You are on page 1of 134

O LIVRO DE DANIEL

Comentário de Siegfried J. Schwantes, Ph.D.

INTRODUÇÃO

Antes de iniciar um estudo detalhado do livro seria conveniente responder aos

argumentos oferecidos pelos críticos contra a data tradicional do livro e sua autoria.

Data do Livro: De acordo com a afirmação de Dan.1:1 Daniel teria sido levado

para Babilônia em 605 a.C., e teria estado na ativa "até o primeiro ano do rei Ciro" (1:21),

até pouco depois da queda de Babilônia em 539 a.C. De onde a tradição de que o livro foi

escrito no sexto século a.C. Esta opinião foi mantida pela maioria dos comentadores judeus

e cristãos até fins do séc. 18. Com o avanço da crítica literária desde então, a opinião da

maioria dos estudiosos passou a datar o livro do segundo século a.C.

Os principais argumentos para uma data no segundo século a.C. são os

seguintes:

1. A descrição detalhada das guerras entre os Ptolomeus e os Selêucidas, que se encontra

no cap. 11, explica-se melhor como uma pseudo-profecia, ou uma profecia post-eventum.

De acordo com os críticos, a descrição corresponde bem com os fatos até 164 a.C., mas

quando a tentativa é feita os acontecimentos subseqüentes na carreira de Antíoco Epifânio

a correspondência entre os acontecimentos e a predição começa a falhar.

Resposta: O argumento apoia-se na pressuposição de que não há verdadeira

profecia, ou pelo menos profecia de longo alcance, como as que se acham no livro de

Daniel. Conseqüentemente, de acordo com os críticos, uma explicação natural deve ser

proposta quando uma profecia bíblica parece corresponder aos acontecimentos previstos. A

explicação proposta é que a profecia foi escrita depois dos acontecimentos, e não passa de
uma pseudo-profecia.

Para aqueles que crêem na revelação divina e que os profetas foram habilitados

por DEUS para prever o futuro, o argumento não é convincente. Se para DEUS o futuro é

como um livro aberto não há razão para crer que Ele não tenha comunicado a Seus

profetas tanta informação do futuro quanto em Sua sabedoria Ele tenha considerado próprio

revelar.

Um corolário do argumento dos críticos é que profetas como Amós, Isaías e

Jeremias só trataram da situação histórica de seus dias. Adereçaram-se sobre tudo aos

problemas morais e religiosos contemporâneos, exortando seus concidadãos ao

arrependimento e reforma. Por que deveria um profeta do sexto século a.C. se preocupar

com os acontecimentos políticos do terceiro e segundo séculos a.C., como parece ser o

caso de Dan. 11 ?

A resposta a essa objeção é que embora os profetas do V.T. como regra estejam

mais interessados nos problemas morais e religiosos de sua própria geração, eles se

pronunciam freqüentemente sobre juízos iminentes, os juízos que cairiam sobre gerações

futuras, se não houvesse arrependimento genuíno. Jeremias nos capítulos 25 e 29 de seu

livro prediz que o cativeiro babilônico duraria 70 anos. Além disto há não poucas passagens

nos profetas clássicos que referem-se ao "dia do Senhor", um acontecimento que ocorreria

num futuro indeterminado. As muitas referências nos escritos proféticos a um "dia" futuro

com conota- ção escatológica indicam sua preocupação com o futuro tanto imediato como

distante.

A descrição detalhada que se encontra no cap.11 dos acontecimentos político-

militares dos séculos que precederam a era cristã enquadra-se num propósito religioso. Sua

intenção era preparar a comunidade judaica para fazer frente a uma grave ameaça à sua
própria existência. Uma predição tão detalhada estimularia a fé em DEUS como o Senhor

da História, e como Aquele que não falharia a Seu povo num período crítico de sua

existência como nação. A seu turno toda a profecia cumprida fortaleceria a fé naquelas

porções da palavra profética ainda não cumpridas (Dan.9:24). Dada a inspiração divina do

livro de Daniel, as profecias de longo alcance cessam de ser um ônus insuportável para a

fé.

2. Inexatidões Históricas - Os críticos alegam várias inexatidões históricas como argumento

contra uma data no sexto século para o livro de Daniel. Um autor do sexto século estaria

melhor informado quanto aos fatos históricos que lhe eram contemporâneos, argumentam

os críticos. Entre as supostas inexatidões se encontram as seguintes:

a. O sítio de Jerusalém mencionado em Dan.1:1

Embora nenhum sítio de Jerusalém ocorrido em 605 a.C. seja mencionado nos

livros de Reis ou Crônicas, II Reis afirma que "nos dias de Joaquim, subiu Nabucodonozor,

rei da Babilônia, contra ele e ele, por três anos ficou seu servo". (Ver também II Crôn. 36:6).

Esta invasão de Judá não pode ser a de 597 a.C., porque Joaquim morreu no curso

daquele ano. Comparar o v.6 de II Reis 24 com o v.10. De acordo com as Chronicles of

Chaldean Kings (626-556 B.C.), publicadas por D.J. Wiseman, em 1956, pp. 25-27,

Nabucodonozor depois de sua vitória sobre o exército egípcio em 605 a.C., em Carquemis,

avançou vitoriosamente sobre a Síria e a Palestina, entre Abril e agosto do mesmo ano.

Nabucodonozor ainda estava no Oeste quando seu pai Nabopolassar morreu em 15 de

agosto, quando foi obrigado a voltar rapidamente a Babilônia. Joaquim, que tinha sido posto

no trono de Jerusalém pelo Faraó Neco II, foi obrigado a transferir sua lealdade a

Nabucodonozor. Se isto ocorreu após um breve sítio em Jerusalém não é claro, mas
concebível. Em sua pressa de voltar a Babilônia, Nabucodonozor poderia ter aceito uma

rendição simbólica de Joaquim, garantida pelo pagamento de tributo e a entrega de reféns,

entre os quais se encontrariam Daniel e seus companheiros. Uma tal hipótese não

contradiria as afirmações de II Reis e II Crônicas, e tornaria verossímil a declaração de Dan.

1:1.

b. O fato de Belsazar aparecer no capítulo 3 como o último rei de Babilônia,

quando na realidade Nabonido foi o último rei.

A ausência do nome de Belsazar das várias listas de reis de Babilônia, bem

como do Canon de Ptolomeu, parecia à primeira vista um argumento formidável contra a

credibilidade história do livro de Daniel. Quando só se tinham à disposição as fontes

históricas gregas, os críticos faziam muito do silêncio das fontes quanto a Belsazar. Este

silêncio, porém, foi rompido quando tabletes cuneiformes foram desenterrados e decifrados

durante os últimos cento e cinqüenta anos. Literalmente as pedras começaram a clamar à

medida que o nome de Belsazar aparecia num número crescente de documentos associado

com o de seu pai.

H. F. Talbot, em 1861 e T. G. Pinches em 1882, e de novo em 1916, detectaram

o nome de Belsazar associado com o de Nabonido em juramentos e orações. Finalmente

Sidney Smith demonstrou em 1924 que Nabonido, que esteve ausente de Babilônia durante

dez anos, conferiu a regência a Belsazar durante sua longa estada em Tema1. Como J. C.

Baldwim observa: "Uma vez que Belsazar foi para todos os efeitos rei, é pedantismo acusar

o escritor do livro de Daniel de inexatidão por chamar Belsazar de Rei. A acusação é mais

ainda fora de propósito à luz de dan. 5:7, 16 e 29, onde a recompensa oferecida a quem

lesse a escrita misteriosa era de ocupar o terceiro lugar no reino. Evidentemente o autor

sabia que Belsazar mesmo ocupava o segundo lugar depois de seu pai Nabonido".2
c. O fato de Nabucodonozor ser chamado o pai de Belsazar em Dan. 5:11, 18 e

22.

O termo "pai" tem uma conotação tão geral nas línguas semíticas antigas que

não se pode atribuir erro a Daniel por empregá-lo no sentido de avô ou simples

antepassado dinástico de Belsazar. Com efeito não há palavra para o "avô" nem no

hebraico nem no aramaico. Basta dizer que Davi é chamado pai de diversos reis de sua

dinastia: de Abdias (I Reis 15:3), de Asa (15:11), de Amazias (II Reis 14:30), de Jotão

(15:38), de Acaz (16:2), de Ezequias (18:3), e de Josias (22:2). Os leitores não tinham

dúvidas sobre o que o autor queria dizer. A hipótese de que Nabonido tivesse casado com

uma filha de Nabucodonozor não deve ser excluída. Seu prestígio na corte retrocede a 585

a.C., na qual data ele mediou um tratado de paz entre a Média e a Lídia fixando o rio Halis

como a fronteira entre os dois reinos. Além disto, diversos reis assírios chamavam seus pais

reis que eram realmente seus avós.3

d. A existência de um Império Médio que se seguiu ao de Babilônia e precedeu o

dos Persas (Dan. 5:30; 6:1; 9:1).

O fato de Daniel afirmar que Dario,o Medo seguiu a Belsazar no trono de

Babilônia não deve ser interpretado como se o autor assumisse a existência de um Império

Medo que teria sucedido ao de Babilônia. O que os textos acima provam é que de acordo

com o autor, houve um rei Dario o Medo que reinou em Babilônia entre a morte de Belsazar

e o tempo quando Ciro o Persa assumiu o trono de Babilônia.

De acordo com o livro de Daniel o Império Babilônico foi sucedido pelo Império

Medo-Persa. Segundo Dan. 5:28, o reino de Belsazar seria dado aos "Medos e Persas".

Segundo o cap. 6 a lei do novo império é chamada "a lei dos Medos e Persas" (vv. 8, 12,

15). O carneiro do cap. 8 é interpretado como sendo "os reis da Média e da Pérsia", a
Média e a Pérsia sendo consideradas como uma unidade política. Do mesmo modo que o

bode simbolizava a Grécia (v.21), o carneiro simbolizava a Medo-Pérsia (v.20), um império

e não dois.

Embora as fontes históricas não nos permitam identificar Dario o Medo, o fato de

que Ciro, segundo textos comerciais contemporâneos, não assumiu o título de rei da Babilô-

nia a não ser um ano depois da queda da cidade, abre a possibilidade de um breve reinado

de um rei desconhecido nas fontes extra-bíblicas, mas identificado no livro de Daniel como

Dario o Medo.

Na opinião de D. J. Wiseman, Dario o Medo deve ser identificado com ciro o

Persa. Ele propõe que Das. 6:28 seja traduzido como segue: "Daniel, pois, prosperou no

reinado de Dario, isto é, no reinado de Ciro o Persa", tratando a conjunção hebraica waw

como um waw explicativo5. J. C. Whitcomb sugere que Dario o Medo era outro nome de

Gubaru, que é mencionado em diferentes textos como governador de Babilônia e do distrito

além do rio6. Este Gubaru é sem dúvida o Gobryas que aparece nas fontes gregas.

Afirmações dogmáticas sobre a identidade de Dario são descabidas à luz dos

conhecimentos presentes, mas o que é certo é que o autor de Daniel não postulou a

existência de um império da Média que teria precedido o da Pérsia.

Em vez de exagerar as assim chamadas "inexatidões históricas" do livro, os

críticos deveriam responder à pergunta de como um autor do segundo século poderia ter

sabido da existência de Belsazar como regente em Babilônia no momento de sua queda,

quando os historiadores gregos que ele poderia ter consultado ignoravam totalmente o fato.

Igualmente enigmático para os críticos é o problema de como um escritor do segundo

século a.C. podia ter sabido que Nabucodonozor merece o crédito principal para a

construção de Babilônia em sua última fase (Dan. 4:30). Comentando o fato, E. B. Pfeiffer
escreveu: "provavelmente nunca saberemos como nosso autor descobriu que a nova

Babilônia foi obra de Nabucodonozor", como os escavadores o provaram7.

Outros Argumentos Menores contra Uma Data no 6º Século

1. O fato de que no canon hebraico do Velho Testamento o livro de Daniel se

encontra não entre os profetas, mas na terceira seção conhecida como os "escritos".

Dever-se-ia dizer em primeiro lugar, que não há nada sagrado sobre a ordem

dos livros no canon hebraico. Esta ordem varia nos manuscritos do V. T., bem como nas

edições impressas da Bíblia hebraica. Além disso, a ordem dos livros na Bíblia hebraica é

diferente da ordem da Septuaginta, a tradução grega feita em Alexandria entre 250 e 150

a.C. Nos melhores manuscritos da Septuaginta o livro de Daniel aparece na mesma posição

como nas edições modernas da Bíblia, isto é depois de Ezequiel. Outra indicação de que

não havia uma ordem fixa dos livros canônicos é que as listas destes livros que se

encontram nos escritos patrísticos diferem bastante uma das outras tanto na ordem como

no numero dos livros.

Josefo que era sacerdote versado nas Escrituras, afirma haver 22 livros no Velho

Testamento. Ele especifica que 5 constituiam a Lei, e que quatro continham "Hinos a Deus

e preceitos para a conduta da vida humana". Estes quatro com toda probabilidade

representavam os Salmos, Provérbios, Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos. A terceira

seção, a dos Profetas, continha, segundo Josefo, treze livros, entre os quais certamente ele

contava o livro de Daniel.8

Melito de Sardis, escrevendo a um amigo cerca de 180 A.D.. concernente aos

livros do Velho Testamento, enumera os profetas na seguinte ordem: Isaías, Jeremias, os

Doze, Daniel, Ezequiel e Esdras. R. D. Wilson menciona que "Origenes, em 250 A.D., e
Jerônimo, em 400 A.D., ambos instruídos por rabinos judaicos e afirmando ter obtido sua

informação de fontes judaicas, colocam Daniel entre os profetas... E, afinal, todos os unciais

gregos e os Pais gregos e latinos, são unânimes em colocar Daniel entre os profetas, e em

separar os Profetas dos Livros Históricos".9

Há boas razões para crer que o livro de Daniel foi transferido pelos massoretas,

por razões dogmáticas, de entre os Profetas para sua posição presente entre os Escritos. O

fato do livro de Daniel ter sido considerado uma arma importante para os apologistas

cristãos em sua controvérsia com os rabinos sobre a pretensão messiânica de Jesus Cristo,

tendia a despertar o preconceito dos rabinos contra o livro. Particularmente ofensiva aos

judeus era a tentativa da parte dos cristãos de fundar o messianismo de Jesus sobre a

profecia de Daniel 9. O Talmude pronuncia uma maldição contra os que faziam cálculos

sobre quando o Messias devia aparecer.10

2. O fato do nome de Daniel não figurar na lista de personalidades bíblicas

renomadas que se encontra no livro de Eclesiástico.

Os críticos argumentam que Jesus ben-Siraque, que escreveu o Eclesiástico por

volta de 180 A.C., nada sabia de Daniel, de outro modo ele o teria mencionado em seu

panegírico das celebridades bíblicas (caps. 44-50). O fato do Sirácida não mencionar

nenhum dos profetas menores por nome, e nem mesmo Esdras que tanto se destaca na

tradição judaica, torna o argumento sem valor. O argumento reteria seu peso somente se a

lista fosse completa, o que não é o caso. Provavelmente Daniel não se enquadrava nos

critérios do Sirácida sobre quem deveria figurar em sua lista. de outro lado o elogio

exagerado que ele faz do sumo-sacerdote Simeão, seu contemporâneo, nos faz duvidar da

validade dos critérios adotados pelo Sirácida.

3. A angeologia do livro de Daniel é demasiado avançada para um autor


escrevendo no sexto séc. A.C.

A existência de anjos é pressuposta através do Velho Testamento desde o livro

de Gênesis até o livro de Zacarias. É verdade que o livro de Daniel é o único a mencionar

anjos pelo nome, como Gabriel (Dan. 8:16 e 9:21), e Miguel (10:13 e 21; 12:1). Deve-se

observar, porém, que este último nome é atribuído a um príncipe e não a um anjo

especificamente. Somente em Judas 9 é Miguel identificado com "o arcanjo".

Com efeito a angelologia de Daniel é bastante simples quando comparada com a

dos apocalípticos escritos a partir do segundo século A.C. o Livro de Enoque, por exemplo,

menciona não menos de 27 anjos.11 Outros livros apocalípticos são manos prolíficos, mas

mesmo assim cunham nomes de anjos com bastante freqüência.

Gabriel aparece em Daniel como o nome do anjo intérprete. O profeta Zacarias

escrevendo em 520 A.C. - e ninguém duvida da data da primeira parte do livro - refere a seu

anjo intérprete dezoito vezes. Além das duas referências a Gabriel, anjos são

especificamente mencionados somente em mais dois textos do livro de Daniel 3:28 e 6:22.

Pode-se, pois, concluir que a angelologia de Daniel é pouco mais avançada que a de seu

contemporâneo Zacarias, que aliás usa o termo "Satan" quase como um nome próprio

(3:1,2).

4. O aramaico do livro de Daniel é bastante tardio.

O livro de Daniel foi escrito parte em hebraico (1:1-2:4a;8:1-12:13) e parte em

aramaico (2:4b-7:28), outra língua semítica como o hebraico. O aramaico começou a tornar-

se uma língua internacional no Próximo Oriente desde o oitavo século a.C.. Judeus

educados podiam falá-lo como é evidente em II Reis 18:26. Daniel deve ter sido versado

tanto no Aramaico como no hebraico, pois o aramaico dominava em Babilônia. Ao voltar do

exílio babilônico a maior parte dos judeus só falava aramaico, o que obrigou Esdras a fazer
uso de tradutores ao expor a lei ao público.

Eruditos como S. R. Driver e H. H. Rowley eram da opinião que o aramaico de

Daniel tinha peculiaridades que traiam uma data posterior ao de Esdras. Assim, S. R. Driver

escreveu no fim do século XIX: "As palavras persas pressupõem um período depois do

império Persa estar bem estabelecido; as palavras gregas exigem, o hebraico apoia, e o

aramaico permite, uma data depois da conquista da Palestina por Alexandre o Grande (332

a.C.)"12.

Os critérios usados para atribuir uma data tardia ao hebraico de Daniel são

bastante subjetivos. Falando da linguagem do V. T., D. Winton Thomas observa que,

"Débora não fala de modo muito diferente de Qoheleth, embora mil anos os separem"13.

A descoberta dos Papiros de Elefantina no começo do séc., e dos Manuscritos

do Mar Morto desde 1947, fornecendo aos estudiosos uma abundância de documentos em

aramaico, os quais datam respectivamente do quinto séc. A.C. e de 150 A.C. a 68 A.D.,

forçou uma revisão crítica quanto à data do aramaico do Livro de Daniel. Assim G. F. Hasel

pode escrever recentemente: "Como resultado da descoberta dos Papiros de Elefantina...

F. Rosenthal, louvando-se da síntese de H. H. Schaeder Iranische Beitrage

(Halle/Saale,1930), pp. 139-296, e de um importante artigo de J. Lindar "Das Aramaische im

Buch Daniel", ZKT 59 (1935), pp. 502-545, concluiu em 1939 que a velha 'evidência

lingüística' (para uma data tardia para Daniel) deve ser posta de lado".14

K.A. Kitchen, examinando o vocabulário, ortografia, fonética e morfologia geral e

sintaxe do aramaico de Daniel, chegou a uma conclusão semelhante: "O aramaico de

Daniel (e de Esdras) é simplesmente parte do aramaico imperial - do qual não se pode

distinguir a data entre 600 e 330 A.C."15

H.H. Rowley contestou a opinião expressa acima, mas seus argumentos foram
refutados por E.Y. Kutscher em seu artigo, "Aramaico", Current Trends in Lingistics 6th ed.

T.A. Seboek (The Hague, 1970), pp. 400-403. A opinião que o aramaico de Daniel pertence

ao aramaico imperial é partilhada por J.K. Koopmans, Aramaische Chrestomatie I (Leiden,

1962), p. 154; e por F. Rosenthal, A Grammar of Biblical Aramaic, 2nd ed. (Wiesbaden

1963), p.6.

Em 1956 o documento em aramaico Genesis Apocryphon, um manuscrito

encontrado nas cavernas de Qumrã, foi publicado. De acordo com considerações

paleográficas e lingüísticas ele pertence ao primeiro séc. A.C. Estudando este documento

P. Winter observou que ao passo que o aramaico de Daniel e de Esdras é aramaico oficial

(imperial), o do Genesis Apocryphon é claramente posterior. Esta conclusão é confirmada

por Glenson L. Archer em seu artigo, "O Aramaico do Gênesis Apócrifo Comparado ao

Aramaico de Daniel", New Perspectives on the Old Testament, ed. J. B. Payne (Waco,

Texas), pp. 160-169.

Depois de recapitular os mais recentes estudos sobre o aramaico de Daniel,

J.C.Baldwin conclui: "Está se tornando um fato aceito que a data de Daniel não pode ser

decidida por argumentos lingüísticos, e a evidência que se acumula não favorece uma

origem ocidental no segundo século".16

5. Palavras gregas no livro de Daniel.

Costumava-se argumentar que a presença de palavras gregas - com efeito há

apenas três, e todas as três são nomes de instrumentos musicais - demonstra que o livro de

Daniel foi escrito depois das conquistas de Alexandre o Grande e a difusão da língua grega

no Próximo Oriente. Mas como J.A. Montgnomery observa em seu comentário: "A refutação

deste (argumento baseado no uso de três palavras gregas) para uma data tardia consiste

em salientar as potencialidade da influência grega no Oriente a partir do sexto século".17


A medida que as pesquisas arqueológicas progridem torna-se cada vez mais

evidente que as trocas comerciais e culturais entre o mundo grego e o Oriente remontam ao

oitavo século A.C. Cerâmica grega daquela época tem sido encontrada em muitos lugares

do Próximo Oriente, e um entreposto comercial grego foi estabelecido em Náucratis, no

Delta Nilo, por volta de 600 A.C. Mercenários gregos estavam sendo engajados em

exércitos estrangeiros por este tempo. E podemos imaginar que onde soldados iam os

instrumentos musicais os seguiam juntamente com os termos para designá-los. Artistas

gregos empregados na construção dos palácios de Persépolis (500 A.C.), e é provável que

alguns foram também empregados em Babilônia.

Neste caso não é surpreendente que termos gregos tenham se infiltrado na

linguagem da corte de Babilônia, onde novos instrumentos musicais facilmente benvindos.

O fato que a palavra sinfonia não consta ter sido usada no grego como o nome de um

instrumento musical antes do tempo do historiador Pelíbio (c.150 A.C.), pode ser pura

consciência. Muito da literatura grega antiga simplesmente não sobreviveu até nossos dias.

Como E.B. Pusey observa: "Porque dos seis instrumentos mencionados em

Daniel, nenhum leva um nome hebraico, se o livro foi escrito na Palestina no segundo séc.

A.C.?"18 Quando o grego era bastante disseminado na Palestina a partir do terceiro séc.

A.C., os críticos devem explicar porque há tão poucos termos emprestados ao grego em

Daniel, se é que o livro foi escrito na Palestina na época dos macabeus. A maior parte das

inscrições funerárias e grafitos encontrados na Palestina datando desta época eram em

grego.19

6. O estilo apocalíptico do livro de Daniel enquadra-se melhor na mentalidade

prevalente na Palestina no segundo séc. A.C.

Embora o gênero apocalíptico de literatura tenha florescido a partir do segundo


séc. antes de nossa era, não há razões que nos constrangem a considerar o livro de Daniel

parte desta literatura. Como vários estudiosos têm observado, a apocalíptica é filha da

profecia, e não se pode estabelecer uma distinção absoluta entre ambas. Traços do estilo

apocalíptico aparecem em Isaías 24 a 27, em certas seções de Ezequiel, particularmente

nos caps. 38 e 39, em Joel 2:28 a 3:21, e em Zacarias.20

Em vários dos últimos escritos proféticos nota-se uma tendência de mudar o foco

de atenção do futuro imediato para o eschaton, de considerações puramente nacionais para

outras de natureza universal. O propósito de Deus para com Israel começou a ser melhor

discernido num contexto mais amplio. Com o exílio ampliou-se a perspectiva geográfica de

Israel, e o conceito de Deus como soberano universal raiou como uma nova revelação. Que

as nações vizinhas, tais como Moabe, Amon, Aram, Filístia, estavam sob a jurisdição de

Jeová e lhe eram moralmente responsáveis, Amós já o tinha afirmado. Mas o exílio

babilônico aprofundou a convicção de que Jeová era o Deus de todas as nações. Ao

horizonte geográfico mais amplo ajuntou-se uma perspectiva temporal mais vasta. A história

começou a ser vista como se desenrolando numa escala temporal muito mais longa. As

velhas civilizações de Babilônia e do Egito não podiam deixar de impressionar os exilados

com esta realidade inquietante.

De posse destas duas convicções, a soberania universal de Jeová e a história se

estendendo sobre milênios, Israel estava preparado para receber uma nova espécie de

revelação caracterizada por sua preocupação universalista e seu escopo escatológico. Esta

revelação seria muito mais rica em simbolismos por causa da dificuldade de expressar

realidades escatológicas em simples prosa. Símbolos, como parábolas, tem o poder de

comunicar a verdade religiosa não somente ao intelecto, mas ao ser humano em sua

totalidade. Como uma figura diz mais do que mil palavras, de igual modo símbolos.
Notamos três traços comuns nos escritos apocalípticos: Preocupa- ção supra-

nacional, perspectiva escatológica e uso mais freqüente de linguagem simbólica. Mas todos

os três já estão presentes nos escritos dos profetas exílicos e pós-exílicos em graus

diferentes. Como A.C. Wech observou, "daniel deve ser julgado pelas afinidades com os

profetas que o precederam,e não pelas afinidades com seus imitadores".21 Todos os fatos

morais e intelectuais que reclamavam um novo gênero de revelação já estavam presentes

quando Daniel foi inspirado a escrever seu livro.

Uma razão adicional pode ser sugerida para a necessidade do tipo de revelação

dado a Daniel. As profecias gloriosas referentes à restauração de Israel depois do exílio,

vindas principalmente da pena de Isaías, poderiam levar a um desapontamento amargo,

quando seu cumprimento não correspondeu à expectativa. A restauração foi um processo

lento e penoso, e a nação de Israel nunca atingiu o nível de prosperidade material previsto

por Isa. 60, por exemplo. Ao contrário, como Neemias testifica, a obra de restauração foi

elevada a cabo em face de muita oposição (Neemias 4).

O que faltava nos escritos proféticos era uma clara perspectiva de tempo.

Acontecimentos futuros na história da redenção eram vistos como um só evento que enchia

todo o horizonte. Não se fazia uma distinção clara entre a primeira e a segunda vindas do

Messias. Chegara o tempo para que apocaliptistas como Daniel introduzissem um senso de

perspectiva nas visões indistintas dos profetas clássicas. Não só o tempo estava maduro

para uma tal revelação, mas a necessidade era urgente para que a fé de um remanescente

fiel não viesse a sossobrar. A Daniel, e mais tarde a João no Apocalipse, luz adicional foi

dada por Deus para iluminar a ordem dos acontecimentos futuros na história da redenção.

O futuro seria dividido em períodos claramente definidos e a fé teria seu fardo aliviado.

Assim é que o conflito secular entre os santos e o anticristo é limitado a três anos
e meio na profecia de Dan. 7:25. A vindicação da verdade de Deus e de Seu propósito

redentor é localizada no final da história, no fim das 2300 "tardes e manhãs" de Dan. 8:14.

Setenta semanas de graça adicional seriam concedidas à nação judaica, período este que

devia culminar com a vinda do Messias e Sua morte de acordo com Dan. 9:24-27.

Temos aqui três profecias com tempo específico que introduziram perspectiva e

ordem onde antes havia apenas uma vaga expectativa do "dia do Senhor". De acordo com

estas profecias, os Kairoi de Deus, os momentos críticos na história da redenção, seguiriam

uns aos outros dentro do programa divino. Os crentes poderiam levantar suas cabeças e

renovar sua coragem vendo os marcos sinalizando onde estavam em sua longa peregrina

ção à cidade celeste.

Do que acaba de ser dito torna-se evidente porque o livro de Daniel ocupa uma

posição pivotal no canon bíblico. Se a fé neste livro é minada, a fé cristã tem muito a perder.

Isto explica porque o autor pagão Porfírio, que viveu na última parte do século terceiro a.d.,

fez um ataque tão resoluto contra a credibilidade do livro. Fazendo-o passar por uma

pseudo-profecia escrita no tempo de Antíoco Epifânio, Porfírio esperava privar os cristãos

de sua principal arma na defesa da fé. Ele percebia que seu valor apologético seria

destruído, se sua data no sexto século a.C. fosse negada.

7. Influências Zoroastrianas na Teologia do Livro

Estudiosos que mantêm que o livro de Daniel foi escrito no segundo século a.C.

argumentam que a influência da teologia de Zoroastro seria mais sentida nesta época mais

tardia do que no sexto século a.C. O fato é que a pretendida religião de Zoroastro sobre a

apocalíptica em geral, e sobre o livro de Daniel em particular, está perdendo muito de sua

credibilidade à luz de estudos mais recentes.


Assim é que Paul D. Hanson nega uma influência persa sobre Daniel, concluindo

que tanto a influência persa como a helenística foram tardias, "surgindo apenas depois que

o caráter da apocalíptica estava plenamente desenvolvido, e assim se limitam a pontos

secundários"22. Para E. C. Zaehner, "uma dependência judeu-cristã do zoroastrismo em seu

pensamento puramente escatológico... não é nada convincente... Não temos evidência

alguma das idéias escatológicas mantidas pelos zoroastrianos nos últimos quatro séculos

antes de Cristo"23.

É um fato que os ensinos de Zoroastro não foram reduzidos à forma escrita até o

começo da era cristã. O Avesta não datar que do quarto século a.d.24. O Dinkart é, segundo

admite S. B. Frost, uma obra do nono século a.d.25. Em vez de ver idéias iranianas

influenciando os apocaliptistas, Mary Boyce "considera possível que o material zoroastriano

foi absorvido de fontes estrangeiras, isto é, helenísticas, e a possibilidade de uma tal

influência em geral na formação do canon do Avesta não pode ser negada"26. W. G.

Lambert conclui suas considerações sobre a evidência da influência zoroastriana dizendo:

"Enquanto a datação da evidência zoroastriana permanece incerta será impossível extrair

qualquer conclusão válida sobre a prioridade de Daniel ou da tradição zoroastriana"27.

Lambert, por sua vez, inclina-se à ver nas profecias babilônicas um protótipo das

profecias de Daniel, particularmente a do cap. 11. A. K. Grayson foi o primeiro a chamar a

atenção a estas assim chamadas profecias babilônicas em seu livro, Babylonian Historical-

Literary Texts, publicado em 1975. Grayson pensou poder ver uma relação íntima entre as

profecias dinásticas escritas nos tempos helenísticos e as de Daniel 8:23-25 e 11:3-45. No

estilo, forma e rationale há uma semelhança notável"28.

O máximo que se pode dizer é que este gênero de profecia não era

desconhecido em Babilônia mesmo nos dias de Daniel. Alguns membros da comunidade


judaica podiam estar com ele familiarizados. Quão apropriado, então, que Daniel, sob

inspiração divina, devesse combater a influência destas pseudo-profecias como uma

delineação suficientemente detalhada do futuro de modo a inspirar fé em seus leitores

quanto à soberania divina sobre o curso da História. Tais predições satisfariam uma

necessidade entre os exilados, e ao mesmo tempo proveria conforto àqueles que

pudessem vir a sofrer na próxima grande crise que a nação teria que enfrentar.

Em vista das considerações acima um apocalipse escrito no sexto século a.C.

não seria um anacronismo como alguns estudiosos propõem. Como os profetas clássicos

que o precederam, Daniel também estaria satisfazendo as necessidades espirituais de seu

povo. Este estava sendo confrontado com pseudo-profecias e o caráter único de Jeová

estava sendo posto em dúvida. Os repetidos desafios que Isaías tinha feito aos deuses de

Babilônia de predizer o futuro deviam ainda soar no ouvido do povo (Isa. 41:21-23; 44:7-8;

45:20-21). Às predições de Isaías relativas a um Redentor vindouro que libertaria Israel do

Cativeiro, Daniel acrescentaria algumas profecias de longo alcance, que estabeleceriam um

forte contraste entre profecias autênticas e as que estavam sendo compostas no meio

pagão. A. K. Grayson chama atenção a um tal contraste quando observa: "Não há sugestão

em nenhuma profecia babilônica de um fim climático à história mundial".29

Repetidas afirmações quanto ao desfecho da história mundial seria uma nota

dominante nas profecias de Daniel. Ele revelaria aquilo que a mera sabedoria humana não

podia prever. Se "profecias" babilônicas proveram a ocasião para seus oráculos

apocalípticos, Daniel iria muito além descrevendo um conflito multi-secular pela dominação

do mundo até sua consumação com o estabelecimento do reino eterno de DEUS.

F. M. Cross bate na tecla certa quando afirma: "A origem da apocalíptica deve

ser procurada no sexto século a.C. Na catástrofe do exílio a velha forma de fé e tradição
entrou em crise, e as instituições de Israel sofreram colapso ou foram transformadas"30.

Daniel e os Achados de Qumrã

Na base de critérios paleográficos muitos dos manuscritos e fragmentos

encontrados nas cavernas de Qumrã foram atribuídos ao segundo e ao primeiro século

antes de nossa era. Nenhum manuscrito completo de Daniel foi encontrado, mas diversos

fragmentos o foram, particularmente nas cavernas 1, 4 e 6. Nem todos os fragmentos foram

publicados, mas os seguintes textos vieram à luz: Dan.1:10-17; 2:2-6; 2:19-35; 3:22-30; 7:28

- 8:1; 8:16,17, 20-21; 10:8-16; 11:33-36, 38. Um fragmento preserva a transição do hebraico

para o aramaico em cap. 2:4, e outro a transição do aramaico para o hebraico em 7:28 -

8:1. Todos testificam da correção geral do texto massorético, apesar de variações aqui e

acolá, sobretudo na ortografia.

F. M. Cross atribuiu a um dos fragmentos achados na caverna 4 uma data entre

100 a 50 a.C. A presença de um tal fragmento nas cavernas de Qumrã constitui argumento

forte contra uma data na época dos macabeus para a composição do livro de Daniel. De

acordo com R. K. Harrison uma tal data é "absolutamente excluída pela evidência

encontrada em Qumrã... O tempo seria insuficiente para uma composição macabeana ser

posta em circula - ção, venerada, e aceita como escritura canônica por uma seita

macabea".31

A presença de livros não-canônicos entre os manuscritos do Mar Morto não

invalida o argumento acima. O debate aqui não é sobre a canonicidade do livro de Daniel,

mas quanto a sua data. Um livro que não tivesse sido conhecido previamente como perten-

cendo à coleção de livros tidos como canônicos pelos judeus não poderia ganhar tanto

prestígio em tão pouco tempo, para ser reconhecido pela comunidade de Qumrã.
Unidade do Livro

O fato do livro de Daniel ter sido escrito em duas línguas tem levado alguns

estudiosos a postular mais de um autor. Outro argumento que se alega para uma

diversidade de autores é que 5 dos primeiros 6 capítulos tratam de histórias, ao passo que

a segunda parte do livro é profética em estilo e conteúdo. Alguns estudiosos vão mesmo a

admitir a proveniência babilônica dos primeiros seis capítulos, aos quais um autor do

segundo século a.C. teria anexado o material profético dos últimos capítulos. O desejo de

separar as duas seções do livro deve-se ao reconhecimento de que as histórias da primeira

parte do livro não refletem o antagonismo profundo entre o elemento conservador da

comunidade judaica e o mundo pagão que o cercava. Nada se percebe da polarização

emotiva que caracterizava a opinião pública na época dos Macabeus. Com efeito,

Nabucodonozor é descrito como um monarca benevolente, embora por vezes caprichoso.

Daniel e seus companheiros não se sentem embaraçados em ocupar cargos públicos nas

administrações de Nabucodonozor e Dario o Medo. É claro que ninguém escrevendo na

época dos Macabeus proporia Daniel como um modelo. Ao contrário seria taxado de

Quisling a serviço de reis pagãos.

Apesar da incongruência entre o espírito dos seis primeiros capítulos e o clima

religioso que prevalecia na judéia na época dos Macabeus, muitos estudiosos sustentam a

unidade do livro, entre eles S .R. Driver. De sua parte R. H. Pfeiffer não via razão para

impugnar a unidade do livro, mas pensava descobrir "em ambas suas partes o mesmo

objetivo e o mesmo fundo histórico"32. O defensor mais recente da unidade do livro foi H. H.

Rowley que mesmo em 1950 podia escrever: "As características mentais e literárias do livro

são as mesmas através do todo... O ônus de provar o contrário jaz com os que dissecam a
obra"33.

A defesa de Rowley da unidade do livro estaria acima de objeção se ele

aceitasse uma data no sexto século a.C. Mas como ele propõe uma data no segundo

século, como a maioria dos estudiosos, seu argumento torna-se forçado. A opinião erudita

mais recente é que um editor do segundo século usou o material mais antigo de origem

babilônica e acrescentou as visões dos capítulos 7 a 12. Como A. Jepsen observou: "Se o

livro em sua presente forma data do tempo dos macabeus sua unidade cessa absolutamen-

te".34

O capítulo 7 jaz em terreno contestado. Alguns estudiosos o ligariam à primeira

parte do livro porque é escrito em aramaico; outros o ligariam com a segunda parte por

causa de sua natureza visionária. Em sua divisão da história em quatro períodos ele tem

afinidade com o cap. 2, mas em outros respeitos tem laços evidentes com os capítulos

subseqüentes. Na opinião deste autor o cap. 7 constitui uma ponte entre as duas seções do

livro e confirma sua unidade. O problema todo da unidade do livro seria resolvido se se

assumisse uma data no sexto século A.C. Afinal de contas esta é a única data derivada do

documento, se o valor de suas afirmações é admitido.

NOTAS

1. S. Smith, Babylonian Historical Texts (Londres, 1924), pp. 84,88; R.R. Dougherty,

Nabonidus and Belshazzar (Yale Series), XV, 1929, pp.105-111.

2. Joyce C. Baldwin, Daniel (Intervarsity Press, 1978), p. 22.

3. Para Tglath-Pileser III ver ANET, p. 274; para Salmanasar III

ANET, p.276.
4. W.H. Shea, "Darius the Mede: An Update". AUSS, VOL. 20, pp.229-276.

5. New Bible Dictionary, artigo "Darius". p.293.

6. Darius the Mede (Eerdmans, 1959), pp. 10-16.

7. Introduction to the Old Testament, (Black, 1952), pp. 758-759.

8. Contra Apionem, i,8.

9. Robert Dick Wilson, Studies in the Book of Daniel (New York, 1938), p. 49.

10.G. F. Moore, Judaism, Vol II, p.352. Talmud, Sanhedrim 97b (Vol.ii, p.659).

11.R.H. Charles, ed., The Apocrypha and Pseudoepigrapha, Vol. 2 (Oxford, 1913), pp.

191,193,201,220,223,236.

12.Introdoction to the Literature of the Old Testament, 1909, p.508.

13.H.W. Robinson, ed., Record and Revelation, 1909, p. 508.

14."Book of Daniel: Matters of Language", AUSS, Vvol. 19, No 3, pp.179-194

15."The Aramaic of Daniel", Notes on Some Problems in the Book of Daniel eds. D. J.

Wiseman et al. (London, 1965), pp.31-79, esp.p.75.

16.Daniel, pp. 34,35.

17.ICC, The Book of Daniel, p. 22.

18.Daniel the Prophet, (London, 1886), p.XXXV.

19.Em relação ao extenso uso do grego na Palestina nesta época ver Martin Hengel,

Judaism and Hellenism, I (Philadelphia, 1974), p.104, citado por J.C. Baldwin, Daniel,

p. 33.

20.John Bright, The Kingdom of God, p. 163.

21.Vision of the End, p. 129

22.Revue Biblique, 1971, pp. 31-58.

23.The Dawn and Twilight of Zoroastrianism, (1961),p.57, quoted in D.S. Russell, The
Method and Message of Jewish Apocalyptic, (London, 1964), p.226, note 1.

24.Ninian Smart, The Religious Experience of Mankind, (Fontona, 1971), p.304, citada

em J.C. Baldwin, op.Cit., p. 48.

25.Old Testament Apocalyptic, (London,1952), p. 157.

26.Em W.G. Lambert, The Background of Jewish Apocalyptic(Lon don,1978),p.9

27.Idid

28.A.K.Grayson, Op.Cit., p.21, citado em J.C.Baldwin, op.Cit., p.53.

29.Mencionado em J.C. Baldwin, Op.Cit., p.56.

30"New Direction in the Study of Apocalyptic", Journal of

Theology and Tehe Curch, VI, 1969, citado em Baldwin, Op.Cit, p.51.

31.Introdoction to the Old Testament, p. 1127.

32.Introdoction to the Old Testament, p.761.

33.The Servant of the Lord, (Oxford, 1965), pp.248-280.

34."Bemerkungen zum Danielbuch", VT, XI, 1961, p. 186, citado em Baldwin, Op.Cit., p.

46.
DANIEL 1

Daniel e Seus Companheiros postos a Prova

Este capítulo constitui uma introdução apropriada ao Livro como um todo, pois

explica a presença de Daniel e seus companheiros em babilônia, e sua promoção a

posições de responsabilidade no reino. Além disto a informação nele contida é essencial

para uma compreensão do capítulo 2, quando Daniel teve ocasião de interpretar o sonho de

Nabucodonosor. Também explica a proveniência dos vasos de ouro e prata do templo de

Jerusalém, a profanação dos quais por Belsazar soou o dobre de finados para o império

babilônico.

Indiretamente sugere o tema do livro inteiro: o conflito entre Babilônia e

Jerusalém, entre o culto pagão e o do verdadeiro Deus. Embora humilhados pela

deportação e cativeiro, o povo de Deus não precisava aderir às normas morais que

prevaleciam no mundo pagão. Pela fidelidade de um remanescente dedicado o caráter de

Deus seria exaltado entre as nações.

O livro de Daniel é acima de tudo um livro religioso. Tudo o mais é de interesse

secundário. Focaliza a atenção sobre alguns momentos decisivos no conflito milenar entre a

luz e as trevas, verdade e erro, e assegura ao leitor que a despeito de perseguição e

derrota o povo de Deus sairá vitorioso no final. Os reinos deste mundo podem ter seu breve
período de glória, mas no fim "o domínio e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu

serão dados ao povo dos santos do Altíssimo" (Dan. 7:27).

1:1 A datação precisa dos acontecimentos mostra que o conteúdo do livro deve

ser tomado seriamente. Longe de serem "lendas" colecionadas por causa de seu valor

edificante, os vários episódios merecem ser tomados como acontecimentos históricos.

O terceiro ano do reinado de Jeoaquim corresponde a 605 A.C.1 Não há

discordância entre esta data e a de Jer. 25:1, uma vez que se compreenda que o terceiro

ano de Jeoaquim correspondia ao ano de ascensão de Nabucodonozor, e o seu quarto ano

corresponde ao primeiro ano do reinado deste monarca. O intervalo que decorria entre a

morte de um rei e a primavera seguinte, quando o novo rei recebia o cetro das mãos de

Marduk numa cerimônia especial, era designado "ano da ascensão".

A afirmação de que Jerusalém foi sitiada então, isto é em 605 a.C., não é

corroborada por outros textos bíblicos ou extra-bíblicos, e os críticos apontavam-na como

uma das inexatidões históricas do livro. O fato é que depois da derrota de Neco II em

Carquemis, Nabucodonozor levou seu exército vitorioso através da Síria e da Palestina até

à fronteira do Egito. No meio tempo Jerusalém bem podia ter sido sitiada, mas o sítio teria

sido abreviado pela notícia da morte de Nabopolassar, pai de Nabucodonozor. Na pressa

de voltar à Babilônia antes que surgisse um usurpador, Nabucodonozor teria aceito uma

rendição nominal de Jerusalém garantida pela entrega de reféns e de um tributo na forma

de vasos do Templo. A brevidade da operação toda explicaria o silêncio de outras fontes a

respeito. Josefo cita Berosso como autoridade para a afirmação de que Nabucodonozor

deixou o exército por conta de seus generais e voltou apressadamente à Babilônia antes

que um rival contestasse seu direito ao trono.2

1:2 Que Jeová controla os acontecimentos é sugerido pela declaração: "O


Senhor lhe (Nabucodonozor) entregou nas mãos a Jeoaquim, rei de Judá". O cativeiro de

Judá não foi o resultado da fraqueza de Jeová em face dos deuses de Babilônia, mas uma

expressão do propósito divino.

O fato de Babilônia ser chamada "a Terra de Sinear" é um arcaismo que remonta

a Gên.10:10, 11:2 e 14:1. É possível que haja uma relação entre os nomes de Sinear e

Sumer, a designação antiga da Baixa Mesopotâmia. A troca entre as consoantes l, m, n e r

é atestada em muitas palavras semíticas. A grafia Nabucodonozor usada em Daniel é uma

variante de Nabucodorosor (no hebraico), que é como a palavra é soletrada em Jeremias e

Ezequiel, e que corresponde ao original Nabu-kudur-usur, "Que Nabu Proteja a Fronteira".

A "Casa do Tesouro" pode ter sido uma espécie de museu, tal como se

encontrou no palácio real em Babilônia, onde objetos de arte de várias partes do império

eram postos em exibição.

1:3 O nome Aspenaz é de origem incerta. Talvez seja uma forma abreviada ou

corrupta de um nome babilônico.3 A. Lacocque o deriva de aspinja, "estalagem" em antigo

persa.4 O título chefe dos eunucos traduz o termo Rabsaris, que algumas traduções retêm

como o nome próprio em II Reis 18:17 e Jer.30:3, 13. Sendo o guarda do harém real ele

desfrutava a plena confiança do monarca, e freqüentemente era promovido a general do

exército. Em nosso texto ele é encarregado de selecionar alguns judeus da linhagem real e

da nobreza para serem preparados para a administração do império. Nisto Nabucodonozor

estava apenas seguindo uma tradição antiga observada nas cortes do Egito e da Assíria.

Tutmosis III (1479 - 1425), por exemplo, costumava educar príncipes estrangeiros em sua

corte, tendo em vista enviá-los de volts oportunamente para governar seus países de

origem como vassalos fiéis do Egito.5

1:4 Estes jovens deviam satisfazer normas elevadas de excelência física e


competência intelectual para serem admitidos à escola palatina, afim de ocupar postos

administrativos no futuro. Entre as matérias a serem aprendidas estava a língua dos

caldeus, língua que tinha muita afinidade com o aramaico e que era falada por uma tribo, os

Kashdu, ou Kaldu, que ocuparam a Baixa Mesopotâmia no começo do primeiro milênio

antes de nossa era. O Império Neo-Babilônico foi a criação de uma dinastia caldéia. O

termo "caldeu" veio também a designar uma classe particular de sacerdotes com privilégios

especiais na corte.

1:5 A educação de Daniel e de seus companheiros devia durar 3 anos e durante

este período tinham direito às finas iguarias da mesa real. A expressão finas iguarias traduz

o original pat-bag, um termo derivado do velho persa e que significava "dádivas honoríficas

da mesa real". A presença no livro de termos emprestados ao persa pode ser explicada

pela hipótese de que o livro foi escrito no final da carreira de Daniel, quando o persa tornou-

se a língua da corte, depois de Ciro ter conquistado Babilônia. Outra possibilidade é que a

linguagem do livro foi modernizada durante o período persa, isto é, entre 500 e 330 a.C.

1:6-7 Estes versos mencionam os nomes de Daniel e seus três companheiros:

Hananias, Misael e Azarias. Estes nomes que são bastante comuns em hebraico significam

respectivamente: "DEUS é meu juiz", "Jeová mostrou favor", "aquele que pertence a

DEUS", e "Jeová ajuda". Os novos nomes que lhes foram dados podem indicar uma

mudança de vassalagem, ou simplesmente a adoção de um nome oficial. Parece que

ambos os fatores operaram na mudança dos nomes dos últimos quatro reis de Judá. Assim,

Salum assumiu o nome de Jeocaz ao subir ao trono (comparar Jer.22:11 com II Reis

23:31). Eliaquim, filho de Josias, teve seu nome mudado para Heoaquim (II Reis 23:34);

Conias assumiu o nome oficial de Joaquim (comparar Jer.22:24 com II Reis 24:6); e

Matanias teve seu nome mudado para Zedequias (II Reis 24:17).
A derivação mais provável para o nome dado a Daniel, Beltessazar, é do

babilônio Belet-sar-usur, "que a Madona (Ishtar) proteja o rei". Belet é o feminino de Bel,

"Senhor", título dado ao deus Marduk, chefe do panteão babilônico. Essa derivação

concorda com a explicação dada para o nome babilônico de Daniel em Dan.4:8.

A derivação do nome Shadrach é incerta. Uma sugestão é que o nome deriva de

'Saduraku', 'sou respeitoso (de deus)'. Para Mesaque tem sido a proposta a derivação de

'Mesaku', "Sou de pouca estima", e em Abdnego alguns estudiosos vêem uma corrupção do

original 'Abed-Nebo', "servo do (deus) Nabu", nome atestado por um papiro aramaico

encontrado no Egito.6

1:8-16 Esta seção descreve a confrontação entre as convicções judaicas em

matéria de comer e beber e estilo de vida amoral dos pagãos. Tanto Daniel como seus

companheiros resolveram permanecer fiéis a suas convicções. De modo respeitoso Daniel

pediu ao chefe dos eunucos que lhes permitisse não contaminar-se. Participar das iguarias

da mesa real podia envolver ou a transgressão de preceitos da lei mosaica relativos a

animais imundos, ou a participação em alimentos que tinham sido oferecidos aos ídolos, ou

simplesmente pecar contra os princípios de temperança.

Contra a sugestão que esta preocupação com questões alimentares só

apareceu no judaísmo muitos anos mais tarde levantam-se os textos de Oséias 9:3, Ez.

4:14 e 66:17. Os dois últimos são explícitos na condenação de alimentos imundos e

particularmente da carne de porco. J.C. Baldwin prefere ver na recusa de Daniel participar

da comida do rei seus desejos de não aceitar "uma obrigação de lealdade ao rei. Parece

que Daniel rejeitou este símbolo de dependência do rei porque estar livre para cumprir sua

obrigação primária ao DEUS que servia".7 Nada impede que todas as razões acima

mencionadas pesaram em sua decisão.


Porque Daniel ficou firme a suas convicções DEUS lhe concedeu favor aos olhos

do Rabsaris. Para tranqüilizar a preocupação do mordomo quanto a sua saúde, Daniel

propôs que se fizesse uma experiência durante dez dias, e que aos quatro fossem dadas

aos quatro somente verduras e água. A experiência demonstrou a sabedoria da decisão de

Daniel, e os quatro foram achados com melhor saúde que o resto dos jovens que estavam

sendo educados com eles.

Podemos supor que oraram a DEUS para que lhes desse firmeza de propósito

acima de tudo. DEUS honrou sua lealdade concedendo-lhes "conhecimento e inteligência

em toda cultura e sabedoria" (v.17). Quando o tempo determinado para o exame dos

candidatos venceu, Nabucodonozor os achou muito mais bem qualificados em todo

respeito do que mesmo o pessoas mais maduro do colégio de sábios ligado à corte.

Nos acontecimentos descritos no primeiro capítulo o tema do livro todo é

prefigurado. Este é o tema do conflito entre Babilônia e o povo de DEUS, entre a luz e as

trevas, a verdade e o erro, a sabedoria divina e a sabedoria deste mundo. O resultado do

exame ao qual Daniel e seus companheiros foram submetidos vindicou o caráter daqueles

que preferiram o caminho da lealdade a DEUS em vez da vereda do conformismo e do

compromisso. A medida que o conflito entre a religião falsa e a verdadeira assume

dimensões mais ameaçadoras maior será o triunfo daqueles que escolheram ficar leais ao

lado de DEUS. Passaram por um tempo de prova e perseguição, mas sua vitória será tanto

mais explêndida.

1:21 "Daniel continuou até ao primeiro ano do rei Ciro". Isto significa que sua

conexão oficial com a corte de Babilônia estendeu-se até 539 a.C., quando Ciro da Pérsia

conquistou Babilônia.
Notas

1. E. R. Thiele, The Mysterious Numbers of the Hebrew Kings, p.160.

2. Josefo, Contra Apionem, 1.19.

3. S. R. Driver, Cambridge Bible Commentary, Daniel, p. 4.

4. A. Lacocque, The Book of Daniel, (1979), p.21.

5. S. J. Schwantes, A Short History of the Ancient Near East, p.84.

6. Para uma esplicação diferente ver A. Lacocque, Op. Cit, pp.29, 30.

7. Op. Cit., p.83.


DANIEL 2

O Sonho de Nabucodonozor dos Impérios Mundiais

O sonho de Nabucodonozor é datado do segundo ano de seu reinado (v.1). Uma

vez que é Daniel que afinal lembra o rei o sonho e diz-lhe a interpretação, há quem diga que

este verso contradiz a informação contida em 1:5, que afirma que Daniel e seus

companheiros deviam ser educados durantes 3 anos. Não há, porém, contradição se se

leva em consideração o fato que a primeira campanha de Nabucodonozor no território da

Síria e da Palestina realizou-se em seu ano de ascensão, isto é, em 605 a.C. A educação

de Daniel teria começado durante o ano de ascensão de Nabucodonozor que se estendeu

de setembro de 605 a.C. até a primavera de 604. Teria continuado durante seu primeiro

ano, primavera de 604 a.C. a primavera de 603 e teria durado até um ponto no segundo

ano de seu reinado, 603/602. Além disto os judeus seguiam o sistema inclusivo de contar,

isto é, mesmo uma fração de um ano era contada como um ano inteiro, do mesmo modo

que uma fração de um dia era contada como o dia todo. Ver. Ester 4:16 e 5:1 como um

exemplo de como parte de um dia era contada como um dia todo. Do mesmo modo os "3

dias e 3 noites" que Jesus passou no ventre da terra (Mat.12:40) compreenderam na

realidade somente parte da sexta feira, todo o sábado e parte do domingo. Trata-se de uma

expressão idiomática que deve ser entendida à moda dos que a compuseram.

A trivialidade da maior parte dos sonhos não significa que sonhos não possam

ser usados excepcionalmente como um meio de revelação divina. O V.T. atesta um tal uso
e Joel fala do tempo quando "vossos velhos sonharão e vossos jovens terão visões" (Joel

2:28). Numa cultura na qual sonhos eram tidos como significantes, não admira que DEUS

usasse um tal veículo para comunicar a Nabucodonozor uma mensagem repleta de

significado.1

Em caso de sonhos inquietantes o rei podia contar com o conselho de mágicos,

encantadores, feiticeiros e caldeus para interpretá-los de acordo com manuais, dos quais

diversas cópias têm vindo à luz. O caráter fictício de tais manuais salta a vista. O fato de

que nenhum exemplo foi encontrado nos textos babilônicos do uso do termo caldeu para

designar peritos em magia, tem sido alegado por alguns estudiosos como indício da data

tardia do livro de Daniel. Haja vista, porém, que Heródoto (c. 450 a.C.) usou o termo neste

sentido. Ora, se Heródoto usou o termo neste sentido restrito menos de um século depois

do tempo de Daniel, é difícil negar a possibilidade de que o termo já levava esta conotação

no tempo em que seu livro foi escrito.

2:4 Este verso marca a transição do hebraico para o aramaico, que continua

sendo a língua do livro até o final do cap. 7. A transição foi ocasionada pelo fato de que os

caldeus responderam ao rei em aramaico. Sendo de origem caldaica, o rei não teria

problema em compreender o aramaico, que desempenhava nesta época no meio oriente o

mesmo papel que o latim na Idade Média. Familiarizado em ambas as línguas, Daniel

continuou a escrever em aramaico até depor a pena no final do capítulo 7. Quando noutra

ocasião ele redigiu os últimos capítulos do livro voltou ao uso do hebraico. Alguns

estudiosos vêem na estrutura A-B-A do livro, hebraico-aramaico-hebraico, um argumento

para a unidade do livro. Chamam atenção para o fato de que o código de Hamurábi

apresenta o mesmo tipo de estrutura- as leis escritas em prosa são enquadradas entre o

prólogo e o epílogo redigidos em estilo poético em estilo altissonante.


É interessante notar que os caldeus atuaram como porta-vozes do grupo todo de

adivinhos, provavelmente por causa de sua posição privilegiada na corte. A incapacidade

dos sábios de Babilônia de recontar ao rei seu sonho põe em relevo a sabedoria de Daniel

recebida do único DEUS verdadeiro. É provável que as pretensões absurdas dos adivinhos

tenham despertado na mente na mente do rei expectativas altas demais. O que tornava a

situação pior é que a capacidade de alguém em recordar um sonho era tida como um sinal

de que seu deu estava encolerizado contra ele.2 Ameaçado de morte por sua inaptidão em

satisfazer a exigência do rei os caldeus finalmente admitiram: "A cousa que o rei exige é

difícil e ninguém há que possa revelar diante do rei, senão os deuses, e eles não moram

com os homens" (v.11). Esta confissão marcava como fraudulenta suas pretensões de

possuir um conhecimento superior.

Embora Daniel e seus companheiros não tivessem sido incluídos na primeira

convocação dos sábios, deviam sofrer com eles a mesma penalidade de morte (vv.12-13).

Irracionalidade não é monopólio dos modernos ditadores. Ao ser notificado do decreto de

morte por Arioque, chefe da guarda do rei, Daniel não hesitou em apresentar-se ao

monarca para pleitear uma audiência futura para lhe revelar o sonho e sua interpretação

(v.16). A coragem manifestada por Daniel, cremos, foi inspirada por sua perfeita confiança

no DEUS que ele servia.

O que se segue é uma cena comovente de comunhão com DEUS na qual

figuram Daniel e seus 3 companheiros. Eles pleitearam que DEUS lhes revelasse o mistério

relacionado com o sonho do rei, porque desta revelação dependia sua própria vida. Sua fé

foi honrada, e o mistério foi revelado a Daniel numa visão da noite (v.19). A primeira reação

de Daniel foi de expressar sua gratidão numa prece que aparece em forma poética em

nosso texto (vv.20-23). Ele louva a DEUS por Sua sabedoria e poder e por Sua soberania
sobre o tempo e as estações o que equivale a dizer sobre o curso da História. Neste hino de

louvor Daniel anuncia o tema de todo o livro quando declara: É DEUS Quem "remove reis e

estabelece reis" (v.21). No conflito dos séculos esboçado no próprio sonho dado a

Nabucodonozor, Daniel expressa a verdade essencial de que a história, apesar de seus

aspectos sombrios, obedecem ao desígnio eterno de DEUS. Ao dizer que "DEUS dá

sabedoria aos sábios e entendimentos aos entendidos", Daniel declara que DEUS dá

sabedoria àqueles que são receptivos à luz celeste, isto é, aqueles cuja mente está

sintonizada à Sua. Em perfeita humildade Daniel não se arroga nenhum mérito, mas

reconhece que toda sabedoria e poder vem de DEUS, "que a todos dá liberalmente"

(Tia.1:5).

Daniel informa a Arioque que a sentença de morte não precisa ser levada a

efeito pois está pronto a comparecer perante o rei e declara-lhe a interpretação (v.24).

Arioque, aparentemente desejoso de angariar mérito para si, não perde tempo em trazer

Daniel à presença do rei: "Achei um dente os filhos dos cativos de Judá, o qual revelará ao

rei a interpretação" (v.25). O rei parece não menos surpreso à vista de Daniel, um mero

sem nenhuma credencial. Daniel começa por declarar que nenhuma sabedoria humana

poderia revelar o mistério do sonho e esta era a razão por que os sábios tinham falhado.

Mas ele conhecia um DEUS nos céus que revela segredos e seu DEUS se tinha dignado

revelar ao rei e a ele próprio um vislumbre dos acontecimentos futuros (vv.26, 27).

Embora menos de 3 anos tivessem passado desde que subira ao trono,

Nabucodonozor estava preocupado com o futuro. A recente queda catastrófica do império

Assírio deve ter impressionado a todos os contemporâneos a natureza transitória de toda a

glória humana. Se o colosso assírio tinha sido derrubado de seu pedestal pelo curso dos

acontecimentos, que esperança de durabilidade poderia haver para seu império ?


Humilhado pelo reconhecimento de que o curso da história escapava a seu controle,

Nabucodonozor estava na disposição correta para receber uma revelação da soberania

divina. Esta revelação era autenticada pelo fato de que o mesmo sonho foi concedido a

Daniel e ao rei. O rei estava pronto para ouvir.

Em ser escolhido como o mediador da interpretação do sonho, Daniel nega

possuir qualquer sabedoria superior aos demais mortais. Ele era um simples canal através

do qual a revelação divina estava sendo comunicada ao rei concernente ao "que há de ser",

isto é quanto ao futuro curso dos acontecimentos até o desfecho final da história (vv.28-30).

O Conteúdo do Sonho (vv.31-35)

O que Nabucodonosor tinha visto no sonho era uma grande imagem ou estátua

(aramaico selem), cuja aparência era aterradora. Esta estátua composta de metade de

valor descrente é descrita em apenas dois versos (vv.32-33). O que avulta no sonho e

recebe atenção mais pormenorizada é uma pedra "cortada sem auxílio de mãos", que feriu

a estátua e a reduziu a pó tão leve como a palha que é levada pelo vento. Mais

surpreendente foi a percepção de que a pedra "se tornou montanha que encheu toda a

terra" (vv.34-35).

A Interpretação do Sonho

A "cabeça de ouro" é interpretada como senso o próprio Nabucodonosor (v.38).

Seu vasto domínio é descrito numa hipérbole tipicamente oriental (comparar Jer. 27:6 para

uma linguagem semelhante). O fato de que as partes seguintes da estátua são interpretada

como "reinos" sugere que "a cabeça de ouro" simboliza o primeiro reino, do qual

Nabucodonozor foi o representante mais notável. O intercâmbio entre "rei" e "reino" é


também praticado no cap. 7 (comparar v.17 com os vv.23 e 24).

O império de Babilônia, embora esplêndido como o ouro, teria de ceder lugar

oportunamente a outro império caracterizado como inferior ao de Babilônia como a prata é

inferior ao ouro. Qualquer um com um conhecimento elementar de história sabe que a

Babilônia foi sucedida pela Medo-Pérsia como a maior potência da época. O domínio

semítico no Próximo-Oriente terminou quando Ciro da Pérsia conquistou a Babilônia em 539

A.C. Entrementes Ciro já havia conquistado a media, a Armênia e Lídia na Ásia Menor. Seu

Filho Cambises II anexaria o Egito em 525, e Dario estenderia seu domínio até à Trácia na

Europa.

O Império Persa durou aproximadamente dois séculos (539-331), quando por

sua vez foi conquistado por Alexandre o Grande numa campanha relâmpago. Embora

Alexandre mesmo tivesse uma carreira muito breve (356-323), seus sucessores, todos eles

generais de origem macedônica, puderam reinar sobre um mundo helenizado durante dois

séculos. O terceiro reino é caracterizado como um reino de bronze(v.39). Esta descrição

quadra bem com os fatos, pois soldados gregos eram conhecidos por sua armadura de

bronze. Heródoto conta que "Psamético I do Egito viu os piratas gregos que invadiam o

Egito o cumprimento do Oráculo que predisse "homens de bronze vindos do mar" 3 O

domínio greco-macedônico estendeu-se sobre toda a terra, pois o território controlado por

Alexandre e seus sucessores incluia a Macedônia, a Grécia, e todos os territórios do antigo

Império Persa. Este era praticamente o mundo conhecido de então para quem vivesse na

Babilônia.

A parte de ferro da estátua é interpretada como um quarto reino e é o objeto de

uma interpretação mais pormenorizada. Desde Hipólito e Jerônimo até o dealbar da crítica

moderna, estudiosos cristãos eram unânimes em interpretar o quarto império como o


Império Romano.

A maioria dos comentadores admite que há um paralelo entre as visões dos cap.

2, 7 e 8. Na visão do cap. 8 o bode é claramente identificado como o rei ou reino da Grécia

(v.21). O rei da Grécia é identificado como o bode peludo, e o chifre grande entre os olhos

como o primeiro rei. Os quatro reinos nos quais o reino de Alexandre se dividiu são

simbolizados pelos 4 chifres que surgiram no lugar do primeiro. Segue-se que o ferro da

estátua não pode representar a Grécia nem os reinos dos sucessores de Alexandre. Só

pode significar o Império Romano.

Eduardo Gibbon em sua História do Declínio e Queda do Império Romano

apropriadamente descreve Roma como "A Monarquia de Ferro". Foi o império com maior

tenacidade e com a maior coerência interna. Não admira que Roma tenha exercido uma

soberania indisputada sobre o mundo Mediterrâneo durante mais de meio milênio. Sua

grande durabilidade explica-se tanto por suas leis como por seu poder militar.

As pernas da estátua simbolizam Roma na plenitude da sua força. Embora forte

como o ferro, Roma também sofreria decadência e ruína. A última fase de sua existência é

representada por pés e dedos em parte de barro e em parte de ferro (v.41). Sob o impacto

das invasões bárbaras o Império Romano finalmente fragmentou-se nas nações que

eventualmente formariam a Europa moderna, nações esta em parte fortes e em parte

frágeis (v.42). A condição dividida da Europa, a despeito dos esforços para uni-la seja pela

guerra, seja por casamentos políticos, continuaria até o dia quando "o DEUS do céu

suscitará um Reino que não será jamais destruído"(v.44).

Os reinos deste mundo desfrutaram por um tempo o fastio de seu poder e glória

para cair no olvido de algumas décadas ou século. Mas o reino de DEUS subsistirá para

sempre. A grande lição que este sonho devia comunicar é que autoridade suprema
pertence a DEUS. Somente ele tem o futuro na mão. Impérios terrestres erigidos sobre

sacrifícios involuntários de milhares de seres humanos levam em si o germe de sua própria

decadência e morte. Somente o reino de DEUS fundado sobre o amor e o sacrifício próprio

durará para sempre.

O valor decrescente dos metais da estátua não pode significar que cada império

fosse inferior ao precedente em extensão territorial ou poder, pois os fatos da história

desmentem essa idéia. O Império Medo-Persa abraçou um território muito mais extenso

que o de Babilônia. De igual modo o Império Romano excedeu de muito todos os outros em

extensão territorial e duração. É mais provável que o valor decrescente dos metais tenha

que ver com a perspectiva do profeta: os reinos que lhe eram mais próximos no tempo lhe

pareciam mais importantes do que aqueles mais distantes no horizonte da história. O

adjetivo 'inferior' no aramaico sugere uma interpretação pura geométrica: inferior significaria

simplesmente um posição mais baixa em relação a terra.

Nada é dito na interpretação do sonho sobre haver dez dedos no pé da estátua,

mas isso pode ser subentendido. Alguns comentadores têm visto, e nós cremos com razão,

uma relação entre os (dez) dedos da estátua e os dez chifres da quarta besta em Dan.7:7.

Tanto os dedos como os chifres simbolizariam as nações da Europa em que o Império

Romano se desintegrou. Deve-se admitir, porém, que o número dez pode significar

simplesmente muitos nesta linguagem simbólica. De outro lado Daniel não menciona a

divisão do corpo da estátua em duas pernas, e não há razão para se atribuir significado

simbólico ao fato. Alguns pormenores são descritos apenas para completar o quadro.

Há comentadores que sugerem que o autor do livro emprestou a idéia das 4

épocas simbolizadas pelos quatro metais do poeta grego Hesíodo, ou de fontes iranianas.

O fato, porém, é que Hesíodo escreveu de 5 épocas e não de 4: ouro, prata, bronze, a
época dos heróis e ferro. Além disso sua visão era voltada para o passado, e não para o

futuro, como era o caso com Daniel. Hesíodo imaginava estar vivendo na época do ferro.

De outro lado, uma vez que as cópias mais antigas do Dinkart, onde as idéias de Zoroastro

quanto às 4 épocas se encontram, datam do nono século de nossa era, não há base para a

hipótese de que Daniel se tenha louvado nesta fonte. Ao contrário alguns estudiosos estão

começando a sugerir que os livros iranianos exibem dependência do V.T. e não vice-versa.4

Daniel e seus Companheiros Recompensados(vv.46-49)

Na maneira extravagante de Nabucodonosor mostrar sua admiração por Daniel

e seu Deus pode ser desculpada por sua educação pagã. O que é de surpreender é que

Daniel não tenha recusado, tanto quanto se possa perceber do texto, esta homenagem

quase divina. Talvez a intenção do rei fosse de honrar a Deus na pessoa de Seu fiel

servidor. Como outra prova de sua gratidão p rei promoveu Daniel ao posto de governador

da província de Babilônia e o fez chefe supremo de todos os sábios de Babilônia. Daniel

não se esqueceu de seus companheiros que estiveram a seu lado na crise e que com ele

pleitearam o favor divino. Também eles foram confiados com responsabilidades oficiais na

mesma província.

O que é incrível é que esta lenda da corte , como os críticos a chamam tenha

sido incorporada no livro de Daniel sem expurgo, se o livro foi editado no segundo século. A

idéia de um ser humano receber homenagem divina de um rei pagão seria extremamente

ofensiva aos judeus. Igualmente ofensiva na época dos Macabeus seria a história de os

judeus colaborarem com um monarca pagão, especialmente quando este monarca se

inclinava a deificação própria como a história do cap.3 o mostra. Nada milita contra uma

data do capítulo durante o exílio, particularmente quando se considera que 'profecias

dinásticas'estavam sendo compostas no mundo babilônico de então. A necessidade de uma


delineação autêntica no futuro forneceu a Daniel a ocasião de compo-la sob inspiração

divina.

Notas

1. Para a importância de sonhos no meio babilônico ver Transaction of the American

Philophical Society, vol. 46, part 3, 1956,p. 227. Para um sonho de Assurbanipal ver ANET,

pp. 451 e 606.

2. A. L. Oppenheim, Op. Cit., p. 237.

3. Heródoto ii.152, cit.no SDABC, vol 4, p. 774.

4. Ver J. C. Baldwin, Daniel, p. 98 e particularmente a nota 3.

DANIEL 3

Na Fornalha Ardente

Embora Nabucodonozor tivesse reconhecido que o DEUS de Daniel era 'DEUS

dos deuses e o Senhor dos senhores', é evidente que não estava contente com as

implicações do sonho descrito e interpretado no cap. 2. Era-lhe extremamente penoso

admitir que seu reino também fosse transitório. Como crente no poder da mágica, ele faria

construir uma imagem inteiramente de ouro que anulasse o encanto da imagem da qual

somente a cabeça era de ouro. Esta imagem devia ser erigida no campo de Dura, na

província Babilônica.
A altura dessa imagem seria de sessenta cúbitos e a largura de seis cúbitos, em

harmonia com o sistema sexagesimal babilônico. Sua falta de proporção era indício do

caráter irracional da idolatria. Sua aparência seria mais de um obelisco do que de uma

figura humana. Ou devemos imaginar um pedestal muito alto suportando uma figura

humana de proporções mais próximas do normal.

Aparentemente a intenção original em convocar os funcionários das províncias

era meramente de lhes das a oportunidade de testemunhar a dedicação da estátua. A

ordem subseqüente de que todos se prostrassem e adorassem a imagem de ouro foi uma

decisão posterior. Isso explicaria a presença de Sadraque, Mesaque e Abednego entre a

multidão.

A repetição monótona dos títulos dos oficiais, sete ao todo, bem como dos

nomes dos instrumentos musicais, era típica da retórica semítica, embora soe mal aos

nossos ouvidos. A LXX elimina a repetição sempre que compatível com a clareza do texto.

Este estilo repetitício

é encontrado em outras seções do livro. Alguns destes títulos são de origem medo-persa, e

sua presença aqui pode ser explicada se esta parte do livro foi redigida depois da conquista

de Babilônia pelos persas. A palavra 'arauto' do v. 4 é uma tradução de keroz, termo que se

pensava outrora ser de origem grega, mas que se sabe hoje ser derivado do antigo persa.1

Concernente ao nome dos seis instrumentos citamos o comentário de J. C.

Baldwin: "Dos seis instrumentos mencionados aqui, somente o primeiro, 'trompa', ocorre no

hebraico do V. T. (aram. - garna, hebraico geren), pífaro (aram. - masroqita) é difícil de

identificar por falta de evidência, a única chave sendo uma possível conexão com o

hebraico saraq, 'sobiar'. Harpa ou lira (aram. gayteros) ou é a palavra emprestada do grego

kítara, ou tanto ela como o aramaico vêm de uma raiz comum. Cítara (aram. sabbeka)
também parece ser um termo estrangeiro de origem desconhecida... Saltério (aram.

pesanterim) pensa-se ser outro instrumento de corda de forma triangular, o grego

psalterion. A última palavra na lista (aram. sumponeya) traduzida por gaita de foles, pode

não ser instrumento algum; antes significaria 'em uníssono'. De outro lado se tem sugerido

que se trata de um instrumento de percussão".2 Trocas comerciais e culturais se faziam

entre o mundo do Egeo e o do Próximo Oriente muito antes de Nabucodonozor, de modo

que não surpreende achar instrumentos de origem grega e com nomes gregos na Babilônia

do sexto século antes de nossa era.

Quando a música soou, de toda a multidão reunida para a ocasião somente os 3

companheiros de Daniel recusaram a prostrar-se e adorar a imagem de ouro erigida pelo

rei. A ausência de Daniel nesta ocasião tem sido explicada por várias conjecturas. Mas o

que é certo é que se Daniel estivesse presente também teria recusado prestar culto à

imagem.

Sadraque, Mesaque e Abednego foram acusados de desobediência e trazidos

diante do rei. Uma segunda oportunidade lhes foi dada de obedecer, ou em caso contrário

de serem lançados na fornalha ardente. Uma vez que tinha admitido a verdade da

acusação não sentiam necessidade de apresentar desculpas (v.16). Estavam prontos a

morrer por suas convicções religiosas. Criam firmemente que DEUS poderia salvá-los da

sentença de morte, mas mesmo se DEUS achasse por bem não livrá-los, não renegariam

sua decisão de não adorar a imagem de ouro. A rudeza aparente de sua resposta não

visava ofender o rei; expressava simplesmente sua convicção inabalável.

Nabucodonozor não ia tolerar desafio a suas ordens, e furioso ordenou que a

fornalha fosse aquecida ao máximo e os 3 indivíduos fossem lançados amarrados com suas

vestes. Fornalhas havia às dezenas num país que dependia de tijolos para a maior parte
das construções. O combustível usado nestas fornalhas consiste em "óleo cru e palha. Uma

temperatura tremenda é assim produzida, e pela abertura (lateral) o observador pode ver os

tijolos aquecidos até a incandescência".3

Morte por cremação é pouco documentada. Um tablete vem do tempo de Rin

Sin, rei de Larsa (1750 a.C.). Outro vem de Neriglissar, genro de Nabucodonozor, que

afirma "haver queimado adversários e desobedientes". Jer. 29:22 é o único texto do V. T.

que faz referência a este tipo de castigo infligido a dois falsos profetas por Nabucodonozor.

Este texto é praticamente contemporâneo de Daniel. A palavra usada por fornalha no texto

bíblico é attun, e é derivada da mesma raiz que o termo babilônico utunum.

Ao aguardar o desfecho de sua sentença cruel Nabucodonozor viu atônito

"quatro homens soltos, que andam passeando dentro do fogo" (v.25). Aparecem ilesos e o

quarto tem uma aparência divina. Em sua estupefação o rei se aproxima da boca da

fornalha e pede aos três mártires que saiam. O espetáculo insólito é testemunhado por

aqueles mesmos que acusaram Sadraque, Mesaque e Abed-Nego.

O resultado da prova foi realçar a superioridade do DEUS de Sadraque,

Mesaque e Abede-Nego, cuja fé foi assim publicamente honrada. Movido por esta

intervenção do Altíssimo, o rei baixou um decreto proibindo sob pena de morte qualquer

insulto ao DEUS, que de modo tão maravilhoso livrou Seus servos. A cerimônia toda que

tinha em vista ser uma ocasião para a deificação do monarca redundou para a exaltação

dAquele que pode frear o orgulho dos reis e exaltar os que põem sua confiança nEle.

A breve frase de Heb. 11:34, "extinguiram a violência do fogo", parece ser uma

referência aos acontecimentos descritos neste capítulo.

Notas
1. Lexicon in Vestus Testamenti Liberos, por L. Koehler e W. Baumgartner, 1958.

2. J. C. Baldwuin, Op. Cit., p. 102.

3. SDABC, Iv. P. 783. Montgomery, Daniel, p. 202.

DANIEL 4

O Orgulho de Nabucodonozor Humilhado

Ao passo que o reconhecimento público do DEUS de Israel vem como clímax

nas histórias dos cap. 2 e 3, no cap. 4 este reconhecimento aparece como o prólogo e o

epílogo da experiência religiosa que descreve. Não há nada inerentemente incrível na

história, apesar do silêncio das fontes babilônicas a respeito. As crônicas dos reis de

Babilônia são muito incompletas. Os documentos publicados por D. J> Wiseman em 1956

cobrem apenas os primeiros 11 anos do reinado de Nabucodonozor. Mesmo um


acontecimento tão importante como a conquista de Jerusalém, em 586, pelo exército de

Nabucodonozor, não encontra confirmação em fontes babilônicas. Além disto os cronistas

não costumam demorar-se sobre os vexames sofridos por seus patrões.

De outro lado a conversão de Amenofis IV do Egito à religião de Aton é bem

atestada. O episódio todo foi um desvio insólito dos caminhos tradicionais do Egito, e é

conhecido na história como a 'Revolução de Amarna'. A experiência religiosa de

Nabucodonozor descrita neste capítulo tem, pois, um paralelo notável. Além disto, há

evidência nos textos dos profundos sentimentos religiosos de Nabucodonozor, como o hino

seguinte ilustra:

O eterno príncipe!

Senhor de todo o ser!

Quanto ao rei a quem amas, e

Cujo nome tu proclamaste

Como te pareceu bem,

Guia sua vida com retidão,

Guia-o na vereda reta.

Sou o príncipe que te é obediente,

A criatura de tua mão;

Tu me criaste, e

Me confiaste com domínio

Sobre todo o povo.

Segundo tua graça, ó Senhor,

Que tu conferes a

Todos os povos,
Faze-me amar teu supremo domínio,

E cria em meu coração

A adoração de tua divindade,

E concede-me o que te for agradável,

Porque plasmaste minha vida.1

O tom religioso da proclamação real pode também ser explicada pela hipótese

de que Daniel mesmo a compôs por ordem do rei. Afinal de contas, reis não costumam

escrever seus próprios discursos. A mudança do pronome da primeira pessoa nos vv. 2-27

para a terceira pessoa nos vv.28-33, e de volta à primeira pessoa nos vv. 34-37, pode ser

explicada se assume que Daniel adicionou algumas notas à proclamação. Seria mais

apropriado para Daniel descrever a loucura do rei.

A saudação inicial, "paz vos seja multiplicada!" (v.1), encontra paralelos nos

editos de reis persas posteriores (ver Esd. 4:17; 7:12). O prólogo em forma de hino resume

a mensagem do livro todo, 'O Seu reino é reino sempiterno, e o seu domínio de geração em

geração' (v.3). Aquilo que e permanente é posto em contraste com a glória transitória dos

reinos deste mundo.

Depois desta doxologia, o rei continua contando como sua tranqüilidade foi

perturbada por um sonho, e como de novo os sábios de Babilônia não foram capaz de

interpretar o sonho. No final Daniel foi convocado, e nele somente o rei percebeu 'o espírito

dos deuses santos'. É impossível dizer se a palavra aramaica 'elahin deve ser tomada como

um plural de majestade e traduzida 'DEUS', ou como um simples plural. Theodotion em sua

tradução grega do livro de Daniel leu, "o santo espírito de Deus", no que foi seguido por

muitos comentadores cristãos.

O título que o rei deu a Daniel no v. 9, 'chefe dos magos' é, sem


dúvida,equivalente ao de 'chefe supremo de todos os sábios de Babilônia' do cap. 2:48. Na

mente dos antigos a linha divisória separando as várias classes sob cuja sombra animais e

aves achavam abrigo, e que provia alimento para todas as criaturas. Uma árvore

semelhante é usada pelo profeta Ezequiel para descrever a magnificência do rei do Egito

(Ez.31:3-9).

O termo vigilante no v.13 é usado só por Daniel. Corresponde ao aramaico ir

derivado do verbo ur, 'vigiar'. A Septuaginta traduz a palavra por aggelos, 'anjo'.Que se trata

de um ser celeste é claro no texto. A árvore possante é condenada a ser derrubada, mas

não desarraigada de toda. Que a cepa devesse ser atada com cadeias de ferro e de bronze

parece indicar continuidade da existência. Nenhum significado deve ser atribuído ao fato

das cadeias serem de ferro e de bronze. São pormenores necessários para completar o

quadro e nada mais.

Continuando a descrever o sonho o rei mesmo sugere uma interpretação parcial

nos vv. 15b e 16. A árvore realmente representa um ser humano que deve sofrer a

indignidade de ser sujeito a uma existência como a de um animal, possuindo a mentalidade

de um animal. Esta condição humilhante deveria durar sete tempos. A maior parte dos

intérpretes toma o aram. iddan, 'tempo', como significando anos. A Septuaginta traduz a

frase por 'sete anos'.

O propósito da sentença decretada no concílio celeste é expressa no v. 17: "Afim

de que conheçam os vivente que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens e o dá

a quem quer, e até ao mais humildes dos homens constitui sobre eles". O seguinte

comentário da pensa da inspira-ção vem a propósito: "o complicado jogo dos

acontecimentos humanos está sob controle divino" e um "propósito dominante tem operado

através dos séculos". "A toda a nação... DEUS tem designado um lugar no Seu grande
plano" e lhe tem dado a oportunidade de "preencher o propósito do Vigilante e Santo".2

Qual seja este desígnio é claramente expresso pelo apóstolo Paulo em seu

discurso diante do Areópago: "Para buscarem a DEUS se, porventura, tateando O possam

achar" (At.17:27). Em Seu desígnio inescrutável DEUS pode colocar sobre uma nação "o

mais humilde dos homens". Nabopolassar, o pai de Nabucodonozor, foi "o filho de ninguém"

como ele próprio afirma em uma de suas inscrições. Humildade de origem não é obstáculo

que impeça um homem de tornar-se um poderoso instrumento no cumprimento do plano

divino.

Este relato autobiográfico conta a seguir como após o fracasso dos sábios de

Babilônia Daniel foi convidado a interpretar o sonho,pois nele habitava o Espírito de DEUS

(v.18). Daniel aparentemente percebeu a interpretação ao ouvir a descrição do sonho, mas

alarmado com as implicações ele hesitou falar. Somente depois de ser encorajado pelo rei é

que ele procedeu a dar a interpretação. A árvore magnífica cuja fertilidade era uma bênção

para todas as criaturas simbolizava o próprio rei (vv.20-22). A sentença para abater a

árvore, mas deixar a cepa com as raízes na terra, significava que o rei seria banido do

convívio humano e viveria como um anima por sete anos (vv.23-25), mas que ele seria

restaurado afinal à sua dignidade real se reconhecesse que "o Altíssimo tem domínio sobre

o reino dos homens".

A humilhação que ameaçava o rei poderia ser evitada, se ele se arrependesse

de seu orgulho desmensurado, e se usasse de misericórdia para com os opressos para que

ele também alcançasse misericórdia. Daniel coloca-se na tradição dos profetas clássicos

com sua preocupação com a conduta moral. O homem por sua conduta pode influenciar o

curso dos eventos. Ele não é mero peão no tabuleiro da fatalidade. Como agente moral livre

pode escolher servir a DEUS com humildade de coração ou recusar. Mas naturalmente tem
de arcar com as conseqüências de sua escolha.

Há razão para supor que a seção seguinte (vv.28-33) foi redigida por Daniel

mesmo. Se Nabucodonozor ficou impressionado com a interpretação do sonho e seu

presságio sombrio, tudo indica que gradualmente expulsou a advertência de sua memória.

Embora nenhuma data seja dada, aparentemente os acontecimentos descritos no capítulo

ocorreram quando Nabucodonozor estava no auge do poder, quando a riqueza das nações

conquistadas estavam sendo usadas para reconstruir Babilônia numa escala mais

magnífica. A Septuaginta data este episodio do 18º ano do reinado de Nabucodonozor. A

causa de seu orgulho é diretamente relacionada com as construções que empreendera e

que devia impressionar seus contemporâneos com a glória de sua majestade. Apesar da

advertência de Daniel o rei se deixou transportar pelo orgulho: "Não é esta a grande

Babilônia que eu edifiquei.. com o meu grandioso poder..." (v.30).

Documentos desenterrados em Babilônia quase nada falam das campanhas

militares de Nabucodonozor. Mas em diversas inscrições ele se ufana de seu esforço de

fazer de Babilônia a maravilha do mundo. Eis um deles: "Em Babilônia, a cidade que prefiro,

que amo, achava-se o palácio, a admiração do povo, o liame do país, o palácio brilhante, a

habitação da majestade no solo de Babilônia".3

Babilônia cuja importância como cidade remonta aos dias de Hamurabi, tinha

sofrido consideravelmente em 689 a.C., quando o rei Senaqueribe da Assíria irritado pelas

revoltas aí fomentadas a destruiu. Reconstruída por ordem de Esarhadon, sofreu de novo

quando Assurbanipal tomou a cidade de assalto para sufocar uma revolução encabeçada

por seu irmão Shamash-Shum-ukim. Havia muito dano a ser reparado e Nabucodonozor

embarcou em seu programa de reconstrução com entusiasmo. Seu trabalho de

reconstrução foi tão extenso que eclipsou todas as realizações anteriores. Tem-se dito que
pouco podia ser visto que não tinha sido erigido em seus dias. Isto se aplica aos palácios,

templos, muros, e até a área residencial".4

Confirmando o provérbio, "o orgulho precede a queda" mal tinha o rei dado

expressão a sua soberba, quando sua razão apagou-se e ele perdeu o controle dos

negócios do reino. Sua enfermidade tem sido diagnosticada como licantropia, que se

caracteriza pelo fato que o paciente imagina ser um animal e age de acordo. Casos de uma

tal enfermidade não eram desconhecidos na antiguidade. Um texto cuneiforme no museu

britânico menciona um homem "que comia grama como um boi".5

A moral da história é que o homem perde a razão quando se julga autônomo, e

volta a razão quando reconhece a soberania divina. O v.34 diz que quando o rei levantou os

olhos ao céu, voltou-lhe o entendimento. Em vez de se exaltar no orgulho vão, o rei agora

atribui toda a honra ao Altíssimo, porque unicamente Seu domínio é um domínio eterno, e

somente sua soberania está acima de contestação (v.34-35). À luz de sua experiência

amarga, sua confissão de que "todos os moradores da terra são... reputados por nada"

assume um significado pungente.

Se se pergunta porque Nabucodonozor não foi privado do trono definitivamente

por causa de sua alienação mental, pode-se responder que outros reis afligidos de loucura

retiveram suas prerrogativas enquanto viveram. O rei George III da Inglaterra (1738-1820)

não foi deposto do trono por motivo de insanidade mental, 6 nem foi o rei Otto da Baviera.

Em caso de incapacidade do Monarca, regentes são designados para cuidar dos negócios

do reino enquanto dura o impedimento.

Alguns comentaristas pensam ver uma incongruência nas palavras finais da

proclamação real. Alega-se que o rei, apesar de sua confissão de fé, revela-se ainda muito

vão e egocêntrico. Levando-se em consideração a cultura pagão do rei, pode-se lhe


perdoar um resquício de egocentrismo. O reconhecimento de que todas as obras do

Altíssimo e Seus caminhos justos, unido à declaração de que DEUS "pode humilhar os que

andam na soberba", constitui uma conclusão apropriada para a longa peregrinação

espiritual de Nabucodonozor. Seus altos e baixos são típicos de toda a experiência humana.

Notas

1. G.S. Goodspeed, A History of the Babylonian and Assyrian, p.348, cit. em Jack Finegan,

Light from the Ancient East, p.225.

2. PK 535, 536; Ed. 174, 178, 177.

3. E. Schraeder, Keilinschriftliche Bibliothek, v.3, parte 2, p. 39, citado no SDABC IV. p.793.

4. Ibid

5. F. M. Th. de Ligrebohl, Opera Minora (1953), p. 527, citado no SDABC, IV. p.793.

6. W. E. H. Lecky, A History of England in the Eighteenth Century, vol V (London, 1887),

pp.96-147.
DANIEL 5

A ESCRITA NA PAREDE
O longo e próspero reinado de Nabucodonozor (605-562 A.C.) marcou o apogeu

do Império Babilônico. Somente 23 anos separam a morte do grande rei da queda do

império em 539 a.C. Nabucodonozor foi seguido no trono por Amel-Marduk (561-560), que

não possuia nada da habilidade do pai. Foi expulso do trono por seu cunhado Nergal-Shar-

Usur (na Bíblia Neriglissar), que reinou apenas 4 anos. Labash Marduk sucedeu a seu pai,

mas seu reinado foi interrompido pelos sacerdotes do deus Sin, que colocaram no trono

Nabonido (555-539). Crê-se que Nabonido tenha casado com uma filha de Nabucodonozor.

Neste caso, Belsazar filho de Nabonido, poderia ter sido neto de Nabucodonozor por parte

de mãe. A rainha mencionada no v.10 com toda probabilidade era a rainha-mãe, que estaria

bem familiarizada com os acontecimentos na vida de seu pai.

Quanto à historicidade de Belsazar ver a introdução. Desconhecido dos

historiadores gregos, a própria existência de Belsazar costumava ser negada pelos críticos.

Graças ao deciframento de numerosos tabletes babilônicos, sabe-se hoje que era Belsazar

que funcionava em Babilônia como co-regente durante a longa ausência de seu pai em

Tema. Documentos contemporários, tais como a "Crônica de Nabonido" e o "Cilindro de

ciro", nos permitem ter uma idéia mais clara dos últimos acontecimentos em Babilônia,

antes de sua queda. Quando Nabonido voltou à Babilônia na primavera de 539 para

celebrar a festa do Novo Ano, era demasiado tarde para recuperar o apoio popular. No

outono do mesmo ano os exércitos persas estavam exercendo pressão sobre as fronteiras

de Babilônia. Nabonido deixou a capital para travar uma batalha em Ópis, mas foi tomado

prisioneiro. Na batalha de Sypar, Gubaru (Gobryas das fontes gregas), um general de Ciro,

forçou a passagem do rio Tigre, e as tropas de Babilônia retiraram-se em confusão. Dois

dias mais tarde o exército persa entrou em Babilônia sem encontrar resistência (12 de

outubro de 539 a.C.). Não houve pilhagem, e os templos foram protegidos de modo
especial. Belsazar deve ter perecido numa escaramuça em volta do palácio, embora os

textos babilônicos guardem silêncio a respeito.

O cap. 5 nos dá um quadro do caráter displicente de Belsazar na véspera da

queda de Babilônia. Aparentemente ele confiava que a cidade fosse ivulnerável contra todo

ataque. Sua temeridade é patente em sua decisão de celebrar uma grande festa, quando

os exércitos inimigos estavam às portas da capital. Festas extravagantes como estas não

eram desconhecidas no Oriente Próximo. Uma inscrição descoberta em Calá menciona que

Assurbanipal II fez uma grande festa na inauguração de um novo palácio, durante a qual ele

entreteve 69.574 hóspedes durante dez dias. De Alexandre o Grande é dito que convidou

dez mil hóspedes para sua festa de casamento. W. H. Shea sugere que o banquete visava

celebrar a assunção do poder real por parte de Belsazar, quando chegou a notícia que seu

pai tinha sido aprisionado pelos persas. Tanto Herodoto quanto Xenofonte confirmam que

Babilôniam se dava à orgia na noite de sua queda.1

No meio da festança todo sentimento de reverência foi posto de lado, e o rei

ordenou que os vasos do templo que Nabucodonozor tinha trazido de Jerusalém fossem

usados na ocasião. Não somente foram os vasos profanados, mas a ocasião foi

transformada numa celebração desabusada em honra aos deuses de Babilônia (v.4). A

orgia logo assumiu o aspecto de um desafio ao verdadeiro DEUS. Esquecendo as lições do

passado, Babilônia estava marchando para sua ruína inevitável. À fraqueza militar

babilônica juntava-se a corrupção moral.

A bacanália insensata foi silenciada pela aparição súbita de uma mão que

escrevia no estuque da parede oposta ao rei. A consternação à vista deste espetáculo

estranho não podia ser disfarçada. Como de costume o rei recorreu aos sábios para decifrar

a escrita na parede. Em desespero de causa o monarca ofereceu a quem interpretasse


honras especiais e o terceiro lugar no reino.

Mais uma vez ficou provada a incapacidade da mera sabedoria humana para

desvendar os segredos divinos. O malogro dos sábios contribuiu ainda mais ao alarme do

rei e de seus grandes (v.9). Informada do pânico que reinava na sala do banquete, a rainha

mãe entrou sem esperar ser convidada. O prestígio da rainha mãe tanto nas cortes antigas

como modernas é bem conhecido. Para um exemplo particular ver II Reis 24:12 e 15. A

rainha lembrou como o rei confiava na sabedoria de um certo Daniel, que como resultado

tinha ocupado o cargo de chefe de todos os sábios de Babilônia. Ele deixou bem claro que

a distinção de Daniel residia no fato de que estava "o espírito dos deuses santos", ou

melhor "do DEUS santo (ver o comentário sobre Dan. 4:9 e 18). O estado de intoxicação de

Belsazar explica o fato dele esquecer o papel de Daniel como intérprete de sonhos na corte

de Nabucodonozor e a razão porque Belsazar não reconheceu Daniel, embora ainda

estivesse ligado à administração real (ver Dan. 8:1 e 27).

Quanto a objeção de que Nabucodonozor não era o pai de Belsazar, ver a

Introdução, onde se observa que no linguajar bíblico 'pai' freqüentemente significa

"antepassado", como quando Davi é chamado "pai" de muitos de seus descendentes

distantes.

Daniel foi convocado à presença do rei e se lhe pediu que fizesse aquilo que os

sábios de Babilônia não tinham podido fazer, a saber, ler a escritura na parede e dar a sua

interpretação. Se tivesse êxito receberia as honras que os outros não tinham logrado

receber.

Consciente da gravidade da hora, Daniel começou negando qualquer interesse

nas honras oferecidas. Nenhuma ambição material devia empanar seu cargo como

representante do único DEUS verdadeiro. Cumpriria seu dever como embaixador do


Altíssimo e não pelo desejo de qualquer vantagem pessoal. Lembrou a Belsazar a grandeza

e a majestade de Nabucodonozor e como tinha sido deposto do trono quando permitiu que

o orgulho lhe subisse a seu coração. A ênfase sobre a humilhação de Nabucodonozor

punha em maior relevo o orgulho e a displicência de Belsazar. Profanando os vasos da

casa de DEUS, Belsazar tinha ultrapassado os limites da paciência divina e selado sua

própria sorte. Esta sorte foi prefigurada nas 4 breves palavras escritas na parede: "Menem,

Menem, Tequel e Parsim".

Tanto quanto possamos julgar não havia nada particularmente misterioso quanto

à escrita mesma ou o significado das palavras. Aparentemente qualquer um familiarizado

com a escrita e o vocabulário aramaicos poderia ter lido as palavras. O problema consistia

em descobrir o significado destas palavras naquela conjuntura histórica particular.De origem

sobrenatural elas exigiam uma sabedoria mais do que humana para acertar com seu

significado fundamental.

O aramaico MENEM é um particípio do verbo 'numerar', ou contar, e em si

significado 'numerado' ou 'contado'. Por iluminação divina Daniel extraiu desta palavra a

interpretação, "Contou DEUS o teu reino e deu cabo dele" (v.26). TEQUEL como MENEM

devia ter sido vocalizado como um particípio passivo TEQUIL, "pesado". A interpretação

divina foi, "pesado foste na balança e achado em falta" (v.27). A idéia de pesar o coração

em balança diante do juiz celeste era corrente na teologia egípcia e certamente não era

desconhecida em Babilônia. Pompa e orgulho não podiam compensar a falta de peso moral

no caráter de Belsazar.

O termo PARSIM do v. 25 é o plural de perez do v.28. Perez significa "parte" ou

"porção". O plural parsim pode também ser traduzido por "pedaços". Daniel interpretou as

palavras como significando: "dividido foi o teu reino, e dado aos medos e aos persas". Sob o
ataque dos medos e persas o Império Babilônico estava sendo destroçado. O comporta-

mento irresponsável de Belsazar tornou a sentença irrevogável. As honras conferidas a

Daniel chegaram demasiado tarde. Naquela mesma noite Belsazar foi morto, mais

provavelmente numa escaramuça em volta do palácio, e a História do Oriente Próximo virou

outra página. Os documentos contemporários de Babilônia guardam silêncio sobre a sorte

de Belsazar.

Uma verdade importante que ressalta do texto é que o Império de Babilônia

devia ser dado aos "medos e persas", tratado como uma unidade política. A teoria de que o

autor de Daniel cria na existência de um império medo seguindo ao de Babilônia foi

inventada para favorecer a opinião de que a Grécia e não Roma constitui o quarto império

da profecia. Este verso juntamente com os versos 8, 12 e 15 do cap. 6 contradizem esta

teoria categoricamente. Ver também Dan. 8:20.

Quanto a identidade do Dario mencionado no v.31, ver a Introdução. As fontes

babilônicas e persas pouco contribuíram até agora para esclarecer a identidade. Para

resolver a dificuldade diversas conjecturas têm sido propostas através dos anos. Uma é que

Dario o Medo foi Astíages, o último rei da Média antes de sua conquista por Ciro. Outra

sugestão é que Dario o Medo foi Cambises, filho de Ciro. O fato, porém, é que Cambises

não poderia ter 62 anos em 539 a.C., como o v.31 afirma. Uma terceira hipóteses que Dario

o Medo foi Gobryas, governador de Babilônia debaixo de Ciro. Gobrias das fontes gregas é

então identificado como gubaru da "Crônica de Nabonido", que instalou "sub governadores

em Babilônia". A objeção principal a esta declaração é que Gubaru ainda vivia muito tempo

depois da queda de Babilônia, e portanto, não é provável que tivesse 62 anos de idade ao

subir ao trono. A quarta posição, que é preferida pelo SDABC, é que Dario o Medo era

Ciáxares II, filho de Astíages e tio de Ciro em virtude de ser o irmão de Mandane, a mãe de
Ciro, bem como sogro de Ciro, segundo Xenofonte.2 Como já mencionamos na Introdução,

D. J. Wiseman e outros preferem ver em Dario o Medo outro nome de Ciro o Persa. Na

opinião de Wiseman, Dan. 6:28 devia rezar: "Assim este Daniel prosperou durante o reinado

de Dario, isto é, o reinado de Ciro o persa". Que um monarca pudesse ter dois nomes não é

sem precedente. Tiglatepileser III (745-727 a.C.) da Assíria assumiu o nome de Pul(u) como

rei de Babilônia (II Reis 15:19 e I Crôn. 5:26).

NOTAS

1. Heródoto (I, 191); Ciropédia VII, 5, 15-15.

2. Ciropédia, 1.3.1, 4.1, 6-9, 20-22, 5.2.


DANIEL 6

DANIEL NA COVA DOS LEÕES

Em contraste com o cap. 5 que retrata Belsazar como um monarca

irresponsável, o cap. 6 reza mais como um panegírico de Dario. No enredo deste capítulo

os cortesões e não o rei são os vilões. O rei aparece como protetor de Daniel contra as

intrigas dos altos funcionários. Se o orgulho foi a fraqueza primária no caráter de

Nabucodonozor e displicência no de Belsazar, inveja e ciúmes marcam o comportamento


dos adversários de Daniel neste capítulo. Note-se mais uma vez que um retrato tão

favorável de um rei pagão não evocaria nenhuma simpatia no clima altamente polarizado da

época dos macabeus. A solução que muitos estudiosos propõem é de atribuir uma data

muito anterior para a composição desta e outras histórias da primeira parte do livro, embora

retendo uma data no segundo século para a seção profética. Mas esta solução contradiz a

unidade evidente do livro. É preferível manter a data tradicional do livro que é apoiada pelo

colorido local das histórias, e sua familiaridade surpreendente como pormenores históricos,

do que sacrificar sua unidade.

A história começa com uma breve descrição administrativa do império. O alto

número de satrapias, 120, parece discordar do número que se sabe ter existido nos dias de

Dario I (522-486), de acordo com Herôdoto.1 É bem possível que uma satrápia designasse

tanto uma província como suas subdivisões. Alguns historiadores gregos usam o termo

"sátrapa" para oficiais inferiores do reino. Afim de garantir um controle melhor dos sátrapas

deste vasto império três presidentes foram designados, dos quais Daniel era um (v.2). Uma

grande preocupação era que o rei não sofresse dano, certamente na questão do

recolhimento de impostos.

Em virtude de seu "espírito excelente", já em evidência nos reinados anteriores,

o rei pensava confiar Daniel com responsabilidades ainda maiores. Infelizmente o rei não

levou em consideração a inveja que iria despertar pela promoção de um estrangeiro acima

de seus compatriotas. Como era de esperar, presidentes e sátrapas feridos em seu amor

próprio procuraram uma oportunidade de acusar Daniel diante do rei em matéria de

administração. Seu despeito piorou ainda mais quando não lograram achar falta em Daniel

"porque ele era fiel". Ficaram perplexos diante da fidelidade do profeta.Vendo bloqueada

esta via de ataque, seus adversários procuraram a seguir achar falta com sua religião. Se
não houvesse um pretexto válido, eles criaram um (vv.4-5).

Acostumados com artimanhas legais conceberam a idéia de enredar o rei em

assinar um edito proibindo durante um mês que alguém fizesse petição a qualquer deus, ou

a qualquer homem, exceto ao rei. A fórmula apelaria à estima-própria do rei, e ao mesmo

tempo colocaria a suposta lealdade dos funcionários numa luz favorável. Aparentemente

contavam com a incapacidade do rei em adivinhar sua verdadeira intenção. Para garantir

que o rei não mudasse da idéia quando percebesse o objetivo do interdito, chamaram sua

atenção para a natureza irrevocável da "lei dos medos e persas" (vv. 8,12 e 15).

No que respeita a Daniel, não iria quebrar seus hábitos de oração por causa do

edito real. Era-lhe mais importante obedecer a Deus do que aos homens. Em questões

puramente seculares era hábito de toda sua vida conformar-se com as leis do país. Mas

não permitiria que leis humanas interferissem com suas convicções religiosas. A despeito

do interdito real, continuaria a orar três vezes ao dia no seu quarto, "onde havia janelas

abertas da banda de Jerusalém"(v.10). Esta prática obedecia uma compreensão literal da

prece de Salomão, "toda oração, e súplica que qualquer homem...fizer...estendendo as

mãos para o rumo desta casa"(I Reis 8:38 e II Cron. 6:34).

A ocasião que os funcionários invejosos aguardavam não se fez esperar, e não

perderam tempo em correr ao palácio com sua acusação vil. Lembraram ao rei as palavras

do interdito, e o rei tomado de surpresa admitiu que de acordo com a lei dos medos e

persas o decreto era irrevocável. Montgomery cita um caso no reinado de Dario III (336-

331), quando o monarca decretou a morte de um homem inocente. O rei "imediatamente se

arrependeu e culpou-se por ter grandemente errado; mas não era possível anular o que

tinha sido feito por autoridade real".2

Somente agora o rei percebeu que o interdito que assinara visava


particularmente a Daniel. Em sua aflição o rei fez tudo que pode para livrar Daniel da

sentença horrível que sobre ele pesava, mas em vão. Seus oficiais trataram de bloquear

qualquer solução legal, invocando com hipocrisia a irrevocabilidade da lei dos medos e

persas (vv.14-15). Mas o que o monarca não pode fazer por causa da força da lei, Deus

faria. Esta é a lição principal do capítulo.

Contrariado em seus sentimentos o rei ordenou que Daniel fosse lançado na

cova dos leões, mas não sem expressar a esperança de que o Deus a quem Daniel servia

tão fielmente o livrasse. Pode-se imaginar que foram os oficiais invejosos que fizeram pôr

uma pedra sobre a boca da cova, e que fizeram que a mesma fosse selada com o sinete do

rei e o seu, "para que nada se mudasse a respeito de Daniel" (v.17). Foi uma demonstração

tocante da alta estima em que o rei tinha seu servo, que ele passou a noite em jejum e

certamente em súplicas. Ao romper do dia o rei dirigiu-se apressado à cova dos leões cheio

de esperança de encontrar Daniel vivo. Com voz comovida o rei chamou a Daniel: "Daniel,

servo de Deus vivo, dar-se-ia o caso que o teu Deus, a quem tu continuamente serves,

tenha podido livrar-te dos leões?"(v.20). Para sua surpresa e alegria Daniel se achava vivo

e pode contar ao rei como Deus enviara seu anjo e fechara a boca aos leões"(v.22) Uma

referência a este acontecimento memorável é encontrada em Heb, 11:33, onde este

livramento é atribuído ao poder da fé. Dan. 6:23 diz que Daniel "crera no seu Deus".

A letra da lei tinha sido obedecida. Esta só exigia que Daniel fosse lançado na

cova dos leões (v.7). Não especificava o limite de tempo. Em obediência à ordem do rei

Daniel foi tirado da cova. Furioso com a intriga de seus oficiais, o rei agora ordenou que eles

e suas famílias fossem lançados na cova, onde foram imediatamente esmigalhados pelas

feras. A crueldade do ato é chocante, mas não podemos julgar uma monarca pagão pelas

normas de uma época mais esclarecida. À vista dos massacres perpetrados em campos de
concentração por uma nação dita civilizada, o desfecho é menos absurdo do que

Montgomery, escrevendo em 1927, imaginava ser.

O capítulo conclui com um decreto ordenando que todo cidadão reverenciasse o

DEUS de Daniel por ser ele o único DEUS que vive e cujo domínio dura para sempre.

Somente Ele salva e livra segundo Sua soberania.

Com este relato da intervenção divina nos negócios terrenos conclui-se a

primeira parte do livro. O propósito desta e outras narrativas foi de promover fé no DEUS

que pode salvar aqueles que põem sua confiança Nele. A fé atingira o nadir entre os judeus

exilados agora que os setenta anos preditos por Jeremias deviam expirar. Intimidados pelo

poder e majestade de um império terrestre, os exilados punham em dúvida cada vez mais a

soberania universal de jeová. A tarefa de Daniel, como de seu contemporâneo Ezequiel, era

de reanimar um povo desmoralizado e de infundir em seus corações a convicção de que

Jeová era infinitamente superior aos deuses do paganismo.

Ezequiel encerra a maior parte de seus oráculos com a fórmula de

reconhecimento: "e sabereis que eu sou o Senhor Deus" (Ez. 23:48; 24:24,27; 25:7,11;

26:6, etc). Israel devia ser levado a reconhecer que Jeová era o único Deus verdadeiro e

que nenhum poder terrestre poderia frustrar Seus desígnios. Não haveria futuro para os

judeus como nação se esta verdade existencial não fosse gravada em sua consciência uma

vez por todas.

Daniel, por sua parte, sentiu a necessidade de impressionar seu povo com a

verdade de que DEUS é o Senhor da história, que Ele "remove reis e estabelece reis"

(2:21), que um dia o reino visível de DEUS seria estabelecido, e que Sua soberania não

passaria a outro povo (2:44), e sobretudo que os viventes saibam "que o Altíssimo tem

domínio sobre o reino dos homens e o dá a quem quer" (4:17-25). Não somente estas
verdades tinham sido demonstradas nos dias de Daniel, mas eram igualmente válida para o

restante da história do homem neste planeta. Se o passado tinha vindicado o governo

benévolo de DEUS, o futuro o faria de igual modo.

NOTAS

1. Heródoto III. 89.

2. ICC, Daniel, p. 270.

3. Ibid., p.278.

DANIEL 7
INTRODUÇÃO

Tendo estabelecido um fundamento firme para confiança em DEUS, o profeta

passa a guiar seus leitores através dos vários episódios na história da salvação até à

inauguração do reino eterno de DEUS. A visão de Daniel agora volta-se para o futuro, e

particularmente aquela parte do futuro que futuro a Igreja mais diretamente. Da vasta tela

da história apenas alguns pontos são focalizados por causa de seu interesse religioso. A

soberania divina e a liberdade humana aparecem entretecidas num magnífico gobelino que

se estende pelo corredor da história até o eschaton.

Os capítulos 7 a 12 são escritos do ponto de vista da eternidade, sub specie

aeternitatis. Como alguém que tinha acesso ao conselho de DEUS (Jer. 23:18, 22), e

somente este acesso conferia autoridade ao profeta, ele delineia o futuro do ponto de vista

do céu, de tal modo que acontecimentos chaves na terra são vistos como a repercussão de

acontecimentos chaves no céu. Nenhum dos eventos históricos considerados é puramente

político. Todos eles têm sua conotação religiosa. Cada profecia indicará que DEUS é

soberano, que a história marcha rumo ao alvo de Sua própria escolha. O tema dominante é

que na luta titânica pelo poder DEUS tem a última palavra.

A profecia do cap. 7 realça o fato de que embora os santos possam sofrer

perseguição em mãos de poderes demoníacos, é a eles que afinal será dado o reino eterno

(vv.22, 27). O cap. 8 exalta a verdade da vindicação do santuário celeste no qual se

centraliza toda obra da salvação, ao passo que o cap. 9 revela aquele aspecto do plano da

redenção pelo qual o termo final seria posto ao pecado, e a justiça eterna seria estabelecida

em definitivo (v. 24). Os cap. 10 e 12 constituem uma grande visão com um prólogo (cap.

10) e um epílogo (cap. 12) do qual o clímax é a ressurreição dos santos mortos para a vida

eterna (12:2).
A Perspectiva do Tempo

A profecia clássica, como regra, falta a perspectiva do tempo. Para os profetas

clássicos como Amós e Isaías, todos os acontecimentos significativos do futuro fundem-se

num grande "dia do Senhor". Num oráculo referente à Babilônia Isaías juntou a destruição

daquele império com o fim do mundo. Ver particularmente Isa. 13:6-13 com sua conotação

escatológica. De igual modo os cap. 65 e 66 de Isaías retratam a restauração de Israel

depois do exílio em Babilônia como introduzindo um novo céu e uma nova Terra. À maior

parte dos profetas não lhes foi dada a percepção de que longos intervalos de tempo

separavam os acontecimento que tentavam retratar. Assim, em Joel 2:28-30 o

derramamento de Espírito precede sem outra "o grande e terrível Dia do Senhor". Ageu

descreve a restauração do templo depois do exílio como levando diretamente à era

Messiânica (2:6-9). Mal. 3:1-5 equaciona a primeira vinda de Cristo com o julgamento final.

Mesmo os apóstolos não possuiam uma perspectiva clara como é evidente na

pergunta que fizeram a Jesus antes de Sua ascensão: "Senhor, será este o tempo em que

restaures o reino a Israel ?" (AT. 1:6). No tempo em que escreveu a primeira epístola aos

tessalonincenses Paulo parecia esperar a vinda de Cristo em seus próprios dias (I Tes.

4:13-17). Somente em II Tes. 2:1-4 ele esclarece que a apostasia deve preceder o dia da

volta de Cristo.

A ausência da perspectiva de tempo é evidente em outros escritos do NT. Pode

ter sido o desígnio divino não fazer a Igreja imediatamente cônscia do longo tempo que

decorreria antes da vinda de Cristo. Fazê-la consciente teria sido muito doloroso para a

maioria dos crentes, e poderia abafar a nota de urgência na proclamação do evangelho.

Coube a Daniel introduzir a perspectiva do tempo na visão do futuro. Isto se


tornou possível quando a inspiração divina lhe revelou períodos proféticos cuja duração

seria marcada por acontecimentos específicos. Somente agora os acontecimentos críticos

na história da redenção podiam ser percebidos como separados por intervalos mais ou

menos longos. Assim em Daniel 9 a vinda do Messias é claramente separada da volta do

exílio por um intervalo de 483 anos. No livro do Apocalipse a perseguição da Igreja pelo

Anticristo é vista estender-se sobre um período de 1.260 dias proféticos, isto é, 1260 anos

literais (Ap. 12:6, 14 e 13:5).

A inclusão dos livros de Daniel e Apocalipse no canon das Escrituras demonstra

a mão da Providência. Pois estes dois livros suprem um senso de perspectiva na visão

profética do futuro como nenhum outro livro no canon. Não fosse pelas profecias de Daniel

7,8 e 9 e Apocalipse 11,12 e 13, a Igreja não saberia onde se encontra no curso da história.

Mas graças a períodos proféticos claramente ligados a acontecimentos históricos

específicos a Igreja pode saber que está à porta da eternidade.

Os Reinos deste Mundo Contra o Reino de Cristo

O cap. 7 divide-se naturalmente em duas seções: a visão propriamente dita

(vv.2-14), e sua interpretação (vv.15-27). A visão por sua vez pode ser dividida em duas

partes: acontecimentos que transpiram na terra (vv.2-8 e 11-12), e acontecimentos que

transcorrem no céu (vv.9-10 e 13-14). A interpretação também compreende duas etapas: a

primeira pergunta de Daniel seguida pela breve explicação do anjo (vv.15-18), e a segunda

pergunta de Daniel seguida por uma interpretação mais pormenorizada (vv.19-27).

Verso 2 a Visão é altamente simbólica, mas a maior parte dos símbolos já tinha

sido usada por um ou outro dos profetas clássicos, e muitos deles são interpretados no cap.

mesmo. Assim "ventos" simbolizam freqüentemente conflito político entre as nações.

Ezequiel descreve o ataque de muitas nações contra as montanhas de Israel nos termos
seguintes: "Então subirás, virás como tempestade, far-te-ás como nuvem que cobre a terra,

tu e todas as tuas tropas"(Ez.38:9). A luta perpétua entre as nações por um lugar debaixo

do sol é comparada por Isaías com o bramido do mar e o rugido de suas "impetuosas

águas" (Isa.17:12-13). Em Apo. 17:15 as "águas" são interpretadas como "povos, multidões,

nações e línguas". É claro, então, que os "4 ventos do céu" que "agitavam o grande mar"

(v.2) constituem um símbolo apropriado dos choques militares entre as nações em sua luta

contínua pela supremacia.

Verso 3. Deste mar saem 4 animais. Estes animais são interpretados no v. 17

como "4 reis que levantarão da terra". No v. 23 o quarto animal é interpretado como o

quarto reino da terra, o qual será diferente de todos os reinos. É evidente, então, que os 4

animais representam 4 reinos que exercerão domínio universal por um tempo, do mesmo

modo que os 4 metais da estátua de Dan. 2 simbolizavam 4 impérios.

Verso 4 "O primeiro era como leão, e tinha asas de águia". O leão que errava

pelas planícies da Mesopotâmia era um símbolo apropriado de Babilônia. Jeremias

compara Babilônia a um leão (Jer. 4:7 e 50:17). Ezequiel a compara a uma águia (Ez.17:3 e

12).1 A combinação de leão e águia era um motivo comumente usado na arte de Babilônia.

Estátua de touros e leões alados costumavam guardar a entrada dos palácios na Assíria. A

estátua de um leão de basalto foi desenterrada perto das ruínas de Babilônia e pode ser

vista pelos turistas que visitaram o local.

O arrancar das asas do leão e a perda do seu caráter bestial parecem apontar

para a fraqueza militar de Babilônia durante os últimos 20 anos de sua existência. Os

sintomas de decadência militar eram visíveis muito tempo antes do colapso do poderio

babilônico em 539 a.C.

Verso 5 O segundo animal era como um urso. Como o leão estava em casa nas
planícies da Mesopotâmia, assim o urso tinha seu habitat nas montanhas da Pérsia. Os

traços de crueldade e voracidade do urso são atribuídos aos medos em Isa. 13:17 e 18.

Mesmo se a aptidão do símbolo nos escapa, é claro nas páginas da história que a Medo-

Pérsia seguiu à Babilônia como a potência que dominou o mundo conhecido de então o fato

do urso se ter levantado sobre um dos seus lados parece apontar para o fato de que

primeiro os medos, e depois os persas, detiveram a liderança nesta monarquia dupla. É um

fato que os medos foram os primeiros em se organizar num reino unido e a manter a Pérsia

em vassalagem. Mas com a vitória de Ciro II em 550 a.C. as mesas se inverteram, e desde

então reis persas ocuparam o trono dos medos e persas.

A afirmação "na boca, entre os dentes, tinha três costelas", é geralmente

interpretada como denotando as 3 principais conquistas da Pérsia: a Lídia em 546 a.C., a

Babilônia em 539 a.C., e o Egito em 525 a.C. A estes outros territórios menores foram

acrescentados cumprindo a ordem: "levanta-te, devora muita carne". O domínio Medo-

Persa se estendia da Trácia na europa até a fronteira da Índia no Oriente.

Verso 6 O terceiro reinado é representado por um leopardo com 4 asas. O

leopardo é conhecido pela sua rapidez e agilidade. Sua rapidez é realçada pela presença

de 4 asas nas costas. O Império Greco-Macedônico, fundado por Alexandre o Grande é

aqui simbolizado. O que o distinguiu do império precedente foi a rapidez de suas

conquistas. Com a morte de seu pai Filipe da Macedônia, em 336 a.C., Alexandre, com

apenas 20 anos de idade, tomou as rédeas do poder, e para a admiração de todos

conseguiu unificar os estados gregos e lançá-los contra a Pérsia. Embarcou numa

campanha relâmpago para conquistar o vasto território da Pérsia. Com um exército de

35.000 homens cruzou o Helesponto e derrotou o pequeno exército persa às margens do

Grânico em 334. Toda a Ásia menor caiu em suas mãos em questão de meses. A segunda
grande batalha foi travada em Isso, em 333 a.C., e a despeito da superioridade numérica do

exército persa, sob o comando de Dario III, este sofreu uma derrota ignominiosa diante do

exército greco-macedônico muito mais aguerrido. Esta vitória foi seguida pela conquista de

Damasco, onde se achava parte do tesouro persa, e então pela conquista de Arvade,

Sidon e Tiro, privando assim os persas de seus portos na Fenícia. No Egito Alexandre foi

saudado como libertador do país da opressão persa. Sem perder tempo Alexandre voltou

para a Ásia, atravessou os rios Eufrates e Tigre, e enfrentou os exércitos de Dario III pela

última vez em Arbelas (Gaugamela), não longe da antiga Nínive, em 331 a.C. A derrota do

inimigo foi tão completa que Alexandre não teve dificuldade em conquistar as cidades de

Babilônia, Susã, Persépolis e Ecbatana em rápida sucessão. Nos anos seguintes seu

exército penetrou através d território inimigo até a fronteira da Índia. Nunca tanto território foi

conquistado em tão pouco tempo. Sonhando, enquanto residia em Babilônia, com a

conquista da Arábia, Alexandre morreu em 323, quando tinha apenas 33 anos.

A divisão do império de Alexandre entre seus generais é indicada pelas 4

cabeças do leopardo. Estas encontram seu paralelo nos 4 chifres do bode peludo de Dan.

8:8, 21 e 22, o qual é interpretado pelo anjo como sendo o reino ou rei da Grécia, e os

quatro chifres simbolizando os 4 reinos que o sucederam. A questão a ser decidida agora é

se o império devia permanecer unido sob Antígono e Demétrio, ou dividido entre os 4

generais de Alexandre. A decisão foi feita pela batalha de Ipso em 301 a.C., na qual

Antígono perdeu a vida. Como resultado dessa batalha o Império de Alexandre foi

desmembrado: Ptolomeu conservou o Egito, a Palestina, e parte da Síria; Cassandro

recebeu a Macedônia; Lisímaco ficou com a Trácia e uma parte da Ásia Menor, e Seleuco

herdou a parte oriental do Império, incluindo partes da Síria e da Ásia Menor. O poderio

destes reinos e suas fronteiras respectivas variaram durante os séculos, mas grosso modo
o símbolo das "quatro cabeças" é bem apropriado para descrever as várias partes do

Império de Alexandre até sua absorção gradual por Roma.

Verso 7 O quarto animal impressionou o vidente como "terrível, espantoso e

sobremodo forte". Seus "grandes dentes de ferro" lembram-nos a monarquia férrea em

Dan. 2. O avanço inexorável dos exércitos romanos encontra eco na frase, "devorava e

fazia em pedaços, e pisava aos pés o que sobejava". Esta descrição é muito parecida com

a do cap. 2, "como ferro quebra todas as cousas, assim ele fará em pedaços e esmiuçará"

(v.40).

Em vista do paralelismo que salta aos olhos nas profecias dos cap. 2, 7 e 8, a

interpretação dos sucessivos impérios deve ser coerente. Se no cap. 2 a cabeça de ouro é

interpretada como Babilônia (vv. 37-38), e no cap. 8 o carneiro simbolizava o império

seguinte, a saber a Medo-Pérsia (v.20), e este por sua vez é sucedido pelo império da

Grécia (v.21), segue-se que nestes 3 capítulos o quarto império deve ser Roma. O desejo

de escapar desta conclusão inspira-se não numa exegese objetiva do texto, mas no

conceito que um escritos do segundo século nada podia saber quanto ao futuro papel de

Roma. Em resposta a esta objeção, poder-se-ia dizer que ao passo que é apropriado falar

das "quatro cabeças" do leopardo como simbólicas do desmembramento do Império de

Alexandre em 4 partes, seria contrário aos fatos dizer o mesmo do Império Persa. Nunca se

dividiu em 4 reinos como a profecia de Dan. 8:22 prediz da Grécia. Além disso, se o

leopardo representa a Grécia, como comentaristas liberais mantêm, o quarto animal teria 10

chifres de acordo com Dan. 7:7 e 4 de acordo com 8:22. Seria uma maneira altamente

confusa de interpretar os símbolos. Tudo se entrosa, porém, se o terceiro animal é interpre-

tado como a Grécia, e o quarto como Roma. Isto corresponderia à ordem história dos

grandes impérios, Babilônia, Medo-Persia, Grécia e Roma, na qual não há lugar para um
império medo fictício.

Os "dez chifres" corresponderiam então aos dez dedos da estátua do cap.2,

onde simbolizavam as nações da Europa nas quais o Império Romano do Ocidente se

desmembrou sob o impacto das invasões bárbaras. Com o rolar dos séculos o foco de

atenção na profecia muda gradualmente do oriente para o ocidente, do mesmo modo que o

centro de gravidade do mundo político mudava na mesma direção.

Verso 8. À medida que o drama da história se desdobra, sua conotação religiosa

se torna cada vez mais clara. Este verso marca de fato uma transição de considerações

meramente seculares - uma sucessão de impérios - para as implicações religiosas da visão

que é o assunto do resto do capítulo. Como já foi observado, o livro de Daniel é acima de

tudo um livro religioso. Sua mensagem é antes de tudo uma mensagem religiosa. O

contexto histórico constitui apenas um quadro de referência para suas afirmações

teológicas.

Entre os dez chifres que simbolizavam a divisão do Império Romano em dez

nações surgiu "outro pequeno". A caracterização deste chifre como pequeno deve ser

explicada por seu caráter anti-religioso. Seu papel, porém, é muito importante, pois recebe

mais atenção do que qualquer outro aspecto da visão. Este chifre é dito possuir "olhos,

como os de homem, e uma boca que falava com insolência". Os olhos sem dúvida denotam

inteligência e sagacidade. A partir da informação suplementar que é dada nos vv.20 e 21, e

da interpretação nos vv.24 e 25, é manifesto que este chifre representa uma potência

política-religiosa, pois proferiria "palavras contra o Altíssimo", perseguiria "os santos do

Altíssimo", e cuidaria "em mudar os tempos e a lei"(v.25). Os Reformadores do séc. XVI

eram unânimes em ver no "chifre pequeno" um símbolo do papado. Argumentos a favor

desta interpretação se encontram no SDA Comentário Bíblico, Vol. IV. pp.826-829.


Versos 9 e 10. Estes versos transportam o leitor para a esfera celeste onde uma

cena de julgamento é descrita. Em harmonia com seu conteúdo sublime, estes versos

foram escritos em forma poética. O tribunal celeste é presidido pelo "Ancião de dias". Esta

descrição recorda textos como: "Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e

o mundo, de eternidade à eternidade tu és Deus". Ou de novo Deut.33-27: "O Deus eterno

é a tua habitação, e por baixo de ti estende os braços eternos". Uma visão do Deus inefável

sentado no Seu Trono é descrita em Ez.1:26-28. O profeta Micaías descreve a corte celeste

em termos semelhantes: "Vi o Senhor assentado no seu trono, e todo o exército do céu

estava junto a ele, à sua direita e à sua esquerda" (I Reis 22:19). À vista da riqueza de

imagens que se encontram no VT, é pedântico apelar a modelos babilônicos ou ugaríticos

como a fonte de onde simbolismo foi extraído. Afinal Daniel não estava compondo uma

peça literária, mas descrevendo o que viu em visão. Se paralelos devem ser procurados,

estes devem ser nos escritos dos profetas que enchiam a memória do escritor, e não na

mitologia pagã.

Qualquer dúvida sobre o significado do cenário desvanece diante da declaração:

"assentou-se o tribunal, e se abriram os livros"(v.10). A noção de que há relatos guardados

nos céus se encontra em textos como Exodo 32:23; Sal.56:8; Mal.3:16, etc. Esta visão da

corte celeste é um lembrete de que homens e nações deverão comparecer um dia diante

do tribunal de Deus (Rom.14:10). Tiranos terrestres podem vangloriar-se por um breve

tempo de suas proezas escritas em sangue, mas o Juiz de toda a terra os chamará um dia

a prestar contas. O autor de Eclesiastes convida os leitores a ponderar: "teme a Deus, e

guarda os seus mandamentos... Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras...."

(Ecl.12:13,14).

Verso 11. De novo a atenção do leitor é chamada para acontecimentos que


transpiram na terra, a saber, a destruição do quarto animal, a natureza anti-religiosa do qual

tornou-se patente no "chifre pequeno". O tribunal celeste pronuncia sentença contra o

animal, mas sua execução se realiza nesta terra. Embora o "chifre" persistisse em sua

atividade insultuosa enquanto o tribunal celeste estava em sessão, sua destruição final é

certa. O anúncio de que o "animal foi morto" é prolético. Antecipa-se aqui a sentença que no

final atingirá todos os adversários de Deus.

Verso 12 Este verso contém um pensamento parentético. Responde à pergunta

na mente de muitos leitores: "Que aconteceu com os outros animais ?" A resposta é que

quanto aos outros animais seu domínio já tinha sido tirado, à medida que cada um foi

superado pela potência mundial seguinte. O aramaico perfeito é melhor traduzido aqui pelo

mais-que-perfeito, de acordo com o contexto, "quanto aos outros animais, seu domínio tinha

sido tirado". Mas embora cada animal tivesse sido suplantado pelo seguinte, "foi-lhes dada

prolongação de vida por um prazo e um tempo". Na transição de uma entidade política para

outra nunca se dá uma exterminação total da população em causa, nem há perda total das

realizações culturais. Deste modo alguns elementos de cada império sobrevivem no

seguinte.

Verso 13 e 14 Estes versos focalizam de novo o cenário celeste: a vinda de um

"como o Filho do homem", a quem o Ancião de dias, em vista do julgamento realizado,

confere um reino que jamais será destruído. Em vista do fato que Cristo assume para Si o

título "Filho do homem" em passagens escatológicas como Mat. 24:27, 30, 39, 44; 25:31;

26:64, não resta dúvida que a cena descrita em Dan. 7:13-14 refere-se ao fato de Cristo

receber o reino antes da Sua vinda a esta terra na consumação dos séculos. Que Cristo

deve receber o reino antes de voltar a esta terra é indicado na parábola de Luc. 19:11-27. Aí

Cristo fala de "certo homem nobre" - evidentemente uma referência a Si mesmo - que
"partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de um reino, e voltar" (v.12). A

parábola continua no v. 15: "Quando ele voltou depois de haver tomado posse do reino..." É

claro,pois que quando Cristo voltar a esta terra, Ele terá recebido o reino. Pouco importa se

a parábola foi sugerida por um acontecimento histórico real, como por exemplo, o fato de

tanto Herodes I como seu filho Arquelaus terem ido à Roma para serem confirmados reis. O

fato é que o nobre da parábola representa a Cristo. 2

O reino lhe será conferido como resultado do julgamento pre-advento descrito

em Dan. 7:9-10 e 13-14. Não há dúvida de que o elemento mais importante de um reino

são os súditos, e não o território sobre o qual o rei exercerá sua soberania. O Tribunal

Celeste não decide o direito de Cristo receber o reino. Este direito Cristo adquiriu por Sua

morte sobre a cruz (Ap.5:9). O que o tribunal celeste deve determinar é quem terá direito a

ser um súdito do reino eterno de Cristo (Ap.22:14). Esta questão de suma importância deve

ser decidida na base do que está escrito nos livros (Dan. 7:10 Ap. 20:12). Nomes

registrados no "Livro da Vida" podem ser apagados (Ap.3:5). Somente aqueles que

perseverarem até o fim serão salvos (Mat.24:13). Há muitos que começam bem a jornada

do cristão, mas que no final vêm "a naufragar na fé" (I T Segue-se do que acaba

de ser dito que, ao receber o reino, o Filho do homem recebe o rol dos santos que

constituem o reino. São Seus troféus e Sua glória; foram resgatados para DEUS pelo

"sangue de Cristo", homens "de toda tribo, língua, povo e nação" (I Ped. 1:18, 19 e Apoc.

5:9). O elo lógico entre o julgamento de Dan. 7:9-10 e a entrega do reino ao filho do homem

é este: o julgamento decide quem são os súditos que constituem o reino que é dado a

Cristo. Ao receber os "filhos do reino", Cristo recebe o reino. Salientemos uma vez mais que

o tribunal divino não determina os méritos de Cristo para receber o reino, mas as

qualificações dos súditos cujos nomes estão escritos no "livro da vida".


Muita tinta tem corrido em argumentar a identidade do Filho do homem, e sobre

se o reino é dado a Ele, ou aos Santos do Altíssimo. Uma vez que se reconhece que os

santos são "co-herdeiros com Cristo", o dilema desaparece (Rom. 8:17). Com efeito Daniel

não faz distinção entre o Filho do homem receber o reino (v.14) e os santos receberem o

reino (vv.18, 22 e 27). Em conseqüência Cristo pode saudá-los no final dizendo: "Vinde,

benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do

mundo" (Mat.25:34)

Alguns comentaristas pretendem que o ser designado por "um como o Filho do

homem" representa um reino espiritual, contraste com os animais que simbolizavam os

reinos deste mundo. Não é nada provável que este contraste entre "animais" e "homem"

desempenhasse qualquer papel na escolha que Daniel fez dos símbolos. Afinal de contas, o

Filho do homem não é símbolo de um reino celeste, mas recebe do Altíssimo um reino

celeste.

Versos 15 a 18 Estes versos contêm o primeiro pedido de Daniel que se lhe

desse uma interpretação sobrenatural dos momentos críticos na grande controvérsia entre

a luz e as trevas. Como outros comentários no livro mostram, o profeta sempre sofria

fisicamente e emocionalmente o efeito dessas visões (7:28; 8:27; 10:8, 16 e 18). Mas nada

impede que ele peça a um dos anjos presentes o significado das cousas que acabava de

ver. A réplica é extremamente breve, e aparentemente não continha mais do que o vidente

podia suportar naquele momento. O anjo explica que os 4 animais representam 4 reis

(reinos). Segue-se a afirmação promissora: "Mas os santos do Altíssimo receberão o reino".

Versos 19 a 22 A curiosidade de Daniel volta-se agora para o quarto animal,

cuja aparência retorna à sua mente com pormenores adicionais. Os versos 2 a 8 continham

apenas um esboço muito breve da história universal. O profeta recorda agora pormenores
que escaparam à sua atenção da primeira vez. A ponta que tinha "olhos com os de homem,

e uma boca que falava com insolência" é vista fazer guerra aos santos e prevalecer sobre

eles (v.21). A cena do julgamento também se lhe torna mais clara. Os santos podem sofrer

perseguição da parte da ponta pequena, mas se lhes assegura que no tribunal divino

sentença será pronunciada a seu favor, e que afinal eles receberiam o reino, reino este que

jamais passará (v.22). É preferível ler com o aramaico, "o Ancião de dias tomou Seu lugar"

no tribunal celeste, em vez de simplesmente "veio". Trata-se neste verso de se fazer justiça

aos santos, e não de entregar o julgamento aos santos. de acordo com o Novo Testamento

somente depois de sua própria vindicação é que aos santos se dá o poder de julgar o

mundo e os anjos (I Cor. 6:2-3; Ap. 20:1 ss).

A guerra movida pelo chifre pequeno aos santos é antes de tudo uma guerra

religiosa. Não é questão apenas de perseguição, prisão e morte. É questão de distorção de

seu caráter e de sua crença. Com efeito o,primeiro dever dos inquisidores era demonstrar a

natureza herética das crenças e práticas dos acusados. Seu caráter cristão era posto em

dúvida, e seu direito de se chamarem cristãos negado.

Como resultado, os santos necessitavam não só ser livrados do poder do chifre

pequeno, mas ter verdadeiro caráter vindicado. A corte celeste preocupa-se com

estabelecer o caráter dos acusados, e assim manter o direito dos santos, em vista de sua

relação com Cristo, à sua herança eterna. Àqueles que são aprovados no tribunal celeste

"foi dada uma vestidura branca" (Ap. 6:11). A vestidura branca é definida em Ap. 19:8 como

"os atos de justiça dos santos", ou simplesmente como "a justiça dos santos". O que

reclamam é o reconhecimento de seu direito à vida eterna (Ap. 6:10).

A natureza desta controvérsia religiosa se destaca em Ap. 12:10. Aí Satanás é

designado como "o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite,
diante de nosso DEUS". O direito do crente de herdar a vida eterna é contestado por

Satanás, e precisa ser defendido por Cristo. Esta contestação se efetua no tribunal celeste,

à medida que o registro de cada crente em Cristo é examinado, e explica porque o

julgamento que precede o advento tem-se prolongado por tantos anos. Em vista das

questões eternas em jogo, compreende-se porque Satanás tenta exagerar o

desmerecimento de cada santo. Mas todo crente sincero pode descansar no fato que

"temos um Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo" (I João 2:1).

Verso 23 Encorajado pelo desejo de Daniel de uma compreensão melhor, o

intérprete angélico prossegue com uma explicação mais pormenorizada do quarto animal e

dos dez chifres: "O quarto animal será um quarto reino na terra". Este verso, como já visto,

fornece a chave para a interpretação dos outros animais: eles simbolizam reinos. O quarto

animal, o Império romano, foi "diferente de todos os reinos" sobre tudo por causa de seu

poder irresistível, "devorará toda a terra e a pisará aos pés, e a fará em pedaços, e por

causa de sua maior coesão interior, que lhe permitiu dominar o mundo durante mais de

meio milênio. Outro traço característico é que este animal possuiria dez chifres, que

certamente representam as nações da Europa que resultaram do desmembramento do

Império romano (v.24).

A atenção converge a seguir sobre o décimo primeiro chifre, que seria diferente

dos primeiros e abateria a três reis. Os reformadores e os intérpretes, em geral, até o final

do séc. XVIII, não tinham dúvida de que este chifre simbolizava Roma Papal, a qual,

diferente de outras potências, exercia tanto autoridade política como religiosa. Os 3 reis que

seriam abatidos a fim de abrir caminho para o papado foram os reinos arianos dos hérulos,

vândalos e ostrogodos. Enquanto estas potências arianas eram influentes, o papado não

podia exercer autoridade completa na europa.


Seus traços religiosos são delineados no v.25. Seria uma potência blasfematória

que arrogaria para si títulos e prerrogativas que pertencem a DEUS somente. Paulo deve

ter tido em mente o mesmo poder, quando descreveu a apostasia que ocorreria na Igreja

num futuro tão distante (II Tes.2:4-12). João no Apocalipse também se refere a uma "besta"

que proferia arrogâncias e blasfêmias (Ap. 13:5). A linguagem é quase idêntica a de Daniel

7.

A extensão das pretensões papais é ilustrada pela encíclica ditada pelo Papa

Leão XIII, em 10 de janeiro de 1890, na qual afirma que "o pedagogo supremo na Igreja é o

Pontífice

romano. A união das mentes, portanto, exige... completa submissão e obediência voluntária

à Igreja, e ao Pontífice Romano, como ao próprio DEUS". No quinto concílio Laterano em

1512, Cristófer Marcelo disse ao Papa: "Tu é o Pastor, tu é o Médico, tu és o Governador, tu

é o Vinhateiro, tu és outro deus na terra" (J. D. Mansi, Ed., Sacrorum Concilio-

rum...Collectio, 32:761).

Além de suas pretensões blasfematórias, o "chifre pequeno" perseguiria os

santos do Altíssimo, e isto por "um tempo, dois tempos e metade de um tempo". O papado

admite ter perseguido os hereges, e defende o ato como um exercício legítimo de sua

autoridade. Quanto a pormenores da perseguição do papado aos albigenses, valdenses,

hussitas, lolardos e aderentes da Reforma no Países Baixos, Espanha, Itália, França, etc.,

ver O conflito dos Séculos, cap. 4, 5 e 6. Quanto à legitimidade da Inquisição que resultou

na condenação de milhares de assim chamados hereges à prisão e à morte, A Enciclopédia

Católica diz: "Na bula 'Ad extirpanda' (1252) Inocêncio IV declara: 'Quando aqueles julgados

culpados de heresia tiverem sido entregues ao poder civil pelo bispo ou seu representante,

ou pela Inquisição, o podesta ou magistrado principal da cidade os prenderá imediatamente,


e dentro de cinco dias no máximo executara as leis feitas contra eles'... Nem pode haver

dúvida sobre que regras civis se tem em mente, porque as passagens que ordenam

queimar os hereges impenitentes foram inseridas nos decretos papais das constituições

imperiais 'Comissis nobis' e 'Incosutibilem tunicam'. A bula 'Ad extirpanda' permaneceu

desde então um documento fundamental da Inquisição, renovado ou reforçado por diversos

papas, Alexandre IV (1254-61), Clemente IV (1265-68), Nicolao IV (1288-1292), Bonifácio

VIII (1294-1303), e outros. As autoridades civis, portanto, eram ordenadas pelos papas, sob

pena de excomunhão, de executar as sentenças legais que condenavam os hereges à

fogueira".3

O período profético de "um tempo, tempos e metade de um tempo", indica o

período de supremacia papal, quando sua autoridade na Europa estava no auge. Ap. 12:14

parece referir-se aos mesmo eventos, pois aí é dito que o dragão, a saber Satanás, por

intermédio de potentados terrestres, perseguiria a Igreja também por "um tempo, tempos e

metade de um tempo". O mesmo período aparece em Ap. 12:6 como "mil duzentos e

sessenta dias", e em Ap. 13:5 como "42 meses". Como 42 meses de trinta dias fazem 1260

dias, é óbvio que todas estas profecias se referem ao mesmo período. Compreende-se de

igual modo, que um tempo significa um "ano" de 360 dias. Daí resulta que o período de um

ano, mais dois anos, mais meio ano de Dan. 7:25 corresponde a 1260 dias. Como a

profecia é escrita em linguagem simbólica, é razoável supor que o termo "dias" seja aqui

tomado simbolicamente. Tomado literalmente um período de 1260 dias, ou três anos e

meio, seria irrisório considerando o vasto intervalo de tempo coberto por estas profecias.

Basta dizer que os vários impérios que aparecem neste capítulo exerceram seu poder

durante vários séculos. E se esta profecia, como seu paralelo no cap.2, deve atingir o final

da história, quando DEUS estabelece Seu eterno reino, então o período de 1260 dias deve
ser interpretado em termos de um dia por um ano, como vários textos bíblicos o sugerem

(Núm.14:34; Ez.4:6, etc).

Teríamos então um período de 1260 anos para o floruit da supremacia papal, o

que se enquadra nos fatos históricos perfeitamente.

Quanto a pormenores sobre a interpretação deste período profético, ver o

SDABC, vol IV, pp. 834, 835. Para a validade da equivalência dia-ano em matéria de

interpretação profética ver William H. Shea, Selected Studies of Prophetic Interpretation, pp.

56 a 85.

Muitos dos antigos intérpretes protestantes viam o começo do período dos 1260

anos em 538 a.D., quando os Ostrogodos foram forçados a levantar o cerco de Roma,

desaparecendo assim a última ameaça à autoridade papal na Itália. Os ostrogodos, como

os hérulos e os vândalos, tinham abraçado a forma ariana do cristianismo, e não

reconheciam a autoridade do papa em assuntos eclesiásticos. Muitos intérpretes crêem que

os 3 reis do v.24, representam exatamente os ostrogodos, os hérulos e os vândalos, os

quais foram abatidos um após o outro, deixando o papado livre para estender sua influência

sobre áreas cada vez maiores na Europa. Esta influência foi grandemente cerceada pela

Reforma Protestante no séc. XVI, e de novo em 1798, quando o General Berthier,

obedecendo ordens do Diretório em Paris, prendeu o Papa Pio VI, enviando-o para o exílio

em Valência na França, onde morreu dois anos depois.4 Embora outro papa fosse eleito em

1800, grande foi a perda de prestígio para o papado. Quanto aos pormenores da ascensão

e queda do papado ver SDABC, vol IV, pp. 834-838.

Versos 26 e 27 Embora completa unanimidade sobre a interpretação de alguns

detalhes desta profecia seja dificilmente atingível, é claro que o tribunal celeste terá a última

palavra, e que uma sentença de morte será pronunciada sobre a potência que oprimiu os
santos nesta terra. "O tribunal, o mesmo tribunal descrito nos vv. 9 e 10, "se assentará",

pronunciando condenação para o opressor e vindicação para o "povo dos santos do

Altíssimo". Serão declarados dignos de serem súditos do reino de DEUS, e pela mesma

razão se tornarão co-herdeiros com Cristo do "domínio eterno" que lhe será concedido pelo

Altíssimo (vv. 13-14).

Percebe-se assim que os vv. 26-27 suplementam a informação sobre o tribunal

celeste dada nos vv. 9-14. Além disto, o v. 26 nos permite deduzir que o tribunal divino entra

em sessão algum tempo depois do período da supremacia papal. É interessante notar que

o meio deste longo período coincide com o zenite do poder papal durante o pontificado do

papa Inocêncio III (1198-1216), que foi o promotor da cruzada contra os albigenses no sul

da França, e o fundador do tribunal da Inquisição.

NOTAS

1. Ver S. H. Langson, "Semitic Mithology", The Mithology of all Races, vol 13, pp. 118, 177-

282.

2. É instrutivo que o "Filho do homem" é interpretado como o Messias nos Oráculos

Sibilinos, X, 414, e por Josué ben Levi. Ver G. F. Moore, Judaísmo, Vol II, p.335.

3. Joseph Blotzer, art. "Inquisition", The Catholic Encyclopedia, Vol VIII, citado no SDABC,

Vol IV, p.831.

4. L. Von Ranke, History of the Popes, Vol II, tr., pp. 458-9.
DANIEL 8

A VISÃO DAS 2.300 TARDES E MANHÃS

Verso 1 Esta visão é datada do terceiro século do reinado de Belsazar. Esta

data corresponde a c.550/549a.C., que acontece ser o mesmo ano em que Ciro revoltou-se

contra seu sogro Astíages da Média, e uniu-se os dois reinos sob um só cetro.

Verso 2 Daniel é transportado em visão para Susã, outrora capital de Elão, mas

que tinha sido incorporada no território da Pérsia. Isto é significativo porque a visão omite os

últimos anos do decadente império babilônico, e focaliza a atenção nos acontecimentos que

transcorrem depois que a Medo-Pérsia assume a liderança nos negócios no Oriente

Próximo. No final da visão Daniel se encontra de novo em Babilônia, tratando "dos negócios

do rei" (v.27). Não há razão, pois, para imaginar que Daniel se jubilara depois da morte de

Nabucodonozor.

Verso 3 O carneiro com os dois chifres é interpretado no v.20 como símbolo da

monarquia unida da Média e Pérsia. "Reis" e "reinos" se equivalem tanto neste capítulo

como no cap. 7. Assim os 4 chifres que brotaram no lugar do "grande chifre" são

interpretados como 4 reinos (v.22 u.p.). A profecia não está lidando com reis individuais,

mas com entidades políticas maiores e mais duradouras. A única exceção a esta regra é o

"chifre grande" do "bode peludo", que é dito ser "o primeiro rei", isto é, Alexandre o Grande.

O mais alto dos dois chifres do carneiro deve simbolizar a Pérsia que de fato só atingiu

importância militar depois da Média. Embora a Média se constituísse como nação primeiro,

foi a Pérsia que com Ciro II assumiu a liderança em 550 a.C.

Verso 4 De sua base no Oriente a Medo-Pérsia dava marradas para o ocidente,


para o norte e para o sul, engrandecendo-se cada vez mais até o ponto de eclipsar todos os

impérios anteriores em extensão territorial.

Verso 5 A rapidez com que Alexandre à testa das falanges macedônicas veio

do ocidente e destruiu o Império Medo-Persa é descrita neste verso e no seguinte. O "chifre

notável" do carneiro é interpretado no v.21 como sendo o "primeiro rei", evidentemente uma

referência ao próprio Alexandre, o fundador do novo império.

Versos 6 e 7 Assim como o carneiro não podia competir em força com o bode,

os exércitos persas não estavam à altura dos exércitos greco-macedônicos sob o comando

de Alexandre. A despeito do seu número as hostes persas foram desbaratadas

ignominiosamente pelos ataques de um adversário altamente aguerrido.

Verso 8 Se o carneiro se engrandeceu em seu dia, o bode greco-macedônico

"se engrandeceu sobremaneira". As proezas de Alexandre excederam de longe as de Ciro

o Grande ou qualquer dos seus sucessores. A Alexandre não foi dado, porém, desfrutar por

muito tempo os frutos de seu esforço hérculeo. Sua morte inesperada quando ainda não

tinha completado 33 anos pôs termo a sua carreira brilhante. O desmembramento de seu

império em 4 reinos é bem descrita neste verso. Verificar a interpretação no v. 22. Para

mais pormenores ver o comentário de Dan.7:6.

Verso 9 A interpretação dos versos 2 a 8 acima é posta acima de qualquer

controvérsia pela explicação detalhada dada pelo anjo nos vv. 20-22. A unanimidade dos

comentadores cessa, porém, com o verso 9.

Se o princípio do paralelismo dos cap. 2, 7 e 8 é aplicado consistentemente,

então o chifre dos vv. 9-12 que surge depois da visão do Império de Alexandre só pode

simbolizar Roma. Deve-se admitir que a maior parte dos comentadores do séc. XX vê neste

"pequeno chifre" um símbolo de Antíoco Epifânio (175-163 a.C.), em sua tentativa fútil de
acabar com os costumes e a religião dos judeus. Mas ao fazê-lo os comentadores ignoram

o paralelismo entre os cap. 2, 7 e 8, os quais sem exceção cobrem todo o tempo que vai de

Daniel até ao final da História. O sonho do cap. 2 atinge o clímax quando DEUS suscita "um

reino que jamais será destruído" (v.44). A visão do cap. 7 culmina com a vindicação pelo

tribunal celeste do "povo dos santos do Altíssimo", a quem afinal um reino eterno é dado

(v.27). O cap. 8 reconta as atividades sacrílegas de uma certa potência contra o povo de

DEUS, a verdade de DEUS e o santuário celeste, mas no desfecho da história este poder

"será quebrado sem esforço de mãos humanas" (v.25). A linguagem deste verso recorda a

pedra "que do monte foi cortada... sem auxílio de mãos", a qual provoca o fim catastrófico

dos reinos deste mundo (2:45).

Se Cristo viu "o abominável da desolação" de Dan. 8:13, 11:31 e 12:11 encontrar

cumprimento em seus dias (Mat. 24:15ss.), não há razão que nos obrigue a interpretar o

"chifre" de Dan. 8:9 ss., como símbolo de Antíoco Epifânio, como se ele fosse o objeto

principal desta profecia. É verdade que "muitos anticristos têm surgido" (I João 2:18), e

Antíoco IV bem pode ter sido um deles. Mas há razões poderosas para não limitar o

cumprimento desta profecia às atividades anti-judáicas de Antíoco Epifânio.

Toda tentativa de interpretar o pequeno chifre do v. 9 exclusivamente como

Antíoco está destinada a falhar. Em primeiro lugar, os símbolos representam reinos ou

poderes, e não reis individuais (ver v.22). Antíoco IV era apenas um na longa lista de reis

selêucidas, e de modo algum o mais ilustre. General muito mais competente que Antíoco IV

foi seu pai Antíoco III, que conseguiu arrancar a Palestina das mão dos Ptolomeus depois

da batalha de Pânio em 198 a.C. Dificilmente poder-se-ia dizer de Antíoco IV que se

engrandeceu ou "se tornou muito forte para o sul, para o oriente e para a terra gloriosa"

(v.9), ou que prosperou em seus empreendimentos (v.12). Não conseguiu conquistar o sul -
o Egito - de modo permanente. Com efeito, em sua segunda campanha contra o Egito em

168 a.C. foi obrigado pelo embaixador romano Pupilius Laenus a abandonar o Egito, ou

sofrer as conseqüências. Nem teve Antíoco muito êxito em direção do oriente. Ao

empreender uma guerra em Elão, em 163 a.C., foi frustrado em seus planos e morreu logo

depois, deixando seu reino em desordem.1 Tão pouco teve êxito em sufocar a revolta dos

Macabeus na Judéia. Um ano antes de sua morte os judeus reocuparam Jerusalém,

rededicaram o templo, e para todos os efeitos práticos recuperaram sua independência.

Se, ao contrário, as afirmações do v.9 são aplicadas à Roma, elas são

plenamente justificadas. Em suas conquistas extensas Roma subjugou Catargo e o Egito no

sul, anexou toda a Ásia Menor, Síria e Mesopotâmia no Oriente, e colocou "a terra gloriosa"

- a Palestina - sob seu domínio já em 63 a.C.

Digno de nota é o fato que do mesmo modo que em Dan. 7:9 ss. o foco de

atenção é transferido da terra para o céu, o mesmo ocorre em Dan. 8:14 e seguintes. Deste

modo um paralelismo consistente é mantido entre os dois capítulos. Ambos descrevem

acontecimentos na terra bem como na esfera celeste, em harmonia com o caráter

essencialmente religioso do livro. Em jogo neste conflito de dimensões cósmicas está a

própria existência do povo de DEUS na terra bem como as verdades da fé cristã.

Verso 10 A hostilidade de Roma ao "povo santo" é retratada neste verso

(conferir com o v.24). Ao perseguir a igreja Cristã nascente, Roma estava, com efeito,

fazendo guerra ao "exército dos céus". Ao perseguir os membros da Igreja Cristã, Paulo

estava perseguindo a Jesus mesmo (At. 9:4 e 5).

Verso 11 A mudança do feminino para o masculino neste verso pode indicar,

segundo G. Hasel2, a transição de Roma pagã para Roma papal. Para A. Lacocque, com a

mudança de gênero "passamos da metáfora para a realidade simbolizada". 3 Roma papal


"engrandeceu-se até o Príncipe do exército", quando assumiu títulos e prerrogativas que

pertenciam a Cristo e a nenhum outro. Ver o v.25 onde o "príncipe do exército" é chamado

"príncipe dos príncipes". Em Ap. 19:16 Cristo é chamado "Rei dos Reis e Senhor dos

senhores". A mesma expressão "Príncipe do exército" se encontra em Josué 5:14 e 15,

onde evidentemente indica um ser celestial.

A remoção do "sacrifício costumado" ou contínuo" (Heb.hattamid) é de

importância capital nesta profecia. Hattmid refere-se primariamente aos holocaustos que

eram oferecidos, sem interrupção, cada manhã e cada tarde, no Santuário, e que

constituiam o centro do culto ali oferecido. Por intermédio do "contínuo" expiação e

intercessão eram feitas a favor de Israel pelo sacerdote oficiante. Em tipo apontava para o

futuro ministério de Cristo, de expiação e mediação, tanto na terra como no santuário

celeste. A remoção do "contínuo" simbolizaria então a obliteração do ministério sacerdotal

de Cristo no céu pela instalação de uma falsa mediação sacerdotal na terra.

O ato de deitar abaixo "o lugar de seu santuário" aponta para o fato que a

própria existência de um santuário celeste, onde Cristo atua como Nosso Sumo-Sacerdote

e único Mediador, seria ignorada durante séculos a fio. Quanto ao significado vital desta

mediação e intercessão ver I Tom. 2:5; Heb. 7:25 e 8:1-2. Tão indispensável tornou-se a

missa e mediação sacerdotal na terra que não havia lugar na teologia católica para o

santuário celeste.

Diga-se de passagem que Antíoco Epifânio nunca deixou por terra o Templo em

Jerusalém, como a profecia específica. O que fez foi profaná-lo e isto durante o período de

cerca de três anos. Neste ponto, como em muitos outros, ele não satisfez a descrição

profética.

Verso 12. O "exército" é interpretado no v.24 como sendo "o povo dos santos".
Permissão divina para a entrega do "exército", isto é para a perseguição dos santos,

também é mencionada em Dan.7:21 e 25. Não somente os santos, mas também o

"contínuo" seria o objeto da hostilidade do "chifre pequeno".

A verdade que "foi deitada por terra" é certamente a verdade do evangelho, e

particularmente aqueles aspectos da verdade relacionados com o santuário e "o sacrifício

costumado", em outras palavras, a verdade do ministério de mediação de Cristo no céu,

que constitui o coração do evangelho (Heb.7:25).4 É este ministério que torna efetivo na

experiência do crente individual o sacrifício oferecido por Cristo na Cruz. Ao passo que a

morte de Cristo na cruz efetuou expiação pelos pecados "do mundo inteiro"(I João 2:2), é

Sua obra mediatória que torna esta expiação significativa para o indivíduo quando ele

professa fé em Cristo. Em outros termos, é a mediação sacerdotal de Cristo que torna

efetiva para o crente individual a expiação histórica obtida na cruz a preço infinito. É

compreensível porque esta verdade vital se tornaria o objeto dos mais acerbos ataques do

anticristo.

Verso 13. A visão de todos os ultrajes cometidos contra o "contínuo", o

"santuário" e o "exército", suscita da parte de um ser celeste a pegunta angustiada: "Até

quando...?" O espetáculo deste conflito prolongado contra o povo dos santos e as verdades

centrais do evangelho é causa de perplexidade mesmo para as inteligências celestes.

Verso 14. A resposta dada por outro anjo marca o ponto culminante de toda a

visão: "Até duas mil trezentas tarde e manhãs, e o santuário será purificado."

O termo no hebraico que corresponde a "justificado" é nitsdag, a forma nifal

(passiva) do verbo tsadag. O significado primário de tsadag é "ser justo ou reto", e como

regra refere-se à gente. A referência ao santuário é excepcional, e os tradutores têm lutado

para encontrar a melhor maneira de expressar seu significado aqui. A Septuaginta traduziu-
o por Katarizesthai, "será purificado", que é adotado na Versão de Almeida . Esta tradução

tem muito a seu favor. Outros tradutores influenciados pela afirmação no v.11 de que o

santuário seria "lançado abaixo" acharam melhor traduzir o verbo por "restaurar", "vindicar",

ou expressão equivalente. Se o v.14 tem ligação com o ritual do dia da expiação, Yôm

Kippur, como parece provável, então o verbo "purificar" seria uma tradução apropriada. Um

dos propósitos daquele ritual era de purificar o santuário da impureza ali acumulada durante

o ano decorrido toda vez que o povo confessava seus pecados e trazia o sacrifício

requerido pela lei mosaica (Lev.16:16-19 e 30).

De certo modo o sangue espargido sobre o véu do santuário o

contaminava(Lev.4:6 e 17). Se o sangue do sacrifício não era aspergido sobre o véu, então

parte da carne do sacrifício era comida pelo sacerdote oficiante, e deste modo também o

pecado era transferida para o santuário (Lev.6 verso 26 e 7 verso 6).

A restauração ou purificação do santuário celeste só pode significar o que o dia

da expiação significava na dispensação mosaica - um dia quando a situação espiritual de

todo israelita era determinada. Como a purificação do santuário terrestre significava garantia

de salvação para todo israelita sincero, de igual modo a purificação do santuário celeste

significa que a aptidão dos santos para o reino de Cristo está sendo determinada na base

do julgamento que precede o advento.

Como no santuário celeste é que se realiza o ministério da salvação, o santuário

está sob uma nuvem até que o problema do pecado seja finalmente liquidado, e que os

caminhos do Senhor sejam reconhecidos como justos e verdadeiros por todos os remidos.

O problema do pecado e do sofrimento projetada uma sombra a justiça do governo de

Deus. Quando o pecado for finalmente removido do santuário celeste pelo processo

judiciário indicado em Dan.7:9-10 e 13-14, então o santuário brilhará de novo em sua glória
original. Com o rol dos remidos completado pelo tribunal celeste, Cristo recebe o reino, e

"aparecerá segunda vez, não para lidar com pecado, aos que o aguardam para a salvação"

(Heb.9:28, corrigido).

A visão de Dan.9:1-14 cobre o mesmo terreno que a de Dan.7:1-14, e culmina

com o tribunal celeste em sessão. A linguagem é levemente diferente, mas os

acontecimentos implicados são praticamente os mesmos. Em ambas as visões guerra é

feita aos santos pelo quarto império, Roma imperial, ou seu herdeiro o papado. No cap. 7 a

potência hostil profere "palavras contra o Altíssimo" (v.25); no cap. 8 a mesma potência se

engradece "até ao príncipe do exército"(v.11). No cap. 7 uma tentativa é feita de "mudar os

tempos e a lei", no cap. 8 a verdade é lançada por terra (v.12). No cap. 7 "um como o Filho

do homem", vem ao Ancião de dias e recebe o reino (versos 13 e 14). Um reino sem súditos

nada significa. Os súditos do reino eterno são determinados pelo tribunal celeste, quando

livros são abertos, e o caráter dos santos vindicado (vv.10 e 22).

As "duas mil e trezentas tardes e manhãs" significariam antes de mais nada dois

mil e trezentos dias. Levados pela opinião preconcebida que o tema principal dos cap. 7 e 8

tem que ver com as atividades hostis de Antíoco Epifânio contra a religião judaica, muitos

comentadores se inclinam a introduzir tamid dos vv. 11,12 e 13. Em seguida assumem

erradamente que o tamid(contínuo) significava cada um dos holocaustos da manhã e da

tarde. Racionando, então, que havia dois tamid por dia, o período profético acima é

interpretado como 1150 dias, durante cujo tempo os sacrifícios no Templo teriam sido

suspensos nos dias de Antíoco Epifânio. Nos parágrafos seguintes chamamos atenção para

vários erra nesta interpretação.

Estritamente falando o substantivo tamid significa "continuidade", e é

freqüentemente associado com olah, "holocausto", assim olat hattmid, geralmente traduzido
como "holocausto contínuo ou perpétuo"(Ex.29:42; Num.28:6,9,15, etc). Como resultado

desta associação constante das duas palavras, hattmid tornou-se parte do jargão sacerdotal

para designar o holocausto de dois cordeiros, dia após dia, um de manhã e outro à tarde

(Núm.28 versos 2-6). Deve-se notar, porém, que hattmid designava dois sacrifícios juntos, e

não cada u separadamente. São vistos como formando um só sacrifício composto de duas

partes, como os caps. 28 e 29 de Números o tornam evidente. Quaisquer que fossem os

sacrifícios oferecidos nos diferentes dias do calendário religioso, o holocausto contínuo de

um cordeiro, de manhã e à tarde, juntos designados pelo singular 'olat hattamid, nunca

devia ser omitido.

Ignorando esta expressão idiomática do jargão sacerdotal muitos comentadores

imaginam que o tamid de Daniel 8 significava apenas um dos dois holocaustos oferecidos

regularmente cada dia. Dai era fácil saltar à conclusão que 2300 tamid significavam 1150

dias. Além disto deve-se notar que o termo tamid não se encontra no v.14, mas é nele

introduzido para justificar uma opinião preconcebida.

Mas como o autor demonstrou alhures, a expressão "tardes e manhãs nunca

poderia ser derivada da linguagem do culto, pois nesta a ordem "manhãs e tardes" é

observada sem exceção.5 Neste caso não podia se referir aos holocaustos, e menos ainda

ao hattamid. Uma vez que não pode ser derivada da linguagem do culto, a expressão

"tardes e manhãs" só pode ecoar a linguagem de Gênesis l, onde a expressão "tarde e

manhã" designava cada dia da semana da criação.6

Não há, pois, razão para ler "1150 dias" no v.14. A expressão de tempo só pode

significar 2300 dias. E como estamos lidando com linguagem simbólica, os 2300 dias

devem ser interpretados como 2300 anos, em harmonia com outros períodos proféticos no

livro de Daniel. Como estas profecias se estendem dos dias de Nabucodonosor até ao
estabelecimento do reino eterno de Deus, um período de 2300 dias literais parece incon-

gruentes neste contexto.

De outro lado, um período profético de 2300 anos se harmoniza perfeitamente

com o imenso panorama que se abre nestas profecias. Assim compreendido os 2300 anos

constituem o mais longo período referido nas profecias de Daniel e do Apocalipse. Como

não é indicado neste capítulo o acontecimento que marca o início deste longo período

profético, é razoável supor que ele seria o objeto de outra revelação num capítulo

subseqüente.

Versos 15 e 16. O tempo hebraico para "visão" no v.13 é hazon, o mesmo termo

que aparece nos vv.2 e 2. É evidente que a "visão" que Daniel procura compreender

abarca o conteúdo dos vv.2-14, e não se limitava de forma nenhuma à porção relacionada

com as atividades do "chifre pequeno" contra a hoste do céu, a verdade e o santuário. O

prólogo histórico que descreve as conquistas do "carneiro" e o "bode" é igualmente parte da

visão. Segue-se a pergunta feita no v.13: "Até quando durará a visão...?" abarca toda a

visão, e não somente a segunda parte(vv.9-12).

O anjo encarregado de dar a Daniel compreender a visão foi Gabriel. Aqui pela

primeira vez nas Escrituras é o nome de um anjo dado. Mas somente aqui e em 9:21 é o

nome de Gabriel pronunciado. Esta sobriedade no uso de nomes de anjos contrasta com a

pléotora de nomes dados aos anjos pelos apocaliptistas do segundo século A.C. em diante.

Um grande hiato separa Daniel de seus imitadores.

Verso 17. A aparição angélica enche a Daniel de pavor. Como Ezequiel seu

contemporâneo, Daniel é também adereçado pelo título "filho do homem", que sublinha

tanto a nulidade do homem como um ser mortal, como sua dignidade como agente moral

livre. Para começar Daniel é convidado a entender que a visão "se refere ao tempo do fim".
Bastava compreender este fato para que sua mente ficasse tranqüila.

Versos 18 e 19. O profundo sono que caiu sobre Daniel foi sem dúvida o efeito

de profunda tristeza, como aconteceu com os discípulos no jardim do Getsemane, dos

quais Lucas diz que jesus "os achou dormindo de tristeza" (Luc.22:45). Abatido pela visão

que sugeria ainda muito sofrimento para o povo de Deus, Daniel podia encontrar no sono

um escape da dura realidade. Não era tempo para dormir, porém, mas de pôr-se de pé para

ouvir o anjo explicar a visão.

A ênfase é de novo sobre o fato da visão referir-se "ao tempo determinado do

fim". De que "indignação" se fala aqui? Citando Isa. 61:1 e 2a em Seu sermão na sinagoga

de Capernaum, Jesus declarou que a humanidade vivia então no tempo "do ano aceitável

do Senhor"(Luc.4:18-19). O dia "da vingança do nosso Deus" ainda não chegara

(Isa.61:2b). A indignação ou ira, então, deve ser a de Satanás, de que João no Apocalipse

afirma que "desceu até vós, cheio de grande cólera"(Apoc.12:12). Enquanto durar a

controvérsia entre a luz e as trevas, a humanidade vive no tempo da ira de Satanás, e não

de Deus. Esta ira, porém, é limitada por Deus "ao tempo determinado". O Altíssimo terá a

última palavra neste conflito milenar.

Versos 20 a 22. Estes versos já foram mencionados no comentário sobre os

vv.2-8.

Verso 23. "Mas o fim do seu reinado". Isto evidentemente se refere ao tempo

quando os "quatro reinos", nos quais o império de Alexandre foi dividido, perderam

sucessivamente seu poderio, e foram absorvidos no império romano. Este fato exclui a

interpretação que faz do "rei de feroz catadura" Antíoco Epifânio. Antíoco veio ao poder no

fim da série de reis selêucidas, mas no meio.

"Quando os prevaricadores acabarem". Uma tradução mais literal reza: "Quando


os transgressores tiverem atingido sua plena medida". Este é o único uso do termo

"transgressor" no livro de Daniel. Com efeito o termo é usado parsimoniosamente na

literatura profética: em Isaías uma só vez no singual (48:8), e seis vezes no plural (1:28,

46:8: 53:12( duas vezes); Dan.8:23 e Oséias 14:9). Nunca é aplicado aos gentios. Somente

membros da comunidade de Israel podiam se tornar "transgressores" ao quebrar a aliança

que os ligava a Deus, o texto de Isa. 53:12 é particularmente útil para esclarecer o termo. É

dito do Messias que "foi contado com os transgressores", e que Ele intercede "pelos

transgressores". A nação judaica atingiu a plena medida como "transgressores", quando

rejeitou a Cristo como seu rei. Ao rejeitar o Messias a quem todos os tipos e profecias

apontavam, a nação encheu a medida de sua transgressão, foi rejeitada como o povo

particular de Deus e os herdeiros da promessa (Mat.21:43).7 Quando este acontecimento

fatal ocorreu, abriu-se o caminho para Roma assumir seu papel de cúmplice na crucifixão

de Cristo, e mais tarde de perseguidora da Igreja cristã nascente.

"Um rei de feroz catadura e entendido de intrigas". A caracterização é bastante

enigmática e o é a propósito. Parece ecoar a descrição que se encontra em Deut.28:49 e

50: "O Senhor levantará contra ti uma nação cuja língua não entenderás; nação feroz de

rosto..." O sofrimento enorme que esta nação infligiria ao povo judeu lembra-nos as

condições horríveis em Jerusalém durante a Guerra Judeo-Romana de 66-70 A.D. Uma

linguagem muito parecida foi usada por nosso Senhor ao descrever a invasão da Judéia

pelos exércitos romanos em Mat.24:15-21. Foi em relação com esta calamidade iminente

que Ele se referiu "ao abominável da desolação de que falou o profeta Daniel". Muitos

comentadores concordam que a "abominação desoladora" designa os exércitos romanos

que dentro de pouco tempo estariam invadindo o "lugar santo".

É sobre tudo a convicção de que as profecias de Dan.2,7 e 8 constituem


profecias paralelas que nos habilita a ver no "chifre pequeno" de Dan. 8:9-12, e no "rei de

feroz catadura" de nosso verso, símbolo do quarto império mundial. Compreende-se melhor

quão apropriada é esta descrição quando se contempla o quarto império em sua dupla fase:

secular e religiosa. Que Roma papal em muitos aspectos foi a herdeira de Roma imperial

tem sido reconhecido por muitos historiadores eclesiásticos. Assim Adolfo Harnack escreve:

Os poucos elementos romanos que os bárbaros e os arianos dei-

xaram...foram...postos sob a proteção do Bispo de Roma, que era

a pessoa principal na Itália depois do desaparecimento do Impe-

rador...A igreja Romana deste modo sutilmente insinuou-se no

lugar do Império Romano, do qual ela é a continuação real; o

império não pareceu, mas sofreu uma transformação...Esta não é

uma "observação arguta", mas o reconhecimento do estado real das

cousas historicamente, e o modo mais apropriado e furtuoso de

descrever o caráter desta Igreja. Ainda governa as nações...É uma

criação política, e se impõe como um Império Mundial, porque é a

continuação do Império Romano. O Papa, que se intitula "Rei" e

"Pontifar Máxima" é o sucessor de César.8

"Entendido de intrigas". Esta frase é paralela a de Dan.7:8 onde se descreve o

décimo-primeiro chifre: "e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem," descrição

esta interpretada como uma referência à acuidade política de Roma papal demonstrada em

suas relações com as nações da Europa. Na gíria moderna dir-se-ia que Roma entende a

linguagem da diplomacia com todas sua obscuridades deliberadas.

Verso 24. este verso resume muito do que foi dito do quarto império mundial em

Dan.7:7-8. Roma usou seu incomparável poderio militar para esmagar as nações a seu
belprazer, bem como para destruir "o povo santo". Para este aspecto da história nada

lisonjeira de Roma ver os comentários nos versos paralelos de Dan.7:21-25.

Verso 25. "Por sua astúcia nos seu empreendimentos fará prosperar o engano".

Este é o retrato fiel da duplicidade de Roma em seu trato com seus adversários e mesmo

aliados, bem como do papado em prestar seu apoio a uma teologia que adulterou a

verdade do evangelho.

"No seu coração se engrandecerá". Do ponto de vista do céu esta potência é

chamada "pequena"(v.9). Mas em sua fantasia se consideraria um deus na terra. Paulo sem

dúvida tinha esta passagem em mente quando descreveu a vinda do anticristo como "o

homem da iniqüidade, o filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra tudo que se

chama Deus, ou objeto de culto, a ponto de assentar-se no santuário de Deus, ostentando-

se como se fosse o próprio Deus" (II Tess.2:3b e 4).

"Levantar-se-á contra o Príncipe dos príncipes". Esta frase bem como a anterior,

expande o sentido de Dan.8:11: "Engradeceu-se até o príncipe do exército". Como o chifre

descrito nos vv.9-12 se refere á Roma em suas duas frases, imperial e papal, reconhece-se

facilmente como Roma imperial se levantou contra Jesus Cristo crucificando-O e mais tarde

perseguindo Seus discípulos, e como Roma Papal por sua teologia diminuiu o papel de

Cristo aos olhos dos crentes, exaltando a mediação de Maria e dos santos, e excomungou

aqueles que rejeitaram doutrinas como o sacrifício da missa, a transubstanciação, e a

mediação sacerdotal de Maria.

"Mas será quebrado sem esforço de mão humana". Do mesmo modo que os

reinos deste mundo simbolizados pela estátua de Dan.2 foram esmiuçados por uma pedra

"cortada sem auxílio de mãos" (vv.34 e 35), assim aqui o anticristo, que em sua guerra

contra DEUS faz uso de toda potência terrestre disponível, é quebrado "sem esforço de
mãos humanas". DEUS intervém ao final para desbaratar as forças das trevas e inaugurar

Seu reino eterno, no qual "habita justiça (II Ped. 3:13).

Verso 26 A visão deste capítulo é referida na linguagem angélica como "a visão

da tarde e da manhã", porque o período de 2300 dias proféticos do v.14 constituem um dos

seus aspectos primordiais. A presença do artigo antes de ereb e boqer não modificam de

modo algum seu significado como um dia de vinte e quatro horas.9

A ordem de selar a visão é justificada pela declaração que ela se "refere a doias

ainda muito distantes". Para os que tomam o livro de Daniel como um livro profético

autêntico, e não como uma ficção escrita no segundo século antes da nossa era, estas

palavras indicam que o pleno significado da profecia não se tornaria evidente antes do

cumprimento histórico de suas várias partes. Seu desfecho jazia ainda muitos séculos no

futuro, mas sua autenticidade levava o selo de DEUS.

Verso 27 O efeito físico sobre Daniel desta visão de um longo conflito foi

deprimente. Ele "esteve enfermo durante alguns dias". O pleno significado da visão se lhe

escapava, mas a parte que ele entendeu deste conflito milenar que punha em risco a

própria sobrevivência do "podo dos santos" o encheu de consternação.

Um olhar sobre a interpretação da visão pelo anjo deixa claro que um ponto que

não foi explicado foi o longo período do v.14. Parece provável, então, que Daniel confessa

sua falta de entendimento, ele tem em mente esta parte da visão mais que qualquer

outra. \como reconciliar a perspectiva de um longo período de sofrimento para o povo de

DEUS ainda no futuro com o cumprimento iminente dos 70 anos preditos pelo profeta

Jeremias, estava além de seu alcance. O cap. 9 responderá às perguntas que agitavam sua

mente.
Observação sobre o Chifre Pequeno

Objeta-se freqüentemente contra a interpretação do "chifre pequeno" como

símbolo de Roma alegando que o v.9 afirma que o chifre pequeno saiu "de um deles"

(assim no hebraico). O argumento gira então sobre se "deles" refere-se aos "4 chifres

notáveis", ou dos "4 ventos dos céus", do v.8. Razões gramaticais e estruturais favorecem a

opinião que o pronome "deles" refere-se aos "4 ventos".10 O significado então seria que

Roma surgiu de uma das direções do compasso. Como o verso diz que sua expansão

territorial foi na ordem, "para o sul, para o oriente, e para a terra gloriosa", segue-se que

Roma iniciou sua carreira de conquista do noroeste. Isto corresponde aos fatos geográficos,

visto que Roma ficava a noroeste do Império Greco-Macedônico.

Mas mesmo se se insiste que o "chifre pequeno" saiu de um dos "4 chifres" em

que o império de Alexandre se desmembrou, isto não constitui objeção séria à interpretação

adotada neste comentário. Roma deveu muito de sua cultura aos gregos que estavam

colonizando o sul da Itália desde o sétimo século a.C. Com efeito aquela parte da Itália foi

conhecida durante muito tempo como Magna Graecia. Interferência dos gregos com

ambição territorial de Roma no sul da Península Itálica e na Sicília, ambas pontuadas de

colônias gregas, foi a causa da Primeira Guerra Macedônica. Este fato marcou o início de

uma série de guerras que levaram Roma a conquistar uma após outra as diferentes

divisões do império fundado por Alexandre.

Alguns acham difícil reconciliar a idéia de Roma como o maior dos impérios da

antiguidade com sua descrição como um chifre pequeno no v.9. Theodotion aparentemente

sentiu a dificuldade de traduzir o hebraico por um "chifre poderoso". Talvez tivesse diante

dos olhos um texto hebraico diferente. O hebraico reza literalmente, "um chifre de

pequenez". A New International Version retém a força da expressão traduzindo, "que


começou pequeno". Roma começou de fato pequena, e ninguém poderia ter predito sua

eventual grandeza julgando seu começo humilde. De outro lado é possível que o adjetivo

"pequeno" tenha uma conotação moral e não física. A conduta arrogante em relação ao

Altíssimo e a Seu povo fê-la parecer "pequena" os olhos do céu. "Pequena", neste contexto,

significaria desprezível.

NOTAS

1. The Cambridge Ancient History, Vol VIII (Cambridge, 1954), p.514.

2. The Sanctuary and the Antonement, (Review and Herald, 1981), p. 188.

3. The Book of Daniel, p. 159.

4. Segundo N. Porteous, Daniel, p. 186, "A verdade que é lançada por terra é a vontade de

DEUS revelada em Sua Lei".

5. "'ereb boqer' de Dan. 8:14 re-examinada", AUSS (1978): pp. 375-385.

6. C. F. Keil, Book of Daniel, tr. (Eerdmans), pp. 302-304.

7. Ver E. G. White, Educação, pp. 173-177.

8. What is Cristianity? (New York, 1903), pp.269-270.

9. C. F. Keil, Op. Cit., p. 303.

10. W. Shea, Daniel and the Judgment, (Washington, 1980), p. 65.

DANIEL 9
A MISSÃO DO MESSIAS

O capítulo 9 abre com a declaração de que, no primeiro ano de Dario o Medo,

Daniel chegou a conclusão de que a profecia de Jeremias referente aos 70 anos da

desolação de Jerusalém devia em breve cumprir-se.

Apercebido disto Daniel oferece a prece intercessória a favor de Jerusalém e do

Santuário registrada nos vv. 4-19. É digno de nota como nesta prece o pecado de Israel

pesava sobre o coração so profeta. Juntamente com o profeta Ezequiel, seu

contemporâneo, Daniel reconhecia que perdão e purificação do pecado deviam preceder a

restauração da comunidade judaica (conferir Ez.37:26-28). Em vista disto esta prece pode

ser descrita como uma prece de confissão de pecado tanto como uma prece de intercessão

por uma nação culpada.

Notar como a preocupação com o pecado caracteriza esta oração: "Temos

pecado e cometido iniqüidade, procedemos perversamente, e fomos rebeldes..." (v.5). Esta

confissão cobre todo o gama no aspecto do pecado. Israel sofreu no exílio por causa de sua

infidelidade contra DEUS (v.8), e rebelião contra Ele (v.9). Israel tinha transgredido a Lei de

DEUS e pecado contra Ele (v.11). No v.15 Daniel identifica-se com o povo pelo qual

intercede: "Temos pecado e procedido perversamente". A cólera divina foi derramada sobre

Jerusalém por causa dos pecados do povo e suas iniquidades (v.16). O profeta mesmo

resume sua prece quando a seguir escreve: "Falava eu ainda e orava, e confessava o meu

pecado e o pecado de meu povo Israel..." (v.20).

A mensagem trazida a Daniel pelo anjo Gabriel deve ser vista tanto como uma

resposta à sua prece de intercessão como uma resposta à sua preocupação como o
elemento de tempo na visão do cap. 8 que fora deixado sem explicação. Daniel encerrou o

cap. 8 com a admissão de que não havia entendido a visão (v.27), ou ao menos aquela

parte da mesma relacionada com o tempo. Por iniciativa própria procurou entendimento

estudando as profecias de Jeremias relacionadas com o tempo que as desolações de

Jerusalém deviam durar (9:2).

Em comum com outros profetas, Daniel deve ter imaginado que a era

messiânica iria raiar ao término do cativeiro em Babilônia. Isaías e outros profetas tinham

descrito o retorno do exílio em termos tão exaltados que devia parecer a muitos que o fim

do cativeiro introduziria um novo Céu e uma nova Terra, uma ordem de cousas totalmente

novas (Isa.65:17). Seria quase impossível ler uma profecia como esta: "Nunca mais se

ouvirá de violência na tua terra, de desolação ou ruína nos teus termos; mas aos teus

muros chamarás salvação, e as tuas portas louvor. Nunca mais te servirá o sol para a luz do

dia nem com seu resplendor a lua te alumiará; mas o Senhor será a tua luz perpétua e os

dias do teu luto findarão" (Isa.60:19 e 20),e não supor que o fim do exílio inauguraria a era

messiânica.

Esta expectativa do estabelecimento imediato do reino messiânico precisava ser

corrigida. Numa visão profética os atos sucessivos no trama da redenção parecem ocorrer

simultaneamente. Como os sonhos carecem da perspectiva de tempo, assim

aparentemente as visões. Permitam-me uma ilustração. Dirigir o seu carro sobre uma

planície rumo à cadeia de montanhas no horizonte distante, o motorista não tem idéia de

quantas serras se escondem uma atrás da outra. Tudo o que vê é uma montanha maciça à

distância. Somente quando ele começa de fato a atravessar a montanha é que se apercebe

de quantos vales e cadeias precisa atravessar antes de atingir a planície desobstruída além.

Assim os profetas e seus leitores viam apenas um grande acontecimento no


futuro: O fim do exílio e o raiar da era Messiânica. A possibilidade não lhes ocorria de que

séculos poderiam intervir entre os picos sucessivos na história da redenção. Através de

Daniel DEUS deliberou corrigir este mal entendido, e assim poupar aos crentes futuros

desapontamentos. É aqui que se faz ver o valor prático de profecias com o tempo marcado.

Seu propósito era de introduzir um senso de perspectivas na delineação profética do futuro

que de outro modo podia ser comprimido num grande evento final.

A relação íntima entre os cap. 8 e 9 torna-se evidente pelo seguinte fato: É o

mesmo anjo Gabriel que é encarregado de fazer Daniel entender a visão (Dan. 8:16 e 9:21).

Como não há visão na primeira parte de Dan. 9 a visão à qual Gabriel se refere em 9:23

deve ser a do cap. 8, a qual Daniel confessa não ter compreendido (8:27). Podemos ser

mais específicos: a Parte da visão do cap. 8 não explicada por Gabriel foi a referente às

2.300 tardes e manhãs de Dan. 8:14. Em vista disto torna-se claro porque Gabriel começa

sua explicação com referência a um período de tempo que evidentemente é ligado ao de

8:14.

Daniel não estava preocupado em compreender a profecia de Jeremias

referente aos 70 anos do exílio como alguns estudiosos. O v.2 declara expressamente que

os 70 anos estavam chegando ao seu término. O verbo binoti "compreendi" vem da mesma

raiz de bin que é usada no v.23. Por conseguinte quando o anjo lhe diz que compreenda a

visão, só pode ser a visão do capítulo anterior a qual Daniel afirma taxativamente que não

tinha compreendido e particularmente o período profético dos 2.300 dias.

Com efeito os 70 anos do exílio profetizados por Jeremias estavam chegando ao

seu término. Mas outras "70 semanas" (de anos) deviam passar antes do ponto culminante

na estrada da redenção - o Calvário - ser atingido. Outro meio milênio de graça seria

concedido a Israel, durante o qual poderia crescer em compreensão espiritual e preparar o


mundo para a recepção do Messias, mas mesmo assim a primeira vinda de Cristo não seria

o fim da História. Este meio milênio deveria ser "cortado" - este é o sentido primário do

verbo hatak - de um período mais longo, do mesmo modo que um pedaço de pano é corta

do de uma peça. Esta período mais longo só pode ser o tempo mencionado em Dan.8:14,

do qual Daniel não tinha obtido entendimento pleno.

Com estas observações preliminares em mente, estamos prontos para

considerar a resposta de Gabriel à prece de Daniel, como relatada nos vv. 24-27. Sendo

esta uma profecia messiânica, seria natural esperar que refletiria em certa medida a

linguagem do canto do "Servo Sofredor" de Isa.52:13 a 53:12. Do mesmo modo que Daniel

estava familiarizado com a profecia de Jeremias referente à duração do exílio ele devia

estar a par do texto de Isaías que melhor descreve o sofrimento e morte do servo do

Senhor. Um homem que encarava o pecado tão a sério como é evidente de sua oração

intercessória, devia certamente conhecer a profecia que descreve de modo tão comovente

como o problema do pecado seria atacado.

Dan.9:24-27 e Isa.52:13 a 53:12 destacam-se como as duas maiores profecias

messiânicas: A de Daniel indicando o tempo do aparecimento do Messias e a de Isaías, a

maneira e o propósito de Seu sofrimento.

Daniel 9:24 contém seis declarações, das quais as primeiras quatro focalizam o

problema do pecado e como seria resolvido. Sua terminologia assemelha-se bastante a do

canto do "Servo sofredor". Assim a primeira frase "para fazer cessar a transgressão"

encontra seu paralelo em Isa.53:5, "foi transpassado pelas nossas transgressões". A frase

"para dar fim aos pecado", ecoa Isa. 53:10 e 12, "quando der Ele Sua alma como oferta

pelo pecado", e "levou sobre Si o pecado de muitos". A terceira expressão, "para expiar a

iniqüidade", tem seu paralelo em Isa.56:5-6: "o castigo que nos traz a paz estava sobre Ele,
e pelas Suas pisaduras fomos sarados... mas o Senhor fez cair sobre Ele a iniqüidade de

nós todos". A quarta frase de Dan. 9:24, "para trazer a justiça eterna", tem sua

correspondente em Isa. 53:11, "o Meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a

muitos". A importância desta última declaração é sublinhada por Paulo em Rom. 3:26:

"Tendo em vista a manifestação da Sua justiça no tempo presente para Ele mesmo ser

justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus". A "justiça" de Dan. 9:24 refere-se,

então, tanto à justiça de DEUS demonstrada no Calvário diante de todo o universo, como à

justiça que DEUS comunica aquele que tem fé em Cristo.

Paralelos tão evidentes não parecem ser fortuitos, mas sugerem o pensamento

de que foram escolhidos deliberadamente para descrever a missão do Messias vindouro

em termos já consagrados pela inspiração divina.

A declaração geral, "para selar a visão profética", é um exemplo de hendiadys, e

significa "para selar a visão e a profecia", não no sentido de dar-lhe fim, mas no sentido de

confirmá-la. O cumprimento literal da primeira parte da visão referente à vinda do Messias

confirmaria o resto da visão, isto é, garantiria seu cumprimento também.

A última frase do v.24, "e para ungir o Santo dos Santos", é neutra no hebraico,

uma vez que poderia designar um lugar, ou cousa, ou uma pessoa. Mas neste contexto

deve designar o Messias. Com efeito o v.25 fala da vinda do Messias, do Príncipe. Uma vez

que o v.24 fala da obra redentora a ser realizada no fim das 70 semanas, ou 490 anos,

seria mais natural esperar que o verso terminasse por uma referência ao Messias, o

"ungido".

O v.25 provê um ponto de partida para o período profético das 70 semanas, e

ipso facto, para o período das 2300 tardes e manhãs, do qual o período mais curto foi

cortado. Deve-se ter em mente que a última parte do cap. 9, vv.24-27, é uma visão
suplementar da visão do cap.8. O propósito da vinda de Gabriel foi de fazer Daniel entender

a visão, que não pode ser outra que a do cap.8. O ponto de partida das 70 semanas é o

decreto para a restauração de Jerusalém. Segundo Esdras 6:14 houve 3 decretos visando a

mesma finalidade, e que culminaram com o decreto de Artaxerxes I em 457 a.C. Sendo o

último, de algum modo coroou e completou os,precedentes. O decreto de Artaxerxes pode

ser lido no cap. 7 de Esdras. Ele permitia que qualquer dos exilados que quisesse subir a

Jerusalém o fizesse, e conferia certos poderes a Esdras para reorganizar a comunidade

judaica segundo a lei do seu DEUS (vv.25 e 26). O cap. 8 descreve a viagem a Jerusalém

de Esdras acompanhado de centenas de exilados, a entrega das ofertas de ouro e prata

aos sacerdotes e levitas em Jerusalém, e conclui com a declaração de que os

governadores persas, em vista das instruções do rei, "ajudaram o povo na construção da

casa de DEUS (v.36). O escopo do decreto de Artaxerxes I é esclarecido por Esdras 9:9.

Incluia a restauração do templo, reparo de ruínas, e a ereção de um muro de proteção para

Judá e Jerusalém. A carta dada por Artaxerxes a Neemias no 20º ano de seu reinado, 444

a.C., não é de natureza de um decreto. Neemias não reconstruiu o muro de Jerusalém, mas

só reparou as brechas e os portões. O alcance limitado de seu trabalho é demonstrado pelo

fato que foi completado em 52 dias (Nee.6:15). Não resta dúvida de que é o decreto de

Artaxerxes de 457 a.C. que deve ser tomado como ponto de partida das 70 semanas, que

deviam levar até "ao Ungido, o Príncipe".

"Sete semanas e sessenta e duas semanas". A versão de Almeida segue

fielmente o texto hebraico, no qual erradamente uma marca de pontuação, o ethnach, a

qual indica o meio do verso, onde o leitor devia fazer uma pausa, foi inserida entre "sete

semanas" e "sessenta e duas semanas". Deve-se observar que o texto hebraico original

não tinha pontuação de espécie alguma. Embora os massoretas fizessem um bom trabalho
quando pontuaram o texto hebraico no começo da Idade Média, erros foram cometidos,

como qualquer estudioso do texto hebraico sabe. Na maior parte dos casos, os erros foram

acidentais, um deslize da pena, mas neste caso a hipótese de um erro deliberado devido a

preconceitos dogmáticos não deve ser excluída. Como Dan. 9:25 era um verso caro à

comunidade cristã, porque era o único que permitia mostrar aos de fora que Cristo veio no

tempo designado pela profecia, é fácil ver porque os massoretas tenham pintado o texto de

modo a torná-lo confuso. Corrigindo este verso, o verso reza: "Desde a saída da ordem

para restaurar e para edificar Jerusalém, até o Ungido, ao Príncipe, sete semanas e

sessenta e duas semanas". O texto assim corrigido mostra que Cristo deveria ser ungido no

final de 69 semanas, ou sejam, 483 anos.

Os vv.25 a 27 foram estruturados de tal maneira que a primeira parte de cada

um refere ao Messias, e a segunda a Jerusalém. Assim a primeira parte do v.25 refere à

vinda do Ungido no final de um período de 483 anos. Contando do decreto de Artaxerxes I

em 457 a.C., isto leva ao batismo de Jesus em 27 a.C., quando foi ungido pelo Espírito

Santo (Mat.3: 16 e 17; Luc. 3:22), e tornou-se o Cristo, que significa exatamente "ungido". A

divisão do período em duas partes, uma de sete semanas seguida de outra de sessenta e

duas semanas pode indicar que a reconstrução de Jerusalém sob Esdras e Neemias

duraria 49 anos, embora se deva admitir que as fontes históricas não lançam luz sobre o

assunto.

A primeira parte do v.26 refere ao fato de que o Messias, "o Ungido", seria morto.

A ausência do artigo antes de "Ungido" no hebraico concorda com o fato de que Daniel os

tempos que referem á divindade são como regra anartros, isto é, sem artigo.(Ver Daniel

7:9,13; 8:16; 9:24,25 e 26; 10:5). Podia ser sua maneira de expressar transcendência

divina. Deve-se observar que a expressão, "foi morto", da Versão de Almeida, corresponde
ao hebraico, "foi cortado". Esta expressão encontra seu paralelo em Isa.53:8, "foi cortado da

terra dos viventes". Acima expressamos a opinião que a linguagem do cap. 9 deve muito ao

canto do "Servo Sofredor", que deve ter ocupado os pensamentos de Daniel nesta ocasião.

A expressão, "e já não estará", corresponde ao hebraico, "e não havia nada para

ele". Expressa o total abandono de Cristo quando suportou os pecados do mundo, e

encontra seu paralelo em Isa.53:4, "era desprezado, e dele não fizemos caso". Seu sentido

mais profundo é sugerido em Sal.22:1a: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?"

A segunda parte do v.26 trata da destruição de Jerusalém e do Templo. A

destruição seria levada a efeito pelo "povo de um príncipe que há de vir". Trata-se do

mesmo poder pelo qual se refere Dan.8:25. Jerusalém e o Templo foram destruídos pelos

exércitos romanos em 70 A.C. comando por Tito que assumiu a chefia quando seu pai

Vespasiano foi eleito imperador. Diga-se de passagem que Antíoco Epifânio não destruiu o

Templo. A última parte do v.26 sugere que a Igreja passaria por tempos de tribulação até ao

fim. Cristo fez referência a esta tribulação prolongada em Mat.24:21. Mas aqueles dias

seriam abreviados por amor dos escolhidos(24:22).

O pronome "Ele" na primeira parte do v.27 deve referir-se ao Messias, em

harmonia com a estrutura dos versos precedentes, onde em cada caso a primeira parte do

verso faz uma declaração concernente ao Messias, e a segunda uma declaração

concernente à cidade e ao santuário. Cristo firmaria aliança com muitos durante Seu

ministério terrestre. Esta aliança foi ratificada, "feita firme" pelo sangue de Cristo(Mat.26:27,-

28). O sentido primário do verbo hebraico higbir é "fazer prevalecer". O sentido seria que

Cristo fez prevalecer, em face de todos os obstáculos, Seu concerto de graça com a

humanidade. Havia muita razão para desânimo e derrota. Mas Cristo prevaleceu sendo

obediente até a morte. A expressão "com muitos" devia ser compreendida à luz de
Isa.53:12, "levou sobre si o pecado de muitos", e encontra eco nas próprias palavras de

Cristo, "porque isto é o meu sangue, o sangue da aliança, derramado em favor de muitos".

Foi demonstrado por J. Doukhan que "quando o termo hetsi está em status

contructus com um período de tempo (aqui semanas), significa sempre "meio" e não

"metade" (Ex.12:29; Jos.10:13; Juízes 16:3; Jer.17:11; Sal.102 v.25; Rute 3:8)".1 O verso

27b devia então ser traduzido do seguinte modo, "é no meio da semana fará cessar o

sacrifício e a oferta de manjares". O meio da septuagésima semana corresponde a 31 A.D.,

quando Cristo oferecendo-SE como um sacrifício perfeito sobre a cruz "fez cessar o

sacrifício". Quando o véu do Templo rasgou-se de alto a baixo tornou-se patente que o

sacrifício de animais tinha encontrado seu antítipo e devia cessar. Sua repetição até à

destruição do Templo alguns anos mais tarde tornou-se uma cerimônia sem sentido, porque

de jure os sacrifícios deviam ter cessado por ocasião da morte de Cristo sobre a cruz.

Mas mesmo a cruz e a ressurreição não paralisariam a marcha do tempo. A

última parte do v.27 dá-nos a entender que a história continuaria a se desenrolar. As

potências do mal embora vencidas por Cristo continuariam sua obra nefanda de encher a

terra de abominações de desolações. Mas tão certo como a manhã segue à noite, à vitória

de Cristo sobre o pecado e a morte no Calvário seguir-se-ão a destruição inevitável do

anticristo e a vitória final de Cristo.

Se a explicação dada pelo anjo Gabriel no cap.9 é um complemento à

explicação dada no cap.8, então é razoável esperar que não somente os dois períodos de

tempo são relacionados, mas que as atividades do anticristo num tem seu paralelo no culto.

Neste caso a segunda parte dos versos 26 e 27 devia ser interpretada à luz de Dan.8:23-

25, onde as atividades nefárias de Roma imperial e papal são descritas. Assim

compreendido Dan.9:26b se refere as atividades de Roma que lavaram à destruição de


Jerusalém e do templo em 70 A.D., que prefigurava o obscurecimento na teologia católica

da obra sacerdotal de Cristo no santuário celestial.

Em Mat. 24:15 Cristo fala da presença do "abominável da desolação" no lugar

santo como um sinal para os crentes fugiram da Judéia para as montanhas para escapar

aos horrores da guerra. Lucas se refere ao mesmo sinal nas palavras, "Quando, porém,

virdes Jerusalém sitiada de exércitos,... então os que estiverem na Judéia fujam para os

montes".(Lucas 24:20,21). Em vista destes dois textos seria razoável interpretar "a asa das

abominações" de Daniel 9:27b como uma referência aos exércitos romanos vindo para

assolar a Judéia e Jerusalém. O fato das legiões romanas levaram em seus estandartes

uma águia de bronze como emblema de seu poder torna esta interpretação ainda mais

convincente.

À luz do acima exposto, podemos parafrasear Dan.9:27b como segue: e com um

exército que marcha sob estandartes pagãos vem um que causa tanto a desolação física

como espiritual; suas atividades se estenderão sobre os séculos, até que o assolador

mesmo seja destruído no tempo determinado por Deus.

Notas

1. The Sanctuary and the Atonement, p.262.


DANIEL 10

O CONFLITO NOS BASTIDORES

Este capítulo constitui o prólogo à última profecia do livro. A profecia

propriamente dita começa com 11:2 e termina com 12:4, o resto do cap.12 sendo uma

espécie de espírito. Nestes capítulos nos é dada uma visão única do conflito que se

desenrola nos bastidores da história. Vêm-se ai o jogo e o contra jogo de influência que

operam nos centros de poder político para impedir ou promover a execução dos planos

divinos. Embora a liberdade do homem como agente moral seja resguardada, influências

diabólicas e celestes se fazem sentir sobre os líderes deste mundo, na esperança de levá-
los a se opôr ou a favorecer a missão do povo de Deus na Terra.

A visão é datada do terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia, ou seja 536/535 A.C. Em

contraste com as visões precedentes, nesta o profeta não vê, mas ouve o conteúdo da

revelação que lhe é feita. A visão ou "palavra" envolvia um grande conflito, a matéria do

qual não é comunicada ao profeta até 11:2. Como esta visão não envolvia imagens

simbólicas o profeta não teve dificuldade em compreendê-la.

Versos 2 e 3 Esta visão foi dada a Daniel depois de três semana de penitência e

preparação espiritual. O pranto e o jejum coincidiram com o tempo da Páscoa, mas

nenhuma associação é feita entre uma cousa e outra. Embora tivesse mais de oitenta anos

por esta época, Daniel buscava a comunhão com Deus com o mesmo fervor que em sua

juventude. Milhares de judeus, podemos imaginar, estavam voltando para sua terra como

resultado do decreto favorável de Ciro, mas o fruto do propósito de Deus para Seu povo

parecia ainda incerto.

Verso 4 A borda do rio Tigre é designada como o local da visão. Por comparação

com os rios da Palestina, o Tigre podia ser chamado um grande rio.

Versos 5 e 6 A descrição do vulto celeste que aparece a Daniel corresponde

bem de perto à de Cristo quando apareceu a João na ilha de Patmos; "um semelhante a

filho de homem, com vestes talares, e cingido à altura do peito com uma cinta de ouro,

como chama de fogo; os pés semelhantes ao bronze polido, como que refinado numa

fornalha; a voz de muitas águas"(Apoc.1:13-15). É razoável supor que como recompensa à

sua vida de devoção a Deus Daniel recebeu em sua velhice uma visão do Cristo exaltado.

Como os homens que acompanharam a Paulo em sua jornada a Damasco, os

companheiros de Daniel não viram, mas foram aterrorizados pela atmosfera misteriosa da

ocasião. "Caiu sobre eles grande temor".


Versos 8 e 9 Daniel mesmo ficou assoberbado por "esta grande visão". Deve-se

distinguir entre esta visão de um ser celeste que chocou Daniel até o mais profundo de sua

alma da visão também chamada "palavra", que é descrita nos versos 11:2 a 12:4. E de

novo a visão de Paulo no caminho a Damasco, esta também incluia não só a aparição

deslumbrante, mas uma voz "como o estrondo de muita gente". Ouvindo-a Daniel cai por

terra "em profundo sono".

Verso 10 Daniel é despertado pelo toque da mão de um anjo. De igual modo

Isaías, no meio de uma visão, sentiu-se a forte mão de Deus sobre ele (Isa.8:11). Ezequiel

e João tiveram a mesma experiência (Ez.2:2;3:24 e Apoc.3:17).

Verso 11 Como objeto do amor terno de Deus Daniel nada tinha a temer. Suas

preocupações também são as preocupações de Deus. É lhe dito que se levantasse e

ouvisse as palavras que lhe iam ser comunicadas. A expressão, "eis que te sou enviado",

parecem mais apropriadas nos lábios de um anjo do que nos de Cristo. Tudo indica que a

visão de Cristo termina com o v.9, e que o restantes do capítulo contém as palavras de um

anjo.

Verso 12 O anjo continua assegurando a Daniel que suas preces foram ouvidas.

Seu desejo de melhor compreender o propósito de Deus era motivado por um genuíno

amor para com seu povo, e a Deus aprazia responder-lhe. Não foi uma curiosidade vã que

o levara a se humilhar diante de deus em profunda contrição durante três semanas. A

oração e o jejum o tinham predisposto a ouvir a voz do Espírito e a se tornar o recipiente de

uma nova revelação.

Verso 13 "O príncipe do reino da Pérsia". "Príncipe" é a tradução do hebraico

sar, que pode se referir a um governador ou ao comandante de um exército, como em

Josué, mas raramente a um rei. O rei em hebraico jamais é designado por "príncipe do
reino". Daniel usa várias vezes esta palavra com referência a seres sobrenaturais (8:11,25;

10:21 e 12:1). É provável que o termo sar aqui denote ser sobrenatural que no momento

estava resistindo aos anjos de Deus na corte do rei da Pérsia. Joyce Baldwin num

comentário recente adota esta interpretação: "Visa-se aqui um representante da Pérsia nos

lugares celestes; a Grécia também teu seu anjo (v.20), e Miguel, 'um dos primeiros

príncipes', pertence a Israel"1.

A demora em atingir o objetivo visado na corte da Pérsia sugere que neste

conflito espiritual a liberdade humana não é violada. É feito uso da persuasão para obter a

mudança desejada, mas não constrangimento físico. Escritores do Novo Testamento

identificam Miguel com Cristo (ver Judas 9; João 5:28, 29 e I tes. 4:16). O Comentário

Bíblico Adventista favorece esta opinião: "O nome Miguel aparece na Bíblia apenas em

passagens apocalíptica (Dan. 10:13 e 21; 12:1; Judas 9; Ap. 12:7). Além disto é em

ocasiões em que Cristo está em confronto direto com Satanás. O nome que em hebraico

significa, "Quem É como DEUS?" é ao mesmo tempo uma pergunta e um desafio. Em vista

do fato que a rebelião de Satanás é essencialmente uma tentativa de instalar-se no trono de

DEUS e ser "como o Altíssimo" (Isa. 14:14), o nome Miguel é muito apropriado para Aquele

que empreendeu vindicar o caráter de DEUS e refutar as pretensões de Satanás.2

Somente quando Miguel veio para ajudar Gabriel é que este ficou livre para vir a

Daniel a fim de fazê-lo entender o que havia de suceder a seu povo nos últimos dias (v.14).

O cuidado de DEUS para com Seu povo em todas as épocas é o fio duradouro que deve

guiar o estudante através da massa de pormenores históricos dados com cap. 11.

Acontecimentos históricos podem servir de pontos de referência, mas a questão realmente

significativa é a sorte do povo de DEUS em meio do tumulto político que agita o mundo.

A importância deste capítulo para se compreender o que se passa nos


bastidores da história é assim expressa pelo Comentário Bíblico Adventista: "Neste capítulo,

como talvez em nenhum outro lugar na Escritura, o véu que separa o céu e terra é

removido, e a luta entre poderes da luz e das trevas (pelo controle das mentes humanas) é

revelada".3

Versos 15 a 17 Perplexo diante desta visão celeste, Daniel ficou mudo.

Somente quando um anjo em forma humana tocou seus lábios é que ele recuperou a fala.

Mesmo assim as primeiras palavras de Daniel continuam a expressar seu sentimento de

desamparo. Sente-se como se fosse desfalecer na presença sobrenatural.

Versos 18 e 19 De novo um anjo toca a Daniel a fim de fortalecê-lo com a

certeza do amor de DEUS, o qual devia banir todo temor de seu coração. Fortalecido,

Daniel pede ao anjo que lhe comunique a mensagem divina.

Verso 20 O anjo fá-lo saber que o conflito na corte da Pérsia sobre a sorte do

povo de DEUS ainda perdurava. O inimigo não dorme e aproveita toda oportunidade para

frustrar os planos divinos. E necessário, portanto, que influências celestes continuem a

neutralizar os planos do inimigo e a salvaguardar os desígnios divinos para com Seu povo.

Da intensidade desta luta o texto de Esd. 4:2-24 dá-nos um pequeno vislumbre. Israel

sofreu intensa oposição em seu esforço para restaurar sua nação, e teria sido esmagado

por seus adversários não fosse a intervenção divina na corte da Pérsia. Esta guerra de

natureza espiritual se estenderia além dos dias do domínio persa e seria não menos intensa

durante o Reino da Grécia. Na realidade, a controvérsia tanto em seu aspecto celeste como

terrestre continuaria até que "reino do mundo" se torne "de nosso Senhor e de Seu Cristo"

(Ap. 11:15).

O seguinte comentário lança luz adicional sobre este verso: "A verdade

declarada pelo anjo neste verso ilumina a revelação que segue. A profecia seguinte, um
relato de guerra e mais guerra, assume maior significado quando compreendida à luz do

que o anjo tinha observado. Enquanto os homens lutam pelo poder terrestre, nos

bastidores, e longe dos olhos humanos, uma luta ainda maior se processa, da qual os altos

e baixos da condição mundial são um reflexo".4

Verso 21 O povo dos santos não tem razão para temer, pois tem a seu lado

Miguel, que sendo como DEUS e Seu campeão lhe assegura a vitória final. Para Aquele

que é o Senhor da História o fluxo e refluxo dos acontecimentos no mundo não encerram

surpresa. São-Lhe tão claros como se estivessem escritos na "Escritura da Verdade". As

cenas sucessivas da visão a ser narrada são como páginas tiradas do livro e mostradas ao

profeta.

11:1 Este verso é claramente parte do prólogo, pois contém uma palavra final

das atividades de Gabriel na esfera terrestre. A visão propriamente dita foi dada a Daniel no

terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia (10:1). Mas já nos dias de Dario o Medo (5:31; 6:28; 9:1)

Gabriel se ocupava em fortalecê-lo e animá-lo.

NOTAS

1. J. C. Baldwin, Daniel, p. 181.

2. The SDA Bible Commentary, IV, p. 860.

3. Ibid.

4. Ibid., p. 861.
DANIEL 11:2 a 12:4

OS PODERES TERRESTRES CONTRA O POVO DE DEUS


A visão propriamente dita começa no v.2, e depois de uma breve revista dos reis

da Pérsia e a subida ao poder de Alexandre o Grande, trata em maior detalhe do conflito

entre Ptolomeus do Egito e os Selêucidas da Síria, da opressão dos santos pelos poderes

seculares sucessivos, até a intervenção de Miguel a seu favor. Poucos símbolos são

usados nesta visão, mas a massa de pormenores torna qualquer tentativa de interpretação

difícil.

Como a visão é datada do terceiro ano de Ciro (10:1), segue-se que os três reis

que ainda se levantariam na Pérsia seriam Cambises II, o Falso Smerdis (conhecido nas

fontes gregas como Bardiya), e Dario I (522-486 a.C.). O quarto seria Xerxes (486-464),

geralmente identificado com o Assuero do livro de Ester (1:1), onde se destaca sua imensa

riqueza (Ester 1:4-7).

"Suscitará a todos contra o reino da Grécia" (texto corrigido). Xerxes fez grandes

preparativos para vingar a derrota sofrida pelos exércitos persas face aos gregos em

Maratona (490 a.C.). Heródoto (VII, 61-80) conta mais de 40 nações que forneceram tropas

ao exército de Xerxes. A despeito de sua superioridade numérica as forças persas foram

vencidas tanto na batalha naval de Salamina (480 a.C.), como na batalha terrestre de

Platéia (479 a.C.). Como resultado destas vitórias a Grécia não mais seria invadida pelo

exército Persa.

Porque mencionar quatro reis da Pérsia que sucederam a Ciro II, quando na

realidade houve 9 ? Parece ser um princípio observado nas profecias de Daniel que logo

que a potência dominante é vencida por outra, a atenção converge imediatamente para a

nova potência, e a precedente é simplesmente esquecida. Este recurso didático mantém a

atenção do leitor naquilo que é central na marcha dos acontecimentos.

Versos 3 e 4 A informação fornecida por estes versos nos permite identificar o


"rei poderoso" como Alexandre o Grande, cujo exército conquistou em tempo relâmpago o

vasto território do império persa. A descrição nos lembra Dan. 8:7, onde é dito que o

carneiro - a Medo-Pérsia - sofreu uma derrota ignominiosa diante do bode - Greco-

Macedônica. Mas no auge do seu poder o reino de Alexandre foi quebrado, e dividido entre

seus generais. Ver o comentário sobre Dan. 7:6 e 8:5-8, 20-22.

Verso 5 Das divisões do Império de Alexandre duas recebem uma atenção

particular, o Reino do Sul e o Reino do Norte, e pela simples razão que primeiro um e

depois o outro controlaram o território de Israel. Do ponto de vista da História da redenção

acontecimentos políticos adquirem significado no momento em que têm relação com o povo

de DEUS. Em vista do v.8 não há dúvida de que "o reino do Sul" é o Egito governado pelos

Ptolomeus, ao passo que o do norte é a Síria governada pelos Selêucidas.

A história complicada da relação entre os dois reinos começa com o rei do sul,

Ptolomeu I Soter (306-283 a.C.), firme no trono. Foi adversário principal foi Seleuco I Nicator

(305-280), aqui chamado de "um de seus príncipes". Esta maneira de designar Seleuco é

apropriada, porque quando foi vencido por seu rival Antígono em 316 a.C., ele se colocou

sob a proteção de ptolomeu. Posteriormente Seleuco assistiu a Ptolomeu na batalha de

Gaza (312 a.C.), na qual Demétrio, filho de Antígono, foi vencido. No mesmo ano Seleuco

recuperou o controle de Babilônia e gradualmente estendeu sua autoridade no Helesponto

à fronteira da Índia. O ano de 312 a.C. marca o começo da era Selêucida usada para datar

os acontecimentos em I e II Macabeus. O historiador grego Arriano chama Seleuco, "o

maior dos reis que sucederam a Alexandre, a mentalidade mais real, e dominador do mais

vasto território depois de Alexandre".1

Verso 6 A melhor interpretação deste é a que nele vê uma referência a

acontecimentos que transcorreram 35 anos mais tarde, quando Antíoco II (261-246)


desposou Berenice, a filha de Ptolomeu II, por razões de Estado. Antíoco ao mesmo tempo

divorciou sua mulher e irmã, Laodice. Esta tentativa de cimentar as relações entre o Egito e

a Síria não teve êxito. Laodice conseguiu fazer envenenar Berenice e seu filho, garantindo

deste modo que seu próprio filho Seleuco II, subisse ao trono da Síria.

Verso 7 "Um renovo da linhagem dela" parece referir a Ptolomeu III, irmão de

Berenice, que quando sucedeu a seu pai em 246 a.C.invadiu a Síria para vingar o

assassinato de sua irmã. É claro que o país que está sendo invadido é o do rei do norte.

Ptolomeu III chefiou uma campanha vitoriosa através do território dos Selêucidas, levando

seu exército até à Mesopotâmia.

Verso 8 "Levará como despojo para o Egito". esta frase torna claro que o reino

do Sul é o Egito. Como resultado de suas vitórias Ptolomeu III pode levar para casa um

botim imenso. O Decreto de Canopo (239-238 a.C.) elogia Ptolomeu nos seguintes termos:

"As imagens sagradas levadas do país pelos persas, o rei tendo feito uma campanha no

estrangeiro, recuperou para o Egito".2 Embora liderando forças superiores Ptolomeu III

deixou de tirar plena vantagem de sua vitória sobre Seleuco II.

Verso 9 Depois de reparar suas perdas, Seleuco II tentou invadir o território do

Egito, mas foi derrotado e obrigado a voltar para a Síria de mãos vazias (c.240 a.C.).

Verso 10 "Os seus filhos farão guerra". A referência aqui deve ser aos filhos de

Seleuco II, Seleuco III (226-223), que foi assassinado depois de um breve reinado, e

Antíoco III o Grande (223-187). A grande ambição dos seleucidas era de anexar a Coele

Síria e a Palestina que tinha estado sob o domínio dos Ptolomeus desde a divisão do

Império de Alexandre. Com este objetivo em vista Antíoco III iniciou a guerra contra os

interesses Egípcios na Ásia retomando Selêucida o porto de Antioquia em 219 a.C.

Verso 11 Em desforra Ptolomeu IV mobilizou um grande exército para pelejar


contra Antíoco III, "O Rei do Norte". Antíoco por sua vez recrutou um exército de 62.000

infantes, 6.000 soldados de cavalaria e 102 elefantes.3 Tendo calculado mal a

determinação de seu adversário, Antíoco foi derrotado na batalha de Ráfia (217 a.C.), na

fronteira do Egito.

Verso 12 A despeito de sua brilhante vitória e da multidão de prisioneiros que

caiu em sua mão, Ptolomeu IV não tirou partido de sua superioridade militar. Entrementes

Antíoco reparou suas perdas e durante vários anos combateu vitoriosamente até a fronteira

da Índia. Ptolomeu IV morreu em 203 a.C. e foi sucedido por seu filho, Ptolomeu V (203-

181), mera criança então.

Verso 13 Antíoco III incansável preparou-se para uma segunda campanha para

arrancar a Coele Síria e a Palestina do controle egípcio.

A segunda parte deste verso lê no texto hebraico: "e ao cabo de tempos anos

virá à pressa, com grande exército..." Na sequência "tempos anos", o segundo termo

parece ser uma glosa que explica o enigmático "tempos". Se a glosa for parte do texto

original, forneceria uma chave valiosa para a compreensão de "tempos" em linguagem

profética. Neste verso a indicação de tempo parece referir aos dezesseis anos transcorridos

entre as batalhas de Ráfia (217 a.C.) e Gaza (201 a.C.).

Verso 14 Este verso parece introduzir um pensamento parentético, o sentido

exato do qual é difícil de discernir.

Verso 15 Os projetos de guerra de Antíoco III são aqui resumidos. Antíoco

alcança uma importante vitória sobre as forças egípcias na batalha de Gaza (201 a.C.).

Três anos depois o exército de Ptolomeu V comandado pelo general grego Scopas sofre

fragorosa derrota às mãos de Antíoco em Paneon (198 a.C.), junto das cabeceiras da

Jordão. Como resultado toda a Palestina passou para a mão dos selêucidas.
Verso 16 O exército de Ptolomeu V totalmente desbaratado não está em

condições de impedir que Antíoco ocupe a Coele Síria e a Palestina, aqui chamada "terra

gloriosa"(ver Dan.8:9).

Verso 17 Preocupado com projetos militares em outras partes, Antíoco oferece

termos de paz ao Egito. Esta deve ser selada por um casamento político entre Cleópatra,

filha de Antíoco, e Ptolomeu VI Philometor. Acontecimentos subseqüentes provaram que

esta aliança não lhe trouxe nenhuma vantagem.

Verso 18 As ambições territoriais de Antíoco o levaram a ocupar a Trácia e

partes da Grécia, irritando assim Roma que tinha ambições semelhantes. Derrotado pelas

legiões romanas na Europa, Antíoco procurou deter o avanço de Roma na Ásia menor.

Sofreu uma segunda derrota na batalha de Magnésia (190 a.C.), quando foi obrigado a

evacuar toda a Ásia Menor e pagar uma idenização esmagadora. O comandante romano

(Heb. gatsin) foi L. Cornelius Scipius, que fez Antíoco pagar caro por sua invasão da

Europa.

Verso 19 Para encher seu tesouro vazio Antíoco III empreende uma campanha

de pilhagem nas províncias orientais de seu império, mas encontra uma morte ignominiosa

ao sitiar uma cidade no Elão. Assim pereceu o mais aguerrido dos reis Selêucidas.

Verso 20 Antíoco foi sucedido por seu filho Seleuco IV. Sobrecarregado com a

dívida pesada herdada de seu pai, enviou um "exator de tributo", Heliodoro, à Judéia com o

plano de pilhar o Templo. Um pouco mais tarde Heliodoro encabeçou uma conspiração na

qual Seleuco IV foi assassinado.

A maior parte dos comentadores modernos, seguindo nos passos de Porfírio, vê

no resto deste capítulo um retrato velado das atividades Antíoco IV Epifânio (175-163), na

sua determinação de desarraigar a cultura e a religião dos judeus, as quais na sua opinião
enfraqueciam a unidade do reino. Não há dúvida que esta confrontação foi a mais séria que

a nação judaica encontrou desde o exílio em Babilônia. Em jogo estava a própria

sobrevivência dos judeus como uma comunidade distinta encarregada de testemunhar da

soberania universal de Jeová. Como o povo eleito tinha sido advertido por profetas como

Jeremias e Ezequiel de calamidades vindouras, seria natural esperar uma "palavra do

Senhor" concernente à ameaça representada por Antíoco Epifânio à vida e à fé da nação

judaica. É nossa crença que uma tal palavra se encontra neste capítulo que tanto tem a

dizer dos acontecimentos da época helenística.

De outro lado é nossa opinião que esta crise provocada por Antíoco Epifânio foi

típica de outras crises enfrentadas pelo povo de DEUS em outras épocas, e que esta

profecia foi deliberadamente expressa em termos tais que podia ser uma fonte de conforto

aos fiéis em situações semelhantes. Os atores do drama são diferentes, mas os tramas

feitos contra a Igreja têm muito em comum. A história não se repete em termos idênticos,

mas pogroms e perseguições religiosas são membros da mesma classe apresentando

traços comuns.

De modo que não é surpreendente que se uma geração pudesse ler na profecia

do cap.11 uma descrição plausível da crise macabeana, outra podia ser impressionada com

as alusões a acontecimentos que levaram à crucifixão de Cristo, e ainda outra poderia

reconhecer neste esboço traços da crise final, que precede o estabelecimento do reino de

DEUS. Não enfocando nenhuma destas crises com muita nitidez, esta profecia permite a

cada geração achar aquilo que melhor serve a suas necessidades espirituais. Outrossim

ficaríamos surpreendidos se Daniel ao descrever as guerras entre os ptolomeus e

Selêucidas durante um século e meio não tivesse nada a dizer da crise que mais

diretamente afetou a nação judaica. De outro lado, se a intenção divina foi esboçar as crises
principais na história da redenção, não se faz justiça à intenção do texto querer reduzí-lo à

dimensão de um episódio transcorrido na Palestina no segundo século a.C..

Visto que a partir do v.21 tratando com uma descrição polivalente das potências

sucessivas que puseram em risco a sobrevivência do povo eleito, qualquer tentativa de uma

interpretação univalente está fadada ao fracasso. O problema não é diferente do de

interpretar a profecia de Marcos 13 (Mat. 24 e Luc.21), onde profecias referentes à iminente

destruição de Jerusalém estão combinadas com predições relacionadas com a segunda

Vinda de Cristo. Ao passo que alguns traços da profecia se aplicam a ambos os eventos,

outros pertencem mais especificamente a um ou a outro. Nestas circunstâncias o intérprete

deve proceder com humildade e discernimento. Afirmações dogmáticas estão fora de lugar.

Afirmar como alguns intérpretes liberais que o autor presumível do livro de Daniel

nada sabia de um futuro Império Romano é despropositado. Qualquer leigo com um

conhecimento elementar da política mundial poderia saber em 165 a.C., a data atribuída ao

livro de Daniel, que a potência que projetava sua sombra cada vez mais ameaçadora sobre

toda a bacia do Mediterrâneo era Roma. Já em 190 a.C. Antíoco III tinha sentido o impacto

do poderio romano na batalha de Magnésia. Os Ptolomeus em suas lutas com os

selêucidas já se tinham colocado sob a proteção romana em 273 a.C. Rodes e Pérgamo

estavam fazendo o mesmo. A batalha de Pidna em 168 a.C. soou o dobre de finado para o

reino da Macedônia que os Antigônidas tinham extraído das ruínas do império de

Alexandre. Naquele mesmo ano Antíoco Epifânio foi obrigado a retirar seu exército do Egito

sob ameaça de represália militar romana. Mesmo Judas Macabeu firmou um tratado de

amizade com Roma em 161, a fim de melhor poder enfrentar o inimigo Sírio. No prefácio a

este tratado (I Macabeus 8:1-13) há uma longa descrição das proezas das armas romanas

tanto no oeste como no oriente. Qualquer autor do segundo século antes da nossa era
podia adivinhar que Roma retinha em suas mãos os azes do futuro. Somente o preconceito

pode afirmar que Daniel nada podia saber de roma, quer escrevesse no sexto século a.C.

sob inspiração divina, ou como simples observador da arena política na época dos

Macabeus.

Nesta série de instantâneos pode-se discernir Antíoco Epifânio no "homem vil"

do v.21, o qual não estivesse na linha direta de sucessão obteve o trono por astúcia. Na

política venal que prevalecia durante o reinado de Antíoco, o sumo-sacerdote em

Jerusalém, Onias III, perdeu o posto para Menelao e foi assassinado algum tempo depois.

Menelao por sua vez teve seu lanço coberto pelo de Jasão e foi expulso do sumo-

sacerdócio (verso 22). A política tortuosa de Antíoco IV é descrita nos vv.23-27. Em sua luta

com Ptolomeu VI do Egito, Antíoco não hesitou em usar força militar e diplomacia ambígua.

Em sua campanha de 169 a.C. contra o Egito ele obtém algum êxito, mas os judeus

recalcitrantes - a santa aliança - lhe são uma fonte de irritação (v.28).

Em sua segunda campanha contra o Egito (168 a.C.), o resultado não foi o que

esperava. "Virão contra ele navios de Quitim" (v.30). Quitim era um termo geralmente

empregado para designar as ilhas e os países costeiros ao oeste da Palestina. O termo é

emprestado de Num.24:24, "Homens virão de Quitim em suas naus; afligirão e a Heber".

Assur e Heber designam respectivamente a Síria (Assíria) e a nação hebraica. Heber foi um

dos antepassados de Abraão (Gen.11:16). I Macabeus 1:1 e 8:5 aplicam o termo Quitim à

Macedônia. Entre os manuscritos do Mar Morto o pesher de Habacuque e o Rolo da Guerra

usam o termo Quitim, e F.F. Bruce vê nele uma referência à Roma. 4 Com efeito foi o legado

romano que obrigou Antíoco a retirar-se do Egito em 168 A.C. Frustrado em suas ambições

Antíoco dirigiu sua fúria contra "a santa aliança", claramente uma referência à religião

judaica. A Antíoco lhe parecia que a única maneira de resistir ao avanço romano no futuro
era unificando seu reino mais rigorosamente impondo a seus súditos uma só cultura e uma

só religião.

Antíoco encarregou Apolônio de conquistar Jerusalém, suspender o culto

religioso, e mesmo profanar o altar de sacrifícios colocando sobre ele "a abominação

desoladora" (v.31; I Mac.1:41-54). Muitos judeus progressistas" aquiesceram com a ordem

de renunciar a sua religião, mas outros preferiram resistir e sofrer por sua fé (vv.32-33). Os

fieis são chamados "entendidos", mas o preço que pagaram por sua lealdade a Deus foi

terrível. A cena pintada nos versos 34 e 35 é de sacrifício heróico de um lado e de hipocrisia

e duplicidade de outro. O sofrimento é declarado não ser em vão porque contribuiria para

purificar e embranquecer.

Mas o que é verdade da crise provocada pela megalomania de Antíoco Epifânio

em seus dias, é também uma descrição apta dos ultrajes perpetrados por Roma pagã

contra o povo judeu e sua religião na guerra que levou à destruição de Jerusalém e do

Templo em 66-70 A.D. Em Mat.24:15 temos nada menos do que uma aplicação desta

profecia dos lábios de Cristo à crise que breve desabaria sobre a nação judaica.

O sentido pleno do v.31 não é esgotado pela explicação acima. Percebe-se nele

um eco das palavras de Dan.8:11-13, e lá a remoção do contínuo, o tamid, pela ponta

pequena foi vista significar o aquecimento em que o santuário celeste e a obra mediatória

de Cristo caíram como resultado da apostasia da igreja medieval. Dan.8:14 torna

igualmente claro que a plena recuperação da verdade concernente ao santuário celeste e o

ministério de intercessão de Cristo não seria alcançada até 1844. Como cada crise na

história da igreja assume um caráter mais espiritual, e as questões em jogo são cada vez

maiores, segue-se que a "abominação desoladora" se torna para as gerações posteriores o

símbolo de crenças e práticas religiosas espúrias em oposição ao cristianismo autêntico.


Sua manifestação extrema seria uma teologia inteiramente secularizada, uma forma de

cristianismo sem Cristo, que ganharia ampla aceitação no "tempo do fim".

Os versos 36 a 39 parecem ampliar pontos já mencionados e particularmente a

deificação própria de Antíoco, que então se torna o tipo de toda tentativa subseqüente de

auto-deificação do estado ou da igreja em que desafio ao único Deus verdadeiro. Os

paralelos entre 11:36 e 7:25 são evidentes. De igual modo vem-nos à mente a descrição do

"homem de iniqüidade" de II Tess. 2:1-12. Assumindo títulos divinos e fazendo pose de

deus, Antíoco Epifânio atingiu o auge da arrogância. O historiador Políbio assim comenta a

auto-deificação do tirano: "Antíoco, de sobriquete Epifânio, ganhou o nome de Epimanes

(louco) por sua conduta".5

Não somente feriu a sensibilidade religiosa dos judeus mas também a dos pagãos, por sua

falta de respeito aos deuses da devoção popular, como, por exemplo, Tamuz-Adonis, aqui

chamado "o que é amado pelas mulheres", bem como aos deuses olímpicos honrados por

seus pais. Se honrava a qualquer deus este era o da guerra, aqui designado "o deus das

fortalezas" (v.38), ao qual os recursos do estado eram sacrificados sem consideração.

Intérpretes da diferentes escolas admitem que nem todos os pormenores deste

esboço profético são apropriados para Antíoco. Mas se este esboço é visto como uma

descrição polivalente das várias personificações do poder do mal, as incongruídades

aparentes desvanecem. O v.39, por exemplo seria muito mais apto como descrição de

Roma com sua política de estabelecer reis vassalos ao longo das fronteiras como estados-

tampãos contra os bárbaros de além. Seria também uma descrição apropriada do papado

da Idade Média, o qual coroava reis e depunha reis, vendia cargos eclesiásticos, e até

dividiu o globo entre os portugueses e os espanhóis pelo Tratado de Tordesilhas em 1492.

Se o propósito dos versos 40 a 45 era de descrever os últimos movimentos de


Antíoco IV no campo da política levantina, então o autor errou o alvo de longe. Intérpretes

liberais, com efeito, declaram que estes versos contém a única profecia genuína do livro, e

que ela falhou completamente. Alguns imaginam poder precisar a data exata desta profecia,

que em sua opinião teria sido depois de 165, mas antes de 163 A.C., o ano em que Antíoco

morreu no Elão.

Mas aqueles que como o presente autor vêm neste capítulo a descrição de

episódios paralelos, mas bastante separados no tempo, marcando crises sucessivas na

grande controvérsia entre Cristo e o anticristo , não tem dificuldade de ver neste versos uma

profecia ainda não cumprida, mas que terá seu cumprimento "no tempo do fim" (v.40). Os

vários atores neste drama, embora chamados pelos mesmos nomes, tais como "rei do Sul"

e "rei do Norte", representam poderes político-religiosos que atuam na última fase da

história mundial. Estas potências têm suas ambições políticas, mas nenhuma delas é

favorável ao povo de Deus. De fato para os santos "haverá tempo de angústia, qual nunca

houve" (121). Mas tentar definir estas potências com maior precisão seria uma forma de

presunção, pois se trata de profecia não cumprida. O propósito principal de uma profecia

não é necessariamente de permitir ao estudante prever o futuro, mas confirmar sua fé no

momento que a profecia encontra cumprimento. Esta opinião concorda com o dizer de

Jesus a Seus discípulos: "Disse-vos agora, antes que aconteça, para que, quando

acontecer, vós creiais" (João 14:29).

O esboço profético que nos dá Daniel é bastante claro no que toca à tendência

geral do conflito político-religioso dos séculos, mas insuficiente para a identificação de cada

pormenor histórico. Basta saber que quando a última personificação do anticristo sair "com

grande furor para destruir e exterminar a muitos", Deus intervirá para dar-lhe "fim e não

haverá quem o socorra" (vv.44,45).


12:1 "Nesse tempo". É evidente que os vv.1-4 do cap. 12 constituem uma

continuação da profecia precedente, e que logicamente estes versos deviam ter sido ligados

ao cap.11. A frase, "nesse tempo", é sem dúvida uma referência à crise descrita em 11:40-

45, a qual o v.40 associa com o "tempo do fim". Embora esta expressão seja associada com

diferente Kairoi em diferentes oráculos proféticos, no presente contexto, e precedendo a

ressurreição dos mortos (v.2), só pode indicar o eschaton.

O "tempo de angústia" que precede o fim constituirá uma ameaça tão grande à

sobrevivência da igreja, que Miguel em pessoa intervirá a seu favor. No comentário a

Dan.10:11 argumentou-se que Miguel é outro nome de Cristo.6 Cristo parece referir-se

mesma crise quando disse: "porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o

princípio do mundo não tem havido..." (Mat.24:12).

Justo antes do fim muitos professarão ser discípulos de Cristo, mas somente

aqueles cujo nome "for achado inscrito no livro" da vida serão salvos. Esta afirmação nos

lembra a cena descrita em Dan.7:10, "assentou-se o tribunal, e os livros foram abertos". O

julgamento que precede a segunda vinda é enfocado aqui, julgamento que determina que

nomes permanecem no "livro da vida", e que nomes serão apagados (Apoc.3:5). Assegura-

se neste verso livramento para todos os santos que estiverem vivos por ocasião do

segundo advento. Não serão isentos de tribulações, como ensinam os dispensacionalistas

com sua doutrina do "rapto secreto", mas serão livrados das tribulações quando Deus

houver por bem intervir.

Verso 2 Alguns comentadores tomam este verso como uma referência a uma

ressurreição parcial. Em sua opinião a ressurreição só é prometida aos "entendidos" que

morreram com mártires na causa da verdade (11:33). Mas o fato é que o termo hebraico

rabbim, "muitos", freqüentemente tem o sentido de "todos", como em Deut.7:1. "muitos" e


"todos" são praticamente sinônimos como o paralelismo entre Isa.2:2 e 2:3 o mostra. Como

não há no vocabulário hebraico um termo para "todos", rabbim supre em muitos casos a

falta, e pode ser traduzido por "todos", "multidão". Assim uma versão moderna da Bíblia

traduz este verso do seguinte modo: "Multidões que dormem no pó da terra..." 7 É bem

provável que Daniel não tivesse idéia alguma de uma dupla ressurreição, como se afirma

em João 5:28,29, e em Apoc. 20, onde se distingue entre a "primeira ressurreição", a dos

"bem-aventurados" (versos 5,6) e outra que ocorre no final do milênio (v.13). A verdade da

ressurreição não foi revelada em sua plenitude aos profetas do V.T. Mas raiou sobre eles

gradualmente como "a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito"

(Prov.4:18). Com efeito este texto de Daniel é o mais claro de todo o Velho Testamento no

tema da ressurreição, mas fica muito a dever à revelação ainda mais completa do N.T.

Verso 3 Este verso que fala da recompensa dos santos é escrito em linguagem

poética. A segunda parte do verso corresponde à primeira, como é típico da poesia

hebraica. Assim, "os que forem sábios" da primeira parte corresponde a "os que a muitos

conduzirem à justiça" da segunda. Pode-se dizer que a segunda expressão define e explica

a primeira. O acento, então, não é sobre sabedoria intelectual, mas sobre serviço inspirado

pelo amor para a salvação de nossos semelhantes. Falando da recompensa dos santos

Cristo usou uma linguagem muito semelhante:"Então os justos resplandecerão como o sol,

no reino de seu Pai" (Mat.13:43).

Verso 4 Uma compreensão plena do livro não poderia ser alcançada "até ao

tempo do fim". O entendimento aumentaria pari passu com o desenrolar dos

acontecimentos preditos no livro. Cada geração compreenderia aquela porção da profecia

que lhe fosse particularmente relevante. "Muitos o esquadrinharão". Com efeito o

intercessor nestas profecias aumentou enormemente desde a grande Reforma do século


XVI.

Nem todos as compreenderiam, diz o v.10. A promessa, porém, fica de pé: "Mas

os sábios entenderão". O termo "sábio" não deve ser interpretado como se referisse a uma

sabedoria esotérica reservada para uma elite como no gnosticismo. Os "sábios" são todos

aqueles cujas mentes estão sintonizadas com o Espírito de Deus, receptivos à luz divina.

Eles possuem a sabedoria cujo fundamento é o temor do senhor. O "saber" ou

"conhecimento" do qual fala nosso verso é certamente o conhecimento relativo ao

significado destas profecias. Conhecimento puramente secular é perífero por comparação.

NOTAS

1. Anabasis de Alexandre, vii, 22.

2. J.P. Mahaffy, A History of Egypt under yhe Ptolemaic Dynasty (New York, 1899), p.113.

3. Políbio, Histories, v.79.

4. Citado em J.C. Baldwin, Daniel, p.194.

5. Livro 26, citado em J. C. Baldwin, Op.Cit., p.198.

6. Assim C.F. Keil, Book of Daniel, p. 475, que também crê que os acontecimentos

aos quais se refere neste verso "se completarão mais plenamente na segunda vinda do

Senhor".

7. Ver J. Jeremias, TDNT, VI, pp. 536 ss.

DANIEL 12:5-13

O TEMPO DO FIM
Neste epílogo Daniel se apresenta como quem procura um entendimento melhor

das cousas que lhe foram mostradas. Nem sempre o profeta é cônscio do sentido mais

profundo da revelação que lhe é confiada. Eles também só conheciam "em parte" (I Cor.

13:12). Eles igualmente "indagaram e inquiriram... acerca da graça", deixando-nos um

exemplo digno de imitação (I Pedro 1:10 e 11).

Versos 5 e 6 Estes versos mostram que seres celestes estão interessados nos

assuntos desta terra, e que mesmo para eles o futuro não é um livro aberto. A questão

suprema em suas mentes é: "Quando se cumprirão estas maravilhas?" O termo

"maravilhas" deve ser uma referência a todos os acontecimentos mencionados na longa

profecia do capítulo precedente, e particularmente aos ataques do anticristo ao "povo dos

santos", ao santuário e ao ministério de intercessão que nele se efetua.

Verso 7 O ser majestosos que pairava sobre as águas do rio é sem dúvida a

mesma figura descrita em Dan.10:4-6. O cenário é o mesmo que no começo da visão, à

borda de uma corrente. A solenidade do juramento que pronuncia é realçada pelo fato de

levantar "a mão direita e a esquerda ao céu". S.R. Driver interpreta o gesto como "a mais

completa garantia da verdade que será declarada".1 O que vai ser afirmado é de

importância capital. Segue-se que o período profético de "um tempo, dois tempos e metade

de um tempo", primeiramente mencionado em Dan.7:25, deve ocupar um lugar importante

no conflito dos séculos. Lá se fala, entre outras cousas, da opressão "dos santos do

Altíssimo", pelo décimo primeiro chifre que se levantaria das ruínas do Império Romano

(7:7,8). Aqui se fala da "destruição do poder do povo santo". Aos santos se promete escape

da tribulação sofrida por amor de Cristo, mas se lhes assegura livramento no tempo

escolhido por Deus. Implícita na declaração solene deste ser celeste é a promessa de que a
história deste mundo com todo seu horror não se arrastaria para sempre, mas seria

consumada afinal pela intervenção divina. O começo do período do fim seria marcado pelo

fato que o papado sofreria um grande revez no final dos 1260 dias proféticos.

Verso 8 As palavras enigmáticas que ele acabava de ouvir não foram suficientes

para dissipar a ansiedade de Daniel. O fim deste conflito prolongado ainda se lhe escapava.

Verso 9 Na própria natureza do caso, plena compreensão destas profecias

precisava aguardar "o tempo do fim". Pouco adiantaria revelar a Daniel o nome das super-

potências que desempenharão o papel final nos negócios deste mundo. Estes nomes não

se lhes significariam mais do que se o anjo lhe dissesse que no século XX haveria

computadores e foguetes teleguiados.

Verso 10 O sofrimento dos santos em diferentes épocas não seria em vão. Na

fornalha da tribulação seu caráter seria purificado e refinado do mesmo modo que a escória

é removida do ouro no cadinho do ourives. A maldade caracterizaria a história do homem

nesta terra até o fim, e constituiria um impedimento à compreensão das cousas de DEUS.

Como o apóstolo declarou: "A palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para

nós, que somos salvos, poder de DEUS" (I Cor. 1:18). A promessa de que os

verdadeiramente sábios entenderão deveria encorajar a todo crente a devotar toda sua

energia para alcançar uma compreensão mais clara destas profecias.

Versos 11, 12 Intérpretes liberais obcecados com a idéia que o livro de Daniel

foi composto no segundo século antes da nossa era, e que tem como tema principal a crise

precipitada por Antíoco Epifânio quando profanou o templo em Jerusalém e proibiu a prática

da religião judaica, propõem que os 1290 e os 1335 dias aqui mencionados são correções

posteriores dos períodos proféticos de Daniel 7:25 e 8:14, quando os acontecimentos

preditos não se materializaram. A sugestão original foi feita por Gunkel e foi adotada por
Montgomery, Bentzen, Delcor e Lacoque.2 Intérpretes conservadores contestam a

possibilidade prática de introduzir correções num livrete que já estava em circulação. O que

é pior as correções não são melhores do que as predições originais, pois também não se

enquadram no intervalo que separa a profanação do santuário em 168 a.C. e sua

restauração em dezembro de 164 a.C. Além disto, já foi demonstrado no comentário a

Dan.8:14 que as 2.300 tardes e manhãs não podem de modo algum ser interpretadas como

1.150 dias. Outrossim o tempo especificado em Dan.8:14 não se refere apenas à

profanação do Santuário, mas ao tempo todo coberto pela visão descrita em 8:2-14, que

abrange a duração de vários impérios. O panorama profético revelado a Daniel certamente

incluia a crise que ameaçou a comunidade judaica sob Antíoco Epifânio, mas abrangia

muito mais. A julgar pelo paralelismo dos capítulos 2, 7 e 8, abrangia os dois e meio

milênios que se estendem dos dias de Babilônia ao fim do mundo e ao estabelecimento do

reino eterno de DEUS.

Uma vez que a linguagem do v.11 é tão semelhante a de Dan.8:11 e 12 e 11:31,

é provável que tanto uma como a outra se referem ao mesmo acontecimento, a saber, a

substituição do ministério sacerdotal de Cristo no céu por um sistema terrestre de

mediação. A função de Cristo como nosso Sumo-Sacerdote no Santuário Celeste estaria

envolta em obscuridade até "ao tempo do fim", quando de novo luz seria lançada sobre o

aspecto celeste do ministério da redenção. Esta não é questão de somenos importância em

Teologia, quando suas implicações são plenamente avaliadas à luz da epístola aos

Hebreus, caps. 7-10. O preconceito humanístico que coloriu a Teologia Protestante

centrada como era sobre o homem nesta terra e sua necessidade de salvação, devia ser

corrigida por uma compreensão melhor do ministério de Cristo nos céus em favor da

humanidade.
Se este epílogo enfoca "o tempo do fim", como evidentemente o faz (vv.4, 9 e

13), parece-nos apropriado considerar os 1290 e os 1335 dias como tempos literais

abrangendo este número de dias. A favor desta hipótese milita o fato que estes sãos os

únicos períodos proféticos no livro de Daniel que são expressos em "dias". Em todos os

outros casos tempo profético é expresso sob vários símbolos: "tempo" (7:25), ou "tardes e

manhãs" (8:14), ou "semanas" (9:24). Tudo se passa como se na crise final todo o drama

dos séculos é recapitulado numa escala abreviada. Pode-se, então, imaginar um tempo de

angústia "qual nunca houve" durante 1.290 dias literais, ou sejam, pouco mais de 3 anos e

meio, seguido por um tempo de angústia ainda pior durante 45 dias literais.

Uma bênção é pronunciada sobre os que perseveram até o final dos 1335 dias,

porque então Cristo depõe Suas vestes sacerdotais, e aparece nas nuvens do céu como

"Rei dos reis, e Senhor dos senhores", para livrar os santos que estão vivos (v.1). Como o

ponto de partida destas duas profecias não é dado, não podem ser usadas para calcular o

dia e a hora da Segunda vinda de Cristo, o conhecimento dos quais DEUS tem reservado

para Si Próprio (Mat.24:36; At. 1:7).

Verso 13 Quanto a Daniel, ele também precisa perseverar até o fim, ele

também deve descansar na sepultura porque o tempo do livramento estava ainda no futuro.

Mas no "fim dos dias", ele também seria levantado dentre os mortos com o "povo dos

santos do Altíssimo" (7:27).

NOTAS
1. Cambridge Bible, Daniel, p. 204.

2. J. C. Baldwin, Daniel, p. 209..

You might also like