anterioridade ao V o/stead Act de
de chamar a atenção da imprensa so 1920, ou seja, a 18ª emenda consti
bre suas atividades, são impulsiona tucional ou "lei seca", "proibição" ou
das a preferir a máfia a outros ban the noble experiment,(53) mas.não ti
dos menos conhecidos. Deste modo, nha as características e o volume que
a proeminência da máfia aumenta." adquiriu a partir de então.(54) Não
(50) Para este autor, a máfia é a "mão podemos olvidar que o paradigma
visível" no mercado ilegal, mas con mafioso nasceu com essa experiência
sidera que também opera a "mão in e só se consolidou oficialmente no
visível"-- que são os interesses pes segundo período pós-guerra (duran
soais e a tecnologia que modela os te a chamada "guerrà-fria"). Este pa
mercados de bens e serviços legais - radigma se mantém sem alterações
e freqüentemente existe uma tensão importantes até o presente, e, ainda,
entre as duas mãos nos mercados ile até tempos muito recentes, nem se
gais. Conclui que nos três mercados quer havia mudado o estereótipo ita
investigados em seu trabalho (apos liano ou ítalo-americano, alimentado
tas em cavalos, loteria e usura) não é com detalhadas histórias da máfia, de
verdade que sejam monopolizados suas famílias e homicídios,(55) distin
nem controlados centralmente, com guindo a máfia siciliana, a camorra
o que sai vitoriosa a "mão invisível", napolitana e a h o n o r ata società
considerando que há argumentos te calabresa - quer dizer, toda a imigra
óricos que permitem supor que ela é ção do sul italiano (que é a imigra
típica de toda a criminalidade do ção italiana predominante naquele
mercado ilegal.(51) "Em resumo - país),(56) Oll seja, uma das mais nu
acrescenta - a ortodoxia está debil merosas minorias latinas ou não puri
mente fundamentada. Afirmações so tanas, pertencentes à cultura da taber
bre o domínio dos mercados pela na, contra a qual se orientava a pro
máfia e a importância do poder da paganda anti-alcoólica do primeiro
máfia não se baseiam em nenhum pós-guerra.(57) Do mesmo modo,
esforço de verificação sistemático toda a luta contra tóxicos dos Esta
acadêmica nem oficial. A literatura dos Unidos sempre esteve vinculada
acadêmica proporcionou algum sus publicamente a algum grupo imigra
tento isolado ex post, mas nunca se do em particular.
desenvolveu bem a teoria nem esta
foi submetida à verificação rigorosa. 7. Crime organizado ou
Os melhores documentos disponíveis desorganizado?
levantam sérias dúvidas acerca de
toda a ortodoxia."(52) As atividades que, de modo geral,
os criminólogos consideram manifes
Além de todo o assinalado, a indes tações do crime organizado são a ex
cutível funcionalidade política do re torsão e outros atentados à liberda
ferido paradigma é muito mais que de de trabalho pelos sindicatos, to-
52
das as formas de jogo proibido, a usu que aquelas que se afastam desta di
ra, o tráfico de drogas, a corrupção mensão ou a subestimam. Não se deve
política, o tráfico de escravas brancas pensar que essas aproximações se en
e de estrangeiros e, mais recentemen quadram em teorizações marxistas acer
te, os delitos eletrônicos.(58) ca destes fenômenos - se bem que as
tenham havido e que desde sua pers
Temos visto que, com diversas me pectiva tenham considerado o crime
todologias de campo (observador par organizado como um aliado do
ticipante, entrevistas, averiguações establishment, assegurando a hegemo
etc.), tornou-se manifesto que nos nia social e contribuindo para a manu
Estados Unidos estas atividades nor tenção da subordinação proletária.(61)
malmente são organizadas em forma Todavia, a grande maioria das aborda
subcultural e local, e não têm a orga gens econômicas do crime .organizado
nização rígida ou burocrática que pre não se enquadra neste marco teórico.
tende a versão difundida pelos políti
cos, pela polícia e pelos autores de Uma boa parte daqueles enfocam a
ficção.(59) Sem embargo, na posição questão privilegiando a perspectiva eco
exatamente contrária parece encon nômica consideram-na atividades que
trar-se a Câmara de Comércio dos Es implicam continuação das práticas co
tados Unidos, que afirma que o orga merciais ilegais do século XIX (os cha
nized crime é um poder nacional, que mados "barões do roubo"), que se
opera impunemente e livre de todo infiltram e florescem em indústrias com
limite constitucional, indagando se excessiva competição, penetrando se
não se trata do Fifth State.(60) tores pequenos da economia, onde rei
na a desordem e a instabilidade. O cri
Entre estas duas posições antagô me organizado trata de neutralizar ou
nicas, em princípio, não parece haver destruir a competição mediante amea
nada em comum, mas, aprofundando ças e corrupção política e com isso traz
se a discussão, há algo que as une por estabilidade econômica através de um
baixo da superfície: a partir da análi monopólio ou oligopólio que discipli
se detalhada da primeira é possível na o mercado, distribuído inclusive ter
encontrar a razão da segunda. Com ritorialmente.(62)
efeito: a segunda reclama contra algo
que parece ser uma concorrência des Deste modo, o crime organizado
leal ou com vantagem e não se dife seria o conjunto de atividades ilícitas
rencia muito do tom dos protestos do que operam no mercado, disciplinan
comércio formal contra o informal em do-o quando as atividades legais ou
muitas cidades latino-americanas. o estado não o fazem. Em termos mais
preciosos, sua função econômica se
A classe de atividades que se preten ria a de abranger as áreas de capita
de categorizar como organized crime se lismo selvagem que carecem de um
vincula ao mercado e, neste sentido, mercado disciplinado.
apresentam-se mais claras as aproxima
ções dos economistas ou as criminoló Em uma linha parecida e de certa
gicas que apontam ao econômico, do forma complementar a esta explica-
53
r
ção, move-se o que poderíamos cha do? O suborno continuado, que favo
mar de paradigma empresarial, próxi rece uma empresa em uma atividade
mo ao funcionalismo sociológico. ou indústria lícita, é crime organiza
Partindo de que qualquer empresa se do? É crime organizado a atividade de
organiza para obter benefícios, Smith uma indústria lícita que emprega mas
sustenta a teoria do espectro empre sivamente imigrantes clandestinos
sarial, em cujos extremos se encon para pagar salário menor? O seria se
·
tra�iam as atividades legais e as ile os emprega em menor quantidade ou
gais, mas as diferenças seriam prefe porcentagem do total de seu pesso
rencialmente matéria de grau e não al? Um bando de seqüestradores é
de qualidade. Conclui que qualquer crime organizado? Um banco que oca
explicação - como a conspiração e a sionalmente toma dinheiro sem preo
etnicidade - se tem alguma relevân cupar-se com sua origem o constitui?
cia na interpretação do crime organi
zado, será sempre subordinada à te Em síntese, tem-se a sensação, ao
oria da empresa.(63) Bynum observa, menos do ângulo econômico, de que,
com toda a razão,(64) que este enfo o crime organizado é um fenômeno
que pode remontar a Merton, que de mercado desorganizado ou não
sustenta não ser possível distinguir disciplinado, que se abre à disciplina
economicamente entre o crime orga produzida pela atividade empresarial
nizado e a corrupção política e os lícita ou menos lícita. É óbvio que es
negócios ilícitos.(65) tas aberturas ou furos na disciplina do
mercado são muito diferentes, instá
Em definitivo, seja porque no mer veis e variáveis, pois como todo mer
cado existem áreas não disciplinadas cado é dinâmico, existem espaços
ou porque estas se criam em razão que se obstruem e outros que se
de que a proibição interfere no mes abrem. Daí que a conceitualização re
mo elevando desmesuradamente a sulte impossível e as tentativas se ve
renda, o certo é que se abrem espa jam frustradas e que, ademais, os es
ços que, como em todo o mercado, paços mesmos não possam suprimir
são ocupados empresarialmente por se, porque implicaria parar a dinâmi
uma atividade que se apresenta em ca do mercado, ou seja, fazê-lo desa
forma de espectro - como bem a des parecer.
creve Smith - em cujos extremos es
tão o lícito e o delitivo, mas que apa Sem dúvida existem máfias e ban
recem tão confundidos e dispersos dos, há atividades lícitas e ilícitas, mas
que se torna muito difícil distinguir as não há um conceito que possa abran
matizes ou graus que se inclinam para ger todo o conjunto de atividades ilí
um ou outro extremo. Por isso, res citas que podem aproveitar a indisci
tam milhares de perguntas sem res plina do mercado e que, no geral, apa
posta: até que ponto do circuito de recem mescladas ou confundidas de
capitais o dinheiro é negro ou desde forma indissolúvel com atividades lí
que ponto começa a ser branco? Uma citas.
empresa lícita que ocasionalmente
laya dinheiro pratica crime organiza- Logo, a categorização que se v.em
54
tentando não pode se coroar, pois peculação, que terminou com a gran
constitui a pretensão de prender em de recessão de 1929.(67) A desordem
um conceito criminológico a dinâmi desse mercado e sua interferência
ca do mercado. A empresa resulta com a 18ª emenda ("lei seca") pro
tanto mais inalcançável quando se porcionaram as condições ideais para
pretende buscar uma categoria que a penetração de atividades ilegais
se transfira à lei penal. mescladas com as legais e, como .é
habitual naquele país, surgiram polí
Por tudo isso, há um conjunto de ticos que viram aberta a via ao clien
atividades e fenômenos econômicos, telismo, ganhando fama com suas fa
dentre os quais alguns são incontes mosas "guerras" através do sistema
tavelmente criminais, mas não há uma penal, como também corporações po
categoria capaz de abrangê-los no liciais que adotaram seus lemas e seus
campo criminológico e menos ainda discursos, e criminólogos que se dei
no legal. xaram levar por uma opinião pública
imbuída do estereótipo mafioso e,
É natural que a questão se tenha também, com certo narcisismo, pró
estabelecido nos Estados Unidos de prio de quem se sente possuidor do
forma prioritária, surgindo no perío saber - chave para a solução de to
do de entre guerras, e que as tendên dos os problemas que acarretam a in
cias políticas tenham tentado sua ca disciplina do maior mercado do pla
tegorização no segundo pós-guerra. neta.
Explica-se porque a guerra de 1914-18
teve conseqüências que os políticos Passada a depressão e o New Oeal,
europeus nunca haviam imaginado. restando os Estados Unidos depois da
Acreditaram empreender uma guerra segunda guerra como o país mais
relativamente breve, mas não previ poderoso do mundo, as atividades ilí
ram que a tecnologia os levava a uma citas no mercado haviam adquirido
contenda em que o vencedor seria o características e volume diferentes,
que durante mais tempo pudesse es adequados à nova situação econômi
gotar seu potencial industrial.(66) Daí ca, enquanto os políticos seguiam
que, na Europa, praticamente os que ganhando clientela com os mesmos
ganharam, ganharam pouco, ficando métodos, e, por fim, o fenômeno per
tão destruídos como os vencidos, en mitiu a ascensão de alguns do mes
quanto os Estados Unidos alcançaram mo modo que a guerra fria brindou
posição privilegiada, atraindo uma MacCarthy com a oportunidade de
massa enorme de capital e de imigra ter em xeque a administração de
ção que não via perspectivas imedia Truman e a primeira de Eisenhower.
tas e seguras em uma Europa destruí
da por uma guerra com conseqüênci 8. A extensão de uma
as jamais imaginadas. Esse foi o espa categoria frustrada
ço que permitiu aos Estados Unidos
implementar uma política imigratória A categoria frustrada do organized
racista em meio a uma verdadeira fes crime, associada ao estereótipo mafi
ta de concentração de capitais e es- oso, se estendeu pelo mundo muito
55
antes dos tempos atuais. Ante qual acumulação de capital, antes desco
quer manifestação mais ou menos nhecida: o dinheiro sujo proveniente
grave de organização criminosa, es de negócios ilícitos e evasões fiscais,
pecialmente quando envolvendo es o tráfico de bens e serviços proibidos,
trangeiros, surgia a categoria frustra a especulação financeira etc. Parece
da nas atitudes mais insólitas. A re que a economia cresce sem bens, ao
forma penal aprovada pelo senado ar menos em seu aspecto tradicional.
gentino em 1933 respondia à mesma,
até o ponto de implantar a pena de Ante a desordem que provoca a
morte por eletrocução.(68) globalização e que é própria do mer
cado - somada a das interferências
Sem embargo, não se pode negar proibitivas e às características que as
que a exportação massiva desta cate sume na periferia do poder mundial,
goria desde os Estados Unidos tem onde impera uma corrupção maior ou
lugar em tempos muito mais recen mais manifesta - era natural que se
tes e por efeito da chamada globali exportasse também a tecnologia de
zação do mercado. Qualquer que seja controle ou que, ao menos, se ten
a opinião que se tenha acerca da na tasse fazê-lo. Trata-se de uma lei que
tureza, alcance e perspectivas deste se repete: quando se transfere um
fenômeno, não se pode negar que a problema social, segue-se a transfe
circulação de bens e serviços através rência da ideologia de controle. O
das fronteiras tem adquirido uma fle transplante em massa de população,
xibilidade nunca conhecida, favoreci especialmente do sul da Europa, ao
da de forma extraordinária pela que cone sul da América,(69) entre 1880-
da do chamado "socialismo real", 1914, com a transferência do anar
tecnologia, mercados regionais, sur quismo, do socialismo e dos protes
gimento dos novos países industriali tos por reivindicações sociais, fez
zados no extremo oriente e indiscutí com que o positivismo criminológico
vel presença do Japão como potên racista europeu (70) e particularmen
cia mundial. te italiano (71) chegasse rapidamen
te, chamado pelas elites governantes
Ao se globalizar desta maneira, o que o assumiram como próprio.(72)
mercado mundial não se limitou ape
nas a exportar seus âmbitos de Os operadores políticos da perife
indisciplina, mas possibilitou novos e ria do poder não encontram qualquer
nunca imaginados espaços de indis inconveniente em assumir hoje como
ciplina, prontamente aproveitados próprio o discurso do organized cri
pela atividade empresarial, legal ou me, entre outras coisas porque o con
ilegal. É claro que se tem gerado ver sideram inócuo para limitar seu po
dadeiras economias complementares der arbitrário, fundam esta crença em:
parcialmente ilícitas, como o caso da a) que resulta tão deslocado de seu
cocaína, mas, em geral, pode-se afir contexto genético, que sua incapaci
mar que, dado o volume da atividade dade controladora é notória até para
ilegal mesclada com a legal, nos en os menos avisados; b) que confiam,
contramos ante uma nova forma de com razão, na forma com que con-
56
trolam todo o poder e em sua limita terferem no mercado, gerando um
da capacidade para prostituir qualquer crescimento desmesurado da renda
instituição e na de seus escribas para do proibido (serviços ou bens), o que
racionalizá-Ia, e c) em não menor medi se traduz em raro protecionismo, pois
da, na ignorância própria do problema, trata-se de protecionismo baseado
que para os operadores políticos peri nos critérios da seletividade penal, e
féricos sempre é secundário e somente não nos de seletividade econômica.
merece atenção quando urge implan Do ponto de vista econômico ess'e
tar alguma manobra clientelista e neu protecionismo é completamente irra
tralizar algum problema desacreditador. cional e sua arbitrariedade pode ser
totalmente disfuncional.
Deste modo, o discurso abrangen
te da categoria frustrada do organi Por outro lado, a intervenção pu
zed crime se estende pelo mundo, é nitiva sempre é arbitrária. (seletiva)
recolhido pelos políticos de todas as mas, como o legal e o ilegal apare
latitudes, se traduz em leis penais, é cem mesclados de forma indivisível,
difundido pelos meios de massa, dá uma noção nebulosa como idéia fun
lugar a novos estereótipos etc. damentai da intervenção não faz mais
que somar maior arbitrariedade à elei
9. Uma política criminal ção intervencionista penal, o que se
intervencionista em uma traduz em uma cota de insegurança
economia de mercado para a inversão em atividades legais,
que, de alguma maneira, se manifes
o discurso que incorpora o orga ta em forma de abstenção (não inver
nized crime não é tão inofensivo são ante a perspectiva de inseguran
como pode crer a maioria dos opera ça) ou em exigência de uma renda
dores políticos dos países periféricos desproporcional com a magnitude do
do poder mundial, ao menos quanto investimento, como preço da insegu
a suas conseqüências econômicas. Se rança.
ria demasiado simplista crer em sua
total ineficácia com respeito a suas A seletividade punitiva não é de
funções manifestas, uma vez que lhe todo arbitrária, pois em geral se ori
restam funções latentes, nas quais não enta pelos padrões de vulnerabilida
se parece reparar-se seriamente, pois de dos candidatos à criminalização,
se limita à discussão das primeiras. que neste caso são as empresas mais
débeis, presas mais fáceis da extor
Em princípio, trata-se de uma cate são. Com isso, o sistema penal, mais
goria frustrada, ou seja, de uma tentati corrupto na periferia, se intromete no
va de categorização que acaba em uma mercado como monopolizador da ati
noção difusa. Quando este é o marco vidade mafiosa extorsiva do empr'e
de intervenção punitiva, à arbitrarieda sariado mais vulnerável por sua debi
de seletiva de qualquer destas interven lidade, que, ao passar do tempo, ante
ções se agrega uma cota suplementar. a dificuldade de competir frente às
grandes corporações e ao custo agre
Nestas condições, as proibições in- gado da proteção extorsiva, termina
57
por ser excluído do mercado. Desta que atentam contra a competição se
maneira, o sistema penal se converte traduz em uma das maiores ameaças
num fator de concentração econômi que pode ter o mercado, muito mais
ca, que não necessariamente impor irracional e destrutiva que as medidas
ta a exclusão das atividades ilegais do protecionistas inconsultas e erradas
mercado, senão somente sua concen que, ao menos, são discutíveis em
tração junto às atividades legais. termos econômicos, enquanto as in
tervenções penais, por regra >geral,
Tudo isso seja dito sem contar que, ocultam seu caráter econômico por
junto com a competição entre gran baixo de um discurso de absolutismo
des corporações, o sistema penal tam ético. (73)
bém pode ser usado -- e normalmen
te o é -- como fator que interfere nas 10 A criminalização mediante
.
58
base nesta categorização fracassada coação penal e a policial, que comu
no campo científico e exitosa no po mente se passa por alto na hora de
lítico. Nos limitaremos a assinalar as racionalizar o uso de meios imorais
principais conseqüências que comu por parte do estado ou do sistema
mente se associam a seu uso nas di penal.
versas legislações que a têm adotado
ou nos projetos legislativos que pos Confundindo ambas situações, Q
tulam sua adoção, tanto no penal estado autoriza o cometimento de de
como no processual. litos a seus funcionários -- às vezes
com um âmbito ou extensão ainda
A. Em matéria penal mais inadmissíveis ou escandalosos -,
o que dá lugar a situações ambíguas
(a) A impunidade de agentes enco em que é possível que permaneçam
bertos e dos chamados "arrependi encobertos casos de corrup'ção invo
dos" constitui uma séria lesão à cando o estado de necessidade etc.
eticidade do estado, ou seja, ao prin
cípio que forma parte essencial do Quanto ao chamado "arrependi
estado de direito: o estado não pode do", nada tem a ver com a tradicio
se valer de meios imorais para evitar nal desistência voluntária. Esta clássi
a impunidade. ca '
von Liszt (75) -- tem lugar antes da
Não se deve confundir a ação es consumação, enquanto o "arrependi
tatal, tendente a descobrir e conde do" realiza uma ação posterior à mes
nar um culpado, com a que este deve ma. Por outro lado -- e isto é mais
empregar para salvar uma vida huma determinante -- o que desiste deve
na ou outro bem jurídico importante ser um verdadeiro arrependido, pois
que está sendo agredido ou que se sua desistência deve ser completa
encontre em perigo iminente de mente voluntária e livre, enquanto
agressão. Neste último caso nos de este falso "arrependido" não é mais
paramos com uma medida policial e que um deliqüente que negocia um
não penal (74) e os bens jurídicos que benefício em troca de informação, ou
entram em colisão são a vida ou a in seja, é um delator. O estado está se
tegridade física ou a liberdade de uma valendo da cooperação de um delin
pessoa inocente e a administração quente, comprada ao preço de sua
da justiça, devendo sempre inclinar impunidade para "fazer justiça", o
se pela primeira em razão da conhe que o direito penal liberal repugna
cida ponderação de bens jurídicos desde os tempos de Beccaria (76).
(ou ponderação de males) do estado
de necessidade. E'sta Nada há em termos de direito pe
ta que dá lugar à medida policial não nai ordinário e conforme os princípios
tem nada a ver com a lesão já sofri que regem a quantificação da pena
da, ou com o perigo de uma nova le que permita mitigar a pena de um
são no caso em que o autor ou outro deliqüente por sua delação induzida
realize uma nova conduta análoga. com um benefício, o que tampouco
Esta é a diferença substancial entre a significa um melhor prognóstico de
59
conduta da pessoa. Desde o ponto de em vias de uma catástrofe total e se
vista ético, a delação não é um ele ufanam em ter um milhão e meio de
mento que melhore o juízo sobre um presos, (8 1 ) se pode crer em seme
comportamento anterior e, em geral, lhante absurdo: no resto do mundo
degrada ainda mais a pessoa. sabemos que dentro de quarenta ou
cinqüenta anos os governos terão ou
( b ) O sistema de penas fixas tras preocupações mais importantes
(mand a t ory sentencing) do direito e os cárceres quiçá tenham sido su
norte-americano recente ou as penas perados por outra tecnologia de con
mínimas elevadas do direito escrito trole mais barata, ainda que por isso
de tradição continental européia - não menos perigosa.(82)
normalmente invocados no combate
ao crime organizado -- lesionam os Tão perigoso quanto a anterior é ape
princípios de racionalidade, propor lar ao usual "embuste das etiquetas" e
cionalidade e humanidade das penas, trocar de nome as penas, chamando-as
ao tempo em que pretendem reduzir "medidas de segurança" ou outro nome
os juízes ao simples papel de máqui qualquer: não se trata de voltar ao ve
nas computadoras que carecem de lho estratagema consistente em violar
qualquer capacidade valorativa. todos os limites do direito penal liberal
por via do velho recurso de chamar a
O sistema de penas fixas desapa pena de outro modo, permitindo assim
receu no século passado, depois de a aplicação retroativa, a desproporção,
ter estabelecido códigos como o re a irracionalidade, a crueldade etc.,
volucionário francês (77) e o imperi como freqüentemente se intenta nes
al brasileiro, (78) mas ressurge no fi tas leis e projetos.
nal deste século, seja por causa das
regras de penas fixas norte-america ( c ) H á muitas maneiras de violar a
nas, tachadas de inconstitucionais por legalidade sem abandonar as tradicio
vários juízes federais norte-america nais formas de fazê-lo no direito pe
nos, (79) seja por causa das penas mí nai de tradição européia continental.
nimas altíssimas em algumas legisla Em não conformidade com este, po
ções latino-americanas, que todavia rém a exportação da nebuloda idéia
ninguém se atreveu a tachar de de organized crime tem querido tra
inconstitucionais.(80) zer a nossas legislações uma das mais
conhecidas, criticadas e formas claras
Não menos violadoras da mais ele de violá-lo que conhece o direito pe
mentar racionalidade são as penas nai anglo-saxão: o conceito de cons
máximas absurdas, que ultrapassam piracy. (83) Ao invés do cientificamen
os quarenta e cinco anos de prisão. te correto, ou seja, adotar as institui
A estas realmente falta seriedade, ções de outra tradição que sirvam
porque é inaceitável que os cárceres para melhorar a nossa, se adotam das
se convertam em asilos de anciãos que são suscetíveis de piorá-Ia.
com o corrrer dos anos. Somente nos
Estados Unidos - de onde se ensaia Conspiracy é um dos conceitos
uma política penal que �e encontra mais difusos e discutíveis do direito
60
penal anglo-saxão. Os historiadores não é menos grave a tendência geral
do direito inglês precisam que nasceu a criminalizar atos preparatórios
há séculos como delito independen atípicos desde o ângulo das tradicio
te para falsas acusações e que logo nais fórmulas da tentativa.
se foi estendendo a todos os delitos,
à medida que se estendia a rule of B . Em matéria processual penal
law ou legalidade. Em outras palavras:
à medida que se reduzia a faculdade ( a ) Em quase todas as leis que se
dos tribunais para criar novos delitos, amparam na idéia de organized crime
por império da legalidade, a conspiracy ampliam-se as faculdades preventivas
ia se estendendo, como recurso judi da polícia, com a qual sofre um sério
cial para violá-Ia. detrimento o princípio de judicialida
de, constituindo uma das formas mais
Com efeito: fixados claramente al idôneas para estender rapidamente o
guns delitos pelo common law e cria uso da tortura e as oportunidades de
dos outros pelo statute law (por leis corrupção.
do parlamento), sem que as cortes pu
dessem ampliar o catálogo de uns ( b ) Ao mesmo tempo, tende-se a
nem de outros, estas apelaram a um limitar o direito de defesa em várias
suposto tipo penal difuso, no qual se formas, sendo uma das mais usuais o
pode arbitrariamente introduzir qual segredo do procedimento, estendido
quer ação imaginável e que definem indeterminadamente, a incomunicabi
de modo original: agreement to do lidade do acusado, a proibição ou di
an unlawfu l act or a lawfu l act b y ficuldade para comunicar-se com seu
unlawful means. (84) Para completar o defensor, o segredo acerca da identi
panorama de incerteza, importa escla dade dos juízes, fiscais, testemunhas
recer que a palavra unlawful não se etc.
entende somente como o ilícito, mas
também como o "imoral". ( c) O caráter conspiratório que se
atribui ao crime organizado leva qua
Não tem nada a ver com associa se sempre a restringir o princípio da
ção ilícita do direito continental, por publicidade do processo.
que basta que haja uma proposição
dirigida a uma pessoa, ainda que não ( d ) Com generosidade se autoriza
a admita; porque é suficiente que se a interceptar correspondências, cha
proponha um só delito em particular; madas (telefônicas) e outras comu
e porque o meio pode ser lawful. Não nicações, de forma que afeta seria
é raro que esta curiosa fórmula tenha mente a reserva e a privacidade.
sido utilizada para perseguir o sindi
calismo e certas forças políticas e que ( e ) Sem sombra de dúvida, todas
sua história não seja nada elogiosa vêm acompanhadas de limitações à
quanto ao serviço que prestou às li excarceração, de modo que se inver
berdades públicas.(8S) te a presunção de inocência.
61
-- -------� --
62
ganizado" fracassou no plano cientí (1) V. por exemplo as diferentes valorações
fico, pois tudo o que se pode provar das multidões por a u tores como H. Tai n e,
é a existência de um fenômeno de Les origines de la France con temporaine, La
mafioso" à lei penal implica uma in science du gouvernement, Paris, 1 892, es
terferência totalmente arbitrária na pecialmente o tomo 1 1 ; Pascual Rossi, L os
economia de mercado que pode con sugestionadores y la muchedumbre, B a rce
duzir a efeitos econômicos catastró lona, 1 906; a primeira edição de La folia
ficos: concentração econômica, elimi delinquente de Sighe/e, Torino, 1 89 1 .
nação da pequena e média empresa,
cor rupção nas corporações por con (3) Em castelhano se p o d e recordar o trabalho
centração da atividade ilegal, prote pioneiro de Constancio Bernaldo d e Q u i róz
cionismo despropositado, alterações n a Espanha, logo estendido ao México; em
irracionais de alguns bens e serviços português, C h rysolito Chaves d e Gusmão,
com conseguinte aumento da ativida O banditismo e associações para delinqüir,
63
in A m erica: Concepts and Controversies" , (20) C f . J e a n C h e v a l i e r - A l a i n C e e r b r a n t,
e d i ted b y T.S.Bynum, New York, 1 98 7, p . 4. Dizionario dei Simboli, B i b . Univ. R i z z o li,
1 986, t. ii, p. 3 5 4.
(8) N a t i o n a l Advisory Com m ittes o n Crime
justice Standards and Coais, Report on the ( 2 1 ) V. Norman Cohn, EI mito de la conspiración
Task Force o n Organized Crime, Washi n g mundial. Los Protocolos de los Sabios de
ton, 1 9 76. Sión, M a d rid, 1 98 3 : C e o rge L. M osse, 1I
r a z z i s m o i n E u ro p a , D a lle o ri g i n e a li
(9) 7 993 Edition, Federal Criminal Code a n d Rules, Olocausto, Laterza, 1 992, p. 1 2 7.
as amended to February 7, 1 993, St. Paul,
M inn., West Publishing Co., p. 665. ( 2 2 ) U m be r l o Eco, 1 1 p e n d o l o di F o u c a u /t,
Bompiani, M i l ano, 1 988.
( 1 0) C f. Marion B o gel, Str uktur en und
( 1 6) Bynum, op. cit., p.7. ( 2 8 ) Donald R. Creessey, Theft Df the Nation: The
Structure and Operations of Organized Cri
( 1 7) Bequai, op. cit., p . 2 . me in America, New York, 1 96 9 .
64
(3 1 ) V. R i ch a rd H . R o v e r e , EI S e n a d o r j o e ( 4 3 ) Bequai, op. cit., p. 7 .
N/acCarthy, FCE, México, 1 98 7.
(44) V. Francis lanni - Elizabeth R e u s s l a n n i, A
( 3 2 ) Cf. Reu ter, op. ci t., p . 9 . Family Business: Kinship and Social Control
( 3 7 ) M a r i o n Bogel recon h ece o mesmo para a ( 4 7 ) Cf. Bynum, o p . cit., p . 6 ; Reuter, o p . cit., p . 9 .
65
cas de la desviación, em " Estigmatización y ca, particularmente n a versão de Herbert
conducta desviada", compilação de Rosa dei Spencer (Principes de Sociologie, trad. de M.
O lm o, U n iversidad dei Z ulia, s. d ., p. 7 3 . E. Cazelles, Paris, 1 88 3 ) .
66
( 79 ) A esse respei t o : G . M . Weiteka mp-5can ia Rev. Montagne Summers, Londres, 1 9 5 1 .
Herberger, Amerikanische 5trafrechtspolitik
a u f dem Weg i n die Katastrophe, em "Neue ( 8 8 ) Cf. W e i t o k a m p- H e r b e r g e r, o p . c i t . e n
Kriminalpol itik", 1 995, cuaderno 2. "Kriminalpoliti k", 1 9 9 5 .
( 8 5 ) E l is a be t t a G r a n d e, A ccordo criminoso e
"co nsp ira cy ". Tipicitá e stretta lega litá
nell'analisi comparata, C EDAM, 1 99 3 .
( 8 6 ) A a p r o fu n d a d e m o d o a d i m i rável L u i g i
F e r r a j o l i , D i ri tto e r a g i o n e . Teoria dei
garantismo penale, Laterza, 1 989.
67
: d