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Gilberto Freyre:

da Casa-Grande ao Sobrado
Gênese e Dissolução do Patriarcalismo
Escravista no Brasil

Algumas Considerações

Mário Maestri

1
Sumário

1. Casa-Grande & Senzala: A Formação do Patriarcalismo Brasileiro........................................................... 3


1.1. A revolução conservadora de Casa-grande & senzala .................................................................. 3
1.2. Cultura, meio e raça: a invenção do português........................................................................... 4
1.3. Meio, raça e cultura: a invenção do índio .................................................................................... 6
1.4. Meio, raça e cultura: a invenção do judeu ................................................................................... 7
1.5. Meio, raça e cultura: a invenção do negro ................................................................................... 9
1.6. Meio, raça e cultura: a invenção do brasileiro............................................................................. 10
2. Sobrados e Mucambos: A Dissolução do Patriarcalismo Brasileiro ............................................................... 12
2.1. Sobrados e mucambos: continuidade e superação............................................................................ 12
2.2. Reafirmação da natureza do judeu................................................................................................ 17
2.3. Reafirmação da natureza do índio ................................................................................................ 18
2.4. Sobrados e mucambos: a ciência racista de Gilberto Freyre ........................................................... 19
2.5. A agonia do patriarcalismo escravista .......................................................................................... 22
2.6. O paraíso escravista ........................................................................................................................ 23
2.7. Sobrados e mucambos: o fim de uma era........................................................................................... 27

O autor é doutor em história pela UCL, Bélgica, e professor do Programa de Pós-Graduação em História da
UPF. E-mail: maestri@via-rs.net

2
1 Casa-Grande & Senzala:
A Formação do Patriarcalismo Brasileiro

1.1 A revolução conservadora de ideológica em que as elites brasileiras encontra-


Casa-grande & senzala vam-se metidas em inícios dos anos 1930.
Em 1889, a República proclamara a igualdade,
Em 1933, com 33 anos, Gilberto Freyre pu- ao menos formal, dos brasileiros, fossem filhos
blicava Casa-grande & senzala: formação da famí- dos latifundiários ou de seus trabalhadores.
lia brasileira sob o regime da economia patriar- Introduzida no Brasil nos anos 1870, a propalada
cal, expansão de sua tese de sociologia, apresen- minoridade natural dos homens “negros” e “de
tada dez anos antes na Faculdade de Ciências cor”, defendida pelo “racismo científico” contri-
Políticas e Sociais da Universidade de Colúmbia buíra na República para a justificação do domínio
– Social life in Brazil in the middle of the 19th century.1 político oligárquico das elites brancas. A retórica
Consagrado quase imediatamente, o livro trans- racista republicana mostrara-se igualmente ope-
formou-se em interpretação semi-oficial do racional ao apoiar a importação maciça de braços
Brasil e certamente na obra nacional de maior europeus para preencher os vazios deixados nos
repercussão. Em 2003, a 47ª edição de Ca- eitos do café, inicialmente pelo esgotamento de-
sa-grande & senzala contou com apresentação mográfico da população escravizada e, a seguir,
respeitosa de Fernando Henrique Cardoso, au- pela abolição da escravatura.
tor de estudo sobre o escravismo sulino que par-
ticipara, décadas antes, de campanha acadêmica O nascimento do Brasil
contra a obra prefaciada.2 A revolta dos marinheiros negros, em 1910; a
Casa-grande & senzala constitui livro de poucas fundação do PCB e o Tenentismo, nos anos 1920;
e ralas idéias, não raro espichadas ao absurdo, so- a Revolução de 1930, etc. registraram o ingresso
bretudo nas edições ampliadas, por escritor de das classes sociais em um palco nacional em for-
mão santa. Apesar das fontes e temas inovadores, mação. As justificativas próprias a uma ordem ru-
seu sucesso não se deveu à démarche metodológi- ral, oligárquica e regionalizada chocavam-se com
ca, ao material antropológico, à apresentação his- as necessidades das novas classes dominantes de
tórica radicais. Atualmente, o livro sustenta-se gestão política e ideológica de nação industrial que
principalmente como peça literária e depoimento começava a ser construída a passos largos.
cultural sobre a época de sua produção. Em inícios dos anos 1930, fortalecidos pelo
Gilberto Freyre garantiu-se meio século de in- domínio fascista da Itália e pela ascensão nazista
cessantes homenagens e recompensas que, a bem na Alemanha, o determinismo geográfico e cli-
da verdade, estendem-se ainda a sua des- mático e o “racismo científico” vaticinavam um
cendência, precisamente por ter proposto solu- destino de inevitáveis fracassos para o Brasil, de-
ção funcional e orgânica à profunda enrascada vido ao seu clima tropical e à sua população mis-

1 FREYRE, Gilberto. Prefácio à 1ª. Edição. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sobre
[sic] o regime da economia patriarcal. 47. ed. rev. São Paulo: Global, 2003. p. 48.
2 Cf. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio
Grande do Sul. São Paulo: Difel, 1962.

3
cigenada e afro-descendente.3 Na esteira do Essai escapa quase de todo ao controle social [...]; as
sur l´inégalité des races humaines, de 1853-5, de Arthur outras duas causas, porém, encontram explicação
de Gobineau, em 1896, em Les sélections sociales, na história social e econômica do brasileiro – na
Georges Vacher de Lapouge [1854-1936] ponti- monocultura, no regime de trabalho escravo, no
ficara sobre o Brasil: “[...] o Brasil constituirá sem latifúndio [...]. São suscetíveis de correção ou de
lugar a dúvidas, daqui a um século, um imenso es- controle.”8 De forma igualmente inovadora, res-
tado negro, a menos que não retorne, como é saltava a profunda determinação do passado bra-
provável, à barbárie [...]”4. sileiro pelo escravismo, propondo, com sensível
Autores como Oliveira Vianna e Euclides da percepção, a existência de vasto espaço geo-
Cunha5 propunham como única solução possível gráfico e social americano, do sul dos USA até,
da desqualificação racial brasileira, a “arianização” no mínimo, São Paulo, onde vicejara idêntica so-
do País, isto é, o melhoramento de sua qualidade ciedade patriarcal, latifundiária e escravocrata.9
“eugênica” através de escancaramento à imigra-
ção européia que impusesse ao País população
branca e mestiça de branca. Essas idéias estapa- 1.2 Cultura, meio e raça:
fúrdias, que justificavam a desigualdade social a invenção do português
através da desigualdade natural dos homens,
eram moeda corrente entre as elites em momento Freyre não rompeu com o discurso dominan-
em que o operariado ensejava as primeiras e te. Procurando fazer da necessidade virtude, in-
frágeis interpretações da sociedade nacional, a verteu engenhosamente os pressupostos racistas
partir de visões unitaristas e universalistas. e determinista geográfico e climático, para apre-
Freyre levantava-se contra essa verdadeira sentar uma interpretação sobre a realidade nacio-
pena “de morte” lançada contra “o brasileiro nal inspirada nas visões de mundo das elites nor-
porque” era “mestiço e o Brasil porque” estava destinas e profundamente funcional aos novos
“em grande parte em zona de clima quente”.6 Sua tempos “nacionais”.
interpretação sobre a formação social brasileira Na sua leitura do passado, propôs a dominân-
tinha rasgos aparentemente revolucionários. Re- cia de um clima e de um solo profundamente des-
tomando a lição de Roquete Pinto7, lembrava favoráveis ao desenvolvimento brasileiro, em
que a população nacional decaída não era produ- oposição radical às qualidades climáticas e pedo-
to da miscigenação mas de condições sociais e de lógicas excepcionais dos USA, que apontou
meios perversos. Era necessário estudar a his- como responsáveis pelo sucesso econômico que
tória nacional para compreender, explicar e, jamais bafejara o Brasil.10 Apenas devido à po-
eventualmente, transformar o País. breza do clima, do solo e da população brasílica,
Falando das dificuldades do Brasil, Freyre o colonizador português – segundo Freyre, sem
afirmava: “A pobreza de cálcio do solo brasileiro tradição agrícola – fora obrigado a substituir a de-

3 Cf. FREYRE. Casa-grande & senzala, op. cit., p. 97.


4 “[...] le Brésil constituera sans doute d’ici un siècle um immense état nègre, à moins qu’il ne retourne, et c´est probable, à
la barbárie”. LAPOUGE, Georges Vacher de. Lês sélections sociales. Apud VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 2 ed.
São Paulo: CEM, 1933. p. 185.
5 Cf. CUNHA, E. da. Os sertões: campanha de Canudos. 4 ed. corr. Rio de Janeiro: Francisco Alves; Paris: Aillaud, Alves,
1911; VIANNA, Oliveira. Raça e assimilação. [1932]. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1959; _______. Evolução do povo brasilei-
ro,op. cit.
6 REYRE. Casa-grande [...], op. cit., p. 97.
7 Cf. ROQUETTE-PINTO, E. Ensaios de anthropologia brasiliana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933.
8 REIRE. Casa-grande [...], op. cit., p. 105.
9 Cf. id., ib., p.30.
10 Cf. id., ib., p.78.

4
sejada exploração comercial da nova colônia por o homem nórdico, também o lusitano dissol-
colonização agrícola e sedentária, produto da in- via-se ao empreender esforço físico no meio
versão de grandes capitais e de energias privadas. agreste e cálido. Assim sendo, para colonizar a
Na época da publicação de Casa-grande & sen- América o “meio e as circunstâncias exigiriam o
zala, era um axioma do “racismo científico” per- escravo”.15 Portanto, não seriam causas históri-
neta que a “raça européia” definhasse em região cas econômicas e sociais mas, ao contrário, cli-
tropical, devido ao clima sufocante. – À exceção máticas e geológicas a imporem a dura solução
do português, produto de meio e civilização, me- colonial, escravista e latifundiária. “As condições
tade africano, metade europeu – corrigiu pronta- físicas da parte da América que toucou aos portu-
mente o pernambucano. Para Freyre, nas “condi- gueses exigiam dele um tipo de colonização
ções físicas de solo e de temperatura, Portugal” agrária e escravocrata.”16
seria “antes África do que Europa”. Realidade E, para não deixar dúvidas sobre a obrigatorie-
que se teria consolidado devido ao hibridismo dade “natural” da solução escravista e latifundiá-
milenar da população lusitana, hibridismo re- ria, Freyre pontificava seguro: “Mas nenhum nos
forçado pela posterior ocupação muçulmana da disse até hoje que outro método de suprir as ne-
península.11 Portanto, o português possuiria pre- cessidades do trabalho poderia ter adotado o co-
disposições culturais, psíquicas e raciais únicas lonizador português no Brasil.” E, a seguir, afir-
para a vida em clima quente: “Ao contrário da ma, sob forma de pergunta, que a propriedade
aparente incapacidade dos nórdicos, é que os camponesa jamais tivera qualquer possibilidade
portugueses têm revelado tão notável aptidão real de sucesso no país: “Mas essas doações pe-
para se aclimatarem em regiões tropicais.”12 quenas teriam dado resultado em País, como o
Brasil, de clima áspero para o europeu e grandes
O super-homem lusitano
extensões de terra?”17
Freyre propunha que outros “europeus, estes
brancos, puros, dólico-louros habitantes de clima
Maldita saúva
frio, ao primeiro contato com a América equato-
rial sucumbiriam ou perderiam a energia coloni- Para Freyre, portanto, a raça, o clima e a fauna
zadora [...]. O português não”13. Segundo o autor impediam definitivamente a exploração campo-
pernanbucano, devido às “felizes predisposições nesa e livre do Brasil. “A saúva sozinha, sem ou-
de raça, de mesologia e de cultura”, o lusitano tra praga, nem dano, teria vencido o colono la-
conseguira vencer “as condições de clima”, fun- vrador, devorando-lhe a pequena propriedade do
dando, nas terras inóspitas tropicais americanas, dia para a noite, consumindo-lhe em curtas horas
uma magnífica civilização moderna.14 Por essas e o difícil capital de instalação; o esforço penoso de
outras boutades filo-lusitanas, a obra e seu criador muitos meses”. Na primeira pessoa do plural,
seriam também cobertos de homenagens e re- concluía a enunciação axiomática, exigindo ren-
compensas pelo Estado português salazarista. dição incondicional do frágil antagonista imagi-
Porém, para o sociólogo de Apipucos, um nário por ele construído: “Tenhamos a honesti-
pouco como o sorvete exposto ao sol, apesar das dade de reconhecer que só a colonização latifun-
suas qualidades atávicas, ainda que menos do que diária e escravocrata teria sido capaz de resistir

11 Id., ib., p.72.


12 Id., ib., p.73.
13 Id., ib., p.74.
14 Id., ib., p.74.
15 Id., ib., p. 322.
16 Id., ib., p.285.
17 Id., ib., p.322-3.

5
aos obstáculos enormes que se levantaram à civi- cano pelo colonizador lusitano, obrigando, as-
lização do Brasil pelo europeu”.18 sim, à introdução, na América portuguesa, do
Enquanto o sociólogo pontificava sobre o fra- africano feitorizado. Sua interpretação desse
casso do camponês hipotético no passado, havia fenômeno influenciaria fortemente as ciências
mais de cem anos que camponeses alemães, italia- sociais brasileiras, mantendo-se ainda em inúme-
nos, poloneses, etc. frutificavam, com sucesso, no ros manuais escolares e no superficial conheci-
mundo real, pequenas glebas no sul do Brasil, tra- mento brasileiro sobre o passado.
balhando sob temperaturas no verão no mínimo Para Freyre, o esforço português teria fracas-
iguais às da zona da mata pernambucana.19 sado totalmente ao se mostrar o americano “mo-
Em Casa-grande & senzala, a ignorância lengão” inveterado, incapaz de aplicar-se ao tra-
sumária da feliz experiência camponesa no meri- balho sistemático, por determinações sobretudo
dião do Brasil, iniciada no distante ano de 1824, culturais, visto ser difícil explicar a inadaptabili-
não é um caso isolado. Entretanto, ela, por si só, dade racial do homem da terra ao próprio meio
desmentia a pretensa incapacidade do europeu ao geoclimático americano. Portanto, afirma o so-
esforço físico em região quente e agreste, ou a ciólogo: “[...] a cultura americana [...] era nômade,
inadequação do meio americano à pequena pro- a de floresta, e não ainda a agrícola; que o pouco
priedade, uma das grandes traves de sustentação de lavoura [...] praticado por algumas tribos me-
da interpretação do sociólogo. nos atrasadas, era trabalho desdenhado [sic] pe-
O processo discursivo de Freyre assenta-se los homens – caçadores, pescadores e guerreiros
sistematicamente no desconhecimento sumário – e entregue às mulheres [...]”.
da evidência histórica, mesmo quando indecente- Segundo Freyre, devido a essa realidade so-
mente explícita. Procedimento facilitado por in- cial, onde apenas as mulheres plantavam, as ame-
terpretação sociológica dos fenômenos comu- ricanas teriam ficado “diminuídas” “na sua do-
mente à margem do tempo e do devir históricos. mesticidade pelo serviço de campo” – talvez por
Portanto, se, por sua natureza racial e cultural, não tocarem piano como as sinhás dos engenhos!
o português não podia mourejar nas Américas, – “tanto quanto os homens nos hábitos de traba-
era necessário encontrar trabalhador capaz de ga- lho regular e contínuo pelo tipo de vida
rantir a transposição da civilização ocidental ao nômade”.20
Novo Mundo, pelo trabalho duro, sistemático e Logo, conforme ele, o tupi mostrara-se defi-
feitorizado no agreste meio brasílico. nitivamente imprestável à produção sistemática
– “A enxada é que não se firmou nunca na mão
do índio [...]”. O que não teria impedido a gran-
1.3 Meio, raça e cultura: de contribuição da mulher americana à forma-
a invenção do índio ção da sociedade e da família brasileira. “Da cu-
nhã é que nos veio o melhor da cultura indíge-
Durante o longo capítulo “O indígena na for- na”.21 Contribuição que se daria, sempre de
mação da família brasileira”, Freyre dedica-se a acordo com o autor pernambucano, através dos
justificar as razões que teriam inviabilizado a es- serviços prestados por ela aos portugueses no
cravização ampla e continuada do homem ameri- campo, na moradia e, sobretudo, no doce e

18 Id., ib., p. 323.


19 Cf., entre outros: ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969; MAESTRI, Mário.
Os senhores da Serra: a colonização italiana no Rio Grande do Sul. 2. ed. rev. e amp. Passo Fundo: EdiUPF, 2001;
WENCZENOVICZ, Thaís Janaína. Montanhas que furam as nuvens! A colonização polonesa em Áurea. 1910-1945. Passo
Fundo: EdUPF, 2002.
20 Id., ib., p. 164.
21 Id., ib., p. 163.

6
quente aconchego da rede. Também no último sentido vertical, confundindo-se no casamento
caso, a natureza do colonizador português teria origens étnicas diversas”.23
sido providencial. Assim sendo, o Brasil se formaria, “despreo-
cupados os seus colonizadores da unidade ou pu-
O supermacho português reza de raça”.24 No combate e no extermínio do
Atavicamente atraído pela mulher de “cor”, nativo americano pelo colonizador, fenômeno
historicamente habituado à miscigenação, fo- que, em geral, nega e minimiza, Freyre via apenas
gueado na sua fome sexual pelo clima abrasivo, o e somente oposição de fé: “É o infiel que se trata
homem lusitano se teria aplicado com desbraga- como inimigo no indígena, e não o indivíduo de
do afinco ao embarrigamento de uma nativa que raça diversa ou de cor diferente”.25
se entregava a ele com singular ardor, fogosidade
e boa vontade.
Projeto estatal nascido da escassa população 1.4 Meio, raça e cultura:
colonial, a militância genésica lusitana seria facili- a invenção do judeu
tada pelo fato de que a nativa, “estável” e “produ-
tiva”, vivia em calor sexual jamais saciado por ma- Portanto, para Freyre, em oposição ao resto da
cho de fome erótica “reduzida” devido à vida “nô- América, as relações inter-raciais seriam exempla-
made” e “guerreira”. “[...] a vida mais sedentária e res no Brasil: “Nem as relações sociais entre as
regular da mulher dotando-a de uma sexualidade duas raças, a conquistadora e a indígena, aguça-
superior à do macho, em uma desproporção que ram-se nunca na antipatia ou no ódio [...]. Suavi-
talvez explique o priapismo de muitas em face dos zou-as aqui o óleo lúbrico da profunda miscigena-
brancos”.22 Para os não informados, priapismo é ção [...]”.26 É outra tese central de Casa-grande &
qualquer coisa semelhante à “excitação sexual ex- senzala que, através da história, o português tenha
cessiva”. Portanto, para nosso bom sociólogo, o militado quando muito contra a diferença de “reli-
“índio” brasílico não fora apenas molengão na en- gião” e jamais contra a diversidade de “raça”. Ve-
xada, ao fecundar a terra, mas sobretudo na rede, tor da prática colonial lusitana, a ausência de pre-
ao fecundar e, ainda mais, ao contentar sexual- conceito racial teria se incorporado à “natureza”
mente uma “índia” eternamente insatisfeita. Go- social brasileira, fecundando a nova “civilização”.
bineau propusera de forma pioneira, a super-exci- Na comprovação dessa proposta, por razões
tação sexual das raças negra e amarela. óbvias, Freyre refere-se longamente à situação do
Essencial ao nascimento da sociedade brasi- judeu em Portugal, conhecido rosário de sofri-
leira, esse movimento de miscigenação seria faci- mentos infringidos diretamente pelo Estado ou
litado pela inexistência de preconceito de raça en- indiretamente por uma plebe galvanizada por
tre os portugueses, nascida sobretudo da ampla clérigos e nobres fanáticos, oportunistas e inte-
fusão racial que conhecera nos séculos anteriores ressados. 27 Um rosário de crimes antijudeus que
à própria chegada à América, e não apenas quan- se desdobraria na sucessão de violências contra o
do da ocupação muçulmana da Lusitânia. cristão-novo de judeu, após a conversão forçada,
Empurrando nessa direção, Freyre propunha: determinada em dezembro de 1496, pela Coroa,
“Vê-se que, com relação aos judeus, como com fato histórico apresentado com singular levianda-
relação aos mouros, foi grande a mobilidade em de: “Facilitou [sic] aliás D. Manuel I aos cris-

22 Id., ib., p. 170.


23 Id., ib., p. 306.
24 Id., ib., p. 91
25 Id., ib., p. 269.
26 Id., ib., p. 231.
27 Cf. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 21. ed. Portugal: Europa-América, 2001. p. 132.

7
tão-novos a naturalização, e, ao mesmo tempo, a antipáticos papéis de exploração dos pequenos
aristocratização de seus nomes de família [...]”.28 pelos grandes”.31 “Em essência – declara o
No relativo à situação do judeu em Portugal, o sociólogo – o problema do judeu em Portugal foi
esforço desesperado do sociólogo em adaptar os sempre um problema econômico criado pela pre-
acontecimentos históricos às suas visões tortas sença irritante de uma poderosa máquina de suc-
ensejou momentos de anti-semitismo explícito ção [sic] operando sobre a maioria do povo
dignos do imaginoso Gustavo Barroso [...]”.32 Definitivamente, vampiros insaciáveis de
[1888-1959], autor de Brasil: colônia de banquei- uma pobre população inerme.
ros, de 1934, que via invariavelmente um judeu Em Casa-grande & senzala, Freyre empreende
ardiloso e malévolo emboscado atrás de cada tro- verdadeira recapitulação das teses anti-semitas,
peção do passado brasileiro.29 como vimos, fortíssimas nos anos trinta. Sem
Conforme Freyre, ao modo da historiografia qualquer respeito à informação histórica, apre-
chauvinista lusitana, se houve alguma crispação senta como boa a moeda racista furada da inca-
racial em Portugal, ela deveu-se apenas e somen- pacidade natural do judeu ao trabalho produtivo
te à “reconhecida” – para ele – sem-cerimônia do rural e urbano. Se o ibérico desdenhava o traba-
israelita para com os pruridos e sensibilidades na- lho manual, a culpa era do judeu: “Concorreram
cionais lusitanos. De acordo com sua interpreta- os judeus em Portugal [...] para horror à ativida-
ção, a reação, definida como limitada, em Portu- de manual [...]”.33 Se o lusitano explorava o cati-
gal contra mouros e judeus surgiu apenas “quan- vo, a culpa era do israelita hispânico: “De modo
do a maioria [cristã] se apercebeu de que sua tole- que para o pendor português para viver de es-
rância estava sendo abusada. Pelo menos pelos cravos parece ter concorrido o sefardim”.34 A
judeus”. Uma defesa dos valores nacionais com- esquisita tese da perda da tradição agrária portu-
preensível, portanto.30 guesa era também explicada como resultado da
contaminação hebréia: “Com relação a Portugal,
Seres indelicados deve-se salientar que seus começos foram todos
Segundo Freyre, os “judeus haviam se agrários; agrária a sua formação nacional depois
tornado antipáticos menos pela sua abominação pervertida pela atividade comercial dos judeus
religiosa do que pela falta completa de delicadeza [...].”35 Os pequenos produtores urbanos e ru-
de sentimentos, tratando-se de questões de di- rais de origem moura e judaica constituíram par-
nheiro com os cristãos”, ou seja, reação para lá de te essencial da frágil burguesia lusitana. Vivendo
normal contra seres somíticos e execráveis. não raro havia séculos no país, apenas a discri-
Assim sendo, contra “semelhante exclusivismo minação e repressão reiteradas, implementadas
era natural que se levantassem ódios econômi- pelas classes feudais dominantes, impediram a
cos. Em virtude daquela ética ou moralidade du- integração plena e doce dessas comunidades à
pla, prestaram-se os judeus de Portugal aos mais nacionalidade portuguesa.

28 BRAGA, Isabel M.R. Mendes Drumond. Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista: Duas culturas e duas concepções religi-
osas em choque. Lisboa: Hugin, 1999. p. 20-5; FREYRE. Casa-grande & senzala, op. cit., p. 308.
29 Cf. BARROSO, Gustavo. Brasil: colônia de banqueiros. 5 ed. São Paulo: CEN, 1936.
30 REYRE. Casa-grande [...], op., cit., p. 285 e 4.
31 Id., ib., p. 305
32 Id., ib., p. 305.
33 Id., ib., p. 309.
34 Id., ib., p. 307.
35 Id., ib., p. 310.

8
Socialismo dos bobos mático e duro em meio agreste e região quente.
Ainda que Freyre proponha que essa vocação
A proposta do judeu incapaz de esforço pro- nascesse de maior nível cultural, pois plenamente
dutivo, dedicado por “natureza” à exploração agrícola, sua narrativa traça sem cessar o perfil de
usurária do “cristão” era construção da Idade africano psíquica e biologicamente destinado à
Média, requentada pelo anti-semitismo tardio eu- escravidão tropical. Como sugerira natureza
ropeu, sobretudo no viés nazista, vertente agres- “anacrônica” para o “brasil”, delineia natureza
siva do “socialismo dos bobos”. verdadeiramente “escrava” para o “negro”. Não
A visão “racista científica” da especialização raro, aproxima a força do “negro” à força do ani-
“geográfica” do ser humano apoiava-se na teoria mal de trabalho. “Às exigências do novo regime
da transmissão biológica de caracteres adquiri- de trabalho, o agrário, o índio não correspondeu,
dos. Segundo Freyre, a aquisição de caracteres envolvendo-se em uma tristeza de introvertido.
determinados pelo clima, solo, cultura, etc. era Foi preciso substituí-lo pela energia moça, tesa,
capaz de plasmar o indivíduo e, portanto, “de vigorosa do negro [...]”. Um africano fonte exau-
afetar a raça”.36 A iconografia nazista sobrepôs, rível de “reservas extraordinárias de alegria e de
muitas vezes com perverso refinamento, imagens robustez animal [...]”!38 É comum que a proposta
e caricaturas de judeus doentes e miseráveis a de de especialização biológica apresente-se, sem pa-
aves de rapinas e animais roedores para fixar vi- pas à língua, secundando o discurso culturalista:
sualmente as suas macabras elucubrações sobre “Pode-se juntar, a essa superioridade técnica e de
semi-homens com atributos de predadores. cultura dos negros, sua predisposição como que
Freyre traçou, com maestria literária, cenário biológica para a vida nos trópicos.” “Sua energia
onde práticas culturais perversas aderidas e trans- sempre fresca e nova quando em contato com a
mitidas biologicamente através dos séculos, plas- floresta tropical”.39
maram no judeu perfil e garras do predador sem- A interpretação de Freyre das razões da escra-
pre pronto a esfolar o cristão inocente. “Técnicos vidão colonial possuía fortíssimo atrativo. Soter-
da usura, tais se tornaram os judeus em quase toda rava-se aparentemente a explicação tradicional
parte por um processo de especialização quase bio- de cunho aristotélico do cativeiro nascido da in-
lógica que lhes parece ter aguçado o perfil no de ferioridade racial40 sob a proposta da substitui-
ave de rapina, a mímica em constantes gestos de ção do braço americano parido pela superiorida-
aquisição e de posse, as mãos em garras incapazes de cultural e biológica africana. Se o negro havia
de semear e de criar.”37 Descrição de fazer Jein- sido inferiorizado, fora apenas devido à sua supe-
rich Himmler contorcer-se de gozo! rioridade! Ao menos diante do “índio”!
Essa construção apologética, de cunho cultu-
ralista e racista, tão brilhante como sinuosa, man-
1.5 Meio, raça e cultura: teve-se de pé, por um lado, devido à ignorância
a invenção do negro absoluta das evidências e conhecimentos históri-
cos, sociológicos e antropológicos da época so-
Assim, para Gilberto Freyre, diante da incom- bre as civilizações africanas e a escravidão do
patibilidade do português e, sobretudo, do nativo americano e, por outro, por expressar as necessi-
americano, não sobraria outro braço que o africa- dades ideológicas das classes proprietárias domi-
no, esse sim, capaz de suportar o trabalho siste- nantes no País.

36 Id., ib., p. 377.


37 Id., ib., p. 305.
38 Id., ib., p. 229 e 163.
39 Id., ib., p. 370.
40 Cf. Aristóteles, Política. São Paulo: Atenas, 1957.

9
Na periferia da economia colonial, ali onde a produção agrícola africana era igualmente tare-
faltaram capitais para importar o custoso cativo fa essencialmente feminina. E isso não apenas no
africano – Maranhão, Pará, Mato Grosso, etc. –, relativo ao mundo banto, sementeira inesgotável
a escravidão do nativo americano mantivera-se de trabalhadores escravizados introduzidos no
até mesmo além da Abolição, em cabal demons- Brasil. Também na África, a divisão sexual nas
tração de que qualquer ser humano verga-se ao sociedades domésticas ensejava que o homem
trabalho produtivo sistemático, sob o duro chi- caçasse, pescasse e guerreasse, enquanto a mu-
cote do feitor, é claro.41 lher dedicava-se, entre outras tarefas, às práticas
horticultoras, também itinerantes, como no
Genocídio americano mundo tupi. Africanas que, se acompanhamos a
Em um quase descuido, o próprio Freyre lem- visão de Freyre, se teriam masculinizado nas
brou que a razão profunda da transição do braço práticas agrícolas!
americano ao africano fora dizimação do “brasil” A grande superioridade da horticultura banto
escravizado. Rarefação populacional que impe- e africana em relação à americana não era devido
diu a alimentação sistemática e ininterrupta da ao trabalho masculino. Ela nascia do amplo
expansão da economia colonial, em geral, e domínio da metalurgia do ferro – tarefa masculi-
açucareira, em especial, com o seu braço escravi- na –, que permitia àqueles horticultores trabalhar
zado. “O trabalho sedentário e contínuo, as do- com instrumentos de ferro, entre eles, diversos
enças adquiridas ao contato dos brancos [...] fo- tipos de enxada. No restante, as práticas agrícolas
ram dando cabo dos índios [...]”. Uma população americanas e africanas igualavam-se tendenci-
literalmente gasta, lembra Freyre, “em trabalho; almente, contribuindo os homens, em geral de
em abusos; em serviço de transporte; gasta em forma associada, à abertura e limpeza das clarei-
passar como coisa ou besta das mãos de um a ou- ras nas matas e responsabilizando-se as mulheres
tro senhor.”42 pelas demais tarefas do cultivo e da colheita.45
Constatação histórica que se chocava com a
proposta paradoxal de que nenhum colonizador
como o português pactuara e conservara, de for- 1.6 Meio, raça e cultura: a invenção do
ma tão ampla, as culturas e a civilização da terra brasileiro
que colonizara. “Ainda assim o Brasil é dos
países americanos onde mais se tem salvo da cul- O esquema construído por Freyre era simples.
tura e dos valores nativos”.43 Conservação da O clima e o solo americanos agrestes exigiam ne-
cultura e dos valores nativos no Brasil que se cessariamente a exploração latifundiária e escra-
comprovaria, caso tivesse objetivamente se dado, vista, ao impedirem qualquer valorização campo-
no uso corrente e geral de línguas nativas, como nesa apoiada em braço europeu naturalmente
ocorre habitualmente em outras nações como o inabilitado ao trabalho nos trópicos. Produto de
Peru, Paraguai, Bolívia, Guatemala, etc., onde, no meio híbrido e de séculos de miscigenação, o
contexto de incessante repressão, mantiveram-se português mostrava-se como o único europeu
e mantém-se valores culturais americanos.44 capaz de transportar a civilização ocidental aos
Era, ainda, de conhecimento das ciências so- trópicos, caso se apoiasse em braço cultural e bio-
ciais da época que, como no mundo tupi-guarani, logicamente capaz de suportar o esforço em terra

41 Cf. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
42 FREYRE, op. cit., p. 227 - 8.
43 Id., ib., p. 231.
44 Cf. CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário A linguagem escravizada. São Paulo: Expressão Popular, 2003.
45 Cf. MAESTRI, Mário. A agricultura africana nos séculos XVI e XVII no litoral angolano. Porto Alegre: EdUFRGS, 1978.

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e clima inóspitos. Inabilitado à produção agrícola cida pelas “condições de confraternização e de
sistemática, o americano fora deslocado no duro mobilidade social peculiares ao Brasil”.48 Incen-
trabalho da plantação escravista pelo africano, ao tivada pela falta de braços, a copulação voraz do
contrário dele, cultural e biologicamente destina- português com mulheres nativas e africanas,
do ao esforço pesado em clima tropical e meio tendência atávica e exacerbada pelo clima, teria
florestal. contribuído para produzir sociedade essencial-
O encontro feliz do português, destinado, pelo mente patriarcal onde, não raro, os escravizados
nascimento, ao mando, com o africano, destinado, eram os grandes privilegiados, se não os senho-
biológica e culturalmente, ao trabalho duro, ense- res de fato.
jou a fundação e aclimatação da civilização lu- Nascido da transigência-adaptação entre
so-ocidental nas ingratas terras da América que lhe amos e cativos, a ordem patriarcal teria primado
couberam. Terra e clima rústicos que determina- pela doçura, termo de que Freyre se serve amiúde
ram que essa sociedade nascesse necessariamente para descrever a escravidão brasileira. “[...] salien-
latifundiária e escravista. tamos a doçura nas relações de senhores com es-
Porém, se as condições do meio impunham cravos domésticos, talvez maior no Brasil do que
caráter despótico à organização social, necessaria- em qualquer outra parte da América.”49
mente latifundiária e escravista, a ausência no lu- A conclusão geral de Freyre era, portanto, lógi-
sitano de preconceitos de raça e de cor e sua ten- ca. O português femeeiro inveterado iniciara nas
dência atávica à miscigenação desbragada abran- Américas civilização concluída e sintetizada em
daram as trocas entre escravizadores e escraviza- seus detalhes em torno da casa-grande pelo indolen-
dos, ensejando relações essencialmente patriarcais. te engenheiro nordestino, mais pai-protetor do
“Quanto à miscibilidade, nenhum povo coloniza- que patrão-explorador do negro escravizado.
dor, dos modernos, excedeu ou sequer igualou Com o uso criativo do único material humano
nesse ponto aos portugueses. Foi misturando-se capaz de realizar a empreitada – o português, nas-
gostosamente com mulheres de cor [...] que uns cido para o mando; o negro, destinado ao traba-
milhares apenas de machos atrevidos conseguiram lho –, os valores ocidentais teriam sido aclimados
firmar-se na posse de terras vastíssimas [...]”.46 na América, gerando sociedade patriarcal embebi-
da nos princípios da transigência racial e social.
Doce escravidão Assim, sem negar a ciência racista de então e rea-
Freyre definiu o passado brasileiro como “pro- firmando a hierarquia social da época, promovia
cesso de equilíbrio de antagonismos” entre os “o brasileiro”, de ser racialmente impróprio ao de-
quais “o mais geral e o mais profundo” era o exis- senvolvimento, no tipo talvez “ideal do homem
tente entre “o senhor e o escravo”.47 No mesmo moderno para os trópicos, europeu com sangue
sentido, propôs que essa contradição fora amorte- negro ou índio a avivar-lhe a energia [...]”.50

46 FREYRE. Casa-grande [...], op. cit., p. 70.


47 Id., ib., p. 116.
48 Id., ib., p. 114.
49 Id., ib., p. 435.
50 Id., ib., p. 110.

11
2 Sobrados e Mucambos:
A Dissolução do Patriarcalismo Brasileiro

2.1 Sobrados e mucambos: tardia e bastante estranha aos dois primeiros vo-
continuidade e superação lumes da tríade, foi e é ainda mais radical.52 Para
profissionais e amadores, Casa-grande & senzala
Publicado em 1936, Sobrados e mucambos: deca- segue sendo trabalho isolado.
dência do patriarcado rural e desenvolvimento São várias e complexas as razões do insucesso
urbano51 é uma história sobre o início do fim do relativo de Sobrados e mucambos, em relação à Ca-
mundo. Ou melhor, sobre o início do fim de um sa-grande & senzala. Possivelmente, entre elas en-
mundo, isto é, da crise da sociedade escravista, la- contra-se o fato de que a segunda grande obra de
tifundiária, açucareira e patriarcal nordestina, que Freyre explicitou poderosamente o lado pior e o
Freyre se propusera a descrever, em seus rasgos lado melhor da visão do autor sobre a antiga for-
genéticos e estruturais, em Casa-grande & senzala. mação social brasileira, apresentada na obra in-
Há continuidade umbilical entre as duas trodutória.
obras. Em verdade, Sobrados e mucambos não ape- Em Sobrados e mucambos, Freyre tenta inutil-
nas prossegue como retoma, reafirma e afina di- mente traduzir conceitualmente as descrições
versas afirmações axiológicas propostas ou es- quase pictóricas que traça do mundo escravista,
boçadas em Casa-grande & senzala. Em muitos sobretudo urbano, do século XIX. Mesmo ao lei-
sentidos, essa obra supera o clássico inaugural do tor menos atento, fica clara a indigência analíti-
sociólogo pernambucano. Entretanto, Sobrados e co-categorial da obra, num verdadeiro aprofun-
mucambos foi livro de escasso sucesso. Casa-grande damento da indigência metodológica já explicita-
alcançou, rapidamente, dezenas de edições e da em Casa-grande & senzala. Hiato que o autor
múltiplas traduções, enquanto sua continuação procurou superar, introduzindo capítulos novos
seguia, e até certo ponto segue ainda nos nossos nas edições sucessivas, sobretudo de cunho me-
dias, empacada. Apenas em 1951, quinze anos todológico, tais como “Raça, classe e religião”;
após seu lançamento, o livro conheceria uma se- “Escravo, animal e máquina” e “Em torno de
gunda edição. uma sistemática da miscigenação no Brasil patri-
Em 1980, no prefácio à sexta edição de Sobra- arcal e semipatriarcal”.
dos e mucambos, o próprio autor ensaiou explica- Sobrados e mucambos impõe-se sobretudo como
ção, bastante impressionista, sobre a pouca re- descrição envolvente do universo abordado,
ceptividade dessa sua criatura. Casa-grande & sen- apoiada no uso imaginoso de diversidade de fon-
zala seria livro “carismático”, o que não ocorreria tes primárias sequer imaginada pelas ciências so-
com as duas obras seguintes da trilogia. O pouco ciais da época: diários; iconografia; folclore; tra-
sucesso de público de Ordem e progresso, conclusão dição oral; arquivos pessoais; papéis de velhos

51 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarchado rural no Brasil. São Paulo: Nacional, 1936. 405 p.
52 FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso: processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o
regime de trabalho livre: aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre e da
monarquia para a república. [1959] 4. ed. São Paulo: Record, 1990.

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engenhos; documentação notarial; anúncios de pleno de aristocratas ranzinzas, sinhás rechon-
jornais; inventários post-mortem; teses de escolas chudas, bacharéis de cartola, negros boleeiros de
de medicina; depoimentos de viajantes; literatura fraque e pés descalços.
oitocentista; anúncios de cativos fujões; etc. Próximo à memorialística, Sobrados e mucambos
constrói-se com incessantes e longas citações da
Revolução nas ciências sociais documentação, jamais modernizadas. Nessa nar-
Casa grande & senzala impusera-se, em boa par- rativa fluvial, no relativo ao texto e às notas,
te, pela qualidade excepcional e revolucionária da abrem-se parênteses na ação discursiva, não raro
linguagem. A harmônica correspondência entre concluídos após longas digressões sobre assuntos
um texto literalmente desbragado e a interpreta- tangenciais à questão tratada. É como se a narrati-
ção erotizante do passado brasileiro gerara algu- va seguisse o mesmo passo lento do mundo pa-
mas das mais perfeitas páginas da literatura brasi- triarcal apresentado em seus estertores.
leira. Na obra, desdobrando-se como sociólogo, Em Sobrados e mucambos, a liberdade quase in-
historiador, antropólogo e lingüista, empreende- decente quanto às fontes, à linguagem, aos temas
ra, também de forma pioneira, inovadores recor- e às técnicas de narração, retomadas e aprofunda-
tes temáticos do passado brasileiro, entre os quais das de Casa-grande & senzala, constituíam agres-
destaca-se a sua preocupação com a história da são direta a uma sociologia analítica que, nos
arquitetura, que seria aprofundado de forma ma- anos 1950-60, procurava assegurar-se respeitabi-
gistral, em Sobrados e mucambos. lidade científica em boa parte por meio de lingua-
Igual destaque merece a proposta do neces- gem e narrativa tecnocráticas.
sário estudo das línguas faladas na Colônia e no A função social da guerra na sociedade tupinambá,
Império, e as influências que exerceram no por- de Florestan Fernandes, é exemplo excelente
tuguês do Brasil. Proposta que permaneceu dessa produção sociológica em construção que
domínio dos estudos lingüísticos, não sendo até tinha como grande paradigma o rigor metodoló-
hoje verdadeiramente retomada pelas ciências gico, a precisão conceitual e a aridez narrativa.
sociais nacionais, sendo muito raro que uma his- Em 1980, Freyre definiu depreciativamente essa
tória geral do Brasil possua um capítulo dedicado linguagem como “sociologês”, “antropologês”
à questão. Na primeira pessoa, Freyre constrói e “economês”.54
igualmente Sobrados e mucambos, servindo-se de lin-
guagem conscientemente recheada de “africanis- Senhores de hoje e de ontem
mos, amerindianismos, plebeísmos” – budum, Sobrados e mucambos constitui sentido e podero-
catinga, inhaca, molecotes, papa-jantares, preta- so elogio à sociedade escravocrata nordestina,
lhada, ranzinza – e plena de manipulações livre em geral, e ao senhor de engenho, em especial,
do léxico – columinzinho, merendar, familismo, apresentado como magnífico Prometeu da civili-
etc. Uma linguagem sensual e desabusada, domi- zação luso-brasileira, elogio produzido por escri-
nada por preciosismos vocabulares e retidão sin- tor e pensador genial, social e ideologicamente
tática na qual são comuns hipercorreções, sobre- identificado com uma civilização que se esvaía,
tudo quanto à colocação pronominal.53 Lingua- nas suas últimas e tardias contorções, diante de
gem que se adapta – como chinelo usado ao pé seus olhos tristes. Freyre define o mundo dos
do velho dono – à descrição saudosa e intimista grandes escravistas, em geral, e nordestinos, em
que empreende do começo do fim de um mundo especial, como espécie de paraíso para sempre

53 FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. 2. decadência do patriar-
calismo rural e desenvolvimento urbano. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. XXX, 7, 199, 203, 218, 197, 277 et passim.
54 Cf. FERNANDES, Florestan. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. São Paulo: Museu Paulista, 1952.
FREYRE. Sobrados [...], op. cit., XXX.

13
perdido. Com emoção e carinho, relata como vi- sa-grande, ao discutir suas fontes, Freyre referi-
viam, como bebiam, como se banhavam, como ra-se apenas en passant aos velhos cativos entre-
amavam; registra as superstições, as crenças, as vistados nos engenhos nordestinos que visitou.
lendas, as idiossincrasias, sobretudo dos senho- Esse fato assumiria ainda maior gravidade ao tra-
res, sinhás, sinhozinhos, das casas-grandes rurais tar o século dezenove e a crise final da escravi-
e, principalmente, dos sobrados urbanos do dão, em Sobrados e mucambos. Como recém-assina-
século XIX. lado, há poucas décadas da Abolição, o sociólogo
Nesse empreendimento quase sagrado, ser- guardou-se de propor o registro sistemático do
ve-se das suas recordações pessoais, de menino e depoimento direto, e certamente ácido, dos pro-
adolescente, nos engenhos e sobrados de familia- tagonistas que haviam “sofrido” o passado que
res e conhecidos, das histórias ouvidas na meni- narrava.
nice de velhos trabalhadores domésticos, ou rela-
tadas por confidentes ilustres, certos da boa obra Livros de receitas
do depositário. 55 No prefácio à sexta edição, re- Suficientemente sensível para recolher anti-
fere-se à sua “meninice de neto de gente, além de gos livros de receitas59, Freyre não empreendeu a
patriarcal, rural, com sobreviventes, na convi- coleta direta do depoimento dos milhares de
vência doméstica ou familial, de escravos [sic] ou ex-cativos ainda vivos antes e após a publicação
de servos [sic] nascidos nos dias da escravidão de Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos, o
[...]”.56 que faria apenas, e muito tangencialmente, no
Em Sobrados e mucambos são comuns narrati- tardio Ordem e progresso. E isso apesar de abunda-
vas com cheiro e gosto de futricas senhoriais so- rem iniciativas semelhantes nos USA, certamente
bre vizinhos e parentes malquistos, com fre- de seu conhecimento.60
qüência generalizadas como tendências socioló- Explicar essa lacuna como devida ao mero es-
gicas: “Raras as casas com lençóis de cama sujos quecimento seria cometer grave injustiça para
ou encardidos; só mesmo, talvez, aquelas onde com a enorme sensibilidade do pernambucano
faltasse dona de casa ou mucama vigilante, em descobrir fontes não exploradas pelas ciências
como o casarão de Noruega do Capitão-Mor sociais brasileiras da época. É mais pertinente su-
Manuel Tomé de Jesus quando já viúvo, velho e por que a única voz profunda e sentida que que-
quase caduco.”57 ria fazer ouvir sobre o passado que se esvaía era a
Freyre lembra que crescera “ouvindo histórias dos senhores de engenho e grandes escravistas,
da negrinha Isabel e aprendendo palavrões com o consciente do caráter necessariamente divergen-
malungo Severino e ouvindo da negra velha Feli- te da palavra dos antagonistas sociológicos dos
cidade, outrora escrava de minha avó materna “heróis” da sua hagiografia histórica.
[...] suas experiências dos dias antigos.”58 Porém, A contradição entre autor e narrador é deter-
como em Casa-grande & senzala, o sociólogo refe- minação essencial nas ciências sociais. Na narra-
re-se apenas muito rapidamente aos depoimen- tiva histórica, sociológica e antropológica, o au-
tos e memórias de cativos, apesar de escrever há tor deve preocupar-se com que o narrador sobre-
quatro décadas da Abolição, em época em que vi- ponha-se a suas idiossincrasias de berço, de sexo,
viam ainda dezenas de milhares de homens e mu- de raça, de nacionalidade, etc. A luta pela supera-
lheres que haviam sofrido o cativeiro. Já em Ca- ção das inevitáveis deformações de ótica analítica

55 Cf. FREYRE. Sobrados [...], op. cit., p. 198.


56 Id., ib., p. XXX.
57 Id., ib., p. 224.
58 Id., ib., p. XXX.
59 FREYRE. Açúcar: algumas receitas de doces e bolos dos engenhos do Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939.
60 Cf. MAESTRI FILHO, Mário José. Depoimentos de escravos brasileiros. São Paulo: Ícone, 1988.

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devido ao olhar subjetivo do autor é ainda mais pele do cativo rural labutando no eito doloroso
determinante quando anima, por meio da voz do do açúcar ou perambulando pelas ruas atrás do
narrador, personagens plurais e plurilíngües como serviço que lhe permitia completar o ganho a ser
os protagonistas que povoaram numerosos a his- entregue ao escravizador.
tória da antiga formação social brasileira.61 O índio caçado, o cativo estafado, a negra vio-
Em Casa-grande & senzala e Sobrados e mucam- lada, o moleque maltratado, o judeu injuriado são
bos, na forma e no conteúdo, o narrador oculto e o “outro”, ao qual o narrador se refere, sempre,
o narrador explícito de Freyre descrevem a for- do ponto de vista exclusivo do filho macho enfe-
mação e a agonia da família patriarcal brasileira zado, do patriarca safado, do bacharel pernóstico
sob a escravidão de um ponto de vista único e da plutocracia açucareira nordestina. Uma opção
quase exclusivo, quanto à classe, à raça e ao sexo. metodológica que se materializa igualmente na
Nessas duas narrativas, o “nós” singular do autor erotização extremada das relações sociais escra-
chega a fundir-se com o “nós” plural, que fusiona vistas que nega radicalmente o trabalho e a resis-
o narrador e o leitor putativo. Ao falar de “nossas tência do trabalhador escravizado como vetores
avós coloniais”, o texto aponta “automaticamen- da construção do mundo relatado, como vere-
te” as sinhazinhas da casa-grande e jamais as cati- mos a seguir.
vas da senzala de dentro e de fora, de longe, mais Definitivamente, as mais de um milhar de
numerosas no mundo reconstruído.62 páginas de texto e de notas das duas versões finais
das obras magnas de Freyre, tão ricas em detalhes
Nós – brancos e proprietários intimistas sobre os fatos das salas e alcovas das
São inúmeras e “normais” as referências à “es- casas-grandes e dos sobrados, jamais abrem uma
crava ou sinhama que nos embalou”, “nos deu de fresta grossa através da qual se vislumbre e se ma-
mamar”, “nos deu de comer”, da “mulata que terialize a real pulsação da vida na senzala, nos
nos tirou o primeiro bicho-de-pé”, que “nos mucambos e nos porões e sótãos dos sobrados
transmitiu” “a primeira sensação completa de do Brasil escravista.
homem”.63 Freyre divide o mundo que constrói Em Casa-grande & senzala, Freyre traduziu,
entre o “nós”, “que fomos os sadistas; o elemen- com maestria, para a linguagem sociológica des-
to ativo na corrupção da vida de família” e os ou- trambelhada de sua época, a visão de mundo do
tros, os “moleques e mulatas” que teriam sido “o engenheiro que, na varanda da casa-grande, ba-
elemento passivo.”64 A idéia do descendente do lançando-se na rede com apenas um pé apoiado
morador da casa-grande como leitor natural da no chão, olhava complacente os negros que vol-
narrativa fixa a subalternização permanente, pelo tavam do eito para a senzala, as costas curvadas
autor-narrador, do morador da senzala que jamais por um dia de trabalho estafante. Em Sobrados e
se eleva ao status de protagonista de mundo que mucambos, fez o elogio pungente da dissolução
plasmou com seu trabalho e luta. desse mundo diante das novas classes dominan-
Em Casa-grande e Sobrados, Freyre jamais assu- tes em ascensão.
me a ótica narrativa daqueles que embalaram, que
deram de mamar, que tiraram bicho-de-pé ou fo- Necrológico sensível
ram possuídas, com menor ou maior violência, O sensível necrológico de Freyre principal-
nas casas-grandes e sobrados, por seus senhores, mente do mundo senhorial escravista nordestino
maiores ou menores. Jamais veste realmente a – são poucas as referências ao patriarcalismo no

61 Cf. BAKHTINE, Mikhail. Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1999. p.113-4: traduzimos.
62 FREYRE. Casa-grande, op. cit., p. 299.
63 Id., ib., p. 367.
64 Id., ib., p. 432.

15
Sul e no Centro-Sul e o discurso sobre os mu- Compreende-se, portanto, que o sociólogo te-
cambos e seus habitantes ocupa lugar menor no nha despertado a má-vontade, sobretudo das
livro – explica o fato de que Sobrados e mucambos ciências sociais paulistas, envolvidas na glorifica-
supere definitivamente Casa-grande & senzala, seu ção do cafeicultor, em geral, e do plantador do
irmão mais velho, cada vez mais alquebrado pelo Oeste paulista, em especial, como o grande demi-
passar dos anos nas suas generalizações socio- urgo do maravilhoso novo mundo capitalista que
lógicas, instância axial daquele trabalho. se propunha ter nascido das cinzas da escravidão
Sobrados e mucambos constitui lamentação pun- decrépita.67
gente que reconstrói, em forma apologética, é Sobrados e mucambos é livro, em todos os senti-
certo, cenários da civilização que dominou três dos, precursor, que começou apenas a obter o re-
séculos do passado brasileiro. Como já lembrado, conhecimento merecido no fim do milênio pas-
o livro constitui uma espécie de correspondência sado, processo de legitimação facilitado, temos
sociológica do maravilhoso ciclo da cana-de- que reconhecer, pela crise da compreensão das
açúcar, no qual José Lins do Rego constringe a ciências sociais como explicitação das razões ten-
alma dos leitores ao descrever ficcionalmente a denciais profundas das sociedades pretéritas, e o
agonia do mundo dos desapiedados engenheiros conseqüente prestígio de visões subjetivistas e ir-
diante da voracidade dos engenhos centrais. Po- racionalistas do passado.
rém, nesse ciclo, ao contrário do sociólogo, o fic-
cionista abre amplo espaço às classes subalterni- História íntima
zadas, ainda que não as transforme, jamais, em Ao aprofundar e radicalizar algumas propos-
eixo da saga encenada.65 tas esboçadas em Casa-grande & senzala, Sobrados e
A louvação de Freyre em Sobrados e mucambos mucambos foi livro inovador em inúmeros cam-
do mundo escravista nordestino foi concluída, pos. Entre eles, destacam-se duas grandes démar-
quando a oligarquia rural, descendente direta da- ches metodológicas contemporâneas: a proposta
quele universo, era escorraçada do centro do de uma história da sexualidade, da cultura, da
cenário político e social brasileiro por interesses vida quotidiana, etc. – para o autor “história ínti-
industrialistas que recentemente inauguravam o ma do brasileiro”68 – e a visão da dominância do
novo reinado, não raro com a tradicional rudeza consenso interclassista sobre a resistência servil
dos plebeus apenas enobrecidos. Na obra, apon- na escravidão colonial.
ta explicitamente como uma das razões do fim da Escritas nos anos 1930, as páginas de Freyre
civilização patriarcal a hegemonia da produção sobre a vida quotidiana, sobretudo das classes se-
escravista cafeicultora do Centro-Sul, que des- nhoriais, alcançaram tensão poucas vezes repeti-
qualifica devido ao caráter que define pejorativa- das três décadas mais tarde. Seus minuciosos pai-
mente como “industrial”. Nesse trabalho, o so- néis abordam aspectos múltiplos e não raro ines-
ciólogo pernambucano refere-se a cativos do perados, como a história do gosto, do gesto, do
Nordeste que temiam ser vendidos para as “fa- paladar, do abraço, do sapato, etc. dos senhores,
zendas de São Paulo” e as “minas” do Brasil Cen- ou, de forma ainda mais desabusada, da magia,
tral, devido ao rigor da “escravidão industrial” e o do pé, do pênis, etc. do mulato e do negro. Temas
caráter desapiedado de “senhores pobres” ou exóticos apresentados como inovação radical da
com “fortuna apenas no começo.”66 “nova” historiografia francesa, trinta anos após

65 Cf. MAESTRI, Mário. Deus é grande, o mato é maior! Trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo:
EdiUPF, 2002. p. 146.
66 FREYRE. Sobrados [...], op., cit., p. 178.
67 Cf. MAESTRI. Florestan Fernandes: o olhar de um socialista revolucionário sobre a revolução burguesa no Brasil.
CEM-RS. Luz e sombras : ensaios de interpretação marxista. Porto Alegre: EdUFRGS, 1997. p. 237- 50.
68 FREYRE. Sobrados [...], op. cit., p. 515.

16
serem longa e imaginosamente explorados em 2.2 Reafirmação da natureza do judeu
Sobrados e mucambos.
No mesmo sentido, a proposta de Sobrados e Em Sobrados e mucambos, Freyre retoma, e não
mucambos da dominância da acomodação dos es- raro aprofunda, os grandes princípios interpretati-
cravizadores e escravizados, como vetor da cons- vos de Casa-grande & senzala, com destaque para o
trução de passado escravista consensual e feliz, é “determinismo racial, geográfico e climático”.
hoje limpidamente dominante na historiografia Nesse sentido, sobretudo quando da análise da
da escravidão, principalmente brasileira e nor- contribuição de hebreus à formação social brasi-
te-americana.69 Fato que se dá comumente sem leira, prosseguem numerosas as referências an-
que os epígonos contemporâneos do velho mes- ti-semitas do trabalho anterior. Sobrados e mucambos
tre reconheçam a filiação, dedicando, quando foi escrito e publicado em meados dos anos 1930,
muito, um elogio, em geral, oblíquo e envergo- quando as visões irracionalistas anti-semitas eram
nhado a ele. consagradas pelo poder ascendente da Alemanha
Para Freyre, o cativo terminava impondo, com nazista. Especialmente, nas páginas iniciais do li-
freqüência, sua vontade até no que diz respeito vro, são quase obsessivas as referências aos judeus,
aos gostos e concepções mais íntimas do senhor: associadas comumente a conceitos e expressões
“[...] foi possível ao africano, através da diploma- semanticamente negativas, em geral “colados” aos
cia, da astúcia, da resistência melíflua com que o estereótipos anti-semitas então e hoje correntes –
oprimido em geral se defende sutil e feminina- “comerciante”, “esperteza”, “gatunice”, “inter-
mente do opressor, comunicar ao senhor brasi- mediário”, “magnata”, “parasita”, “usura”, “ve-
leiro o gosto por muitos dos seus valores".70 lhacaria”, etc.
Um desdobramento dessa ótica analítica é a No mesmo sentido, Freyre refere-se a preten-
também despreocupação de Freyre – igualmen- sas organizações conspirativas judaicas nacionais
te forte na historiografia contemporânea – com e internacionais, tema igualmente recorrente do
a resistência do trabalhador escravizado, trata- anti-semitismo nos anos 1930. O sociólogo cita
da, quando muito, rapidamente e em geral sob igualmente sem maiores explicações espécie de
uma ótica culturalista, apesar da imensa docu- conspiração historiográfica realizada por “histo-
mentação que possuía sobre o tema. “[...] quase riadores judeus mais ou menos apologéticos de
sempre terem sido os escravos revoltados con- sua raça” e a “maçonaria” ou “sociedade secreta”
tra seus senhores, no Norte, negros da África – internacional, do passado, orientada por “inte-
principalmente os de áreas tocadas pela influên- resses comerciais, ligados aos de religião ou de
cia maometana – e não crioulo ou ‘brasilei- raça perseguida [...]”.73
ros’”.71 Nesse aspecto, é igualmente atual seu en- Freyre retoma a proposta de judeu “errante” e
canzinamento contra as ciências sociais marxistas “apátrida”, “parasita” incapaz de trabalho “pro-
que o perseguiram sempre, mordendo incessan- dutivo”, de fisiologia determinada pela vocação
temente os calcanhares expostos de sua louvação natural à exploração alheia, proposta em Ca-
das elites nordestinas, ciências sociais adjetivadas sa-grande & senzala.74 Em Sobrados e mucambos, rea-
por ele como “sectárias” e “rígidas” e “comunis- firma-se que também no Brasil teria imperado o
ta-marxista”.72 “horror tradicional e ‘canônico’” geral do judeu,

69 Cf. GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.


70 FREYRE. Sobrados [...], op. cit., p. 290.
71 Id., ib., p. 526.
72 Id., ib., p. 103, 490, 494.
73 Id. Sobrados [...], op. cit., p. 7,10, 11, 12, 13, 19, 20, 33, 34, 35, 40 et passim.
74 FREYRE. Casa-grande [...], op. cit., p. 305.

17
à “terra”, que o orientaria, sempre, para a “aven- de autogovernar-se foram teses germinais de
tura comercial”.75 Para o sociólogo, o judeu, no Casa-grande & senzala, de claro corte racista, co-
Brasil colonial não teria sido “um grande criador mumente apresentadas sob viés culturalista. Em
de riqueza e de vida nacionais ou subnacionais”, torno dessas propostas, na defesa da qual Moy-
como o “português dessa primeira fase da forma- sés Vellinho distinguiu-se no Rio Grande do
ção do Brasil”. Nesse sentido, não teria realizado Sul77, Freyre teceu, naquele trabalho, longuíssi-
obra igual a “Duarte Coelho e dos seus colonos” mas considerações, atualmente desprovidas de
que, ao contrário, teriam aberto – “claros enor- qualquer status científico. Apesar disso, especial-
mes no mato virgem e levantaram engenhos, ca- mente a primeira proposta mantém ainda hoje
sas-fortes, fortalezas”, deitando “raízes na terra”. vasto status historiográfico, principalmente nos
Portanto, o “judeu” não teria tido “essa grandeza manuais escolares.
de criador, com um sentido profundo de perma- A explicação da inadaptabilidade do “ameri-
nência a animar-lhe o esforço”.76 cano” ao trabalho sistemático e à autodetermina-
É claro o esforço de Freyre em realizar faxina ção proposta pelo autor tornava o nativo anacro-
étnica que absolvesse a classe dos engenheiros nismo histórico, destinado ao desaparecimento
nordestinos do pecado nefando de ter suas raízes ou à absorção forçada. Essa tese esdrúxula per-
genéticas conspurcadas pelo cruzamento com mitiu que Freyre “contornasse” a necessária refe-
famílias de “cristão-novos de judeu” portugue- rência à constrangedora destruição das comuni-
sas. Cristão-novos de judeus que escaparam dades americanas do litoral, escravizadas nos pri-
numerosos das perseguições da Inquisição no meiros anos da colonização, fenômeno que ante-
Reino para virem para o Brasil, onde seus cativos cedeu e, finalmente, financiou, o início da impor-
abriam “claros enormes no mato virgem”, para tação sistemática de africanos escravizados, nos
levantar engenhos, como todo o bom escravista anos 1560-70.78
português de então. Em Sobrados e mucambos, retoma-se sem varia-
Um esforço que violenta explicitamente toda ções a tese de Casa-grande & senzala do homem
a farta informação histórica disponível, que com- americano incapaz do trabalho agrícola siste-
prova ad nauseam a contribuição judaica na forma- mático e do autogoverno em comunidades
ção da classe dos grandes engenheiros nordesti- não-tribais, o que, segundo o sociólogo, tornaria
nos, documentação conhecida e, freqüentemen- a escravidão do africano – “um homem [...] tropi-
te, o que é ainda mais paradoxal, citada pelo pró- cal” – necessidade para o desenvolvimento da
prio Freyre, em Casa-Grande & senzala, em Sobra- América lusitana, no contexto da também defen-
dos e mucambos e em outras obras. dida incapacidade do português de forcejar fisi-
camente em regiões quentes.
Nesse aspecto, ao abordar a época imperial,
2.3 Reafirmação da natureza do “índio” Freyre repete, novamente, sem vacilação, a propos-
ta do empecilho “climático” da colonização euro-
A inadaptabilidade cultural do brasil ao es- péia do norte do Brasil, à qual associa, como lhe é
forço produtivo sistemático e sua incapacidade contumaz, outros fenômenos. Tese essa que domi-

75 FREYRE. Sobrados [...], op. cit., p. 12.


76 Id., ib., p. 13.
77 MAESTRI, Mário. Moysés Vellinho e as virtudes da raça branca. MAESTRI. Deus é Grande [...], op. cit., p. 197-203.
78 Sobre a escravidão do americano, ver, entre outros: MAESTRI, Mário. Os senhores do litoral : conquista portuguesa e geno-
cídio tupinambá no litoral brasileiro. [século XVI]. 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 1995; MONTEIRO, John Manuel. Negros
da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994; VAINFAS, Ronaldo. A
heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; SCHWARTZ. Segredos
internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

18
na igualmente a superficial cultura sociológica e 2.4 Sobrados e mucambos: a ciência
histórica nacional sobre o passado brasileiro. racista de Gilberto Freyre
Sobre o não-estabelecimento de colonos eu-
ropeus no Nordeste, Freyre escreve: “[...] sob A proposta da adaptabilidade relativa do por-
condições de clima mais favoráveis aos brancos tuguês ao mundo tropical, em relação ao homem
que as do Norte do Império, e dentro de leis de do resto da Europa, é tese retomada de Ca-
terra ou de propriedade menos favoráveis aos la- sa-grande & senzala, sem maiores variações de for-
tifúndios [...], teriam as alterações técnicas impor- ma e conteúdo: “Sem a plasticidade do portu-
tado em maior substituição de trabalhadores es- guês, sem aquele seu jeito único, maravilhoso,
cravos por homens livres e até na introdução [...] para transigir, adaptar-se, criar condições novas e
de colonos europeus [...]”.79 Freyre prossegue ex- especiais de vida, o holandês viveu aqui uma vida
plícito sobre a incapacidade do americano ao tra- artificialíssima, importando da Holanda tudo que
balho produtivo sistemático: “Daí, sem dúvidas, era comida [...].”83
o empenho dos mesmos ameríndios em repudia- Há também continuidade linear na defesa de
rem o trabalho agrário como próprio só dos ver- imensa abertura racial da cultura lusitana, que
dadeiros negros. Na verdade, essa espécie de tra- teria sido intransigente apenas na questão religio-
balho repugnou desde cedo ao nomadismo dos sa, tese axial na proposta do autor do efeito apa-
nativos desta parte da América, incapazes como ziguador da miscigenação racial nas contradi-
eram, de se fixarem em esforços demorados e se- ções de classe e de raça no Brasil: “Nem a coloni-
dentários.”80 zação portuguesa do Brasil [...] se fez sobre ou-
No mesmo sentido, não economiza palavras tra base: a da importância capital ser a do status
sobre a incapacidade dos homens nativos de au- religioso e não a do de raça; a do status político e
to-administrarem-se, no contexto de ordem so- não a do de cor.”84
cial mais complexa que a “tribal”. “Em geral, o Portanto, os princípios deterministas climáti-
problema encarado na sua crua realidade forçou cos, geográficos e raciais são retomados sem va-
os administradores portugueses do Brasil a modi- riações na continuação de Casa-grande & senzala.
ficarem a idéia de administração das aldeias ou vi- Comumente, como assinalado, são associados a
las indígenas pelos próprios indígenas [...]”.81 explicações de cunho culturalista, economicista,
Uma incapacidade que se aprofundaria quando o etc., circunscrevendo claramente a visão dualista
americano conhecia a autoridade paternal ou des- do sociológico: “Que reagiam contra essa domi-
pótica do europeu: nação através do que um marxista chamaria ‘luta
Os indígenas recém-atraídos à sociedade portuguesa e à de classes’ e que a outros tem se afigurado ‘luta de
cultura cristã não tinham a capacidade para se governa- raças’ ou de ‘culturas’ quando na realidade, em tal
rem [...]; enquanto os já habituados aos excessos de tu- conflito, parece ter se exprimido a interpenetra-
tela paternal dos Jesuítas e de outros padres eram sim-
ção de vários antagonismos e nunca um só.”85
ples crianças grandes tão incapazes de se administrarem
a si próprios como os criados à sombra feudal daquelas É clara a tentativa do autor de superação das
casas-grandes [...].82 contradições postas por suas interpretações, atra-

79 FREYRE. Sobrados [...], p. 542.


80 Id., ib., p. 362.
81 Id., ib., p. 361.
82 Id., ib., p. 361.
83 Id., ib., p. 155.
84 Id., ib., p. 366, 155.
85 Id., ib., p. 504.

19
vés de relativização e negação parcial do pro- da sobre o domínio exclusivo de uma classe, de uma
posto. Outra característica de Casa-Grande e So- raça e de um sexo.88
brados é a contradição entre afirmações, não No mesmo capítulo, essa visão revolucionária
raro, no mesmo capítulo. Além da assinalada é corrigida, abruptamente, para reafirmar e radi-
fragilidade analítica, o fenômeno parece de- calizar, explicitamente, o negado, ou seja, a “di-
ver-se à enorme ampliação do texto, das notas e vergência” e a “diversidade” culturais nascidas de
da bibliografia empreendida quando das diver- especialidade natural dos sexos. Assim, após ne-
sas reedições. Essa vacilação metodológica é pa- gar, o autor afirma natureza masculina, empreen-
tente no capítulo “A mulher e o homem”, que dedora, inovadora e criadora, ao lado de alma fe-
permite circunscrever, com maior precisão, a vi- minina, conservadora e sedentária, devido preci-
são racista do autor. samente à especialização biológica.
Sobrados e mucambos foi escrito em meados de
1930, quando o voto feminino praticamente era A mulher conservadora
desconhecido na América Latina. Nesses anos,
vicejavam as teorias sobre a “hierarquia” ou “di- Para Freyre, não haveria dúvidas quanto à di-
ferença” entre as “raças” humanas e, no interior ferenciação psíquica e cultural nascida da diversa
delas, entre os “homens” e as “mulheres”. Sur- fisiologia humana masculina e feminina: “O fato
preendentemente, a longa digressão de Freyre cultural dessa divergência entre os sexos – um
sobre a diferenciação de gênero dá-se inicialmen- mais militante, outro mais estável – evidente-
te em sentido revolucionário, calcada em visão mente se prende ao físico da mulher-mãe: mais
materialista extremada de construção histórico- sedentário [...]”.89 Portanto, o físico e a especiali-
cultural das diferenças de sexos, nascida da ex- zação natural ensejariam divergências de intelec-
ploração e dominação masculina e patriarcal. to e de sensibilidade entre homens e mulheres.
Freyre propõe sobre a questão: “À exploração Uma “diferença” também presente, conforme
da mulher pelo homem [...] convém a extrema es- a “moderna” visão racista da época, entre as “ra-
pecialização ou diferenciação dos sexos”86. ças”: “Que existem entre os sexos diferenças
Assim sendo, as diferenciações físicas, para ele mentais de capacidade criadora e de predisposi-
escassas nas sociedades primitivas, seriam sobre- ção para certas formas de atividade ou de sensi-
tudo produto da cultura machista e patriarcal: “O bilidade, parece tão fora de dúvidas quanto exis-
domínio de um sexo pelo outro afasta-se dessa tirem diferenças semelhantes entre as raças”.90
tendência, tão das sociedade primitivas, para a fi- Idéias ainda vigentes no Brasil na visão de um
gura comum ou única da mulher-homem ou do “negro” naturalmente predisposto para a “mú-
homem-mulher e acentua de tal modo a dife- sica”, “dança”, “sexo”; de uma mulher dotada
rença de físico entre os sexos [...]”.87 Para o so- naturalmente para a “cozinha”, para as coisas do
ciólogo, não haveria dúvidas: “lar”, para o cuidado das crianças, etc.
A conclusão peremptória sobre a “diferencia-
[...] a especialização de tipo físico e moral da mulher, ção” de raça e de sexo circunscreve plenamente a
em criatura franzina, neurótica, sensual [...] resulta, em
visão racista de Freyre que, como já era habitual
grande parte, dos fatores econômicos, ou antes, sociais
e culturais, que a comprimem, amolecem, alargam-lhes na época, não propunha claramente hierarquia de
as ancas [...] para melhor ajustamento de sua figura aos raças e sexo, com raças superiores e inferiores,
interesses do sexo dominante e da sociedade organiza- defendendo, principalmente, a existência de “di-

86 Id., ib., p. 93.


87 Id., ib., p. 97.
88 Id., ib., p. 103.
89 Id., ib., p. 106.
90 Id., ib., p. 128.

20
ferenças” naturais entre “raças” e “sexos”, o que incompatibilidade com os climas de tipo tropical,
dava, no final, no mesmo. Nessa especialização principalmente os equatoriais”.92
natural, as qualidades superiores cabiam, é claro,
aos homens brancos, do norte europeu, sobretu- O Grande Pai Branco
do – capacidade de mando; pensamento lógico; Sobre as raças, propriamente ditas, Oliveira
etc. –, enquanto negros e índios teriam atributos Vianna, na mesma obra, defendia: “Em face das
variados, porém não tão excelentes. No caso dos revelações da ciência contemporânea, por que
negros, resistência ao trabalho, tendência à afeti- continuar a contestar que haja diferença no pon-
vidade, etc. A mesma hierarquia diferencial ocor- to de vista da mentalidade e do caráter entre o ne-
reria, segundo Freyre, entre homens e mulheres. gro e o índio, entre esses dois tipos e os tipos
Freyre pontifica sobre as diferenças naturais en- brancos [...]”. Uma diferença defendida por Frey-
tre “raças” e “sexos”: re, como acabamos de ver.93
[...] nos inclinamos a acreditar em diferenças psíquicas
Em Sobrados e mucambos, Freyre retoma igual-
entre as raças, do mesmo modo que entre os sexos, pre- mente a visão da determinação da fisiologia do
dispondo-os a especializações culturais que não impli- homem pelo meio, e, daí, dos seus caracteres psí-
cariam necessariamente em superioridade ou inferiori- quicos, apresentada em Casa-grande & senzala.
dade de inteligência. Mas nem todas as diferenças seri- Como assinalamos, a proposta da “transmissão
am removíveis pela estandardização social ou cultural
biológica de caracteres adquiridos”, base da teoria
dos dois sexos e, se possível, das várias raças, se sua pu-
reza biológica resistisse à miscigenação.91 racista de Gobineau, propunha que as influências
do clima, do solo, etc. sobre a fisiologia e a psique
Ou seja, ainda garantindo-se as mesmas con- humana plasmassem os indivíduos e, através de-
dições de existência e formação, sempre se man- les, terminassem por “afetar a raça”.94 Ao falar na
teria a “diferença” tendencial relativa em favor diferenciação regional da população do Brasil,
dos brancos e dos homens. propõe: “Tomaram também com o tempo essas
Uma visão igualmente abraçada, nos anos raças, cores regionais diversas conforme as con-
1920, com variações de ênfase, mas não de con- dições físicas da terra, de solo e de configuração
teúdo, por Oliveira Vianna, o grande patriarca no de paisagem ou de clima e não apenas as culturais,
Brasil do destrambelhado arianismo, intelectual de meio social.” Extremando e parodiando, qual-
do qual Freyre tenta, aqui e ali, em sua obra, dis- quer coisa, como por viverem nas florestas, os
sociação circunstancial, já que, nos fatos, comun- povos do Norte terminaram mais verdes, en-
gava com o mesmo no relativo aos pressupostos quanto os do Pantanal, mais aquosos!95
básicos da ciência racial. Sobre a especialização Assim sendo, para além das “circunstâncias de
climática do europeu, Oliveira Vianna propunha formação social”, ocorreriam profundas “dife-
em Raça e assimilação, clássico do racismo brasilei- renças entre os sexos” e “entre as raças”, nascidas
ro, de 1932, e parte integrante da bibliografia ini- de “imposições biológicas”, comumente deter-
cial de Casa-grande e Sobrados: “Com efeito, em minadas pelo meio, que apenas o “fanatismo fe-
face das experiências colonizadoras da África, da minista ou certa mística comunista-marxista”
Austrália e da América, os grupos formados por eram – segundo o sociólogo de Apipucus – capa-
etnias de raça nórdica parecem revelar sensível zes de “negar”.96

91 Id., ib., p. 49.


92 Id., ib., p. 28.
93 Id., ib., p. 28.
94 FREYRE. Casa-grande […], op. cit., p. 377.
95 FREYRE. Sobrados [...], op. cit., p. 353.
96 Id., ib., p. 103.

21
Uma visão geral histórica que Freyre sintetiza, Como veremos a seguir, Freyre situa o início
na apresentação do senhor branco como o gran- dessa superação em data variável, nos fatos im-
de demiurgo da sociedade nacional: precisa, segundo o local em que teria se processa-
No Brasil, essas duas tendências individualistas, de raça
do. Os momentos iniciais ocorreriam no século
e de sexo, teriam se unido no homem patriarcal, criador XVII, em Pernambuco, e na centúria seguinte,
ou organizador dos valores mais característicos de nos- nas Minas Gerais. O autor propõe igualmente a
sa diferenciação social ou nacional. Esse criador foi chegada da Família Real ao Rio de Janeiro, em
principalmente o colonizador branco ou apenas man- 1808, e o fim do tráfico transatlântico de cativos
chado [sic] de sangue ameríndio ou africano.97
1850, com importantes inflexões desse processo.
As razões do fenômeno seriam igualmente varia-
2.5 A agonia do patriarcalismo escravista das, não raro imprecisas e jamais exclusivamente
determinantes. Entre elas, se destacariam a disso-
Freyre propôs em Casa-grande & senzala a acli- lução da autoridade do patriarca rural, diante do
matação lusitana do mundo ocidental aos trópi- poder do Estado; do homem velho, diante do jo-
cos, levantada com a ajuda da contribuição rústi- vem; do homem, diante da mulher; do engenhei-
ca, necessária e compulsória de americanos e afri- ro, diante do bacharel; do cativo, diante da
canos, geridos no contexto da forte transigência máquina; do branco, diante do mulato; do cam-
cultural, racial e sexual lusitana. Nos séculos XVI, po, diante da cidade.
XVII e XVIII, esse processo teria ensejado a A dissolução do patriarcalismo se materializa-
gênese e a consolidação da civilização patriarcal ria sobretudo no deslocamento não apenas sim-
latifundiária e escravista brasileira, com epicentro bólico da casa-grande rural pelo sobrado urbano.
verdadeiramente glorioso no Nordeste açucarei- E, para descrever esse processo, Freyre empreen-
ro. Essa civilização magnífica teria seu coração de, com base no estudo do sobrado senhorial, in-
no mundo nordestino rural, em geral, e no enge- vestigação que resultou em valiosíssima contri-
nho e na casa-grande, em especial, essa última buição à história da vida urbana do Brasil escra-
descrita por Freyre, “em alguns pontos”, como vista do século XIX. Apesar do caráter germinal
“uma quase maravilha de acomodação” dos for- desse estudo, por décadas, a historiografia brasi-
tes antagonismos entre classes e raças, imprescin- leira prosseguiria fixada no mundo rural, exceção
díveis ao projeto colonizador, para ele, necessari- de uma plêiade de historiadores da arquitetura, –
amente latifundiário e escravista. Nestor Goulart Reis Filho, Carlos Lemos, etc. –
O grande tema de Sobrados e mucambos é precisa- que retomaram com criatividade a lição do per-
mente o início da dissolução da civilização dos gran- nambucano.98
des escravistas patriarcais, sobretudo nordestinos. Freyre não estabelece correspondência entre a
Dissolução que, determinada pela “modernização” e crise do patriarcalismo e a crise da escravatura,
“reeuropeização” do Brasil, teria sua objetivação pa- questão não suficientemente tratada nem mesmo
radigmática na superação da “casa-grande”, epicen- em Ordem e progresso, terceiro e tardio tomo da tri-
tro do mundo familiar, cultural, econômico do patri- logia. Ao contrário, identifica esse momento es-
arca rural, pelo “pobrado” do “burguês” urbano, o catológico da velha formação social brasileira
grande protagonista da segunda parte da trilogia do normente com a perda da hegemonia política,
autor sobre a civilização brasileira. econômica e social dos grandes escravistas do

97 Id., ib., p. 103.


98 REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil. 1500-1720. São Paulo: Pioneira, 1968;
Quadro da arquitetura no Brasil. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987; LEMOS, Carlos A. C. Alvenaria burguesa : breve história
da arquitetura residencial de tijolos em São Paulo a partir do ciclo econômico liderado pelo café. 2. ed. rev. amp. São
Paulo: Nobel, 1989; LEMOS, Carlos A.C. Cozinhas, etc. São Paulo: Perspectiva, 1978.

22
Nordeste, em geral, e dos produtores de ca- dológicos dessa apresentação piedosa de Freyre
na-de-açúcar, em especial. do escravismo patriarcal, sobretudo nordestino,
A visão do sociólogo pernambucano é anti- seriam retomados, potenciados, refinados e, nor-
moderna, saudosista, profundamente conserva- malmente, generalizados para a escravidão como
dora, na acepção plena da palavra. Para ela, a su- um todo, particularmente pela historiografia nor-
peração do patriarcalismo escravista não abriu te-americana e brasileira especializada. A obra
caminho a um mundo novo, dinâmico e moder- quase fantasiosa da historiadora greco-francesa
no, onde o trabalhador escravizado obteria con- Kátia de Queiroz Mattoso – Ser escravo no Brasil –,
quista ontológica, ainda que relativa, isto é, a sua publicada inicialmente na França, constitui
liberdade jurídica. Ao contrário, se trataria de exemplo excelente dessa modernização do paraí-
percurso histórico tendencialmente decadentista, so escravista de Freyre, onde os cativos são prati-
uma lenta e inexorável dissolução de mundo su- camente amos de seus amos; trabalham quase
perior em sociedade inferior, com indiscutíveis nada; vestem, moram e comem otimamente; pra-
perdas de qualidade principalmente no que diz ticam seus costumes sem travas; rebelam-se qua-
respeito às relações sociais e interpessoais. se apenas por inadaptação psicológica e cultural à
escravidão.100
No cenário escravista que constrói, Freyre
2.6 O paraíso escravista concede que alguns cativos trabalhassem duro e
fossem mal vestidos, alojados e alimentados. Se-
Para alicerçar sua proposta de fim de mundo, gundo ele, os proprietários mais pobres de “en-
Freyre empreende defesa praticamente incondi- genhocas” “procuravam tirar todo o proveito do
cional da excelência e superioridade relativa das seu capital-homem. Daí fazendas onde os senho-
condições gerais de existência dos trabalhadores res davam apenas aos escravos feijão cozido com
escravizados do mundo rural nordestino, apre- angu, um bocado de toucinho, jerimum ou abó-
sentados como verdadeiros privilegiados, espécie bora cozida [...].”101 Porém, esse casos seriam ex-
de senhores de seus senhores. Leitura apolo- ceções que comprovariam o bom tratamento re-
gética entrecortada por algumas poucas descri- cebido nos grandes engenhos. O autor explica
ções de cunho realista que não chegam a matizar que, diante das duras condições de existência nas
a sugestão de paraíso perdido. pequenas propriedades, “por sua própria vonta-
Nesse sentido, ao falar do bom tratamento de, e não seduzidos por ninguém”, os cativos su-
concedido pelos escravizadores a seus trabalha- per-explorados deixavam “os donos de engenho-
dores, deixa passar o reconhecimento que, esses ca, que os esgotavam de trabalho, as viúvas do-
“sentimentos, o senhor patriarcal no Brasil limi- ceiras que tendo um escravo só, faziam-no traba-
tava-se a dispensá-los àqueles escravos ou servos lhar por três, as padarias onde o trabalho era lon-
que considerava uma espécie de pessoas de casa: go e duro”.
mães-pretas, mucamas, malungos. [...] Pelos ou- Entretanto, fugiam de seus escravizadores,
tros, sua indiferença era tal que confundia-se [sic] não para procurar abrigo nas matas, como qui-
às vezes com crueldade”.99 E, os outros, os traba- lombolas, ou nas cidades, como falsos libertos,
lhadores produtivos, eram, como sabemos, a explica o sociólogo. Ao contrário, partiam à pro-
imensa maioria da população escravizada. cura do éden escravista, com localização conhe-
Como referido, especialmente a partir dos cida nos “engenhos grandes com a fama de pater-
anos 1980, os grandes cenários e démarches meto- nalmente bons [...], engenhos com muito negro,

99 FREYRE. Sobrados [...], p. 494.


100 Cf. MATTOSO, Kátia de Queiros. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982.
101 FREYRE. Sobrados [...], p. 178.

23
às vezes fartura de mandioca e de milho, cachaça historiografia contemporânea da escravidão. Em
cheirosa, noites de se sambar até de manhã.”102 “pedra e cal”, a “habitação” era “protetora”,
Registre-se que, apesar de indicar as pequenas “embora com característicos [sic] de prisão”. As
unidades produtivas como espaço de exploração “senzalas de engenho”, comumente “casas de
economicamente despótica dos cativos pelos se- pedra e cal, com janela e alpendre”, seriam “supe-
nhores, super-exploração quase necessária devi- riores” às próprias “habitações de trabalhadores
do à baixa acumulação propiciada, Freyre aponta rurais na França!”, propõe o sociólogo.105
igualmente em outra direção, propondo que os A alimentação era simplesmente “farta”, “em-
proprietários de pequenas posses eram comu- bora com aparência rude”.106 Mesmo que pudes-
mente seres hiper-humanos, de comportamento se “ser sempre a mesma ou variar pouco”, “não
superpatriarcais. faltava nunca”, como não faltavam também nun-
ca, nem mel de furo, nem cachaça.”107 Visão le-
Vidinha pra lá de boa! vada ao paroxismo por Kátia Mattoso, décadas
Em certos casos, tal comportamento devia-se mais tarde: “[...] o trivial do escravo continha fari-
à grande proximidade entre escravista e escravi- nha de mandioca, milho, carne-seca, caça, frutas
zados. Nesse sentido, reafirma a proposta que: locais (banana, laranja, limão, mamão) e melaço.
“Os escravos também são mais bem tratados nas Próximo à costa ou aos rios, os escravos pesca-
pequenas fazendas do que nas grandes, porque vam peixes e crustáceos.”108
os trabalhos em comum, a mesma alimentação, Segundo Freyre, o cativo teria sido, “de modo
os mesmos divertimentos fazem desaparecer geral, elemento melhor nutrido que o negro ou
quase toda diferença entre escravo e senho- mestiço livre e que o branco pobre de mucambo
res.”103 O que sugeriria, no contexto das propos- ou palhoça do interior ou das cidades”.109 Uma
tas do autor, que os cativos fugissem das grandes proposta que não explica por que os cativos fugi-
propriedades para as pequenas. am continuamente dos grandes e pequenos enge-
Em outras situações, o hiperpatriarcalismo nhos e, sobretudo, por que os homens livres não
nasceria de auto-afirmação psicológica do “se- iam de joelhos pedir para serem escravizados
nhor pobre” que, incapaz de dar carne-seca ao nesses centros escravistas de mesa farta e rica.
negro, lhe daria afagos! “A última capacidade fal- Para Freyre, devido aos hábitos alimentares de
tava ao senhor pobre, cuja afirmação de poder origem africana, o cativo das senzalas e dos so-
patriarcal sob a forma de padrinho extremava-se, brados e o próprio “negro de mucambo menos
às vezes, segundo a tradição oral, em ternuras desafricanizado”, eram, também “de modo ge-
verdadeiramente paternais, das quais decorria ral”, “melhor nutrido que o branco da casa se-
crescer o afilhado escravo em situação cultural nhorial” que, segundo essa interpretação parado-
quase igual à dos filhos [...].”104 xal, deveria escapar cada noite da casa-grande
Freyre é também claro na sua proposta sobre para tentar arranjar uma boca-livre com seus cati-
a excelência da moradia dos cativos no escravis- vos nas senzalas!110 O autor generaliza suas afir-
mo nordestino, tese igualmente retomada pela mações fantasiosas, não deixando assim dúvidas

102 Id., ib., p. 51.


103 Id., ib., p. 287.
104 Id., ib., p. 288.
105 Id., ib.,p. 179
106 Id., ib., p. 282
107 Id., ib., p.179
108 MATTOSO. Ser escravo […], op. cit., p. 118-9.
109 FREYRE. Sobrados [...], op. cit., p. 283.
110 Loc.cit.

24
sobre o proposto: “[...] autoriza-nos a generalizar animais de almanjarra, de eito ou de tração [...], é
ter sido o escravo de casa-grande ou sobrado que muitos dos negros os renegavam.”115 No
grande, de todos os elementos da sociedade pa- contexto dessa escravidão feliz, a frustração e re-
triarcal brasileira, o mais bem nutrido. Nutrido volta do cativo seria fato singular, devido à ruptu-
com feijão e toucinho; com milho ou angu; com ra das práticas gerais paternalistas. “À desperso-
pirão de mandioca [...].”111 Definitivamente, uma nalização das relações entre senhores e escravos é
vida de deixar o negro gordo, enfastiado, e o que principalmente se deve atribuir a insatisfação
branco com água na boca, faminto! da maioria dos africanos ou descendentes de afri-
A proteção acordada ao cativo pelo senhor re- canos, no Brasil, com o seu estado de escravos ou
feria-se ao “corpo”, à “saúde” e, logicamente à de servos.”116
“psique”, já que o senhor patriarcal da ca- Seriam esses cativos do mundo patriarcal,
sa-grande e do sobrado praticaria igualmente “evidentemente a maioria da população escrava
uma larga “tolerância para seus ritos, costumes e da época colonial e dos primeiros decênios do
hábitos” – sempre de acordo com Freyre.112 Império”, “que impressionaram os observadores
estrangeiros mais penetrantes e mais objetivos
Gordo e feliz nos seus reparos sobre condições de vida e de ali-
Nesse contexto geral, não é de se admirar que mentação” que teriam parecido a muitos deles
o trabalhador escravizado fosse homem feliz: “O “superiores às dos operários ou camponeses eu-
negro com quem Saint-Hilaire conversou em Mi- ropeus e livres” da época.117 Assim sendo, a de-
nas Gerais, e que confessou [...] estar satisfeito cadência da sociedade escravista patriarcal, subs-
com sua vida de escravo, parece que deve ser tituída a seguir por escravidão industrial, e após pelo
considerado limpidamente representativo ou trabalho livre, constituiria hecatombe de civiliza-
típico dos escravos de sua época, isto é, tratados ção não apenas para os amos, mas sobretudo
paternalmente pelos senhores.”113 para seus trabalhadores feitorizados, consideran-
E, para quem ficasse com dúvida, Freyre volta do-se as excepcionais condições de existência co-
à carga, agora no que se refere ao cativo africano, nhecidas pelos últimos à sombra das paternais
no mínimo saudoso de sua terra e sua gente dei- senzalas e dos cheirosos canaviais.
xados no além-mar: “São várias as evidências de Ao se afastar o cativo de seu senhor; ao im-
que o escravo africano ou descendente de africa- por-se a usina sobre o engenho; ao perder o ca-
no, no Brasil, sempre que tratado paternalmente navial a primazia para o eito do café, do algodão,
por senhor cuja superioridade social e de cultura do arroz, etc., os cativos começaram a conhecer
ele reconhecesse, foi indivíduo mais ou menos exploração, não raro desapiedada, comandada
conformado com seu status.”114 por “homens ávidos de fortuna rápida; e nem
Para Freyre, o cativo se rebelaria apenas quan- sempre por senhores de antigo feito patriar-
do se quebrava o pacto ou acordo implícito estabe- cal”.118 Nesse novo contexto, nas cidades e nas
lecido entre ele e o proprietário. “Quando os fazendas escravistas do Sudeste, “os extremos
brancos fracassavam como pais sociais de seus – senhor e escravo – que outrora formavam
escravos negros para os tratarem como simples uma só estrutura econômica ou social, comple-

111 Id., ib., p. 285.


112 Loc.cit.
113 Id., ib., p. 524.
114 Id., ib., p. 524.
115 Id., ib., p. 523.
116 Id., ib., p. 523, 525.
117 Id., ib., p. 283.
118 Id., ib., p. 525.

25
tando-se em algumas de suas necessidades e em já esboçada, igualmente, em Casa-grande & senza-
vários dos seus interesses, tornaram-se metades la, no qual, Freyre já propusera que tamanho fora
antagônicas ou, pelo menos, indiferentes umas o equilíbrio social e racial da sociedade patriarcal
ao destino das outras”. que, em emocionado elogio aos escravistas, defi-
niu a Abolição como uma verdadeira agressão ao
O grande desastre cativo: “[...] desfeito [...] o patriarcalismo que até
Uma degradação social e existencial que atin- então amparou os escravos, alimentou-os com
giria, sempre segundo o sociólogo pernambuca- certa largueza, socorreu-os na velhice e na do-
no, sua maior exacerbação, quando da Abolição. ença, proporcionou-lhes aos filhos oportunida-
Então, os antigos cativos, agora “trabalhadores des de acesso social.”122
livres”, passaram a penar, sobretudo nas cidades, Portanto, após 1888, privado da proteção pa-
“quase sem remédio, sem assistência e sem am- triarcal da Casa-grande, garantida pelo escravizador
paro das casas-grandes”.119 Então, nesse novo que o agasalhara, alimentara e protegera fartamen-
mundo sem a escravidão, muito “ex-escravo”, te, o negro cativo viu-se reduzido para todo o
“degradado [sic] pela liberdade e pelas condições sempre à mesma condição terrível conhecida pe-
de vida no meio urbano, tornou-se malandro de los irmãos negros e mestiços, “infelizmente” li-
cais, capoeira, ladrão, prostituta e até assassino. vres. “[...] só depois do descalabro da abolição”, os
O terror da burguesia dos sobrados.”120 Uma de- cativos conheceram a situação de miséria da popu-
cadência que se projetou igualmente sobre a vida lação livre pobre, que se estendeu “com igual in-
cultural e a independência pessoal do homem e tensidade aos negros e pardos já agora desampara-
da mulher “degradados” de escravos à situação dos da assistência patriarcal das casas-grandes e
de homens livres. privados do regime alimentar das senzalas.”123
Se nos “séculos anteriores, houvera, talvez, Em Sobrados e mucambos, talvez inconsciente-
mais prudência, maior sabedoria, mais agudo mente, o sociólogo registra e comenta, um pouco
senso de contemporização da parte das autorida- perplexo, o estudo em que escravista norte-ame-
des civis [...] e dos grandes senhores patriarcais, ricano, em 1829, sistematizara sociologicamente
com relação a culturas e a populações considera- a tese de que a escravidão seria necessária e posi-
das por eles inferiores”, agora o negro e a negra tiva para escravizadores e escravizados: “Pare-
livres encontravam-se nas cidades, sem a prote- cia-lhe o sistema escravocrático, quando patriar-
ção da casa-grande e do sobrado, sob a autorida- cal, não só necessário como vantajoso para se-
de despótica e insensível do Estado.121 nhores e escravos, sempre que soubessem se en-
Bebendo à exaustão e com gosto o cálice da tender e se completar [...].”124 Era como se,
apologia, Freyre transcreveu, em linguagem so- olhando através dos tempos, se deparasse, um
ciológica e narrativa histórica, com imenso vir- pouco confuso, um pouco assustado, um pouco
tuosismo e cabotinismo, as visões de mundo dos maravilhado, consigo mesmo, pensando, pro-
escravistas nordestinos, para os quais os cativos pondo e defendendo, em plena escravidão, a or-
viviam como privilegiados e a Abolição fora, para dem e o mundo que tanto amou, sem jamais ter
todos, um grande roubo e uma grande perda, tese alcançado conhecê-lo em primeira pessoa.

119 Id., ib., p. 153.


120 Id., ib., p. 179.
121 Id., ib., p. 390.
122 FREYRE. Casa-grande […], op. cit., p. 51.
123 Id. Casa-grande [...], op. cit., p. 109.
124 Idem. Sobrados […], op. cit., p. 524.

26
2.7 Sobrados e mucambos: substituído nas cidades pelo poder superpatriar-
o fim de uma era cal [...] – não só do Bispo como do Regente, do
Rei e, afinal, do Imperador. Ou do Estado
Em Sobrados e mucambos, Freyre propõe-se a [...].”129 Modificações que penetrariam no seio da
descrever uma lenta crise do poder do patriarca organização da família senhorial brasileira, deter-
rural, segundo ele, superado, no contexto da minando seu modo de viver: “Depois da chegada
nova sociedade urbana, pelo burguês citadino. do Príncipe Regente, foi a casa urbana, o sobrado
“O drama da desintegração do poder, por algum burguês, que sofreu europeização mais rápida e
tempo quase absoluto, do pater familias rural, no nem sempre no melhor sentido”.130
Brasil, não foi tão simples; nem a ascensão da A nova tendência, que se aceleraria, segundo
burguesia tão rápida.”125 Porém, é muito vacilan- Freyre, nos inícios do século XIX, teria deslocado
te sua periodização desse processo que, para ele, o poder político e econômico para os novos se-
se realizaria em ritmos e tempos diversos, através nhores: “[...] toda força econômica do Império
das diversas regiões do Brasil escravista, não raro estava passando de novo a mãos de portugueses,
com avanços e retrocessos, como já assinalado. agora sob a forma de trapicheiros e de outras fi-
Segundo o sociólogo, o processo iniciara já guras de comerciantes [...].”131 Uma hegemonia
em “fins do século XVIII”, nas “áreas mais euro- em consolidação que se apoiava igualmente no
peizadas” do Brasil, onde ocorreria uma “consi- crescente prestígio político e ideológico das clas-
derável invasão das atividades industriais e até ses urbanas e burguesas ascendentes: “[...] co-
mercantis por gente nobre mais afoita em desem- meços do século XIX – era na própria imprensa
baraçar-se do preconceito ruralista”. 126 A “reeu- brasileira que se esboçava a glorificação da figura
ropeização" se manifestaria “na área mineira do do comerciante, da do industrial, da do artista
século XVIII, para, na primeira metade do século [...].”132 Essa transição devera-se à “compressão
XIX, fazer-se sentir principalmente no Rio de Ja- do patriarcado rural por um conjunto poderoso
neiro, em Salvador, em São Luiz, em São Paulo e de circunstâncias desfavoráveis à conservação do
novamente no Recife”.127 Por muito tempo, a seu caráter latifundiário e, sociologicamente, feu-
Bahia teria escapado a essa influência. “Não ten- dal, fez que ele, contido ou comprimido no es-
do Salvador, nos fins do século XVIII e nos co- paço físico como no social, se despedaçasse aos
meços do XIX, se industrializado na sua econo- poucos”. Esse “declínio do patriarcado”, “primei-
mia e se mecanizado nas suas indústrias com a ro do rural, [...] mais rígido, e [...] mais característi-
mesma rapidez de São Luís do Maranhão, con- co; depois do semi-rural, semi-urbano, urbano”,
servou sua aristocracia de sobrado um sentido de teria originado formas “particularistas, ou indivi-
vida patriarcal [...].”128 dualistas, de organização de família, de economia,
Uma “das mais ostensivas alterações na orga- de cultura”, abrindo maior espaço para os “súdi-
nização social do País, desde a chegada ao Rio de tos” e os “cidadãos”, “outrora quase ausentes”.133
Janeiro de D. João" fora “precisamente o de- Com o eclipse do pater familias, conheceríamos
clínio do poder patriarcal familial, como que a objetivação e subjetivação de novos segmentos

125 Id., ib., p. 19.


126 Id., ib., p. 281.
127 Id., ib., p. 302.
128 Id., ib., p. 289.
129 Id., ib., p. 305.
130 Id., ib., p. 208.
131 Id., ib., p. 268.
132 Id., ib., p. 275.
133 Id., ib., p. 355.

27
sociais – o menino, o jovem, a mulher, o ope- contexto, “o sistema casa-grande-senzala” par-
rário, o intelectual, etc. – facilitado pela emer- tiu-se, “quase pelo meio”, ensejando que se ra-
gência de ”outras figuras de homem dicalizassem e se extremassem “os antagonis-
[…]: o médico, […]; o mestre-régio; o diretor de colé- mos de cultura européia e de cultura africana
gio; o presidente de província; o chefe de política; o ou cultura indígena”, “outrora mantidos em
juiz, […].”134 “[…] a figura da mulher foi, por sua vez, equilíbrio à sombra dos engenhos ou das fa-
libertando-se da excessiva autoridade patriarcal, e, zendas e estâncias latifundiárias”, tudo segun-
com o filho e o escravo, elevando-se juridicamente e do Freyre.140
moralmente.135
Um dos principais vetores dessa “revolução”
Também decadência seria o maquinismo. Freyre fala de “máquinas”
A ascensão de novos protagonistas que, se- “enchendo as cidades”, numa “inundação me-
gundo Freyre, não era necessariamente signo de donha” que reduziria “o sistema patriarcal brasi-
progresso: “[...] período de diferenciação profun- leiro, baseado antes sobre o trabalho humano
da –, menos patriarcalismo, menos absorção do que sobre o animal, a restos de naufrágio”. Nes-
filho pelo pai, da mulher pelo homem, do indi- se novo mundo tecnológico, os “novos sistemas
víduo pela família, da família pelo chefe, do es- de família e de sociedade teriam de basear-se so-
cravo pelo proprietário: e mais individualismo – bre a mecânica, sobre o carvão, sobre o cavalo a
da mulher, do menino, do negro – ao mesmo vapor”.141
tempo que mais prostituição, mais miséria, mais Uma hecatombe que se teria dado sob os
doença. Mais velhice desamparada.”136 Uma olhos de todos. “Nunca uma revolução se fez
superação do patriarca rural e também de gera- mais escandalosamente à vista de todo o mundo
ção, apoiada pelo próprio Pedro II, devido a sua do que essa, no Brasil da primeira metade do sé-
“política de urbanização e de centralização, de culo XIX. São jornais, os dos primeiros decênios
ordem e de paz, de tolerância e de justiça”.137 do século XIX, cujos anúncios fazem tremer nas
“Com a ascensão social e política desses homens bases todo o sistema escravocrático e patriarcal
de vinte e trinta anos, foi diminuindo o respeito […].” Eram máquinas que vinham revolucionar
pela velhice, que até os princípios do século XIX as cidades e os campos, anunciando o fim da anti-
fora um culto quase religioso […]”.138 ga ordem, já que diminuíam “a importância tanto
Para o sociólogo, o ocaso do patriarca rural do escravo como do senhor. Tanto do proprietá-
seria sobretudo o momento da radicalização rio branco como do servo negro”.142
das oposições de classe e raça: “[...] nas princi- Uma máquina que, no campo, seria a algoz do
pais áreas do País, a primeira metade do século trabalhador escravizado, reunindo agora cente-
XIX, aguçou-se, entre nós, o processo, já anti- nas de cativos em imensas unidades produtivas
go, de opressão não só de escravos ou servos onde a nova dimensão das explorações tornava o
por senhores, como de pobres por ricos, de produtor escravizado verdadeiro desconhecido
africanos e indígenas por portadores exclusi- daquele que fora por séculos seu proprietário, pai
vistas de cultura européia [...].”139 Nesse novo sociológico e protetor – propõe Freyre.

134 Id., ib., p. 122.


135 Id., ib., p. 122.
136 Id., ib., p. 22.
137 Id., ib., p. 82.
138 Id., ib., p. 87.
139 Id., ib., p. 389.
140 Id., ib., p. 153.
141 Id., ib., p. 491.
142 Id., ib., p. 534.

28
Porém, a mesma máquina chegava à cidade e isso, pelo que os sociólogos modernos chamam aco-
ao campo, para emancipar o cativo do trabalho modação, entre os dois grandes antagonismos: o se-
nhor e o escravo.146
pesado, abrindo-lhe, sobretudo quando mulato e
livre, novos espaços de promoção como traba- Uma integração que ensejaria igualmente
lhador especializado. As máquinas teriam permi- transferência de poder, dos segmentos brancos
tido a “negros e mulatos livres” participarem da rurais, para os mestiços urbanos, não raro pelo
“revolução técnica” dos inícios do XIX, como casamento permitido pelo crescente prestígio do
“oportunidades de se elevarem socialmente”.143 título ou função. “[...] a transferência de poder,
ou de soma considerável de poder, da aristocracia
Novos protagonistas rural, quase sempre branca, não só para o bur-
A nova individualização das categorias sociais, guês intelectual – o bacharel ou doutor às vezes
afastadas geográfica e socialmente da proteção da mulatos – como para o militar – o bacharel da
casa-grande, determinava que as contradições de Escola Militar e da Politécnica, em vários casos,
raça e de classe não sofressem mais a branda so- negróide.”147
lução dos velhos patriarcas. “A casa-grande, A apresentação sociológica de Freyre da ago-
completada pela senzala, representou, entre nós, nia do patriarcalismo e gênese da nova ordem
verdadeira maravilha de acomodação que o anta- burguesa e urbana é um verdadeiro castelo de
gonismo entre o sobrado e o mucambo veio que- cartas que não rege qualquer movimento crítico.
brar ou perturbar”.144 Seu caráter arbitrário explicita-se facilmente na
Porém, também agora, no novo contexto, cer- necessidade do sociólogo de manipular, sem
tamente em forma menos completa e perfeita, as qualquer rigor, as categorias sociais que utiliza, de
tensões de raça e de classe eram novamente forma profundamente não unívoca, segundo as
necessidades da narrativa.
“amaciadas” devido à tendência à transigência se-
A confusão conceitual do autor sobre o cará-
xual, racial e cultural, não mais do português, mas
ter da antiga formação social brasileira é quase hi-
de seu descendente sociológico e biológico, o
lária: “Em suas formas a organização brasileira
brasileiro branco das elites. Processo registrado
foi predominantemente feudal – embora um tanto
na ascensão político-social do mulato, em geral, e
capitalista desde o início […].” “Dentro de uma
do mulato bacharel, em especial, registro vivo
sociedade patriarcal e até feudal, […], como foi o
para Freyre de transigência já constitutiva da
Brasil durante o tempo quase inteiro da escravidão
essência da formação brasileira.
[…].”148 Portanto, o Brasil seria, ao mesmo tem-
[...] ao mesmo tempo que se acentuavam os antagonis- po, escravista, patriarcal, feudal e capitalista.
mos, tornavam-se maiores as oportunidades de ascen- A crise do poder da oligarquia agrária é afir-
são social, nas cidades, para os escravos e para os filhos mação vazia de conteúdo. Através do século
de escravos [...]. E a miscigenação, tão grande nas cida- XIX, e muito além da própria República Velha, o
des como nas fazendas, amaciou, a seu modo, antago-
nismos entre os extremos.145
senhor de terras, sobretudo nordestino, manteve
Desde os últimos tempos coloniais que o bacharel e o seu poder absoluto, no mínimo sobre suas imen-
mulato vinham se constituindo em elementos de dife- sas fazendas. Até a década de 1930, não feneceu,
renciação, dentro de uma sociedade rural e patriarcal mas fortaleceu-se o império político, social e eco-
que procurava integrar-se pelo equilíbrio, e mais do que nômico do campo sobre a cidade. O bacharel de

143 Id., ib., p. 529.


144 Id., ib., p. 573.
145 Id., ib., p. 153.
146 Id., ib., p. 586.
147 Id., ib., p. 585.
148 Id., ib., p. 353. Destacamos.

29
cartola foi apenas e principalmente um “prepos- chafariz, da água carregada por escravo, do ex-
to citadino” dos “proprietários rurais”. cremento conduzido por negro, das ruas ilumina-
Apenas a ligeireza categorial de Freyre permi- das a azeite, [...]. Toda uma revolução técnica que
te tratar de burgueses homens que viviam nas ci- assumiria aspectos de renovação não só da eco-
dades, dependentes da produção rural e do traba- nomia como da organização social e da cultura
lho escravizado. “Grande parte da riqueza patri- brasileira.”151
arcal e já burguesa do Rio de Janeiro como de Sal- Por outro lado, é bom relembrar que as fontes
vador, do Recife ou de São Luís do Maranhão es- e praticamente toda a historiografia da escravi-
tava [...] nesses escravos de ganho, alugados pelos dão registraram a singular dureza das condições
seus senhores como se fossem cavalos de carro de trabalho nos engenhos açucareiros, desde os
ou bestas de transporte.”149 A mesma ligeireza que inícios de sua instalação, em boa parte por ques-
permite definir como capitalistas, ao modo do tões técnicas, na época incontornáveis. O que de-
século XIX, a comerciantes, rentistas, usurários, terminou que as condições gerais de existência
etc., por apenas deterem capital monetário. do trabalhador escravizado nos cafezais do Cen-
tro-Sul, melhorassem relativamente, e não deca-
A revolução que não houve íssem, no século XIX, em relação às explorações
A proposta de Freyre da invasão das cidades açucareiras daquela e das centúrias anteriores.152
e campos pela maquinaria é outra elucubração São várias as razões da melhoria relativa das
radicalmente fantasiosa. As cidades do Brasil até condições de existência dos cativos nos cafezais,
quase a Abolição primaram pela profunda rusti- no século XIX, em relação à produção açucareira:
cidade, no que se refere aos meios de transpor- um trabalho objetivamente menos penoso; o
tes; ao saneamento; à iluminação; ao abasteci- encarecimento do preço do cativo; a “ladiniza-
mento; etc., que dependeram, como o autor de- ção” da população escravizada; o desenvolvi-
monstra genialmente, essencialmente do braço mento do mercado livre de trabalho; o cresci-
escravizado. mento do movimento abolicionista; o maior de-
O primeiro grande movimento de moderniza- senvolvimento das forças produtivas materiais,
ção urbana no Brasil deveu-se precisamente à etc. A decadência das condições de existência no
exigência da transferência dos cativos urbanos “escravismo industrial” do Centro-Sul constitui
para as fazendas cafeicultoras do Centro-Sul, afirmação sem qualquer base historiográfica.
uma outra clara comprovação da dominância, No mesmo sentido, além mesmo do início do
nessa época, do campo sobre a cidade, ao contrá- século XX, a produção rural brasileira foi domi-
rio do proposto pelo autor.150 nada essencialmente pelo braço do produtor di-
Um processo que Freyre apontou como car- reto, escravizado e a seguir livre, desempenhando
regado de conteúdo renovador, quase socialmen- o maquinismo um papel muito secundário na
te revolucionário: “Era o desaparecimento do produção rural brasileira. Em todos os sentidos,

149 Id., ib., p. 501.


150 Cf. STEIN, Stanley J. A grandeza e decadência do café no vale do Paraíba. São Paulo: Brasiliense, 1961; CONRAD. Os últimos
anos da escravatura no Brasil. 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília-INL, 1975; COSTA, Emília Viotti
da. Da senzala à colônia. 2. ed. São Paulo: Livraria Ciências Humanas, 1982; MAESTRI, Mário. O Cativo e o sobrado: arquite-
tura urbana erudita no Brasil escravista: o caso gaúcho. Passo Fundo: EdiUPF, 2001.
151 FREYRE. Sobrados [...], p. 541.
152 Cf. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5. ed. rev. e amp. São Paulo: Ática, 1988; MAESTRI Mário. A servidão negra.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial,
1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988; DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura,
1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; EISENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em
Pernambuco, 1840-1910. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1977.

30
como a “escravidão industrial”, a “revolução in- sofrimento do trabalhador escravizado e do …
dustrial” brasileira dos séculos XVIII, XIX e iní- animal de tração! “Com o começo de generaliza-
cios do XX proposta por Freyre não possui cor- ção do uso da máquina é que verdadeiramente
respondência nos sucessos históricos. principiou a liberação do negro, da escravidão e
A indigência do autor no relativo à história da servidão; e se tornou possível a valorização do
econômica registra-se igualmente na confusa ex- animal, por longo tempo explorado entre nós
plicação das razões da introdução da máquina, com uma crueldade que chegou a impressionar
para ele nascida da vontade de poupar, não o mal os estrangeiros mais benevolentes [...]”.154
“trabalho” – e seu custo –, mas o “esforço” hu- Encerrado nessa visão, Freyre chega a propor
mano e animal, a partir de movimento de cons- que o “trote inglês”, para ele nascido do impulso
ciência moral. “Do desenvolvimento da máquina moral para poupar as montarias, seria um dos
não se consegue separar, como desprezível ou in- precursores da revolução industrial! “De modo
significante, o motivo moral ou o estímulo senti- que no ‘trote inglês’ [...] o primeiro passo de
mental, de acordo com a pretensão daqueles ma- estímulo moral ou sentimental [...] para a inven-
terialistas históricos mais rígidos na sua ‘interpre- ção de máquinas destinadas à substituição ou à
tação econômica’ da História”.153 Portanto, para superação do cavalo e, à sombra do cavalo, do
ele, a máquina surgiria no Brasil para minorar o burro, da mula [...].”

153 FREYRE. Sobrados [...], op. cit., p. 490.


154 Id., ib., p. 490.

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