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Bang! 3
Índice

[ficção] [não ficção]


Fantascom 04 Sobre o Fantástico
João Barreiros na Literatura Portuguesa 15
David Soares
A Noiva do Homem-Cavalo 11
Lord Dunsany 5 Estrelas___________________________ 47
Safaa Dib
A Novela da Chancela Negra 23
Arthur Machen Sangue Sumor e Lágrimas 48
Entrevista a George R. R. Martin
Filho do Sangue 52
Richard Matheson Como Organizar uma Monarquia 59
Entrevista a Octávio dos Santos
O Mundo Apagado 57
Vasco Luís Curado A Perspectiva Alienígena 71
João Seixas
O Patriota Improvável 62
Maria de Menezes Apanhar as canas do FF 2007 81
Rogério Ribeiro
Crupe dos Doenceiros 77
Neil Gaiman Prémio Bang! para
Literatura Fantástica 2008 83
Síndrome Fasciolar Cerebral dos Carteiros 79
Stepan Chapman Colecção Bang! Primeiro Trimestre 85

Dois contos súbitos 87 Publique o seu conto na Revista Bang! 86


Luís Filipe Silva


[editorial]

Um Regresso em Bang!
Luís Corte Real
«Para piorar as coisas, os livreiros ganhavam
uma margem tão desinteressante que usavam as Bang!
para amparar a perna mais curta do balcão
ou forrar o fundo da gaiola do pardal.»

E ra uma vez um projecto ambicioso para lançar


uma revista de literatura fantástica em Portugal.
Bang! era o seu nome. À frente deste projecto havia
estamos ainda mais exigentes nos conteúdos. Para
terminar, a cereja no topo do bolo: agora a Bang! é
inteiramente grátis!
duas pessoas: eu e o Rogério Ribeiro. Arranjaram‑se E o que é que pretendemos com esta revista? Que‑
autores portugueses, autores estrangeiros, traduto‑ remos levar a literatura fantástica ao maior número
res, colaboradores para ensaios e críticas, uma gráfi‑ possível de pessoas, apresentar autores incontor‑
ca com preços amigáveis e... nada. Ou melhor, quase náveis do género, dar voz aos autores portugueses
nada. Depois de três números (porque o nº zero tam‑ mais consagrados... e, em última instância, dar a
bém conta), chegámos à conclusão que era trabalho conhecer novas vozes nacionais dentro do género.
a mais para colocar apenas 250 revistas nas livrarias. Neste número vai encontrar excelentes autores
Revistas essas que se vendiam a 3.90€ cada (caras, portugueses e nomes de referência do fantástico
portanto) e que mesmo assim não se conseguiam anglo-saxónico. Porque não queremos que a Bang!
pagar (prejuízo, portanto). Para piorar as coisas, os seja apenas ficção, convidámos David Soares e
livreiros ganhavam uma margem tão desinteressante João Seixas para assumirem a responsabilidade
que usavam as Bang! para amparar a perna mais cur‑ dos ensaios. Para terminar, temos resenhas, uma
ta do balcão ou forrar o fundo da gaiola do pardal. antevisão do primeiro trimestre da Colecção Bang!
Chegámos portanto à conclusão que, das duas, da Saída de Emergência, e entrevistas a George R.
uma: ou cancelávamos a Bang! ou encontrávamos R. Martin e a Octávio dos Santos, organizador da
uma alternativa. A alternativa que escolhemos foi antologia de história alternativa A República Nun-
a que tem em frente aos olhos. A Bang! deixou de ca Existiu!
ser uma revista com apenas 250 exemplares em E para já é tudo! Resta‑me deixar os votos de uma
papel para se transformar num PDF que contamos excelente leitura e voltamos a ver‑nos dentro de três
ter milhares de downloads. Passou do formato A5 meses, já com o Rogério Ribeiro a acompanhar‑me
para o A4 (printer friendly), e de 64 páginas para na edição do número quatro. Um abraço fantástico!
quase 90, aumentando assim o interesse de cada BANG!
número e permitindo‑nos oferecer textos maiores
como o conto A Novela da Chancela Negra (com 24 Luís Corte Real é editor do Grupo Saída
páginas e impossível de publicar na anterior versão de Emergência. Depois de quase dez anos
a trabalhar em publicidade, apercebeu‑se
da revista). Mas, mais importante, não só manti‑ que a vida é curta e decidiu trabalhar no
vemos a qualidade dos contistas e ensaístas, como que gosta: livros. BANG!


[ficção]

Fantascom
João Barreiros
«Bom… não li nenhum dos autores consagrados de fantasia…
Não porque não pudesse lê-los, mas porque não queria ser influenciado
por ninguém. As minhas obras serão assim originais, porque nunca
sofreram a influência de outros…»

É fim da tarde, o sol mal se vê coberto pelo habi‑


tual nevoeiro fotoquímico, do céu tomba uma
grisalha viscosa que se cola às roupas e aos poros
dos pés nus, sebentos, calosos e decerto assaz odo‑
ríficos. Há de tudo um pouco, constata o nosso lau‑
reado autor. Como se ali em baixo transparecesse
das peles mais desprotegidas, mas o nosso Horácio uma entusiástica homenagem à sua obra, como se
Quiroga ignora este triste entardecer pois tem os todos quisessem participar desta inefável glória que
olhos pregados na janela que dá para os Poços de é ser o único autor de Fantasia ainda vivo e a escre‑
Recepção & Disparo, aguardando ansioso, a emi‑ ver em Portugal.
nente chegada dos colegas de profissão, artistas e Mas Horácio Quiroga, sempre discreto, pre‑
criadores dos mais perfeitos mundos de Fantasia. O fere ser admirado à distância. Raras foram as ve‑
rugido dos canhões electromagnéticos do aeropor‑ zes em que o viram sair de casa, a não ser para
to da Ota, mal se ouve, abafado pelo ulular dos fãs viagens aos mais remotos países do sudoeste asi‑
que pululam na zona da populaça consumidora. E ático ou aos frios fiordes escandinavos, em busca
lá no alto da sala V.I.P., o eminente autor português de inspiração realista para os seus volumes. Em
da mais extensa série de fantasia lusa, desvia por boa verdade não gosta de misturas. Não gosta das
momentos os olhos do turbilhão das nuvens rasga‑ mãozinhas das fãs élficas a querem-lhe apalpar
das pelos constantes mergulhos dos módulos orbi‑ as partes baixas, como se assim estas conseguis‑
tais e fixa-os, com uma expressão ao mesmo tempo sem recuperar um pouco da sua essência criativa.
crítica e sábia, no fandom biotransformado. Ali em Afinal, se o fandom quiser falar com ele e deste
baixo, há quem sacuda cartazes com o logótipo da modo receber, à guisa de consolação, uns quantos
famosa editora que em bom tempo se arriscou a bitaites da sua imparcial genialidade, basta-lhes
publicá-lo: CLEMENCIA PRESS. Há orelhas com‑ enfiar um capacete RV, mais um implante penil
pridas e triangulares que parecem ser resultado de ou vaginal, (conforme for o caso) e depois liga‑
implantes vitalícios. Cabelos brancos como o linho rem-se à rede, ao esplendor do Mundo de ALAR‑
a escorrerem sobre espáduas musculadas por anos MIA, onde um dos múltiplos avatares de Horácio
de tratamentos hormonais. Vêem-se machadinhas, Quiroga reina desde há trinta anos, com direito
arcos e aljavas de flechas, implantes mamários a ir‑ de vida/morte/possessão/expulsão sobre todos os
romperem dos soutiens metalizados das princessas- assinantes.
guerreiras-dominatrixes, anões barbudos (que em Horácio Quiroga não está só nesta sala V.I.P.,
tempos foram crianças viciadas em supressores de onde se oferece vinho espumante à descrição e
crescimento), putos com tufos de pelos a brotarem pratinhos de petits fours com nomes exóticos.


Consigo estão as habituais três Donzelas da Noi‑ próprio estilo e deixa-se levar na torrente sensual
te, cabelos negros escorridos, maminhas vivaças da voz da Nissa Valmundo:
a espreitarem do veludo negro dos decotes, lábios “Alarico Estilete penetra na clamorosa e túr‑
pintados de roxo fixos num constante ciciar de lin‑ gida caverna com a fiel espada cantante desem‑
guagem élfica, linguagem que foi criada exclusiva‑ bainhada, não vão as hostes traiçoeiras de orcs
mente para esta ocasião pelo inigualável brilhan‑ disléxicos atacarem-no de surpresa e pelas costas,
tismo linguístico do nosso autor. Aristides Sol‑ com a vil cobardia que é habitual nestes horren‑
terno, o representante da Editora CLEMENCIA, dos discípulos do Senhor Trevarium, que em má
esse está vestido em conformidade com o corte do hora guardou para si e para toda a sua hedionda e
século, calças listradas, gravata laranja, camisa de lúbrica prole o tão belo e ausente cálice da Irrepre‑
folhos e uns óculos de lentes virtuais orlados de ensível e Casta Eterna Juventa…
brilhantes que constantemente o ligam às estatís‑ “E nesse preciso instante…”
ticas de venda do último romance de Quiroga, A Nisa Valmundo executa uma pausa na leitu‑
PATORRA DO CLÃ DESMEMORIADO. ra, para aumentar o suspense. De ouvidos postos
E são precisamente pequenos fragmentos na narrativa, a turba multa de fãs sustém a respi‑
dessa obra de mais de 1000 páginas de letrinha ração. Na sala de espera não se ouve um som, a
cerrada (escolhidos a dedo por professores ca‑ não ser o feedback de um ou dois altifalantes mal
tedráticos da Faculdade de Letras de Vila Nova sintonizados. Quem quer que a veja assim, como
de Trancoso) que Nissa Valmundo, a poetisa do uma frágil folhinha sujeita ao vendaval do génio
momento, está nesse momento a ler em voz alta que passa, com o enorme livro a custo equilibrado
(com os murmúrios élficos a fazerem de pano de na extremidade de um pulso frágil, (mas em boa
fundo), fragmentos que estão a ser transmitidos verdade só através da dor podemos elevar a arte)
pelo implante traqueal a toda a audiência de fãs a outra mão colada ao peito onde um coraçanito
que esperam na sala dedicada à populaça, sem es‑ ansioso tiquetaca de emoção, decerto desejaria
quecer os canais de TV e Rádio que se dignaram a abraçá-la, arrancar-lhe as alças do fatinho ne‑
comparecer. Em boa verdade estão todos ali para gro minimal-consumista, e possui-la ali mesmo,
saudarem a chegada dos primeiros convidados es‑ contra a parede, excitado pelo exemplo viril de
peciais a esta Fantascom portuguesa, a primeira a Alarico Estilete, o imortal herói do nosso já não
ser feita por estas terras com orçamento ilimitado, tão jovem autor. E não estamos apenas a falar de
graças ao sucesso do nosso autor, vinte milhões wannabes Alaricos. As centenas de Fulgimundas,
de exemplares vendidos na primeira semana e a Princesas Guerreiras que se acotovelam na sala
promessa (enfim, enfim) que os direitos do pri‑ de espera do povo, num clima de franca cama‑
meiro volume da Saga foram vendidos além-fron‑ radagem um tanto ou quanto ambígua, passam
teiras para a esclarecida Republica Socialista de pelos mesmos estados de alma, um desejo imen‑
Zidonia. Nissa Valmundo tem todos os atribu‑ so de se artilharem com um godmichet simétrico
tos que a beleza anoréctica nos oferece. Olhos de e mostrarem à gentil artista como estão a apreciar
grão-de-bico, lábios redondinhos, cabeça rapada, aquilo que ouvem.
braços esqueléticos e total ausência de peito. De Entretanto, Marília Perdita, crítica literária
qualquer modo é esta a voz e o corpo responsável do jornal Macro-folhas, autora da tese de douto‑
pelas emissões seminais nocturnas de centenas ramento “Fantasia Portuguesa: A Única Escolha
de urbano-depressivos. Quiroga e a Editora CLE‑ Semiótica Possível”, outra convidada escolhida a
MENCIA podem considerar-se felizes por terem dedo para poder aguardar na sala V.I.P., até aqui
conseguido contratá-la a tempo e horas. E assim, discreta e submissa, aproveita a pausa expectante
enquanto tasquinha uma pata de caranguejo, Ho‑ na leitura que dura já há duas horas (que culpa
rácio cerra os olhos, suspira deliciado com o seu tem o Aeroporto do congestionamento dos Ca‑


nhões Balísticos de Seul?) para poder aproximar- lê-los, mas porque não queria ser influenciado por
-se daquele em quem a sua tese se baseou, agarrar- ninguém. As minhas obras serão assim originais,
-lhe pela manga da discreta e nocturna t-shirt, e porque nunca sofreram a influência de outros…
murmurar-lhe aos ouvidos, em voz melosa: Marília Perdita está confusa. Confusa, exci‑
— Ah, meu caro, já escrevi isto um dia, mas tada e cada vez mais admirada pela presença de
agora digo-lhe pessoalmente em absoluta con‑ um génio tão criativo e honesto.
fidência, que nunca, nunca me cansarei de ler, e E enquanto Nisa Valmundo, após ter lambi‑
neste caso escutar a sua prosa, admirada que estou do uns quantos grãozinhos de coca escondidos no
pela facilidade com que escreve, fascinada pela terceiro anel do dedo esquerdo, retoma a leitura
beleza da sua linguagem, mistificada pelas origi‑ da PATORRA DO CLÃ DESMEMORIADO, Ma‑
nais e sempre diferentes temáticas abordadas nas rília Perdita atreve-se a perguntar aquilo que a sua
suas obras. Meu caro Horácio, (porque aposto que tese nunca conseguiu desvendar:
não se importa que eu o trate pelo primeiro nome, — Mas…mas…o segredo da sua escri‑
pois não?), agora que estamos enfim reunidos, ta…porque deve haver aí um segredo escondido,
agora que podemos dispor de uns momentos de não?
intimidade antes da chegada dos convidados es‑ — Ah… — Horácio engole em seco, pois a
trangeiros, posso perguntar-lhe, enfim, quais fo‑ outra mão de Marília (aquela que está solta mas
ram as suas fontes de inspiração, quais os mestres não quiscente) está agora a descer-lhe, devagari‑
que pretendeu emular? nho, pela cintura abaixo. — Pense nisto como um
Horácio suspira fundo. De novo a mesma cozinhado…Como uma Pizza…A base é sempre
pergunta. Ai, o tédio. É por essas e por outras que o pão…Apenas muda o que se põe sobre ela…an‑
costuma isolar-se no seu apartamento de luxo, chovas, caracóis, tentáculos de polvo, moelas de
que não concede entrevistas a jornalistas ignoran‑ melro, coisas assim…
tes, que afinal só anseiam por um pouco da sua — Uma Pizza! — Exclama Marília recuando
masculinidade. Avassalado pelo perfume feromó‑ dois passos, com o choque. — Uma Pizza?
nico exalado pela catedrática (quiçá saturado de — Ou coisa assim…— responde Horácio
memes de sedução), mesmo assim o nosso autor, com um ar sonhador. — Se não gostar de pizzas
sabe como resistir. É a força do hábito. Põe-se um opte por um hambúrguer. O que muda ali são as
pouco na pele de Alarico quando recusou a dádiva molhengas!
suctória de sexo oral oferecido de bom grado pelo — Um hambúrguer? Mas…mas... O meu
clã das 400.000 virgens vampiras, alegando que já amigo recorda-se decerto do que diziam os au‑
tinha entregue o coração à bela Vanessa Peitode‑ tores portugueses de FC, seus contemporâneos...
Pomba e que não desejava esvaziar a sua semen‑ Que o género que defendiam era um género dig‑
te impoluta noutras bocas que não a dela. Deste no. Conceptualmente revolucionário. Inovador.
modo, com voz contida, esforçando-se por não sa‑ Contextualmente complexo. Demolidor de para‑
cudir o braço da prisão da catedrática-crítica lite‑ digmas. Decerto concordará com eles, ou não?
rária, Horácio responde como sempre respondeu: Horácio aproveita a oportunidade para se
— Nenhumas! afastar uns quantos passos da presença sedutora
Os lábios púrpuras de Marília Perdita estre‑ de Marília Perdita. Chega mesmo a colocar-se
mecem de emoção. Uma língua rosada despon‑ junto à janela que dá para a pista de aterragem,
ta entre uma fieira exagerada de dentes brancos onde as nuvens baixas estão já a rasgar-se ante a
(quiçá implantes). aproximação eminente dos primeiros módulos
— Com…como assim, meu caro? balísticos.
— Bom… não li nenhum dos autores con‑ — E onde é que eles estão, esses autores de
sagrados de fantasia… Não porque não pudesse que fala? Não os li e não me interessa o que dizem.


Sofriam todos de dor de corno e desapareceram dros duplos da sala V.I.P., pela cúpula insonoriza‑
de vista, felizmente, incomodados pelo meu su‑ da que cobre todo este sector do aeroporto.
cesso. O que eles disseram não tem importância E do céu tombam, enfim, os cinco módulos
nenhuma. Eu vendo, eles não. E neste mundo só balísticios disparados do outro lado do mundo
as vendas importam! pelos canhões de Seul. Tombam a fumegar, num
Aristides Solterno, enfim desligado da rede, silvo de ar sobreaquecido, primeiro um enxame
resolve intervir, amaciar um pouco as declarações de pontinhos negros a transparecer do outro lado
revolucionárias do seu jovem (nem tanto assim) e das nuvens, depois um arco de ovóides a brilha‑
predilecto autor. rem como sóis, acelerados a uma velocidade de 50
— Então, então, meu caro…sempre na brin‑ Gs, mas que importa, quem viaja dentro deles há
cadeira…Não lhe ligue, Exma Senhora Doutora muito que deixou de ser humano. E depois chega
Perdita. O nosso Horácio gosta de provocar, como aos ouvidos de todos o estampido sónico, capaz
acontece com todos os génios. E a sua genialida‑ de fazer abortar as vacas nas campinas próximas
de está mais que provada, nos milhares de livros e de terminar de vez com toda a biosfera avícola
que vendeu, ao contrário desses outros autores de do vale do Tejo. Mas afinal que importa tudo isso,
Fc que eu também corajosamente publiquei e que quem quer saber da saúde de milhares de passari‑
tanto me desapontaram. nhos perante um momento histórico como este?
— Pois sim, mas comparar a literatura à culi‑ Ou não será verdade que a arte se sobrepõe aos
nária…Convenhamos que… imperativos ridículos da mãe natureza? A tecnolo‑
E as coisas podiam ter ficado por ali, neste gia não foi feita para esta eminente celebração do
precioso fotograma de intimidade inter-relacio‑ passado? Por isso mesmo os módulos tombam da
nal, com uma Marília chocada, de peito arfante, e estratosfera como calhaus rolados e as grelhas elec‑
Nissa Valmundo, de dedos anelados contra o cre‑ tromagnéticas giram para os poderem capturar,
púsculo que aos poucos vai cobrindo o espaço em rodam em gonzos que já viram melhores dias, e as
volta, ainda a debitar mais um extenso e memo‑ IAS que controlam o aeroporto, deprimidas e sem
rável parágrafo deste texto sublime que a tantos ninguém com quem conversar, descuidam-se um
encantou. Sem esquecer o nosso reservado Ho‑ pouco, (talvez por despeito), deixam escapar um
rácio, que de testa encostada contra o vidro du‑ dos módulos como um grão de areia pelos inter‑
plo, continua entretido a observar o céu nebulado valos dos dedos e o módulo estampa-se com estré‑
que aos poucos se rasga em pequenos turbilhões pito, um pouco mais lá para o fundo, junto à esta‑
circulares. Mas este quadro solene acaba por ser ção do monocarril. Os olhos nostálgicos do nosso
interrompido pelo súbito inflamar de mil holo‑ Horácio reflectem um pouco da bola de chamas
fotes a acenderem-se na pista, junto aos poços dos tanques de hidrogénio de 500 veículos a arder
electromagnéticos. Hologramas sobre a sala de no parque de estacionamento, mas na sua cabeça
recepção, onde marulha a prole de fãs, indicam rodam apenas as palavras do novo livro ainda em
agora a eminente chegada dos módulos orbitais. embrião, onde esta torre ígnea poderá servir de
E as vozes cessam. Cessam as tonalidades imagem ao sempre eterno conflito do Senhor Ne‑
célticas da música de fundo que já ninguém se dá gro do Castelo de Sódor contra os mísseis mágicos
ao trabalho de escutar. Cala-se Nissa Valmundo a do feiticeiro Vorticema, o fiel mentor de Alarico.
meio de uma interjeição, onde se pretende imitar — Ai Jesus, que horror! — Exclama Nissa
os ais e uis de prazer de Alarico, assediado atrás de Valmundo deixando cair o livro no chão e escon‑
um penedo pelas propostas sodomiticas do Anão dendo-se no amplexo, sempre protector de Aris‑
braquicéfalo Odonte. Calam-se todos os presen‑ tides Solterno.
tes, porque um grito imenso parece rasgar os céus, — Porra! — Descuida-se a eminente cate‑
se bem que um tanto ou quanto abafado pelos vi‑ drática.


— Ainda perguntam porque sou tecnofóbi‑ terá de discutir com os Fantasistas estrangeiros al‑
co… — murmura o nosso valente autor, de braços guns passos das suas obras mais recentes. Mas por
cruzados sobre a quilha do peito, contemplando fim lembra-se com alívio que é de facto a sua obra
o turbilhonar de mil detritos e os passos finais da que mais importa. Que já começou a ser publica‑
descida e travagem súbita dos restantes módulos. da na Eslovénia, Alsácia Morena e na República
— Não há problema… — Sossega-as Aristi‑ Socialista da Zidonia. Se os eminentes convidados
des, com a lente esquerda dos óculos a relampejar. quiserem falar de algo, por Gotã, que falem dos
Apenas uma das nossas limusinas foi danificada seus livros!
pelo impacto. As outras ainda estão inteiras, assim A descida no elevador até ao átrio da recep‑
como os autocarros que trouxeram os seus fãs até ção dura poucos segundos, mas são segundos que
aqui, caro Horácio. O saco negro da Editora tem parecem uma eternidade devido ao roçagar cor‑
fundos mais do que suficientes para compensar poral da poetisa e da catedrática. O PDA ligado
este tipo de perdas…Graças a si, claro está. Gra‑ ao implante óptico pipila assustado, saturado de
ças ao número de exemplares pré-vendidos deste mensagens quase obscenas e de promessas de lú‑
seu último opus. bricos e secretos encontros. Provavelmente a po‑
Horácio descola-se ao vidro, vira as costas à etisa gostará de ser fustigada ao som de música
pista de aterragem, aos módulos em vias de desa‑ celta. E a catedrática muito apreciaria amarrá-lo
celeração catastrófica, à falésia de chamas do par‑ a uma cadeira da escola, vestido de escuteiro para
que de estacionamento a arder. Lembrou-se agora assim receber, umas quantas e oportunas lições de
que faz parte do comité de recepção, que vai ser semiótica comparada. O mais assustador é que,
obrigado a estar na primeira linha de atendimento no meio deste combate de mensagens visualiza‑
aos convidados, e ao pensar nisso pergunta a si das, acompanhadas por arquivos fotográficos das
mesmo quais deles estariam no interior do mó‑ entidades emissoras em poses um tanto ou quanto
dulo que falhou o poço e a grelha de travagem. receptivas, há umas quantas mais (essas mais dis‑
Mas não faz mal. Devem estar todos protegidos cretas) vindas do seu editor, que até aqui se portou
pelas leis do copyright. Basta fazer o download de sempre como um cavalheiro.
um novo duplicado a partir da matriz original es‑ E as portas do elevador abrem-se para o átrio
condida algures, nas cubas de integração de Seúl. atulhado de fãs. Enfastiado, Horácio abre os braços
Estas obrigações sociais incomodam o nosso emi‑ para receber todos os elfos wannabe, as princesas
nente autor, que de tão modesto odeia aparecer guerreiras, as virgens vampiras, os orcs sodomi‑
em público. Até aqui sempre recusou apresentar- tas, cinco mil encarnações do Alarico Estilete, en‑
-se nos patéticos congressos de FC, onde vegetam quanto Nissa Valmundo sorri, de cabeça atirada
ainda os seus opositores temáticos. Não porque para trás e garganta à mostra num trinado de sub‑
tenha medo de ser criticado por eles, isso nunca. missão, mas a verdade é que ninguém está a olhar
Com dores de corno pode ele bem. para eles. Todos estão virados para o Portal dos
E assim, todo de negro vestido, numa de res‑ passageiros. Aos poucos, o nosso laureado autor
peito pelos retro-urbano-depressivos, cercado pe‑ nota que não há ninguém a agitar as bandeirinhas
los dois corpos em oposição polar da poetisa can‑ da Editora CLEMENCIA. Que estas se encontram
tora e da crítica catedrática, Horácio segue Aristi‑ espalhadas pelo chão, espalmadas por centenas de
des até aos elevadores, num passo aparentemente pés peludos e calejados. Que ninguém comprou
descontraído, enquanto tasquinha um croquete de as t-shirts do Alarico disponíveis nos stands. Que
carne picada de avestruz. Como nunca leu nenhu‑ dezenas de cópias gratuitas e amarfanhadas da PA‑
ma obra escrita pelos convidados (as razões de tal TORRA DO CLÃ DESMEMORIADO se encon‑
procedimento já ele as explicou vezes sem conta) tram espalhadas pelo chão, com algumas páginas
está um tanto ou quanto preocupado a pensar se já arrancadas e ardidas, talvez pelos grupos mais


radicais que adoram snifar a cola das lombadas. — Mas…mas… — insiste o nosso herói, es‑
Entretanto os guardas do aeroporto estão nesse forçando-se por engrossar a voz, perante o corpo
momento a abrir um corredor, à bastonada. Os imenso e tiquetaqueante do segurança, enquanto
altifalantes ainda não deixaram de clamar a che‑ continua a ser empurrando pelas costas pela mul‑
gada eminente dos convidados. Explicam a quem tidão que só deseja passar os dedos pela forma
os queira ouvir que os módulos estão neste mo‑ transparente de um Potter feiticeiro. — Eu faço
mento a despressurizar-se. Que as comportas já se parte do comité de recepção…Me friend. Me invi‑
encontram abertas para os corredores de acesso. ter! If you only…
Que os cilindros gnósticos estão quase, quase… Rowan, Coelho e Asimov trocam olhares dú‑
… e cinco cyborgs ninja da Global Zaibatsu bios, Brown estala os dedos virtuais, Jordan passa
Press, de catanas erguidas, capuz a cobrir as placas o indicador pela garganta e os ninjas investem,
metalizadas dos olhos, emergem junto ao portal, os seguranças do aeroporto dão-lhes uma ajudi‑
e logo atrás deles espreita o primeiro cilindro, e nha, Horácio sente nas costelas a mordedura de
depois outro, outro e outro. Os cilindros têm dois um espigão eléctrico, solta um gritinho ao mes‑
metros de comprimento por um de diâmetro, são mo tempo doloroso e assustado, recua uns quan‑
todos negros e espelhados, à excepção do hologra‑ tos passos, pisa sem querer os pés de um orc que
ma que projectam no ar. E são essas imagens pro‑ responde com uma dentada, toca com o cotovelo
jectadas, que transformam os fãs presentes num nos implantes mamários de uma princesa guer‑
temporal de entusiástica loucura. Ali está, pre‑ reira que logo replica com um valente estalo, e
servado para a eternidade Robert Jordan. Ali vai enquanto o nosso laureado autor é espezinhado
Rowling, de braço dado com um Potter já adulto. (mais por acidente do que por raiva), os ninjas
Ali está Feist, McCaffrey, Asimov, Paulo Coelho e que acompanham os cilindros gnósticos aprovei‑
Dan Brown, para sempre unidos nesta realidade tam a ocasião para seguirem em frente, cortando
consensual que lhes permitiu continuar a escre‑ a fundo o aplauso desmedido dos fãs, na direcção
ver para sempre. No interior dos cinco cilindros das portas de saída e das limusinas blindadas que
sobreviventes estão guardadas as memórias e os hão-de transportar até ao Hotel Xeraton e à pri‑
personalidade de autores que em vida (ou mes‑ meira FANTASCON portuguesa.
mo depois de mortos) venderam o nexo neuroral Quando Horácio dá conta de si, já o imen‑
das suas personalidades às Tríades Legalizadas de so átrio do aeroporto está praticamente deserto.
uma Xangai Neo-capitalista. E que assim, nesta No chão sebento pela gordura de centenas de pés
sublime eternidade consentida, continuaram a es‑ descalços, espraia-se o que resta das bandeirolas
crever, a escrever, a escrever. Logo atrás dos ninja da Editora CLEMENCIA. Empregadas da limpe‑
cyborgs, pequenas caixas de distribuição suspen‑ za — vindas de países limítrofes à Fortaleza Eu‑
sas numa almofada de ar, cospem em arco micro ropa (certamente mais baratas do que a compra
Ipods atafulhados por amostras gratuitas dos no‑ e manutenção de sermomecs) — recolhem agora
vos romances em continuidade. pedaços de Ipods, espadas de fibra de vidro, uns
Horácio tenta cortar através a turba-multa, quanto adereço sado-punidores, ripas de túnicas
aproximar-se de um desses cilindros, mostrar- rasgadas e um número indeterminado e inidenti‑
-lhes quem manda, dar-lhes as boas-vindas, aflo‑ ficável de parafernália descartada.
rar os dedos por essas superfícies de plástico me‑ Já ali não se encontra a poetisa cantora nem
talizado, mas… a crítica catedrática. Volúveis como são, devem
— Stand back, you fucker! — Diz-lhe um dos ter acompanhado a marcha gloriosa dos cilindros
ninjas. gnósticos, ansiosas por um olhar, uma carícia vir‑
— Touch this and die! — Sibila um outro. tual, ou uma micro-descarga nos centros de pra‑
— Draw back, you creep! zer do hipotálamo. Apenas Aristides Solterno se


manteve fiel, como mandam as boas relações co‑
merciais, e é ele agora quem o ajuda a levantar-se,
lhe pergunta se está magoado, se quer que lhe faça
uma massagem na sala dos V.I.Ps antes de se irem
embora.
Horácio afasta-o com um gesto seco, cami‑
nha aos tropeções até às portas de saída. Lá fora,
o crepúsculo banha o aeroporto deserto. Cinzas
tombam do céu provenientes do ponto de impac‑
to do módulo perdido. Cheira a borracha quei‑
mada e hidratos de carbono. O nosso autor está
desolado, despeitado, macerado, abandonado e já
a planear um acto de vingança, tal como aconte‑ João Barreiros, licenciado em filosofia e
cia quando costumava expulsar da sua homepage professor do ensino Secundário, nasceu
todos os críticos cobardes que não concordavam a 31 de Julho de 1952, numa humilde
cidade que em breve iria cair na Sombra
com a genialidade dos seus escritos. dos grandes Antigos.
E ali, junto às vias de acesso à auto-estra‑ Quando se refez do choque, devorou
da para Lisboa, entre o rugido dos módulos de milhares de títulos em todas as línguas a
mercadorias a serem atirados para órbita pelos que conseguiu deitar mão, participou na
feitura do Grande Ciclo do Filme de FC
canhões electro-magnéticos, com o vendaval do de 1984 patrocinado pela Cinemateca
incêndio a desgrenhar-lhe os cabelos, o nosso lau‑ Portuguesa e Fundação Gulbenkian,
reado autor ergue o punho e clama uma frase que escreveu dois vastos artigos para a
fará história. Enciclopédia (hoje esgotada e objecto de
culto para quem a conseguiu comprar).
— Isto não fica assim! A Fantascom ainda Dirigiu duas efémeras colecções para
agora começou! Vocês vão pagá-las, vis autores as Editoras Gradiva (Col. Contacto) e
estrangeiros! Ninguém ficará impune! Clássica (Col. Limites) que o público
— Sabias palavras, meu caro! — Concorda português resolveu esquecer (pior para
ele), publicou um vasto romance de quase
Aristides Solterno enquanto se esforça por convo‑ 600 páginas com a discreta ajuda de Luis
car um transporte viável através do PDA forneci‑ Filipe Silva (de seu nome “Terrarium”),
do pela Editora CLEMENCIA. BANG! precedido por uma colectânea de contos
que chegou a perturbar algumas almas
mais sensíveis (O Caçador de Brinquedos
CONSEGUIRÁ ARISTIDES SOLTERNO e Outras Histórias).
SEDUZIR O NOSSO AUTOR? Anos mais tarde dedicou-se à história
NISSA VALMUNDO E MARÍLIA PERDITA IRÃO alternativa (A Verdadeira Invasão
dos Marcianos) que mereceu edição
ARREPENDER-SE DESTA INFAMA TRAIÇÃO?
espanhola e simpáticas criticas no jornal
QUE VINGANÇA GLORIOSA ESTÁ NESTE El País.
MOMENTO A PREPARAR HORÁCIO QUIROGA? Em 2006, a editora Livros de Areia
E O QUE FOI QUE ACONTECEU AOS VERDADEI‑ dedicou-lhe um chapbook com a
publicação de uma das suas novelas
ROS AUTORES PORTUGUESES DE FC?
“malditas”: “Disney no Céu Entre os
COMO IRÁ DECORRER A PRIMEIRA Dumbos”. BANG!
FANTASCOM?

ESTIMADO LEITOR, NÂO PERCA AS


CENAS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS
(esperemos que na Bang! 4)

10
[ficção] [tradução de Marta Oliveira]

A Noiva do
Homem-Cavalo
Lord Dunsany
«O seu pai fora meio centauro e um semideus.
A sua mãe era filha de um leão do deserto e daquela esfinge
que vigia as pirâmides — era mais mística que Mulher.»

N a manhã em que completava duzentos e


cinquenta anos, Shepperalk, o centauro,
dirigiu-se ao cofre de ouro, no qual estava guar‑
o Homem. Ela sabia que então o corno de prata
estava ao cuidado dele, como em tempos estivera
ao cuidado de seu pai, e ao cuidado de Goom, o
dado o tesouro dos centauros, e apoderou-se do pai de Jyshak, e muito antes, com os deuses. Por
estimado amuleto que o seu pai, Jyshak, extraíra isso, ela apenas suspirou e deixou-o ir.
nos seus anos de primazia da montanha doura‑ Mas ele, saindo da caverna que era a sua
da, e embutindo-lhe opalas que obtivera de tro‑ casa, cruzou pela primeira vez a escassa corrente
cas com os gnomos, colocou-o à volta do pulso, e, ao passar pelos penhascos, viu por baixo dele
e sem dizer nada, foi até à caverna de sua mãe. a reluzente planície terrestre. E o vento outonal
E levou também com ele aquela trombeta dos que dava brilho ao mundo, subindo as encostas
centauros, o famoso corno de prata, que outrora da montanha, batia frio nos seus costados nus.
havia exortado a renderem-se dezassete cidades Ergueu a cabeça e soprou.
de Humanos, e que durante vinte anos tinha soa‑ — Agora sou um homem-cavalo! — gritou
do em frente às muralhas rodeadas de estrelas no em voz alta. E saltando de penedo em penedo, ga‑
Cerco de Tholdenblarna, a cidadela dos deuses, lopou por vales e abismos, por leitos de torrentes
onde em tempos os centauros tinham realizado a e formações rochosas escarpadas, até chegar às
sua fabulosa guerra sem serem vencidos pelas ar‑ sinuosas léguas da planície, deixando atrás dele
mas. Em vez disso, retiraram-se lentamente, en‑ para sempre as Montanhas de Athraminaurian.
voltos numa nuvem de poeira, antes de acontecer O seu objectivo era chegar a Zretazoola, a
o decisivo milagre dos deuses que Eles trouxeram cidade de Sombelenë. Que lenda sobre a beleza
perante a Sua desesperante carência de arsenal inumana de Sombelenë, ou sobre o seu admirável
próprio. Pegou no seu corno de prata e cavalgou mistério, sempre pairou desde a terrestre planície
para longe, e a sua mãe apenas suspirou e deixou- até ao fabuloso berço da raça dos centauros, as
-o ir. montanhas de Athraminaurian, é algo que des‑
Ela sabia bem que, nesse dia, não iria beber a conheço. Contudo, no sangue dos homens existe
água que caía dos terraços de Varpa Níger, o vale uma maré, ou antes, uma corrente marítima, que
entre as montanhas; que não iria admirar por mo‑ é de alguma maneira semelhante ao crepúsculo,
mentos o pôr-do-sol, para em seguida voltar ou‑ que lhes trás rumores de beleza ainda que longín‑
tra vez para a caverna a trote, para dormir sobre quos, tal como a madeira proveniente de ilhas ain‑
os juncos, arrastados por rios que não conhecem da não descobertas flutua à deriva no mar. E esta

11
corrente primaveril, que visita o sangue humano, e mitos nos joelhos de nossas mães. E não havia
provém do fabuloso quartel da sua linhagem, do ninguém que não temesse inesperadas guerras ao
legendário, do antigo. Leva-o para o bosque, para ver Shepperalk a desviar-se e a saltar pelas vias
as colinas; escuta a antiga canção. De modo que públicas. E assim foi andando de cidade em ci‑
talvez o lendário sangue de Shepperalk se agitasse dade.
naquelas isoladas montanhas longínquas, no pico De noite, deitava-se ofegante sobre os jun‑
do mundo, perante rumores que apenas o airoso cos de algum pântano ou floresta; antes de o dia
crepúsculo conhecia e apenas em segredo confi‑ amanhecer, levantava-se triunfante, e bebia água
denciava ao morcego, pois Shepperalk era ainda desmesuradamente de algum rio no escuro e,
mais lendário do que o homem. Era certo que chapinhando nele, ia a trote até algum lugar ele‑
desde o início se dirigia para a cidade de Zreta‑ vado para contemplar o nascer do Sol e saudar o
zoola, onde Sombelenë permanecia no seu tem‑ astro com os alegres ecos da sua fabulosa trom‑
plo; embora toda a planície terrestre, seus rios e beta. E contemplava o Sol surgindo dos ecos, e as
montanhas, separassem a casa de Shepperalk da planícies novamente iluminadas pela luz do dia, e
cidade que ele procurava. as léguas que se prolongavam como uma cascata
Quando os pés do centauro tocaram pela de água, e esse alegre companheiro, o vento que
primeira vez a relva daquela macia terra aluvial, ri estrondosamente, e os homens e os seus medos
este soprou de alegria o seu corno de prata, empi‑ e as suas pequenas cidades. E, depois disso, gran‑
nou-se e deu meia volta e brincou durante léguas. des rios e ermas e enormes colinas, e atrás delas
Por uma nova e formosa maravilha, o seu passo novas terras e mais cidades, sempre na presença
parecia o de um cavalo que nunca tinha ganho desse velho companheiro, o glorioso vento. Mes‑
uma corrida, e o vento ria ao cruzar-se com ele. mo apesar de ter atravessado tantas regiões, a sua
Baixava a cabeça para sentir o perfume das flores, respiração continuava regular. — É maravilhoso
levantava-a para estar mais perto das invisíveis galopar sobre um bom relvado quando se é jo‑
estrelas, divertia-se por esses mundos, conquista‑ vem — disse o jovem homem-cavalo, o centauro.
va rios cavalgando. Como é que vos hei-de expli‑ — Ah, ah! — disse o vento que vinha das colinas,
car, a vocês que vivem nas cidades, o que ele sen‑ e os ventos da planície responderam.
tia enquanto galopava? Sentia-se forte como as Os sinos tocaram frenéticos nos campaná‑
torres de Bel-Narana; leve como aqueles palácios rios, os sábios consultaram os seus pergaminhos,
de fios delgadíssimos, que as fadas-aranhas cons‑ astrólogos procuravam presságios nas estrelas, os
troem entre o céu e o mar ao longo das costas de anciãos faziam subtis profecias. — É verdade que
Zith; veloz como um pássaro, correndo pela ma‑ é veloz? — perguntaram os jovens. — Está tão
nhã para cantar em alguns pináculos das cidades contente… — disseram as crianças.
antes de o dia raiar. Era o companheiro declarado Noite após noite, entregou-se ao sono, e dia
do vento. Parecia alegre como uma canção. Os após dia, galopou até chegar às terras dos homens
raios dos seus legendários pais, os deuses primiti‑ de Athalonia, que viviam nos confins da planície
vos, começavam a misturar-se-lhe no sangue; os terrestre. Dali veio de novo para terras lendárias
seus cascos retumbavam. Chegava às cidades dos como aquelas em que fora criado, no outro lado
homens, e todos tremiam ao recordar as místicas do mundo, e que contornavam o mundo mis‑
guerras da antiguidade, temendo novas batalhas turando-se com o crepúsculo. E então um forte
que pusessem em perigo a raça humana. Nem por pensamento apoderou-se do seu infatigável cora‑
Clio aquelas guerras eram recordadas; a história ção, porque sabia que se aproximava de Zretazo‑
não as conhecia, mas que importância poderia ola, a cidade de Sombelenë.
isso ter? Nem todos nos pudemos sentar aos pés Já era tarde quando chegou, e as nuvens obs‑
de historiadores, mas todos aprendemos fábulas curecidas pela noite cobriam a planície que se es‑

12
tendia à sua frente. Galopou em direcção àquela Astuta e velozmente desceu ele, dando saltos
bruma dourada, e quando esta lhe ocultou a visão, pelo extremo mais elevado da fenda, e entrando
os sonhos do seu coração despertaram e roman‑ em Zretazoola pelo portão exterior, que ficava si‑
ticamente ponderou sobre todos aqueles rumores tuado numa ladeira acentuada, começou de súbi‑
que lhe chegavam sobre Sombelenë, devido à as‑ to a galopar pelas suas estreitas ruas. Menciona-
sociação de coisas fabulosas. Ela habitava (dizia -se, numa canção antiga, as pessoas que vieram às
a noite secretamente ao morcego) num pequeno varandas quando ele passou retumbante, e os que
templo junto à margem de um lago isolado. Uma debruçaram as suas cabeças por reluzentes jane‑
pequena mata de ciprestes protegia-a da cidade, las. Shepperalk não se importou a dar saudações
de Zretazoola, a dos caminhos ascendentes. E em ou a responder a pedidos de identificação vindos
frente ao seu templo encontrava-se o seu túmulo, de torres militares; desceu até ao portão interior
o seu triste sepulcro lacustre aberto ao público, da terra, como o tempestuoso raio de seus pais,
por receio que a sua espantosa beleza e eterna e, como Leviatão que tivesse saltado sobre uma
juventude alguma vez originassem entre os ho‑ águia, penetrou nas águas que existiam entre o
mens a heresia de que a encantadora Sombelenë templo e o túmulo.
era imortal: pois apenas a sua beleza e linhagem Subiu os degraus do templo a galope com
eram divinas. os olhos semicerrados, e, vendo vagamente atra‑
O seu pai fora meio centauro e um semi‑ vés das pestanas, agarrou Sombelenë pelo cabelo,
deus. A sua mãe era filha de um leão do deserto ainda fascinado pela sua beleza, e por isso levou-a
e daquela esfinge que vigia as pirâmides — era à força. E, saltando com ela por cima de abismos
mais mística que Mulher. onde as águas do lago caíam esquecidas para uma
A sua beleza era como um sonho, como uma brecha no mundo, levou-a não se sabe bem para
canção; o sonho de uma vida sonhada sobre orva‑ onde, para ser sua escrava por todos esses séculos
lhos encantados, a canção cantada a alguma cida‑ que são concedidos à sua raça.
de por um pássaro imortal, levado para longe da Soprou três vezes naquela trombeta de prata
sua costa nativa por uma tempestade do Paraíso. enquanto seguia, que é o tesouro mais antigo dos
Aurora após aurora, sobre montanhas de roman‑ centauros. Era o som dos sinos do seu casamento.
ce, ou crepúsculo após crepúsculo, jamais pude‑ BANG!
ram igualar a sua beleza. Não havia um único pi‑
rilampo no mundo ou estrela que conhecesse o
seu segredo; os poetas nunca a tinham cantado
nem a noite adivinhado o seu significado; a ma‑
drugada invejava-a, escondiam-na dos amantes.
Ela não era casada, nem nunca a tinham
cortejado.
Os leões não a vinham cortejar porque te‑
miam a sua força, e os deuses não se atreviam a
amá-la porque sabiam que ela devia morrer.
Isto era o que a noite confidenciara ao mor‑
cego, era esta a esperança que habitava no cora‑
ção de Shepperalk enquanto galopava às cegas
pela bruma. E de repente, no meio da escuridão De nome John Moreton Drax Plunkett (1878-
da planície, apareceu a seus pés a fenda nas le‑ 1957), Lord Dunsany (assim chamado por ser
o décimo oitavo lorde do Castelo de Dunsany,
gendárias terras, e Zretazoola resguardada nela,
na Irlanda) nasceu em Londres no seio de uma
banhada pelo sol da tardinha. família abastada.

13
Apesar de ter conhecido uma certa Tal como em grande parte das produções
popularidade no seu tempo, sobretudo como literárias previamente referidas, o que
dramaturgo (mas também como contista, preocupava Dunsany, não era tanto a
romancista, poeta e ensaísta), o facto de se representação de um mundo verídico,
tratar de um aristocrata inglês com raízes mas antes a de um mundo alternativo
irlandesas, numa época em que a Irlanda em que imaginação e estética literária
começara a lutar pela sua independência, andassem quase sempre de mãos dadas.
não teria contribuído muito para a sua Assim, quer em The Book of Wonder (O
popularidade; quer no país em que possuía Livro do Deslumbramento), 1912, quer em
o seu castelo, mas onde era visto como um The Last Book of Wonder (O Novo Livro
confessado Unionista, quer nos meios ingleses do Deslumbramento), 1916, poderemos
em que se movia. De facto, o seu nome é hoje ler pequenas histórias logicamente
em dia desconhecido de um vasto público, e desconcertantes; reler uma ou outra frase,
geralmente associado à produção de outros duvidando da tradução da mesma, dado
autores que ele teria influenciado, tal como H. o seu pendor para o absurdo; penetrar
P. Lovecraft, cujos primeiros textos ficcionais, em paisagens oníricas, como se estas se
reveladores de um certo simbolismo tardio, encontrassem mesmo à beira dos lugares
espelham muitas das suas características mais banais do nosso dia-a-dia; ouvir
estilísticas, especialmente em obras como A premonições contra a poluição, numa
Demanda Onírica da Kadath Desconhecida. Inglaterra já então dominada pela indústria
Contudo, como percursor de géneros e pelo comércio; tal como desfrutar de uma
ficcionais, marginalizados até há bem pouco ironia e de um humor bem inglês, capazes
tempo - sobretudo por certos empedernidos de que nos invocarem ainda, entre muitos
meios académicos - tais como a Fantasia ou outros, autores como Ambrose Bierce.
Ficção Científica, também é visto como tendo BANG!
influenciado escritores que se tornaram bem
mais populares do que ele, tais como J. R. R.
Tolkien e Ursula K. Le Guin.
Com efeito, Lord Dunsany foi uma das
primeiras vozes narrativas a substituir o
chamado «mundo real», quase obrigatório
em grande parte da Literatura canonizada
(desde a segunda metade do século XIX
e através do século XX), por um mundo
alternativo inventado pelo autor, mas sem
inevitáveis preocupações de teor alegórico.
Neste aspecto, também poderíamos dizer que
a obra de Jorge Luis Borges também lhe dá
eco, tal como o Italo Calvino de As Cidades
Invisíveis. Porém, nenhuma escrita se cria
a partir do nada, e os mundos ficcionais de
Lord Dunsany devem muito ao gosto do seu
O Livro do Deslumbramento
Lord Dunsany
tempo pelo chamado Orientalismo, tal como a
certos ambientes não muito distantes dos que
Um livro incontornável na história da literatura fantástica
poderemos encontrar em muitos dos textos
A obra de Lord Dunsany é a fundação de toda a boa ficção
fin-de-siècle do simbolismo francês. E ainda,
especulativa, e os fãs da grande literatura deviam fazer tudo
se Dunsany nos recorda certos autores que o
para conhecer os seus livros. A fantasia heróica nasceu com
procederam, também nos evoca outros seus
os seus primeiros contos e a fantasia épica foi profundamente
contemporâneos, como o rebelde francês
transformada pelos seus romances. A sua influência na ficção
Alfred Jarry, já para não mencionarmos
fantástica do século XX é visível em autores tão diferentes como
toda uma série de autores surrealistas,
Neil Gaiman, H. P. Lovecraft, Clark Ashton Smith e Tolkien.
que escreviam numa época em que ele já
abandonara os seus mais ousados voos de
Saida de Emergência / 2007
sonho e fantasia, em particular ao dar-se
ISBN: 9789896370022
conta, já tarde na sua longa vida, dos horrores
Preço: 16.91€
da Segunda Guerra Mundial.
Na página da editora: 15.21€

14
[ensaio]

Sobre o Fantástico na
Literatura Portuguesa
David Soares

Observar o modo como o Fantástico, enquanto género ou tonalidade de


representação, foi sendo introduzido nas artes, desde as primeiras realizações
culturais até hoje, é observar, ao mesmo tempo, mudanças expressivas nas
consciências dos indivíduos: nós não pensámos sempre da mesma maneira.
O Fantástico é uma excelente ferramenta para estudar essas mudanças porque,
em simetria com as camadas estratigráficas que formam o subsolo, é capaz de
conservar as preocupações que rodeiam os criadores, mas antes de prosseguir
com o tema deste ensaio, e perceber quais os motivos pelos quais não é possível
reconhecer uma tradição de literatura fantástica no cânone literário português,
é importante definir, com brevidade, alguns conceitos.

O fantasma na máquina pensar o mundo desenvolvidas no período que se


apelidou de Iluminismo. O Renascimento tratou‑se
O homem dotado de pensamento de um movimento que conheceu raízes herméti‑
que se reconheça a si mesmo. cas e que nunca se libertou de uma visão idealista
Hermes Trimegisto, Corpus Hermeticum do mundo. Este “idealismo” nada tem a ver com a
comum corrente filosófica, advogada por Hegel, en‑

C ostuma apontar‑se o período que correspondeu tre outros, mas com uma percepção mais profunda
ao Renascimento como aquele em que a civili‑ que os indivíduos tinham do universo e do seu lugar
zação ocidental se desagrilhoou da repressão medie‑ na grande máquina do mundo; é legítimo dizer que
val e, recuperando a tradição humanista das culturas até ao Iluminismo as civilizações acreditaram e se
grega e romana, progrediu em direcção ao modelo orientaram por uma explicação idealista do cosmos:
materialista do mundo que podemos observar hoje, uma interpretação sob a qual o mundo imaginal, o
contudo o fenómeno renascentista, longe de ter sido mundo das ideias, é mais real que o cenário físico
espontâneo e ter operado efeitos imediatos, foi, ge‑ em que nos movemos. Uma visão apoiada pela tese
ograficamente, muito específico. Os efeitos sociais, que expressa a criação da matéria pela mente e não
industriais e culturais que delegamos à intervenção o oposto.
do Renascimento são fruto de novíssimas formas de  - The Secret History of the World de Jonathan Black (Quercus, 2007, p 279) e
 - A History of Civilizations de Fernand Braudel (Penguin Books, 1993, pp 343‑344) Giordano Bruno and the Hermetic Tradition de Frances Yates (Routledge, 2002,
e The New Penguin History of the World de J. M. Roberts (Penguin Books, 1992, pp 13‑20).
p 540).  - De acordo com a terminologia criada por Henri Corbin.

15
Para um indivíduo crente no sistema idealis‑ eventos e ocorrências – de aventura pessoal. Em‑
ta do mundo a própria consciência é uma entidade. bebida no materialismo filosófico que ameaçava
Isso foi bem satirizado no livro The Third Policeman derrubar o paradigma idealista do mundo, a nova
de Flann O’Brien onde se pode ler que a personagem consciência, assistida pelo nascimento das letras de
principal possui uma alma indepedente chamada expressão íntima, opostas às epopeias clássicas e ou‑
Joe, com aspirações e objectivos diferentes dos seus. tros relatos fabulosos de viagens, será responsável
Na verdade, alma e espírito nunca foram a mesma pela popularidade do herói individualista, desamar‑
coisa para os indivíduos crentes no modelo idealis‑ rado de responsabilidades colectivas. A abertura do
ta do mundo: será preciso anotar que ambos foram mundo interno, da vivência isolada do outro, será
conceitos distintos até à realização do oitavo concí‑ hostil à inclusão de elementos fantásticos, apartados
lio ecuménico (869‑870), presidido pelos represen‑ da vivência de todos os dias como ela é absorvida pe‑
tantes do Papa João VIII; a unificação dos conceitos los cinco sentidos. Antes do nascimento do romance
idealistas de alma e espírito serviu, sobretudo, para o cânone literário possuía dois modos: a “tragédia”
rasurar os credos herméticos dos textos eclesiásticos. e a “comédia”, sendo que a segunda era considerada
Este momento é muito importante porque se o her‑ uma forma menor de literatura. Contudo, a tragédia
metismo idealista se divorciou dos textos e rituais da podia servir‑se de elementos fantásticos sem correr
religião organizada continuou a ser transmitido não o risco de ser olhada com soberba pela academia e
só no seio das sociedades secretas como através de pelos leitores. Só mais tarde o Fantástico começou
um veículo insuspeito: o folclore. a ser entendido como um modo obsoleto de contar
As inofensivas narrativas infantis que os histórias: uma velharia do sistema idealista de olhar
ingleses chamam de “old wives’ tales” e “nursery o mundo.
rhymes”, os franceses de “contes de ma mère l’oye”,
e os portugueses de “histórias da carochinha” são Carne Rebelde
mensagens de sabedoria hermética disfarçadas de
cantilenas e rimas para serem decoradas facilmen‑ There would be tears and there would be strange
te. Charles Perrault, Madame d’Aulnoy, Wilhelm e laughter. Fierce births and deaths beneath umbrageous
Jacob Grimm foram todos ocultistas que reuniram ceilings. And dreams, and violence, and disenchantment.
sabedoria hermética nesse formato: sob a máscara Meryn Peake, Titus Groan
da historieta moral, narrada naquilo a que se chama

A
“linguagem dos pássaros” em terminologia iniciáti‑ literatura fantástica é, por natureza, subversiva.
ca (ou, em calão popular português, “Espírito Santo Alguns dos temas que a compõem acabam por
d’Orelha”), poderiam ser difundidas ao abrigo da encontrar um reflexo em trabalhos literários insus‑
censura inquisitória e eclesiástica. peitos. O conto gótico Six Weeks at Heppenheim de
Foi a partir do Iluminismo que mudámos o Elizabeth Gaskell possui, pelo menos, dois herdeiros
nosso modo de ler. Publicado em 1678, o primeiro de referência: os títulos Johnny Got His Gun de Dal‑
romance moderno La Princesse de Clèves de Madame ton Trumbo e Die Verwandlung (A Metamorfose) de
de La Fayette iniciou um movimento inédito que foi Franz Kafka. O livro The Private Memoirs and Con‑
mimado pelos romancistas posteriores: o nascimento fessions of a Justified Sinner de James Hogg antecipa
da narrativa do interior do indivíduo. o modelo plasmado por John Fowles em The Colec‑
A dádiva do nascimento do romance para tor. Até Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago não
a consciência do homem ocidental foi a noção que pode deixar de evocar uma colagem a The Day of the
as vidas dos indivíduos poderiam ser histórias com Triffids de John Wyndam. Contudo, estes exemplos
princípio, meio e fim: sequências pertinentes de não são os melhores para debater o entrecruzar dos
 - A designação de “old wives’ tales” é a mais antiga e foi cunhada por Lúcio
 - Ou aquilo que Umberto Eco apelida de «experiência pessoal do destinatário», in
Apuleio em O Burro de Ouro como “anilis fabula”. In, From the Beast to the Blonde
Sobre Literatura (Difel, 2002, pp 199‑205).
de Marina Warner (Farrar, Straus e Giroux, 1994, p 14).

16
géneros fantásticos naqueles que em nada se lhe as‑ roman” (romance de arrepios) em alemão. O género
semelham, porque não existe neles uma colagem ao caracterizou‑se pela criação de ambientes de elevada
modo como aquela que se pode ler nos romances decadência arquitectónica e moral e pela integração
editados sob a nomenclatura “Realismo Mágico”. total de elementos sobrenaturais (espíritos, mons‑
O realismo mágico, como hoje se compre‑ tros, demónios) em consórcio com as personagens
ende, é um epígono da tradição literária do Norte da humanas. Obras como Le Diable Amoreux de Jacques
Europa que encontrou maior expressão em autores Cazote, La Morte Amoureuse de Théophile Gautier,
sul‑americanos como Juan Rulfo e Gabriel Garcia The Monk de Matthew Lewis ou The Necromancer
Marquez. O primeiro foi buscar inspiração e temas de Carl Friedrich Kahlert encontram‑se entre os
para Pedro Páramo ao livro Sjálfstætt fólk (Gente Inde‑ primeiros títulos que se atrevem a cruzar o sobre‑
pendente) de Halldór Laxness, publicado vinte e um natural, o disforme e o grotesco, com a sexualidade,
anos antes. Existem em ambos os romances o res‑ vulgarmente tratada com pudor. Esta corrente de
pigar da iconografia mítica e religiosa dos países de literatura fantástica influenciou toda a produção li‑
origem, misturada num árido contexto rural descri‑ terária dos séculos XIX e XX no que diz respeito à
to com realismo agreste. A introdução dos elemen‑ ficção policial e de horror.
tos fantásticos (os fantasmas de Rulfo e os espectros
e bruxas de Laxness) no panorama político e econó‑ In the literature of the fantastic, necrophilia
mico do período pós‑revolução industrial, no qual habitually assumes the form of a love con‑
grassa a extrema pobreza e a confusão das popula‑ summated with vampires or with the dead
ções diante da perda da cultura ancestral face aos who have returned among the living. This
avanços da sociedade tecnológica, serve para criar relation can once again be presented as the
alegorias que veiculam nostalgia e utopia (como a punishment for excessive sexual desire; but
socialista). Por outro lado, atendendo ao tom das it may be present also without its receiving a
suas narrações, não considero Borges um escritor negative value – as with the relation between
de realismo mágico, como foi, por exemplo, o autor Romuald and Clarimonde for instance. The
holandês Gerard Reve, mas um escritor de ficção priest discovers that Clarimonde is a female
fantástica. vampire, but this discovery produces no
A partir do século XVIII a literatura fan‑ change in his feelings.
tástica concebeu uma corrente designada “roman‑
ce gótico”, um spin‑off dos romances de cavalaria. A sexualidade e a blasfémia presente nos ro‑
Tratou‑se, originalmente, de um produto anglo‑sa‑ mances góticos foram ainda muito influentes para
xónico que se generalizou pela Europa em diferentes o movimento simbólico e modernista, como se
denominações: “roman noir” em França, do qual o pode decalcar das obras de Charles Baudelaire, Paul
“giallo” italiano é um sucessor evidente, e “schauer‑ Verlaine e Arthur Rimbaud. Mas se estes autores se
apropriaram dos códigos do Fantástico à guisa de
 - Exemplos de poemas que poderão ter influenciado Walter Scott e Tobias Smol‑
lett, os “pais” do romance de cavalaria, são os épicos Beowulf (1010?), La Chanson alegoria – de símbolo – isso não invalidou o facto do
de Roland (1150?) e Herzog Ernst (1180?). As chamadas “novelas do Graal”, cujo género ter continuado a ser subversivo; uma litera‑
primeiro exemplo é consensual apontar‑se como sendo Perceval, Le Conte du Graal
de Chrétien de Troyes (1180‑1190?), têm, por outro lado, raízes nos mitos galeses
tura de adversidade à norma:
compilados numa sequência lógica, e dramática, em The Mabinogion por Evangeline
Walton. São, por mérito próprio, um sub‑género dentro dos romances de cavalaria As a critical term ‘fantasy’ has been applied
já que possuem preocupações herméticas ausentes nos segundos. É seguro afirmar
que os pioneiros do género gótico em Portugal, na tradição de Walpole e Radcliffe
rather indiscriminately to any literature
foram Alexandre Herculano com Eurico, o Presbítero (1844) e Almeida Garrett com which does not give priority to realistic rep‑
Frei Luís de Sousa (1844). Convém também incluir Sampaio Bruno com o ensaio
O Encoberto (1804) e o inacabado Os Cavaleiros do Amor, esboço para romance  - Tzvetan Todorov, in The Fantastic: A Structural Approach to a Literary Genre
publicado postumamente em 1996. (Cornell University Press, 1975, pp 136‑137). O excerto fala sobre La Morte Amou‑
reuse de Théophile Gautier (1836).

17
resentation: myths, legends, folk and fairy e oitenta e cinco para ser rigoroso) que dominaram
tales, utopian allegories, dream visions, sur‑ as artes e a cultura portuguesas – é ingénuo pensar
realist texts, science fiction, horror stories, all que este legado não deixou sequelas.
presenting realms ‘other’ than the human. A Em 1539 Carlos V conseguiu a licença do
characteristic most frequently associated with Papa Paulo III para os Teólogos de Lovaina elabora‑
literary fantasy has been its obdurate refusal rem um índice de livros a proibir. A primeira lista de
of prevailing definitions of the ‘real’ or ‘possi‑ livros portugueses proibidos foi publicada em 1547,
ble’, a refusal amounting at times to violent mas seguiram‑se mais duas em 1551 e 1561. O tercei‑
opposition. (…) Such violation of dominant ro índice expurgatório é o mais completo, incluindo
assumptions threatens to subvert (overturn, diversas instruções contra a compra, venda, troca e
upset, undermine) rules and conventions conservação dos títulos proibidos. Os visitantes vin‑
taken to be normative. This is not in itself a dos do estrangeiro estavam obrigados a mostrar os
socially subversive activity: it would naïve to seus livros a um representante da Inquisição, e aque‑
equate fantasy with either anarchic or revo‑ les que herdavam bibliotecas familiares só poderiam
lutionary politics. It does, however, disturb usufruir delas após rígida inspecção. Os autores
‘rules’ of artistic representation and literature’s estavam classificados em três categorias: os de 1ª,
reproduction of the real. aqueles cujas obras eram sumariamente rejeitadas;
os de 2ª, aqueles que apenas seriam censurados em
O texto prossegue com ênfase neste distúr‑ determinadas partes; e os de 3ª, os anónimos. Este
bio da forma de representar artisticamente o mun‑ terceiro índice foi organizado por Frei Bartolomeu
do. Ferreira, censor de Camões em Os Lusíadas, e colo‑
cava de sobreaviso os leitores contra toda a literatura
A morte é o meu ofício de ficção onde existissem referências ao amor e aos
preceitos do clero. Proibia, inclusive, o livro Utopia
«Nem os mortos escapam.» do canonizado Thomas More. Será uma iniciativa
Pregão popular português (séc. XVII?) sobre o calamitosa para a cultura renascentista portuguesa:
costume que os oficiais da Inquisição tinham de entre os perseguidos pela Inquisição estiveram o
desenterrar os indivíduos que eram condenados já humanista Jorge Ferreira de Vasconcelos, o cronista
cadáveres para os enforcar ou imolar. João de Barros (autor da primeira gramática euro‑
peia que há referência) e o escritor Bernardim Ri‑

C om uma lista de crimes a punir onde figura‑ beiro. Gil Vicente foi perseguido e censurado pelas
vam práticas como a «sodomia», o «erotismo» denúncias constantes que fez às desigualdades so‑
e a «concupiscência» é flagrante que a Inquisição, ciais, mas também os poetas Chiado, amigo íntimo
implantada em Portugal por D. João III, coagido de Camões, e Sá de Miranda (o pai do soneto portu‑
pelo cunhado Carlos V, em 1536, era uma fervorosa guês). Note‑se que a Inquisição Portuguesa pecava
inimiga dos prazeres da carne (foi transfigurada em por ser mais papista que o Papa, pois se em Espanha
Conselho Geral do Santo Ofício trinta e três anos Don Quijote de La Mancha de Miguel de Cervantes
depois). Contudo, também foi adversária do espírito circulava à vontade, e era um sucesso, encontrava‑se
já que perseguiu a burguesia intelectual portuguesa proibido em Portugal.
desde o século XVI até ao século XVIII: foram quase Livros considerados heréticos, na esteira de
trezentos anos de violento jugo teocrático (duzentos Lutero e Calvino, e livros que mencionassem artes
 - Rosemary Jackson, in Fantasy: The Literature of Subversion (Routledge, 1981, mágicas, como a astrologia e a adivinhação, não
pp 13‑14).
passavam no exame censório. Por conseguinte, po‑
 - In Judeus, Cristãos‑Novos e a Inquisição de S. Alexandre (Prefácio, 2002, p 89).
Ver também a obra em três volumes de Alexandre Herculano, História da Origem e demos imaginar que a literatura fantástica realizada
Estabelecimento da Inquisição em Portugal (Edições Europa‑América). no período em que a Inquisição manteve o poder

18
de purgar obras e autores não conheceu qualquer Esta observância subtil, mas terrível, seria capaz de
difusão junto dos leitores em potência. Lembrem‑se derrubar os alicerces de qualquer crente que viesse a
que os mestres das Escolas dos Mistérios, e outros ser influenciado pela leitura ou pelo simples contac‑
guardiães das doutrinas herméticas tiveram de en‑ to com os livros.
contrar outras formas de passar os ensinamentos Com efeito é inegável que a literatura fan‑
uns aos outros, e ao público, como disfarçá‑los de tástica se lavrou em território herético: nos países
contos e lenga‑lengas infantis, para fugir aos exces‑ de expressão anglo‑saxónica, e na Escandinávia,
sos de zelo dos inquisidores. Só depois da extinção regidos por outras instituições que não a igreja ca‑
do Conselho Geral do Santo Ofício, em 1821 – já tólica apostólica romana. É extraordinário que em
em pleno século XIX! –, é que a literatura fantástica nenhumas das fontes que consultei sobre literatu‑
conseguiu, finalmente, penetrar no nosso país – e ra fantástica esse facto seja sequer aflorado; o que
timidamente: não é de estranhar já que a maioria dos títulos en‑
saísticos que fazem parte da minha biblioteca são
Quanto a autores, não os encontramos na escritos por autores de expressão inglesa aos quais
nossa literatura de terror com individualida‑ o conceito é alienígena. Faz falta uma obra que se
de e decididamente negros. Podemos, no en‑ dedique, de um modo empenhado, ao estudo da li‑
tanto, destacar alguns, em cuja obra, avaliada teratura fantástica portuguesa – ou à escassez dela –,
em conjunto, é possível encontrar uma linha mas, a escrever‑se, acredito que a solução do enig‑
de influência constante dos objectivos, géne‑ ma tem, necessariamente, de passar por aqui: pela
ros e processos da escola. Além de Herculano, repressão religiosa operada pela Inquisição durante
Rebelo da Silva, Camilo e Arnaldo Gama, há quase trezentos anos sobre o tecido cultural do país,
que mencionar Pereira da Cunha, Correia de extinguindo quaisquer hipótese do género fantásti‑
Lacerda, Serpa Pimentel, Costa e Silva e An‑ co crescer e difundir‑se pelos nossos antepassados
tónia Pusich. Daqueles que se restringiram leitores.
praticamente a um género, temos, antes de Sintetizando: o Fantástico é, por excelência,
todos, Mendes Leal Júnior, no teatro, e ainda uma literatura de subversão porque faz imaginar,
Alfredo Hogan e Aires Pinto de Sousa, na no‑ logo foi alvo preferencial da ordem teológica inau‑
velística. As várias tendências literárias mo‑ gurada pela Inquisição. Tal como em Portugal, tam‑
dernas, que se podem classificar de negras, bém em outros países onde a cultura conheceu, e
não encontraram cultores em Portugal. 10 ainda conhece, uma forte influência religiosa não
existe uma tradição literária devotada ao género
O Fantástico, enquanto literatura de sub‑ fantástico.
versão, enquanto modelo herético de representação do
mundo, afigurou‑se perigoso para a ordem eclesiás‑ Fahrenheit 451
tica à guarida da Inquisição: se o mundo plasmado
nos romances de literatura fantástica era caótico, Our biggest mistake was teaching them to read. We
selvagem, sem redenção ulterior, então Deus não as‑ won’t do that anymore.
segurava a ordem natural das coisas – talvez até nem Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale.
sequer existisse!... No modelo idealista do mundo as

O
más intenções, aquelas que vão contra Deus, estão intervalo entre o término do regime teocrá‑
condenadas ao fracasso. Contudo, os cultores do gé‑ tico da Inquisição e a instauração do regime
nero fantástico não só pareciam divertir‑se com as teocrático do Estado Novo, em 1933, durou pouco
obras como não eram castigados pela Providência. mais de cem anos, tempo insuficiente para mudar
10 - Maria Leonor Machado de Sousa, in A Literatura “Negra” ou de Terror em o paradigma de profundo analfabetismo no qual o
Portugal: Séculos XVIII e XIX (Editorial Minerva, 1978, p 286).
país se imergia. Até às vésperas da extinção do apa‑

19
relho inquisitório publicaram‑se em Portugal, em mente teocrática, e quase imediatamente, nós não
média anual, cerca de cem edições. Em França, em fomos capazes de criar, e sustentar, uma cultura li‑
1818, imprimiram‑se 4917 livros e brochuras, mais terária saudável.
do dobro do que Portugal publicou em vinte anos. À Através de uma propaganda muitíssimo
entrada do século XX a situação geral era a de anal‑ bem desenhada, o regime do Estado Novo soube,
fabetismo: saber ler e escrever era uma excepção en‑ de geração para geração, fomentar a ideia que o co‑
tre a população rural e, mesmo nas cidades, somen‑ nhecimento, o progresso científico e a imaginação
te uma quarta parte dos homens havia frequentado eram ferramentas luxuosas que não serviam o bom
algum grau de ensino.11 patriota, disposto a sacrificar‑se pela nação.
Em plena Inglaterra vitoriana já as mulhe‑
res liam e manifestavam opiniões; pouco depois, E digo: este povo, para o que sente, já sabe
a partir de 1918, era‑lhes reconhecido o direito demais. Intensifique‑se a educação religiosa;
de voto. Em Portugal isso só chegaria treze anos proteja‑se a instituição doméstica; olhe‑se
mais tarde. Portugal sempre fora um país hostil a sério pelo estado dos costumes deste povo
ao desenvolvimento literário e os cem anos que – forme‑se o carácter conveniente e, depois,
duraram entre o fim da Inquisição e o início da voltamos à Instrução. O Padre Cruz faz mais,
ditadura de Salazar não foram suficientes para num dia, pelo bem de Portugal, do que os
colmatar essa lacuna. Entre 1911 e 1919, durante a mestres primários todos juntos num ano. Ele
Primeira República, o aparelho de Estado tomou não ensina a ler e a escrever: educa almas; ar‑
várias medidas contra o analfabetismo criando os ranca corações à perversidade – e quem sabe
primeiros ensinos oficiais Pré‑Primário e Primá‑ quantos lá foram lançados pela acção do A
rio Geral gratuitos. Criou as Escolas Normais de B C!13
Lisboa e do Porto, a Faculdade de Direito de Lis‑
boa, a Faculdade de Letras de Coimbra e do Porto Será a única inteligência valiosa, considerável
e muitas escolas superiores que viriam a constituir e útil à sociedade a que se revela na aptidão
as Universidades de Lisboa e Porto. As iniciati‑ para as ciências e para as letras? (…) Uma
vas de divulgação cultural e alfabetização foram criança inteligente filha de um operário há‑
exemplares: as Escolas Móveis, as conferências e bil e hoesto pode, na profissão de seu pai, vir
os cursos nas províncias mais as bibliotecas itine‑ a ser um trabalhador exímio, progressivo e
rantes; estabeleceu‑se a leitura pública de jornais apreciado, pode chegar a fazer parte do escol
em diversas aldeias. Contudo, logo a partir de da sua profissão, e assim deve ser. Na mecâni‑
1926, com o início da ditadura militar do general ca da escola única, seleccionado pelo professor
Gomes da Costa, e o decreto‑lei que instaurou a primário para estudar ciências para as quais
censura, o percurso foi interrompido. Como es‑ o seu espírito não tem a mesma preparação
creve Luiza Cortesão: hereditária que tem para o ofício, não passa‑
rá nunca de um medíocre intelectual, quan‑
Não se pode deixar de melancolicamente re‑ do muito um homem sábio mas incapaz
flectir sobre o que hoje seria o nosso povo se de singrar na vida nova que lhe indicaram
esta acção tivesse prosseguido.12 sem o ouvir. (…) Não é difícil de notar que
há geralmente nas famílias uma ascensão da
Saindo de uma censura para outra, igual‑ inteligência prática e recolhida até ao talento
11 - In Diário da História de Portugal de José Hermano Saraiva e Maria Luísa Guer‑ fecundo e brilhante. As ideias, as noções, as
ra (Selecções do Reader’s Digest, 1998, p 363). A acompanhar o texto encontra‑se
experiências vão‑se elaborando através umas
uma tabela muito completa com o número total de edições, reedições e traduções de
obras estrangeiras realizadas nesse período. 13 - Alfredo Pimenta, in Escola, Sociedade: Que Relação? (Edições Afrontamento,
12 - In Escola, Sociedade: Que Relação? (Edições Afrontamento, 1988, p 18). 1988, p 209).

20
poucas de gerações até florir, em determina‑ do pela imaginação, pela fantasia. A paupérrima di‑
da altura, na pessoa de um dos membros da fusão de conhecimento científico, em desproporção
linhagem. (…) A gestação duma inteligência à propaganda religiosa, contribuiu, de certeza, para
superior é trabalho de muitos anos, de sécu‑ que surgissem pouquíssimos autores portugueses
los até. Resume‑se nela toda a experiência de de Ficção Científica, e ainda menos leitores.
uma família, concentra‑se então tudo quanto Se um género se faz com autores, e editores,
através das idades naquela linha de sucessão é verdade que também se faz de leitores: num país
se foi acumulando no sub‑consciente.14 de gente que não lê, onde o analfabetismo foi fo‑
mentado pelas classes dirigentes, como mecanismo
Durante quase meio século (de Maio de de controlo e hegemonia, sendo ainda observado
1926 a Abril de 1974) a maioria dos artistas e escri‑ com desconfiança pelas outras, é natural que não se
tores portugueses sentiram‑se refreados, conscien‑ verifiquem condições semelhantes às presentes nos
tes que a mais simples frase os poderia levar a con‑ países culturalmente mais ricos. Condições conve‑
frontos indesejáveis com os censores: nientes à saúde do tecido cultural.
É que nós, se calhar, ainda não aprendemos
Nessa única conversa que tive com um cen‑ a sonhar.
sor, ele trouxe‑me um exemplar, censurado,
com o célebre lápis azul da censura – exem‑ Notas finais
plar que eu tenho em meu poder –, daquele
meu livro Histórias de Amor, onde verifi‑
quei que eles cortaram, logo a abrir, a palavra
«nu», numa frase que começa assim: «estava
E ste ensaio concentrou‑se, em exclusivo, na
abordagem das causas da ausência de uma
tradição de literatura fantástica escrita em por‑
nu em cima da cama…». Bastou‑me ver isto tuguês. Não quis falar sobre a produção de lite‑
para perceber que havia ali um propósito de ratura fantástica existente porque esse é um tema
queimar tudo e mais alguma coisa (…) Aliás, que merece uma reflexão individual. Contudo, na
a simples referência ao Éluard e ao Pessoa (ao minha opinião, a literatura fantástica portuguesa
Fernando Pessoa, imagine‑se só!), foram sim‑ recebeu uma injecção de vitalidade nos últimos
plesmente abaixo.15 quatro anos com o surgimento de novas editoras
sensíveis ao género como a Saída de Emergência, a
Não só as menções ao regime de Salazar, ao Livros de Areia e a Chimpanzé Intelectual. Apare‑
comunismo e à condição feminina foram censura‑ ceram novas colecções que publicam regularmen‑
das. Tudo o que consistisse em laivos de laicismo te clássicos da literatura fantástica como a colecção
e ataques à religião católica foi abafado; e também A Biblioteca de Babel da Editorial Presença; mais
obras de ficção fantástica; como é exemplo Les Para‑ as incursões da Cavalo de Ferro no Fantástico e
dis Artificiels de Charles Baudelaire e outros autores no Realismo Mágico de vários países e tradições.
contemporâneos. Existe um despacho que proíbe a A Ficção Científica, infelizmente, é o género que
publicação de um livro intitulado Contos de Terror, menos marca presença nas nossas livrarias, tanto
de vários autores do cânone e traduzido por José Vi‑ na produção original como nas traduções de li‑
lhena16: a religião tratava de preencher o lugar vaga‑ vros estrangeiros. Todavia, o problema não é tanto
14 - Marcelo Caetano, in Escola, Sociedade: Que Relação? (Edições Afrontamento,
a falta de edições relacionadas com o Fantástico,
1988, pp 204‑205).
15 - José Cardoso Pires, in A Censura de Salazar e Marcelo Caetano de Cândido de mas a falta de um verdadeiro discurso crítico que
Azevedo (Editorial Caminho, 1999, pp 103‑104). Outros dois tomos que iluminam pense sobre os livros e os apresente aos leitores.
esta questão da censura com documentação da época são Mutiladas e Proibidas
de Cândido de Azevedo e Os Segredos da Censura de César Príncipe, ambos da
A haver um veículo de crítica rigorosa, e
Editorial Caminho (1997 e 1979, respectivamente). generosa, sobre o género Fantástico, ele terá de ser
16 - Os Segredos da Censura de César Príncipe (Editorial Caminho, 1979, p 122).
pensado e realizado de “dentro para fora”. BANG!

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A Conspiração dos Antepassados


David Soares começou a publicar pela Círculo David Soares
de Abuso dando à estampa quatro álbuns de
banda desenhada: “Cidade-Túmulo” (2000), Um thriller envolto na História de Portugal e com
“Mr. Burroughs” (2000; com desenhos de Fernando Pessoa como personagem principal.
Pedro Nora e publicado em língua francesa Na tradição dos melhores thrillers, David Soares convida-nos
pela editora Frémok em 2003), “Sammahel” a espreitar debaixo do véu e a vislumbrar a mais assustadora
(2001) e “A Última Grande Sala de Cinema” conspiração da História: um livro assinado por Francisco
(2003; premiado com uma bolsa de criação d’Ollanda, o maior artista português do Renascimento, é
literária atribuída pelo Instituto Português cobiçado por uma seita disposta a tudo para o obter. Que
do Livro e das Bibliotecas). Autor premiado terrível segredo terá nas suas páginas para justificar tanto
com dois troféus para “Melhor Argumentista sangue?
Nacional” pelo Festival Internacional de Fernando Pessoa, o ilustre poeta português, é convidado por
Banda Desenhada da Amadora e pelo site Aleister Crowley, o mágico inglês, a entrar numa aventura cheia
“Central Comics”. de mistério, acção e suspense para descobrir esse segredo que,
Publicou, pela Círculo de Abuso, o livro de afinal, talvez tenha a ver com D. Sebastião, e a verdadeira razão
contos “Mostra-me a Tua Espinha” (2001) e porque os portugueses foram derrotados em Alcácer-Quibir.
o ensaio sobre banda desenhada “Sobre BD” Do exotismo da Tunísia às ruelas húmidas de Londres, das
(2004): apontado pela crítica especializada mandíbulas da Boca do Inferno ao coração da Quinta da
como uma das obras mais importantes sobre Regaleira, A Conspiração dos Antepassados é uma viagem
9ª arte publicada em português. inesquecível. Misturando verdade, lenda e magia, David Soares
Publicou os livros de contos “As Trevas apresenta-nos algo nunca visto na literatura portuguesa: um
Fantásticas” (Polvo, 2005) e os “Os Ossos romance cuja meticulosa pesquisa vai agradar aos estudiosos de
do Arco-Íris” (Saída de Emergência, 2006), Fernando Pessoa, e cuja energia e emoção vai encantar os fãs de
colaborando ainda em várias antologias uma grande aventura.
como “A Sombra Sobre Lisboa” (Saída de
Emergência, 2006) e “Ficções Científicas & “Este é um livro que se lê de um fôlego, um page turner de
Fantásticas” (Chimpanzé Intelectual, 2007), e leitura compulsiva [...]um espantoso e magnificente exemplar
o livro “O Homem Que Desenhava na Cabeça de “história oculta” pincelada de ficção fantástica de grande
dos Outros”, de Pedro Zamith (Oficina do mestria. -António de Macedo, escritor e cineasta
Livro, 2004).
“A Conspiração dos Antepassados” é o seu “Fiquei encantado com A Conspiração dos Antepassados [...]
primeiro romance: uma história sobre o trata-se de um dos melhores romances portugueses publicado
encontro entre o poeta Fernando Pessoa e o nos últimos tempos e, se a minha inteligência. mas sobretudo a
mago Aleister Crowley, na qual se entretecem minha intuição me não enganam, temos em David Soares um
a história, a lenda e a magia. autor que irá fazer parte do cânone literário.
Colabora regularmente com um número -José Manuel Lopes
variado de publicações e sites, com artigos,
ensaios e prefácios e escreve diariamente no Saida de Emergência / 2007
weblog “O Sonho de Newton”. BANG! ISBN: 9789896370091
Preço: 18.85€
Na página da editora: 16.96€

22
[ficção]

A Novela da
[tradução de José Manuel Lopes]

Chancela Negra
Arthur Machen
«Tudo lhe deve ter parecido fantasioso e visionário,
como um sonho matinal após um despertar.»
RELATADA POR UMA
SENHORA EM LEICESTER SQUARE
discrição. O seu modo de falar leva-me a confiar em
Prólogo si, e o título desse trabalho, que acabou de mencionar,
assegura-me que não é apenas um coleccionador de

—V ejo que é um racionalista inveterado — banalidades vazias. Numa palavra, creio que posso
disse a senhora. — Não me ouviu dizer contar consigo. Acredito que deverá estar a pensar
que tive experiências ainda mais terríveis? Também que o Professor Gregg morreu. Não tenho razões,
fui céptica em tempos, mas, após tudo o que conhe‑ contudo, para pensar que seja esse o caso.
ci, já não poderei pretender estar cheia de dúvidas. — O quê? — vociferou Phillipps, atónito e
— Minha senhora — retorquiu Phillipps, — perturbado. — Acha então que não houve qualquer
ninguém me fará negar a minha fé. Nunca irei acre‑ tragédia? Mal posso acreditar… Gregg era um ho‑
ditar, nem pretenderei acreditar, que dois e dois são mem de carácter impoluto, a sua vida privada ape‑
cinco, nem hei-de, sob quaisquer pretensões, admitir nas indicava uma aberta benevolência e, embora eu
a existência de um triângulo com dois lados. próprio não seja dado a ilusões, acredito que ele foi
— Está a ser um pouco apressado — observou um cristão devoto e sincero. Decerto, não irá querer
a senhora. — Mas será que lhe posso perguntar se insinuar que algum acontecimento menos honesto o
já alguma vez ouviu falar no Professor Gregg, nessa forçou a abandonar o país?
autoridade no campo da etnologia e assuntos afins? — Uma vez mais, está a ser um pouco apressa‑
— Muito mais do que meramente ouvir falar do — observou a senhora. — Não foi nada disso que
do Professor Gregg… — disse Phillipps. — Sempre eu disse. Porém, para resumir, devo dizer-lhe que o
acreditei que ele era um dos nossos observadores Professor Gregg saiu numa manhã de casa, de plena
mais inteligentes e esclarecidos, e a sua publicação saúde física e mental. Nunca mais voltou, mas o reló‑
mais recente, Manual de Etnologia, pareceu-me em gio dele e a corrente, uma bolsa em que tinha alguns
tudo admirável no seu género. De facto, o livro mal soberanos em ouro e outras moedas, tal como um
tinha chegado às minhas mãos quando fui informa‑ anel que ele usava sempre, foram encontrados três
do acerca do acidente que acabou por lhe abreviar dias mais tarde na encosta agreste e remota de uma
a carreira. Ele tinha, creio eu, arrendado uma casa colina, a muitas milhas do rio. Esses artigos foram
de campo, durante o Verão, no Oeste de Inglaterra, descobertos junto a um rochedo calcário de aspecto
e dizem que caiu a um rio. Mas, tanto quanto pude fantástico. Tinham sido embrulhados numa espécie
apurar, o seu corpo nunca foi encontrado. de pergaminho e atados com um fio de tripa seca.
— Caro senhor, conto sem dúvida com a sua Abriram esse embrulho, e no lado de dentro des‑

23
se pergaminho havia uma inscrição feita com uma -os ao meu irmão, sabendo como ele os iria apreciar.
substância vermelha. Esses caracteres eram indeci‑ Estava completamente sozinha, consciente do parco
fráveis, mas assemelhavam-se a uma corruptela da ordenado daquele que era o meu único familiar, e,
escrita cuneiforme. embora tivesse vindo até Londres à procura de em‑
— Acredite que acho tudo isso imensamente prego, pensando que assim poderia remediar as des‑
interessante — disse Phillipps. — Não se importa de pesas, jurei que o faria apenas por um mês, e que,
prosseguir? A circunstância que acabou de mencio‑ se durante esse tempo não pudesse arranjar um em‑
nar parece-me bastante inexplicável e estou ansioso prego, preferiria passar fome do que importuná-lo,
para que me possa elucidar. pedindo-lhe as poucas libras que ele pusera de parte
A jovem senhora pareceu meditar por momen‑ para dias mais difíceis. Aluguei um modesto quarto
tos, e então começou a contar a… num subúrbio distante, o mais barato que consegui
encontrar. Vivia à base de pão e de chá, e passava o
Novela da Chancela Negra meu tempo em vão a responder a anúncios, e em
idas frustradas até locais onde me pudessem contra‑
Terei agora de lhe fornecer alguns pormenores acer‑ tar. Dia após dia, semana após semana, não conse‑
ca da minha história. Sou filha de um engenheiro guia arranjar nada, até que por fim o prazo que eu
civil chamado Steven Lally, que teve a infelicidade de dera a mim mesma se começava a esgotar, deixan‑
morrer no início da sua carreira, antes de ter assegu‑ do-me condenada à deprimente hipótese de morrer
rado os meios de subsistência para a mulher e para de fome. A minha senhoria era, de certo modo, uma
os seus dois filhos. pessoa bem intencionada, estava a par da óbvia es‑
A minha mãe conseguia gerir a nossa pequena cassez dos meus meios, e estou certa de que nunca
casa com um pecúlio que deve ter sido incrivelmen‑ me iria pôr na rua. Eu é que me deveria ir embora,
te reduzido. Vivíamos numa aldeia remota, porque a para tentar morrer discretamente. Estávamos então
maior parte das coisas de que necessitávamos eram no Inverno, e um nevoeiro espesso e branco surgia,
aí mais baratas do que na cidade, mas, mesmo assim, logo ao princípio da tarde, tornando-se mais denso à
fomos criados com o mais severo dos orçamentos. O medida que o dia ia passando. Era um domingo, ain‑
meu pai era um homem inteligente e dado à leitura, da me lembro, e as pessoas de casa tinham ido à mis‑
deixando-nos uma pequena mas bem seleccionada sa. Por volta das três da tarde saí, e comecei a andar
série de livros, que continha os melhores clássicos o mais rapidamente que podia, ainda que me sen‑
gregos, latinos e ingleses. Esses livros eram o nos‑ tisse fraca por nada ter comido. Essa névoa branca
so único divertimento. O meu irmão, tanto quanto envolvia todas as ruas num profundo silêncio, uma
posso recordar, aprendeu latim a ler as Meditationes camada gelada cobria os ramos das árvores, e cristais
de Descartes, e eu, em vez dos pequenos contos que de gelo brilhavam nas cercas de madeira dos jardins
as crianças geralmente lêem, não encontrei nada e pelo chão, nesse chão cruel por baixo dos meus
mais fascinante do que uma tradução da Gesta Ro- passos. Eu continuava a andar, voltando à esquerda
manorum. Assim fomos crescendo, como crianças e à direita, sem saber bem o que fazia, nem me im‑
pacatas e estudiosas e, com o passar dos tempos, o portar sequer com o nome das ruas, e, tudo de que
meu irmão conseguiu ganhar a sua vida, tal como me consigo lembrar dessa tarde de domingo me pa‑
lhe disse. Continuei a viver em casa. A minha pobre rece agora fragmentos soltos de um pesadelo. Com
mãe era então uma inválida, exigindo quase toda a uma visão confusa, seguia o meu caminho, através
atenção que eu pudesse dar, e, há cerca de dois anos de ruas meio citadinas e meio rurais, com áreas cin‑
faleceu, após meses de uma doença dolorosa. A mi‑ zentas que se esbatiam, do meu lado, nesse mundo
nha situação não poderia ter ficado pior. A velha nublado de penumbra; enquanto, no lado oposto da
mobília mal dava para pagar as dívidas, de modo rua, via vivendas confortáveis onde se vislumbrava o
que tive de procurar um emprego. Os livros enviei- clarão de lareiras iluminando as paredes… mas tudo

24
de uma forma irreal… Muros de adobe vermelho e um ar de comiseração estampado no rosto, mas an‑
janelas luminosas, vagas árvores e todo esse espaço tes que eu lhe pudesse balbuciar a minha completa
que mal podia distinguir, candeeiros a gás ante os ignorância acerca dessa zona, pois não fazia a míni‑
quais sombras brancas se esbatiam, a perspectiva de ma ideia onde me encontrava, ele falou:
linhas de eléctrico sob as plataformas de estações um — Minha cara senhora, parece estar muito afli‑
pouco mais acima, o verde e o vermelho dos semáfo‑ gida. Nem imagina como me assustou. Será que lhe
ros, tudo isso não passava de imagens momentâne‑ poderei perguntar a causa dos seus tormentos? Asse‑
as, adormecidas no meu cérebro cansado pela fome guro-lhe que poderá confiar em mim.
que então sentia. Uma vez por outra, ouvia um som — É muito simpático da sua parte — disse eu.
de passos sobre a linha-férrea, e havia homens que — Mas receio que já não haja mais nada a fazer. En‑
se cruzavam comigo, bem agasalhados, a estugarem contro-me num verdadeiro beco sem saída.
o passo para não arrefecerem e, sem dúvida, a an‑ — Não diga uma coisa dessas! É ainda muito
teciparem já os prazeres de um bom fogão de sala, nova para poder falar assim. Venha, andemos mais
onde haveria cortinas bem corridas sobre vidraças um pouco, e fale-me das suas dificuldades. Talvez eu
cobertas de gelo, e boas-vindas por parte dos ami‑ a possa ajudar.
gos. Porém, à medida que a tarde ia escurecendo e a Havia algo de muito calmo e persuasivo nos
noite se aproximava, havia cada vez menos pessoas seus modos e, enquanto íamos andando, resumi-lhe
no exterior, e eu passava por rua após rua sem ver a minha história e contei-lhe o desespero que quase
ninguém. Caminhava nesse silêncio branco, como me oprimira até à morte.
se percorresse os caminhos de uma cidade sepulta‑ — Não foi uma boa ideia ter desistido desse
da, e, à medida que ia ficando mais fraca e fatigada, modo… — observou ele, quando me calei. — Um
o meu coração enchia-se de medo da morte. De sú‑ mês é um espaço muito curto para nos podermos
bito, ao dobrar uma esquina, alguém se aproximou orientar em Londres. Esta cidade, deixe-me que lhe
de mim sob a luz de um candeeiro, e ouvi uma voz a diga, Miss Lally, não é um espaço aberto e sem de‑
perguntar-me se eu não me importava de lhe indicar fesas, é antes um lugar fortificado, com um fosso e
o caminho para a Avon Road. Chocada por esse ru‑ muralhas duplas cheias de intrincadas curiosidades.
mor de voz humana, senti-me a desfalecer, como se Tal como tem acontecido nas grandes urbes, as con‑
todas as minhas forças me abandonassem. Caí enro‑ dições de vida tornaram-se extremamente artificiais.
lada no passeio a soluçar e a rir numa acesa histeria. Não existe, contudo, nenhuma paliçada que possa
Saíra preparada para morrer e, depois de atravessar impedir um homem ou uma mulher de conquistar
a soleira da casa em que residia, tinha abandonado esta cidade, mas linhas cerradas de uma invenção
já todas as minhas esperanças e recordações. A por‑ subtil, minas e buracos que requerem uma estra‑
ta ribombou então por trás de mim como um tro‑ nha habilidade para que os possamos ultrapassar. A
vão, e eu senti que uma cortina de ferro acabara de menina, na sua simplicidade, pensava talvez que lhe
descer sobre a minha vida e que, daí em diante, teria bastaria gritar, para que todas essas muralhas se des‑
de continuar a caminhar num mundo de tristeza e fizessem em fumo, mas já vai longe o tempo para tais
de sombras. Entrara no palco do primeiro acto da vitórias. Não perca a coragem, em breve irá aprender
morte. Depois veio a minha errância pela neblina, os segredos do sucesso.
essa brancura que tudo envolvia, as ruas vazias, o si‑ — Infelizmente, caro senhor — respondi eu,
lêncio abafado, de modo que, quando essa voz me — não duvido que as suas conclusões possam estar
falou, era como se eu já tivesse morrido e voltasse à correctas, mas, presentemente, creio estar mesmo
vida. Em breves minutos, consegui dominar os meus a morrer de fome. Falou-me de um segredo… por
sentimentos e, ao levantar-me, vi que estava diante amor de Deus, diga-mo já, se é que sente alguma
de um homem de meia-idade, com boa aparência e pena por este meu estado de desespero.
impecavelmente vestido. Este olhou para mim com Ele riu-se, de um modo sincero. — É aí que re‑

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side a estranheza de tudo isso. Aqueles que conhe‑ secretária do que a simples governanta encarregada
cem o segredo não lho poderiam revelar, mesmo dos seus dois filhos e, durante muitas noites, sen‑
que quisessem. Trata-se, sem sombra de dúvida, de tei-me a uma escrivaninha, sob o quebra-luz de um
algo tão inefável como a doutrina central da Franco- candeeiro, enquanto ele, a andar de um lado para o
Maçonaria. Mas uma coisa lhe poderei dizer: que a outro, por entre as sombras diante da lareira, me ia
menina penetrou, pelo menos, a pele mais superfi‑ ditando as partes mais importantes do seu Manual
cial desse mistério. — E voltou a rir-se. de Etnologia. Contudo, por detrás desses estudos
— Por favor. Não brinque comigo — disse eu. mais exactos e concretos, sempre detectei que algo
— Que fiz afinal, que sais-je? Sou de tal modo igno‑ se escondia, a nostalgia e o desejo por um objecto ao
rante que nem sei sequer de onde irá vir a minha qual ele nunca aludira e, uma vez por outra, chegava
próxima refeição. a interromper o que me estava a ditar, para se entre‑
— Desculpe. Está a perguntar-me o que fez? gar ao devaneio, fascinado, segundo me parecia, pela
Encontrou-me! Vamos, deixemo-nos de rodeios. Já distante hipótese de uma aventurosa descoberta. Por
vi que é uma autodidacta, o que não é assim tão ter‑ fim, completou esse manual e começámos a receber
rível, e eu preciso de uma preceptora para os meus provas da tipografia, que me eram confiadas para
dois filhos. Sou viúvo há alguns anos, chamo-me uma primeira leitura, antes de serem submetidas à
Gregg. Estou a oferecer-lhe o emprego que mencio‑ revisão final do professor. Entretanto, o seu cansaço
nei, e digamos que… um salário de cem libras por em relação ao assunto em que presentemente estava
ano? mergulhado ia aumentando, e foi com o entusiasmo
Mal lhe pude articular os meus agradecimen‑ de um aluno num final de semestre que ele um dia
tos e, ao colocar-me nas mãos um cartão com a sua me estendeu um exemplar do livro.
morada e uma nota de banco, o Sr. Gregg despediu- — Ora aqui está — disse ele. — Mantive a mi‑
-se de mim, pedindo-me para o ir visitar dentro de nha palavra. Prometi escrevê-lo e ei-lo aqui. Agora
um ou dois dias. já terei a liberdade de poder viver para me dedicar a
Foi assim que conheci o Professor Gregg, e não coisas mais estranhas. Confesso-lhe, Miss Lally, que
lhe será difícil adivinhar que a memória dessa tem‑ invejo o renome de Colombo, e creia que ainda me
pestade fria, que quase me pusera às portas da morte, há-de ver, pelo menos assim o espero, no papel de
fez com que eu passasse a vê-lo como um segundo um explorador.
pai. Antes do final dessa semana, já eu tinha iniciado — Mas há muito pouca coisa para ser explo‑
as minhas tarefas. O professor arrendara uma velha rada — disse-lhe eu. — Creio que nasceu alguns sé‑
mansão de adobe vermelho, num subúrbio do Oeste culos tarde demais, para se entregar a uma aventura
de Londres, e foi aí, rodeada de agradáveis relvados e dessas.
pomares, por entre o calmo murmurar de velhos ul‑ — Receio bem que… esteja enganada — res‑
meiros cujos ramos se balanceavam sobre o telhado, pondeu ele, — ainda existem, não tenha a menor dú‑
que se iniciou um novo capítulo da minha vida. Co‑ vida, pequenas regiões por descobrir, e até continen‑
nhecendo, tal como é o caso, a ocupação do profes‑ tes de uma inusitada extensão. Ah, Miss Lally, acre‑
sor, não o irá surpreender o facto de a casa estar re‑ dite no que lhe digo! Vivemos no meio de símbolos
pleta de livros por toda a parte, e de armários cheios sagrados e de mistérios espantosos, e nem sequer
de estranhos objectos, hediondos até, que ocupavam temos a noção do que poderemos vir a ser. A vida,
todos os recantos nas enormes divisões do andar tér‑ pode acreditar, não é uma coisa simples, não é ape‑
reo. Gregg era um homem que apenas se entregava nas uma massa de matéria cinzenta e um amontoa‑
ao conhecimento, e eu, antes que me tivesse aperce‑ do de veias e de músculos, que poderão ser expostos
bido, sentia-me já contagiada pelo seu entusiasmo, com o auxílio de um bisturi cirúrgico. O homem é
ambicionando penetrar no espaço das suas apaixo‑ o segredo que eu estou em vias de explorar, e, antes
nadas pesquisas. Após alguns meses, era já mais sua mesmo de o poder descobrir, terei de atravessar ma‑

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res verdadeiramente encapelados, e oceanos e bru‑ indecifráveis num pedaço de pedra calcária; um ho‑
mas com vários milhares de anos. Deverá conhecer mem assassinado com o golpe de uma arma desco‑
o mito da perdida Atlântida… E se este for verdade e nhecida. É este o rasto que terei de investigar. Sim, tal
eu tiver sido escolhido para ser o descobridor dessa como a menina disse, poderá haver uma explicação
terra fantástica? absolutamente plausível para tudo isto. A rapariga
Apercebia-me de que uma grande excitação poderia ter fugido para Londres, para Liverpool, ou
parecia ferver sob as suas palavras e, no seu rosto, via para Nova Iorque; a criança poderá jazer no fundo
estampada a ânsia de um caçador. Ante mim estava de uma mina abandonada; e as letras gravadas nessa
um homem que acreditava ter sido chamado para pedra talvez não sejam mais do que o extravagan‑
travar combates com o desconhecido. Uma onda de te passatempo de um vagabundo. Sim, sim, admito
alegria invadiu-me, quando me dei conta de que es‑ tudo isso, mas sei que possuo a verdadeira chave.
taria, de certo modo, associada a ele nessa aventura, Veja! — e pegou então num papel amarelado.
e também eu me sentia imensamente entusiasmada Caracteres inscritos numa pedra calcária, en-
com a perspectiva de tais investigações, não tendo contrada nas Grey Hills, li eu, e em seguida reparei
sequer parado para considerar o facto de desconhe‑ que havia uma palavra que tinha sido apagada (tal‑
cer totalmente o que iríamos pôr a descoberto. vez o nome de um condado), e uma data de há quin‑
Na manhã seguinte, o Professor Gregg levou- ze anos. Por baixo via uma série de esquisitíssimos
-me até à parte mais recôndita do seu escritório, caracteres com a forma de cunhos e de punhais, tão
onde, alinhada contra a parede, havia uma série de estranhos e extravagantes como os do alfabeto he‑
pequenas gavetas, todas muito bem etiquetadas, que braico.
eram o resultado de anos de trabalho, classificado — Agora veja a chancela — disse-me o Pro‑
através dessa extensão relativamente pequena. fessor Gregg, passando-me para a mão um pedaço
— Aqui, está a minha vida — disse ele. — Aqui, de pedra negra, com cerca de cinco centímetros de
estão todos os factos que consegui reunir à custa de comprimento que terminava em algo semelhante a
tantos esforços, e contudo, tudo isto é coisa nenhuma. um calcador para o tabaco que se põe nos cachim‑
Quero dizer, nada que possa ser comparado com o bos, mas bastante maior. Tentei observá-lo à luz, e
que irei tentar alcançar. Veja… — e conduziu-me até vi, para minha grande surpresa, que essa chancela
uma velha escrivaninha, uma incrível peça de mo‑ continha os mesmos caracteres que eu já tinha visto
biliário, já um pouco gasta, que existia a um canto no papel.
dessa divisão. Ele rodou então a chave na fechadura — Sim — disse o professor, — são iguais, e
e abriu uma das gavetas. a inscrição nessa pedra calcária foi feita há quinze
— Alguns pedaços de papel — continuou ele, anos, com uma substância vermelha. Ora, os carac‑
apontando para essa mesma gaveta — e um peda‑ teres nessa chancela datam, pelo menos, de há qua‑
ço de pedra preta, rudemente talhada com umas tro mil anos. Talvez sejam mesmo mais antigos…
quantas marcas estranhas e alguns riscos. É tudo o — Será que tudo isto não passará afinal de uma
que esta gaveta contém. Aqui, poderá ver um enve‑ brincadeira? — perguntei.
lope com um carimbo vermelho de há já vinte anos, — Não, já tinha previsto essa hipótese. Nunca
mas eu anotei a lápis umas quantas linhas, no espa‑ iria dedicar a minha vida a uma simples brincadeira.
ço reservado ao remetente, e aqui poderá observar Tudo foi testado, com suficiente rigor. Só uma pes‑
alguns recortes de uns quantos jornais locais pouco soa, para além de mim, tem conhecimento da exis‑
conhecidos. Se me perguntar qual o tema desta co‑ tência dessa chancela. Além disso, existem outras
lecção, não lhe irá parecer nada de extraordinário: razões que não irei abordar de momento.
uma criada de quinta que desapareceu e nunca mais — Mas que quererá isto dizer? — perguntei.
foi vista; uma criança que teria escorregado junto a — Não estou a perceber a que conclusões tudo isso
umas velhas ruínas, na montanha; alguns escritos nos possa levar.

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— Minha cara Miss Lally, trata-se de uma ques‑ Detectei-lhe um certo brilho nos olhos, e adivi‑
tão para a qual não pretendo encontrar resposta tão nhei logo que essa mudança súbita estaria relaciona‑
depressa. Talvez eu nunca consiga vir a dizer que da com a nossa conversa de alguns dias atrás.
segredos aqui se escondem nem que solução. Por — Só irei levar uns quantos livros comigo
enquanto, apenas temos umas pistas vagas, um es‑ — disse o Professor Gregg. — É tudo. O resto fica‑
boço de tragédias de aldeia, algumas marcas feitas rá aqui até regressarmos. Tenho umas breves férias
com terra avermelhada numa pedra, e uma chancela — prosseguiu ele, sorrindo para mim, — e não irei
antiga. Uma série de dados bastante estranhos, meia lamentar perder algum tempo de volta das minhas
dúzia de provas, e vinte anos passados, antes mesmo velhas pedras, ossos e fragmentos sem importância.
que as pudesse recolher. Quem sabe que miragem Não sei se sabe — continuou ele, — mas há cerca de
ou terra icognita se poderá esconder por detrás de trinta anos que me tenho atido apenas a factos. Já é
tudo isto? Estou a tentar vislumbrar algo para além tempo de me entregar a fantasias.
das águas profundas, Miss Lally, e a terra que para lá Os dias passaram depressa e eu podia repa‑
delas se esconde poderá não passar de meras bru‑ rar que o professor quase tremia de uma excitação
mas, apesar de tudo. Todavia, creio não ser esse o reprimida, mas mal prestei atenção à ânsia que via
caso, e em alguns meses poderei provar se estarei ou nos seus olhos quando deixámos para trás essa velha
não na pista certa. mansão e iniciámos a nossa viagem. Saímos no co‑
Deixou-me então… e eu, ao ver-me ali sozi‑ meço da tarde e foi só ao pôr do Sol que chegámos
nha, decidi decifrar o mistério, reflectindo sobre a a essa pequena vila campestre. Estava cansada mas
solução a que todas essas excêntricas peças soltas sentia um grande entusiasmo, e o passeio através
poderiam conduzir. Eu própria não sou desprovida desses caminhos parecia-me um sonho. Primeiro,
de imaginação e tinha razões mais do que suficientes reparei apenas nas ruas sem ninguém do que julguei
para respeitar a solidez intelectual do professor, toda‑ ser uma aldeia, enquanto o Professor Gregg me ia fa‑
via, apenas poderia ver, nos conteúdos dessa gaveta, lando da Legião de Augusto, de combates, e de toda
pedaços de uma fantasia, e em vão tentava conceber a tremenda pompa que acompanhava as suas águias.
que teoria se poderia basear nesses fragmentos que Em seguida, vi um rio largo onde a maré tinha su‑
me tinham sido mostrados. De facto, com base em bido, reflectindo restos de um crepúsculo, ainda a
tudo o que vira e ouvira, poderia tão-só vislumbrar chamejar nas águas amareladas; os amplos prados;
o primeiro capítulo de um raro enredo. E no entanto, os campos onde o milho já secara; e essa vereda pro‑
bem no meu íntimo, ardia em curiosidade e, dia após funda, serpenteando pelas encostas, entre as colinas
dia, observava o rosto do Professor Gregg, tentando e a água. Por fim, começámos a subir e eu senti o
descobrir algum prenúncio do que iria acontecer. ar tornar-se mais rarefeito. Olhei para baixo e vi um
Foi um dia, após o jantar, que ele me comuni‑ nevoeiro cerrado por sobre a linha do rio, como uma
cou subitamente: mortalha, e toda uma vaga e sombria região. Imagi‑
— Espero que possa fazer todos os preparati‑ nei, encorajada pela minha fantasia, montes desco‑
vos necessários, sem grande incómodo. Partiremos munais e bosques suspensos, e contornos de colinas
dentro de uma semana. mais distantes. Lá muito ao longe, uma gigantesca
— Ah sim? — perguntei eu, muito admirada. fornalha ardia na montanha, à medida que pilares
— E para onde vamos? de chamas se iam reduzindo a um único ponto in‑
— Arrendei uma casa na parte Oeste de Ingla‑ cendiado. A nossa carruagem continuava a subir, e
terra, não muito longe de Caermaen, uma vila sosse‑ só então reparei no hálito fresco e secreto do grande
gada, que em tempos foi uma cidade que albergava bosque por cima de nós. Era como se me sentisse
uma legião romana. É um lugar muito monótono, flutuar nas suas mais profundas zonas, com o som
mas o campo é bastante agradável e o ar fresco não da água a correr, o odor das folhas verdes e o respirar
falta. dessa noite de Verão. Finalmente, a carruagem pa‑

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rou, e eu mal conseguia distinguir os contornos da das suas investigações e que a relação entre as mes‑
casa, enquanto esperava junto às colunas do alpen‑ mas e este lindíssimo vale é algo que eu não poderia
dre. O resto dessa noite pareceu-me um sonho reple‑ sequer imaginar.
to de coisas estranhas, rodeadas pelo amplo silêncio Sorriu então para mim, de um modo estranho.
do bosque, do vale e do rio. — Acha que estou a criar um mistério apenas por
Na manhã seguinte, quando acordei e olhei amor ao mistério? — perguntou. — Se não lhe con‑
através da janela saliente desse enorme e antiquado tei nada até agora é porque nada tenho para lhe con‑
quarto, vi sob um céu cinzento uma região que para tar, nada de definitivo, quero dizer, nada que se possa
mim ainda era um mistério. O longo e adorável vale, traduzir num objectivo preto no branco, tão maçador
onde rio serpenteava, lá muito em baixo, atravessa‑ ou inatacável como qualquer relatório parlamentar.
do a meio por uma ponte medieval de arcos empe‑ Para mais, tenho um outro motivo: há muitos anos,
drados, uma clara presença de terras na lonjura e os li um parágrafo num jornal que, por acaso, me cha‑
bosques que apenas entrevira em sombras, na noite mou a atenção, e me revelou, num breve instante, to‑
anterior, surgiam-me repassados de encantamento; e dos os pensamentos dispersos e fantasias ainda não
o movimento calmo do ar, que suspirava junto à jane‑ de todo formadas, com os quais, através de especula‑
la entreaberta, era para mim uma brisa desconhecida. tivas horas de ócio, tinha vindo a conceber toda uma
Olhei através do vale e para além deste, colina após hipótese. Vi logo que me embrenhava por caminhos
colina, como onda após onda, e aí, uma vaga voluta pouco seguros. A minha teoria era por demais fan‑
de fumo azulado elevava-se lentamente no ar da ma‑ tástica e pouco ortodoxa, e nunca me teria passado
nhã, desde a chaminé de uma casa cinzenta de quinta. pela cabeça escrever o menor resquício da mesma
Havia uma elevação irregular coroada de pinheiros para publicação. Porém, pensei que, na companhia
escuros e, na distância, dei-me conta do risco branco de cientistas como eu, homens que estavam bem fa‑
de uma estrada que trepava para depois desaparecer miliarizados com o método das verdadeiras desco‑
numa região inimaginável. Mas o limite de tudo aqui‑ bertas, já fartos de saber que o gás, que hoje em dia
lo era a grande muralha de montanhas, que se eleva‑ ilumina qualquer taberna, fora em tempos apenas
va a oeste e terminava numa fortaleza de escarpas e uma atrevida hipótese (digamos que, com homens
numa grande nuvem arredondada contra o céu. como esses, talvez pudesse vir a formular o meu so‑
Reparei no Professor Gregg, a andar de um nho. Por exemplo, a Atlântida, a pedra-filosofal ou
lado para o outro no terraço por baixo das janelas, outros assuntos semelhantes), sem recear expor-me
e era-me por demais evidente que se estava a deli‑ a ridículo. Mas logo me dei conta de que estava re‑
ciar com essa sensação de liberdade, e com a ideia de dondamente enganado. Os meus amigos olharam
se ter afastado, durante uns tempos, das suas tarefas intrigados uns para os outros e depois para mim, e
oficiais. Quando fui ter com ele havia uma exaltação eu pude adivinhar um certo laivo de comiseração,
na sua voz, enquanto apontava para esse pedaço de bem como um insolente desdém, nos olhares que
vale e de rio serpenteante sob essas belas colinas. trocaram. Um deles veio visitar-me no dia seguinte,
— Sim — disse ele, — é uma zona estranha e insinuando que eu deveria estar a sofrer de um es‑
lindíssima, que, pelo menos para mim, parece estar gotamento cerebral, provocado por um excesso de
repleta de mistério. Espero que não se tenha esque‑ trabalho. Para ser mais directo, perguntei-lhe: «En‑
cido da gaveta que lhe mostrei, Miss Lally… Pois… E tão acha que estou a enlouquecer? Acredite que não
creio que se apercebeu logo de que eu não vim para é essa a minha opinião» e conduzi-o até à porta, sem
aqui apenas preocupado com as crianças ou desejo‑ lhe insinuar sequer a minha revolta. Desde esse dia,
so de ar fresco… jurei nunca mais revelar o mais ínfimo pormenor
— Pelo menos, creio ter podido adivinhar o acerca da natureza da minha teoria, a quem quer que
que me acabou de dizer — respondi. — Mas deverá fosse. Apenas a si pude alguma vez mostrar os con‑
compreender que eu nem sequer conheço a natureza teúdos da minha gaveta. Apesar de tudo, posso estar

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apenas a perseguir um arco-íris e talvez tivesse sido duas crianças corriam em volta, à procura de bagas
enganado por toda uma série de coincidências, mas, que cresciam nas margens do rio. Aí, sob o céu azul
aqui onde me vê, embrenhado no místico murmúrio e o rolar de nuvens brancas, vindas do mar para as
do silêncio, entre bosques e colinas selvagens, estou colinas, como velhos galeões de velas enfunadas, es‑
mais seguro do que nunca de que existe realmente cutando os murmúrios do enorme e antigo bosque,
uma pista concreta. Venha, é já tempo de entrarmos vivia apenas para me deliciar, e só me lembrava de
em casa. coisas estranhas quando voltávamos para casa e en‑
Para mim, havia em tudo isso qualquer coisa contrávamos o Professor Gregg fechado na pequena
fantástica e fascinante. Sabia bem que, como nos seus divisão que ele transformara em escritório, ou então
escritos académicos, o Professor Gregg avançava a passear pelo terraço com o ar entusiasmado e pa‑
passo por passo, pondo mesmo em causa certos mo‑ ciente de um pesquisador decidido.
mentos do seu raciocínio, e nunca se aventurando a Numa manhã, oito ou nove dias depois da nos‑
conclusões que pudessem ser facilmente rebatíveis. sa chegada, olhei pela minha janela e vi toda a pai‑
Não obstante, podia intuir, mais pelo seu olhar do sagem a transformar-se diante dos meus olhos. As
que pela persistência do seu tom de voz, que ele pos‑ nuvens tinham descido e escondiam as montanhas
suía já a hipótese que sempre o motivara. E eu, que a oeste; um vento sul empurrava a chuva em longas
apesar da minha imaginação também tinha o meu cordas através do vale; e o pequeno riacho, que nas‑
lado de cepticismo, agudizado pela sugestão de um cia numa colina abaixo da casa, tinha agora uma tor‑
certo maravilhoso, não podia deixar de me pergun‑ rente avermelhada, que se apressava na direcção do
tar se ele se entregara a uma espécie de monomania, rio. Víamo-nos obrigados a ter de ficar agasalhados
abdicando desse modo do método científico que até em casa, e, depois de ter dado as lições aos meus alu‑
então norteara toda a sua vida. nos, sentava-me numa salinha em que os despojos
Contudo, apesar dessa imagem de mistério de uma biblioteca ainda ocupavam uma velha estan‑
que me assombrava os pensamentos, estava com‑ te. Inspeccionara já essas prateleiras, uma ou duas
pletamente rendida aos encantos da região. Por cima vezes, mas o conteúdo das mesmas não me atraíra.
dessa casa apagada, na vertente da colina, começava Volumes de sermões do século XVIII, um velho li‑
a encosta. Uma longa linha escura, que se poderia vro sobre o ofício de ferreiro, uma colecção de poe‑
observar das colinas adjacentes (estendendo-se por mas de «pessoas ilustres», a Connection de Prideau, e
muitas milhas, de norte a sul, e dando lugar a norte um velho volume de Pope eram tudo o que aí se en‑
a regiões ainda mais inóspitas, a colinas sem culti‑ contrava, e não tinha quaisquer dúvidas de que algu‑
vo e a abandonadas propriedades privadas), consti‑ ma coisa de mais valor ou de maior interesse já fora
tuía um território em tudo estranho e inóspito, tão daí retirada. Então, porém, talvez movida pelo tédio,
desconhecido para os ingleses como a África mais comecei a reexaminar essas bolorentas capas de cou‑
profunda. O espaço de alguns campos em socalcos ro e de carneira, encontrando, para minha grande
era a única coisa que separava a casa da floresta, e alegria, um velho in-quarto, impresso por Stephani,
as crianças deliciavam-se quando me seguiam por contendo os três livros de Pompónio Mela, De Situ
carreiros entre arbustos, ao longo de enlaçadas pa‑ Orbis, e outros de velhos geógrafos. Sabia latim su‑
redes de bétulas claras, até ao cume do bosque, onde ficiente para poder perceber as frases mais comuns,
poderíamos vislumbrar, por um lado e para além do e em breve fiquei entusiasmada por essa mistura de
rio, as várias elevações de terreno e a muralha mon‑ verdade e de fantasia: como a luz que brilhava num
tanhosa a oeste; e, por outro, a irrompente profusão pequeno espaço do mundo e, mais além, seria só
de miríades de árvores, sobre cumes aplainados, e o neblina e sombras e formas terríveis. Ao passar os
mar brilhante e amarelado na ténue costa muito ao olhos pelas páginas claramente impressas, a minha
fundo. Eu costumava então sentar-me sobre a relva atenção recaiu no título de um capítulo de Solinus,
quente que cobria a Estrada Romana, enquanto as onde li as seguintes palavras:

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MIRA DE INTIMIS GENTIBUS LIBYÆ, DE LAPIDE — Ah, Miss Lally — disse ele, — gostaria de po‑
HEXECONTALITHO, der contar com o auxílio dos seus olhos. Esta lupa é
bastante boa, mas não tanto como a que deixei em
ou seja, «Maravilhas das Gentes que Habitam as Par‑ casa. Importa-se de examinar isto e dizer-me quan‑
tes mais Profundas da Líbia, e Acerca da Chamada tos caracteres é que aqui consegue contar?
Pedra dos Sessenta.» Deu-me então o objecto que tinha na mão. Vi
Esse velho título atraía-me, e eu continuei a ler: que se tratava da chancela negra que ele me mostrara
Gens ista avia et secreta habitat, in montibus em Londres e senti que o meu coração começava a
horrendis, fœda mysteria celebrat. De hominibus nihil palpitar só de pensar que iria finalmente descobrir
aliud illi præferunt quam figuram, ab humano ritu alguma coisa. Peguei na chancela e, colocando-a sob
prorsus exulant, oderunt deum lucis. Stridunt potius a luz, examinei um por um esses caracteres grotescos
quam loquuntur; vox absona nec sine horrore auditur. em forma de punhal.
Lapide quodam gloriantur, quem Hexecontalithon — Conto sessenta e dois — disse-lhe, ao fim de
vocant; dicunt enim hunc lapidem sexaginta notas algum tempo.
ostendere. Cujus lapidis nomen secretum ineffabile — Sessenta e dois? Não, é impossível! Ah, já
colunt: quod Ixaxar. estou a ver o que fez, contou este e mais este — e
«Estas gentes» traduzi eu, «habitam em lugares apontou para duas marcas que eu julgara serem le‑
secretos e remotos e celebram revoltantes mistérios tras como as outras.
em horrendos montes. Nada em comum têm com — Sim, sim — continuou o Professor Gregg, —
os homens senão os seus rostos, os costumes da mas estas são obviamente riscos, sem conexão com o
humanidade são-lhes totalmente desconhecidos, e resto. Isso foi logo a primeira coisa em que reparei…
odeiam a luz do Sol. Ciciam em vez de falarem; as Sim… é mesmo isso… Muito obrigado, Miss Lally.
vozes são ásperas e não se podem ouvir sem desper‑ Já me estava a ir embora, bastante desapontada
tar medo. Vangloriam-se com uma certa pedra, que por me terem chamado apenas para contar o núme‑
eles chamam Pedra dos Sessenta, pois dizem que ela ro de marcas nessa chancela negra, quando de súbito
exibe sessenta caracteres. E essa pedra tem um nome me lembrei do que estivera a ler nessa manhã.
secreto e inefável, que é Ixaxar.» — Mas Professor Gregg — retorqui eu, quase
Ri-me ante a estranha inconsequência de tudo sem fôlego, — a chancela, a chancela… Trata-se da
isso, e achei que talvez essa passagem ficasse melhor pedra Hexecontalithos que Solinus mencionava, é a
em Sindebade, o Marinheiro, ou em outra das Noites pedra a que chamavam Ixaxar!
suplementares. Quando vi o Professor Gregg, du‑ — Sim — disse ele, — creio que seja mesmo
rante o dia, contei-lhe o que descobrira nessa estante essa pedra, ou então trata-se de uma simples coinci‑
e falei-lhe dos perfeitos absurdos que tinha estado a dência. Nunca será demais termos mesmo a certeza
ler. Para minha grande surpresa, ele olhou para mim quando se trata destas coisas. As coincidências po‑
com uma expressão de genuíno interesse. dem dar cabo de um professor…
— Isso é mesmo muito curioso — disse ele, Saí muito intrigada com o que acabara de ou‑
— nunca achei que valesse a pena pesquisar entre vir, mais do que nunca frustrada por não ter podi‑
os antigos geógrafos, e creio que perdi bastante. Ah, do encontrar a verdadeira chave para esse labirinto
esta é a passagem, não é? Lamento muito, mas irei de estranhos dados. O mau tempo durou mais três
ter de levar comigo este livro que tanto a estava a en‑ dias, mudando de aguaceiros fortes para um denso
treter. nevoeiro que tudo enchia de gotas de humidade.
No dia seguinte, o professor pediu-me que vies‑ Era como se nos tivessem encerrado no interior de
se até ao seu escritório. Vi-o sentado a uma mesa, uma nuvem branca que mantivesse o resto do mun‑
em frente da luz da janela, a escrutinar muito atenta‑ do bem longe de nós. Entretanto, o Professor Gregg
mente um objecto com uma lupa. continuava a desenvolver o seu obscuro trabalho no

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escritório, sem qualquer vontade, segundo me pare‑ agreste, e acabam por ser chamados «castiços», ou
cia, de entrar em confidências ou mesmo de falar, e algo desse género. Espero que não se importe se o
eu ouvia-o a caminhar de um lado para o outro, com moço que eu arranjar não for dos mais inteligentes.
passos nervosos, como se já estivesse cansado de Trata-se de um rapaz perfeitamente inofensivo, é
tanta inacção. Na quarta manhã já o tempo muda‑ claro, e, para engraxar botas, não lhe será necessário
ra, e estávamos sentados à mesa onde tomávamos o qualquer esforço mental.
pequeno-almoço quando o professor me disse brus‑ E ao dizer isso, desapareceu, pondo-se a cami‑
camente: nhar pela estrada que conduzia ao bosque, enquanto
— Precisamos de mais ajuda nesta casa, de eu ainda continuava embasbacada. Foi então que,
um rapaz de quinze ou dezasseis anos, não sei está pela primeira vez, ao meu espanto se juntou uma sú‑
a ver… Há muitas pequenas tarefas, que acabam por bita impressão de terror, vinda nem sei bem de onde,
tomar todo o tempo às criadas e que um rapaz pode‑ e totalmente inexplicável, mesmo para mim, apesar
ria fazer muito melhor. de ter sentido por momentos, no meu coração, algo
— Mas creia que as raparigas ainda não se semelhante ao frio da morte, assim como a sensação
queixaram — observei eu. — De facto, a Anne até de um medo ainda indefinível do desconhecido, bem
mencionou que aqui havia muito menos trabalho do pior do que a própria morte. Tentei ganhar coragem,
que em Londres, dado não haver tanto pó. respirando a brisa fresca que soprava do mar, e na
— Ah, sim, são raparigas muito dedicadas. Mas luz do Sol que se sucede à chuva; não obstante, esses
acho que poderemos usar a ajuda de um rapaz. De bosques místicos pareciam encher-se de penumbras
facto, é precisamente isso que me tem estado a preo‑ à minha volta, e a visão do rio, serpenteando entre os
cupar nestes últimos dois dias. caniços, e o cinzento-prata da velha ponte, desenha‑
— A preocupá-lo? — disse eu, muito admira‑ vam-me na mente símbolos de uma vaga e horrível
da, pois o professor nunca se interessara pelos assun‑ premonição, tal como a mente de uma criança ima‑
tos caseiros. gina coisas tenebrosas nos objectos mais inócuos e
— Sim — disse ele, — o tempo, não sei se está familiares.
a ver. Eu nunca poderia ter saído por esse nevoeiro Duas horas mais tarde, o Professor Gregg
escocês. Não conheço muito bem a região e perder- voltou. Encontrei-o quando ainda vinha a descer a
-me-ia com toda a facilidade. Mas esta manhã vou estrada e perguntei-lhe, com uma voz calma, se ele
ver se consigo arranjar um rapaz. tinha conseguido encontrar o tal rapaz.
— E como sabe se esse rapaz existe nestas ime‑ — Com certeza — respondeu-me. — Pude
diações? encontrar um sem qualquer dificuldade. Chama-se
— Sobre isso não tenho quaisquer dúvidas. Jervase Cradock, e espero que nos venha a ser mui‑
Terei apenas de andar dois ou três quilómetros, mas to útil. O pai dele já morreu há vários anos e a mãe,
tenho a certeza de que irei encontrar o moço de que com quem tive oportunidade de falar, pareceu-me
preciso. ter ficado muito contente, dada a hipótese de po‑
Pensei que o professor estivesse a brincar, mas, der receber alguns xelins a mais, todos os sábados
embora o seu tom fosse bastante casual, havia algo de à noite. Tal como eu previra, não é lá muito esperto
sombrio e vincado nas suas feições que me intrigou. e, por vezes, segundo o que mãe dele me disse, tem
Vi-o pegar na bengala e ficar de pé, junto à porta, ataques, mas também não lhe iremos confiar a lou‑
meditabundo. Quando voltei a passar pelo corredor ça, de modo que não terá importância, não acha? E
ele chamou-me. também não é nada daquilo a que poderíamos cha‑
— A propósito, Miss Lally, há uma coisa que mar um sujeito perigoso, não sei se está a ver, apenas
lhe queria dizer. Já deve ter ouvido falar, creio eu, do um pouco fraco…
facto de estes rapazes do campo não serem lá muito — E quando chega ele?
brilhantes. «Pacóvios» seria um termo demasiado — Amanhã de manhã, às oito. A Anne há-de

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informá-lo acerca das suas tarefas e do modo como Coch, encontrou-a toda enrolada nas Grey Hills, a
as desempenhar. A princípio regressará a casa ao fim gritar e a chorar como uma alma penada. E o Jerva‑
do dia, mas talvez se venha a tornar mais convenien‑ se nasceu oito meses depois e, tal como lhe estava a
te para ele dormir aqui, e apenas voltar a casa aos dizer, foi sempre um bocado esquisito. Até há quem
domingos. diga que, quando ele mal sabia andar, assustava as
Não havia nada que eu pudesse dizer acerca outras crianças com os ataques e com os seus guin‑
desse assunto. O Professor Gregg falava com um cal‑ chos roucos.
mo tom de certeza, como conviria a uma situação Uma palavra, nessa história, despertara-me
semelhante. Contudo, eu não conseguia dominar uma recordação e, com um ar de vaga curiosidade,
a minha sensação de espanto perante tudo aquilo. perguntei ao idoso onde eram as Grey Hills.
Sabia que, na realidade, não seria necessária mais — Lá para cima — disse ele, com o mesmo ges‑
ajuda no que dizia respeito à lida da casa, e o facto to que usara antes. — Terá de passar pela taberna Fox
de o professor me ter dito que o rapaz que ele iria & Hounds, e através da floresta e das antigas ruínas.
contratar era um pouco «simples», seguido por essa Fica bem a dez quilómetros daqui e é um lugar mui‑
mesma confirmação, pareceu-me extremamente bi- to estranho. Segundo dizem, é a terra mais árida en‑
zarro. Na manhã seguinte, a criada veio dizer-me tre Monmouth e este sítio, embora tenha boas pas‑
que o rapaz chegara às oito, e que ela ainda estava a tagens para os carneiros. Sim, foi uma coisa muito
tentar arranjar qualquer coisa que ele pudesse fazer. triste para essa pobre Sr.ª Cradock…
— Não me parece que seja lá muito certo da cabe‑ O idoso voltou ao seu trabalho e eu pus-me
ça, menina, — comentou ela e, mais tarde nesse dia, a andar pelo caminho, entre um renque de árvores
vi-o a ajudar o idoso que trabalhava no jardim. Era nodosas e retorcidas pela idade, a pensar na histó‑
um jovem com cerca de catorze anos, de olhos e ca‑ ria que acabara de ouvir e tentando encontrar nela o
belo negro, com uma tez morena, e vi logo, pela ex‑ pormenor, ou a chave, que despertara qualquer coisa
pressão vazia nos seus olhos, que ele teria uma certa na minha memória. De súbito, tudo se me tornou
deficiência mental. Quando passei por ele, tocou na claro. Tinha visto uma referência às «Grey Hills» no
testa de um modo curioso, e ouvi-o responder ao papel amarelado que o Professor Gregg retirara da
jardineiro com uma voz estranha e áspera, que me gaveta da escrivaninha. Uma vez mais, fui domina‑
chamou a atenção. Essa voz quase me pareceu a de da por sentimentos de medo e curiosidade. Lem‑
alguém que estivesse a falar desde as profundezas da brei-me dos estranhos caracteres, copiados da pedra
terra, e tinha algo de sibilino, como o restolhar de calcária e, de novo, das semelhanças destes com a
um fonógrafo, à medida que a agulha vai percorren‑ inscrição nessa antiquíssima chancela, bem como
do o cilindro. Pareceu-me estar ansioso por poder das fábulas fantásticas do geógrafo romano. Vi então
fazer o que lhe fosse possível, e era dócil e obediente. que, para além de quaisquer dúvidas, se a coincidên‑
Morgan, o jardineiro, que conhecia muito bem a mãe cia não tivesse construído todo esse cenário e não ti‑
dele, assegurou-me que esse rapaz nunca fizera mal vesse arranjado todos esses bizarros acontecimentos
a ninguém. — Ele é um bocado esquisito — disse- com uma certa arte, eu ainda me iria tornar numa
-me, — mas também não admira, se pensarmos em espectadora de coisas totalmente fora do vulgar e
tudo por que a mãe passou antes de ele nascer. Não das experiências mais rotineiras da vida. O Profes‑
cheguei a conhecer o pai muito bem, um tal Thomas sor Gregg, segundo me dava conta com o passar dos
Cradock, mas sei que era, sem dúvida, um excelen‑ dias, estava entusiasmadamente a seguir uma pista e
te trabalhador. Apanhou uma doença nos pulmões, a emagrecer de ansiedade. Ao entardecer, quando o
por ter de trabalhar na humidade dos bosques. Nun‑ sol flutuava no topo da montanha, era vê-lo a passe‑
ca se restabeleceu, e acabou por morrer num abrir ar pelo pátio, para cá e para lá, com os olhos postos
e fechar de olhos. E dizem que a Sr.ª Cradock quase no chão, enquanto a bruma ia alastrando pelo vale, a
enlouqueceu. De qualquer modo, o Sr. Hillyer, o Ty quietude da noite nos tornava próximas certas vozes

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distantes, e o fumo azul voluteava sobre as chaminés gritar, repetidamente, enquanto corria gelada de pa‑
facetadas da casa da velha quinta, tal como o tinha vor. Tinha visto o rosto do Professor Gregg, quando
visto, na primeira manhã em que aí chegara. Já lhe este se inclinou sobre o infeliz rapaz para o levantar,
confessei que eu era uma pessoa céptica e, embora e ficara estupefacta ante o brilho de exaltação que se
pouco ou nada compreendesse, comecei a encher- lhe parecia libertar de cada traço. Quando me sentei
-me de receio, recitando para mim mesma os repeti‑ no meu quarto, com as portadas fechadas e ambas as
dos dogmas da ciência, segundo os quais toda a vida mãos sobre os olhos, ouvi passos pesados no andar
é apenas material, e que, no sistema das coisas, já de baixo, e depois informaram-me de que o profes‑
não existe nada como uma terra ainda por descobrir, sor tinha levado Cradock para o seu escritório e fe‑
mesmo para além das mais remotas estrelas, onde o chado a porta à chave. Ouvi vozes como indistintos
sobrenatural ainda poderia encontrar uma certa ra‑ murmúrios, e tremia só de pensar no que poderia
zão de ser. Todavia, também me começava a intrigar estar a acontecer, a escassos metros do local onde me
o facto de a matéria poder ser, na realidade, tão mis‑ sentara. Estava ansiosa por poder fugir para os bos‑
teriosa e desconhecida como o espírito, e de a ciência ques e para a luz do Sol, e contudo, temia confron‑
apenas ter aflorado a sua verdadeira natureza, tendo tar-me com alguma visão terrível. Por fim, quando
obtido unicamente um vislumbre das suas mais in‑ já rodava nervosamente a maçaneta da porta, ouvi
ternas maravilhas. a voz do Professor Gregg que me chamava com um
Um dia, porém, destaca-se entre os outros, tom de animada boa-disposição. — Já está tudo re‑
como um sombrio farol avermelhado, anunciando solvido, Miss Lally. O pobre rapaz já se restabeleceu,
uma maldade vindoura. Estava sentada num banco e já fui tratar das coisas para que ele possa dormir
do jardim, a ver o rapaz Cradock a mondar os can‑ aqui a partir de amanhã. Talvez eu o possa ajudar…
teiros, quando fui subitamente surpreendida por um — Sim — disse ele mais tarde, — foi uma coisa
ruído áspero e cavo, semelhante ao uivo desespera‑ horrível de se ver, e não me admiro nada que se ti‑
do de um animal selvagem, e fiquei chocada e quase vesse assustado. Esperemos que uma boa alimenta‑
sem fala, quando vi o infeliz rapaz, de pé, diante de ção lhe possa dar mais forças, mas receio que nunca
mim, com o corpo todo a tremer e convulso, em es‑ se possa curar completamente… — E adquiria essa
pasmos intervalados, como se uma corrente eléctrica triste expressão convencional de desapontamento,
lhe estivesse a percorrer o corpo, fazendo-o ranger que geralmente se assume sempre que se fala de uma
os dentes e deitar espuma pela boca, enquanto no doença incurável. No entanto, bem por baixo de tudo
rosto se lhe desenhava uma horrível máscara de hu‑ isso, podia aperceber-me de uma alegria interior que
manidade. Dei um grito de terror, o Professor Gregg não ousava encontrar um modo de se exprimir. Era
veio logo a correr e, assim que consegui apontar para como se olhássemos para a superfície transparente
o rapaz, vi que este acabara de cair para a frente e e plana do mar e víssemos, nas suas profundidades
estava agora estendido na terra húmida, ondulando revoltas, uma tempestade de vagas procelosas. Para
como um verme cego, com uma série de ruídos, ci‑ mim, tornava-se um problema premente e angus‑
cios e sons incompreensíveis a saírem-lhe dos lábios. tiante, que esse homem, que me tinha tão bondosa‑
Era como se ele vomitasse uma linguagem infame, mente salvado dos rigores da morte e se mostrava
com palavras, ou com o que me pareceu serem pa‑ em todos os aspectos da vida tão cheio de piedade,
lavras, que poderiam ter pertencido a uma língua há benevolência e premeditada brandura, estivesse, pela
muito morta e profundamente enterrada nas lamas primeira vez, tão obviamente do lado dos demónios,
do Nilo ou nos recessos mais escondidos de uma flo‑ a ponto de obter um prazer mórbido com as aflições
resta mexicana. Por momentos, aflorou-me um pen‑ de uma pobre criatura. Para além disso, debatia-me
samento, ao sentir os meus ouvidos ainda revolta‑ com uma dificuldade espinhosa, tentando encontrar
dos por esse clamor infernal. — Decerto, trata-se da uma solução; mas, sem que pudesse seguir qualquer
própria linguagem do Inferno… — e depois voltei a pista, sentia-me rodeada pelo mistério e pela contra‑

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dição. Não descobria nada que me pudesse ajudar, e e das antigas tradições desse local. Os seus modos
comecei a pensar se, afinal, não iria pagar bem caro o simpáticos, com uma certa estranheza contida, em
facto de me ter escapado ao nevoeiro dos subúrbios. breve conquistaram o Professor Gregg e, pela altura
Dei a entender ao professor alguns destes meus pen‑ em que os queijos foram servidos, quando um raro
samentos, pelo menos não lhe ocultei o meu estado vinho da Borgonha já começava a exercer a sua ma‑
de completa perplexidade, porém, no momento se‑ gia, os dois homens entusiasmaram-se, talvez devido
guinte, lamentei logo essa minha atitude, ao ver o seu a essa bebida, e começaram a falar de filologia com o
rosto contorcer-se com um espasmo de dor. interesse que um burguês poria na obtenção de um
— Minha cara Miss Lally — disse ele, — de cer‑ título nobiliário. O prior começara a elaborar acerca
to não estará a planear deixar-nos. Não, não, nunca da pronúncia das consoantes duplas galesas, e a pro‑
poderia fazer uma coisa dessas. Desconhece até que duzir sons semelhantes ao gorgolejar dos seus ribei‑
ponto eu conto consigo, como continuo a prosseguir ros, quando o Professor Gregg o interrompeu:
as minhas investigações com toda a confiança, saben‑ — A propósito — disse ele, — no outro dia
do que se encontra aqui, para tomar conta dos meus deparei-me com uma palavra muito estranha. Co‑
filhos. Acredite, Miss Lally, que é a minha guarda- nhece o meu ajudante, o pobre Jervase Cradock?
costas, pois deixe-me que lhe diga que os assuntos Ele tem o mau hábito de falar alto consigo mesmo e,
em que me encontro envolvido não são de todo des‑ anteontem, estava eu a passear pelo jardim, quando
providos de perigo. Creio que ainda não se esqueceu o ouvi. É claro que ele nem sequer se apercebeu da
do que eu lhe disse, na primeira manhã em que aqui minha presença. Não consegui decifrar muitas das
chegámos: que os meus lábios permanecem fecha‑ coisas que ele disse. Os sons eram tão estranhos…
dos por uma antiga e firme resolução, até se pode‑ meio sibilantes, meio guturais, e tão curiosos, com
rem abrir, não para pronunciarem uma engenhosa esses l duplos de que me tem estado a falar. Não sei
hipótese ou uma vaga conjectura, mas factos irrefra‑ se poderei dar-lhe uma ideia desse som, «Ishakshar»
gáveis, tais como os que se demonstram através da é talvez a forma mais aproximada que conseguirei
matemática. Pense melhor, Miss Lally, pois nem por pronunciar. Mas esse k deveria ser um chi grego ou
sombras me passa pela cabeça mantê-la aqui contra semelhante ao j espanhol. Que quererá isso dizer em
as suas próprias impressões mais pessoais. Contudo, galês?
permita-me dizer-lhe que estou persuadido de que é — Em galês? — perguntou o prior. — Não
aqui, entre estes bosques, que residem os seus deve‑ existe tal palavra em galês, nem outra palavra que
res mais importantes. remotamente se lhe assemelhe. Estou familiarizado
Fiquei comovida com a eloquência das suas com o galês literário, como geralmente é designado
palavras, e ao lembrar-me de que esse homem, ape‑ e, tal como outras pessoas, com os dialectos mais co‑
sar de tudo, tinha sido a minha salvação, apertei na loquiais, mas essa palavra não existe, pelos menos de
minha a sua mão, prometendo servi-lo de uma for‑ Anglesea a Usk. Para além disso, nenhum dos Cra‑
ma leal e sem mais hesitações. Alguns dias depois, o dock conhece uma única palavra de galês, a língua
prior da nossa igreja (uma pequena construção cin‑ encontra-se praticamente morta nesta região.
zenta, severa mas acolhedora, situada sobre a mar‑ — Acha que sim? Tudo o que diz me interessa
gem do rio, diante do movimento das marés) veio bastante, Sr. Meyrick. Confesso que a palavra tam‑
visitar-nos, e o Professor Gregg não teve dificuldade bém não me pareceu galesa, mas pensei tratar-te tal‑
em persuadi-lo para que ficasse mais tempo e jan‑ vez de uma corruptela local.
tasse connosco. O Sr. Meyrick pertencia a uma velha — Não, de facto nunca ouvi essa palavra nem
família de proprietários rurais, cuja mansão se situ‑ nenhuma outra semelhante — acrescentou ele, sor‑
ava entre as colinas, a cerca de treze quilómetros de rindo enigmaticamente. — Se pertence a alguma
distância. Há muito enraizado nessa região, o prior língua, só se for à das fadas, o Tylwydd Têg, como
era uma testemunha viva dos costumes desusados geralmente é designada.

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A conversa prosseguiu em torno da descober‑ nessa mesma noite. Mas creio que estarei a perder o
ta de uma villa romana nas imediações. Mais tarde, meu tempo. Já não tenho muito mais que fazer aqui,
abandonei a sala e sentei-me sozinha para meditar e creio que deverei regressar à cidade dentro de três
melhor nessas estranhas pistas. Quando o professor semanas, pois tenho uma série de lições a preparar e
mencionara essa palavra curiosa, reparei como os preciso de aceder a todos os meus livros. Alguns dias
seus olhos brilhavam na minha direcção e, embora a mais, e tudo terá terminado. Então já não terei de
pronúncia que ele sugerira me parecesse por demais recorrer a insinuações, ou ser ridicularizado como
grotesca, reconheci a palavra que constava na pedra um louco ou um intrujão. Não, poderei falar aber‑
com sessenta caracteres, mencionada por Solinius, tamente, e hei-de ser ouvido com a emoção que tal‑
a chancela negra, fechada em alguma gaveta secreta vez nenhum outro homem tenha conseguido captar,
do seu escritório, para sempre por uma raça extinta dada a estupidez dos seus colegas.
com traços que nenhum ser humano conseguia ler, Fez uma pausa, e parecia estar cada vez mais
traços que poderiam, tanto quanto me poderia aper‑ radiante perante a alegria de uma grande e admirá‑
ceber, constituir o véu de horríveis feitos praticados vel descoberta.
num tempo imemorial, e esquecido desde a altura — Mas tudo isso será ainda num futuro, num
em que as colinas tinham começado a tomar forma. futuro próximo, bem sei, mas num futuro — conti‑
Quando desci, na manhã seguinte, encontrei o nuou ele. — Há ainda algumas coisas a fazer. Lem‑
Professor Gregg no pátio, numa das suas exaltadas bra-se de eu lhe ter dito que as minhas pesquisas não
deambulações. eram totalmente isentas de perigo? Sim, terei ainda
— Repare na ponte — disse ele, logo que me de enfrentar algo perigoso, que nem sequer imagi‑
viu, — repare na beleza do seu desenho gótico, nos nava, ao falar anteriormente sobre o assunto que, até
ângulos entre os arcos, e no tom prateado das suas certo ponto, ainda ignoro. Mas tratar-se-á de uma
pedras cinzentas sob a luz da manhã. Confesso-lhe estranha aventura, da derradeira, do último elo de‑
que me parece quase simbólica, que deveria ilustrar monstrativo de uma cadeia.
a alegoria mística da passagem de um mundo para Percorria a sala, de um lado para o outro, à
outro. medida que ia falando, e eu podia ouvir, na sua voz,
— Professor Gregg — disse eu, cheia de calma, inflexões conflituosas de exaltação e desânimo, ou
— já é tempo que eu saiba alguma coisa acerca do talvez devesse dizer de espanto, do espanto e do res‑
que se tem estado a passar, ou do que ainda poderá peito de um homem que se aventurasse por águas
acontecer. desconhecidas. Pensei então na sua alusão a Colom‑
Durante alguns momentos, tentou ignorar essa bo, no dia em que ele colocara o livro diante de mim.
minha observação, mas tornei a fazer-lhe a mesma O fim de tarde foi um pouco frio, e tinham acendido
pergunta ao fim da tarde, e reparei que o professor grossos troncos numa lareira, no escritório em que
exultava de entusiasmo. — Então ainda não perce‑ nos encontrávamos. As chamas remitentes, e o seu
beu? — perguntou ele, quase a gritar. — Mas já a in‑ reflexo pelas paredes, recordavam-me os velhos tem‑
formei de muitas coisas. Sim, e também já lhe mos‑ pos. Estava sentada em silêncio, num cadeirão junto
trei muitas outras. Creio que terá ouvido quase tudo ao lume, meditando em tudo o que acabara de ouvir,
o que sei, e que viu o que eu vi, ou, pelo menos… ainda a especular em vão nas fontes secretas que me
— e o seu tom de voz tornou-se de súbito mais sério, tinham sido ocultadas sob toda a fantasmagoria que
— o suficiente, para que tudo se lhe torne claro como testemunhara, quando, repentinamente, me dei con‑
água. As criadas disseram-lhe, não duvido, que esse ta da sensação de que uma certa mudança se ope‑
infeliz rapaz teve outro ataque, anteontem à noite. rava já nessa sala, pois havia algo de pouco familiar
Acordou-me aos gritos, com essa voz que a meni‑ no seu aspecto. Durante alguns momentos olhei em
na ouviu no jardim. Eu fui ter com ele, e graças a volta, tentando, sem grande sucesso, identificar a al‑
Deus, ainda bem que nunca chegou a ver o que eu vi, teração que sabia ter ocorrido, mas a mesa junto à ja‑

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nela, as cadeiras, o canapé desbotado permaneciam que me pudessem dar uma resposta, e pensando no
tal como eu sempre os conhecera. Então, tal como pélago de escuras águas que pudesse estar relaciona‑
um esforço de memória nos irrompe de súbito no do com a trivial mudança desse ornamento. «Trata-
cérebro, dei-me conta do que mudara. Encontrava- se de um assunto sem importância em que me pus a
me em frente da secretária do professor, que estava pensar» reflecti, «talvez o professor tenha escrúpulos
do outro lado da lareira, e, por cima da mesma, via ou seja supersticioso em relação a certas banalidades,
um sombrio busto de Pitt, em que nunca antes repa‑ e quem sabe se a minha pergunta lhe teria desperta‑
rara. Só então me recordei da posição inicial dessa do receios que ele não se dignasse admitir, como se
obra de arte. No canto mais afastado, junto à porta, tivéssemos esmagado uma aranha ou entornado sal
havia um armário saliente e, no topo do mesmo, a diante de uma mulher escocesa.» Estava já imersa
quatro metros e meio do chão, estava o busto, e aí nesses pensamentos, começando a elogiar a minha
sem dúvida permanecera, acumulando pó desde o imunidade a tais receios, quando a verdade se abateu
início do século. pesada como chumbo sobre o meu coração e eu re‑
Estava completamente surpresa, e permaneci conheci, não sem um temor que me causou arrepios,
em silêncio, numa confusão de pensamentos. Não que alguma terrível influência exercera o seu poder.
existia, tanto quanto me apercebera, nenhum esca‑ O busto era simplesmente inacessível. Sem um esca‑
dote nessa casa, pois eu pedira um para fazer umas dote, ninguém lhe poderia ter pegado.
quantas alterações nas cortinas do meu quarto, e, de Fui até à cozinha, e falei o mais baixo que pude
qualquer modo, um homem alto, em cima de uma com a criada.
cadeira, nunca teria conseguido retirar esse busto do — Quem mexeu no busto que estava em cima
lugar em que se encontrava. Este fora colocado, não do armário, Anne? — perguntei-lhe. — O Professor
à beira do topo do armário, mas bastante mais re‑ Gregg disse-me que não lhe tocou. Será que encon‑
cuado, junto à parede. Para mais, o Professor Gregg traram algum velho escadote em algum dos arru‑
não era de modo algum um homem alto. mos?
— Mas como é que conseguiu mudar o busto A rapariga olhou para mim, sem qualquer ex‑
de Pitt? — perguntei-lhe, por fim. pressão no rosto.
O professor encarou-me de um modo curioso, — Eu nunca lhe mexi — disse ela. — Encon‑
parecendo hesitar um pouco. trei esse busto no lugar em que agora está, numa
— Será que lhe arranjaram um escadote? Tal‑ destas manhãs, quando lá fui limpar o pó. Agora me
vez o jardineiro lhe tivesse trazido um do jardim… lembro, foi na quarta-feira, pois recordo-me de que
— Não, nunca tive qualquer tipo de escadote. o Cradock se tinha sentido mal durante a noite. O
Bem, Miss Lally… — continuou ele, pretendendo meu quarto é mesmo ao lado do dele, não sei se a
desajeitadamente fazer um certo humor, — eis algo menina está a ver… — A rapariga continuou então
que talvez a possa intrigar, um problema à manei‑ a falar, de um modo muito compungido: — Foi uma
ra do inimitável Holmes. Os factos existem, claros e coisa horrível de se ouvir… Como ele gritou e disse
revelados. Veja se consegue descobrir a solução des‑ coisas que eu nem conseguia perceber… Deu-me cá
se enigma… Por amor de Deus — disse então, com um medo… E depois veio o senhor e eu ouvi-o falar,
uma voz insegura, — não me diga mais nada acerca levou o Cradock até ao escritório e deu-lhe qualquer
desse assunto! Posso jurar-lhe que nunca lhe toquei. coisa…
— E saiu da sala, com uma expressão de horror bem — Então encontraste o busto mudado de sítio
visível no rosto e, com as mãos ainda a tremerem, na manhã seguinte?
fechou a porta atrás de si. — Sim, menina. Havia um cheiro esquisito
Olhei em volta da sala, com um vago senti‑ no escritório quando eu desci para abrir as janelas,
mento de surpresa, sem sequer me dar conta do que um cheiro horrível, que até me perguntei o que po‑
acontecera, aventando toda a espécie de conjecturas deria ser. Sabe, menina, aqui há já muito tempo fui

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ao Jardim Zoológico de Londres com o meu primo que, apaziguada pelo senso comum, tentei fortificar
Thomas Barker, numa tarde em que estava de folga, a minha crença na ordem natural das coisas, pois o ar
quando ainda servia em casa da Sr.ª Prince, em Sta‑ que soprava pela janela aberta era um hálito místico
nhope Gate, e fomos até uma casinha envidraçada e, na escuridão, senti que o silêncio se tornava mais
ver as cobras, e posso jurar-lhe que esse cheiro era pesado e doloroso, como uma missa de requiem,
o mesmo. Ainda me lembro de me ter sentido ago‑ onde imaginava imagens com estranhas formas, que
niada, e pedi logo ao Barker para nos irmos embora. se juntavam entre os caniços junto ao murmúrio do
Foi esse o cheiro que senti no escritório e, como lhe rio.
estava dizer, pus-me logo a pensar de onde poderia Logo de manhã, desde que entrei na sala onde
ter vindo. Eis senão quando dou de caras com o bus‑ tomávamos o pequeno-almoço, senti que esse enre‑
to, em cima da secretária do patrão, e pensei: «Quem do desconhecido se aproximava de um impasse. O
teria feito uma coisa destas e como é que o poderiam professor mostrava um rosto fechado e impassível,
ter feito?» e quando fui limpar o pó, reparei no busto, como se mal parecesse ouvir as nossas vozes quando
e vi nele uma grande marca, onde a poeira e a sujida‑ falávamos.
de tinham já desaparecido, pois creio que ninguém — Irei sair para uma longa caminhada — disse
o tinha limpo durante anos e anos. E olhe que não ele, logo que acabámos a refeição. — Não deverão fi‑
eram marcas de dedos, mas uma grande mancha, car à minha espera, reparem, ou pensar que alguma
larga e espalhada. De modo que passei a mão por coisa aconteceu se não me virem à hora de jantar.
ela, sem mesmo me dar conta do que estava a fazer, Tenho vindo a tornar-me estúpido, ultimamente, e
e essa mancha era pegajosa e escorregadia, como se creio que uma boa caminhada, ainda que não muito
os caracóis tivessem passado por ela. É tudo muito longa, só me poderá fazer bem. Talvez passe mesmo
estranho, não acha, menina? E sei lá eu quem a fez, a noite em qualquer estalagem, caso encontre um lo‑
ou como isso foi feito… cal que me pareça limpo e confortável.
O palavrear bem-intencionado da criada im‑ Ao ouvir isso, soube logo, baseada no meu co‑
pressionou-me muito. Estendi-me na cama e mordi nhecimento acerca dos hábitos do Professor Gregg,
os lábios, para que ninguém me ouvisse chorar, tal que não o movia o desejo de um mero passeio re‑
era a viva angústia do meu terror e da minha confu‑ creativo. Não sabia, nem poderia sequer adivinhar
são mental. De facto, estava quase louca de pânico. para onde se dirigia, nem tinha a mais vaga noção
Acreditava que, se fosse ainda de dia, teria fugido a acerca do seu objectivo, mas todos os receios da noi‑
pé sem que ninguém disso se apercebesse, atirando te anterior me dominaram, e, ao vê-lo de pé e a sorrir
para trás das costas toda a minha coragem e a minha no pátio, já pronto para a jornada, pedi-lhe encare‑
dívida de gratidão para com o Professor Gregg, sem cidamente que ficasse e se esquecesse do continente
me importar sequer se o meu destino seria morrer desconhecido.
lentamente de inanição, desde que me pudesse es‑ — Não, não, Miss Lally — retorquiu ele, ainda a
capar dessa teia de medo cego e de pânico que, com sorrir, — agora já é tarde. Vestigia nulla retrorsum12 é,
o passar dos dias, se parecia estreitar à minha volta como deverá saber, a divisa de todos os verdadeiros
cada vez mais. Se ao menos soubesse, pensei, se sou‑ exploradores, embora eu espere que, no meu caso,
besse o que deveria recear… poder-me-ia proteger não se venha a transformar numa verdade literal.
dessa ameaça. Porém, ali, nessa casa solitária, cerca‑ Mas, repare, que não tem razão para se preocupar
da por todos os lados por um bosque envelhecido, e tanto. Esta minha pequena expedição não tem nada
por colinas semelhantes a criptas funerárias, o ter‑ de especial, não mais do que a de um dia excitan‑
ror parecia irromper sem tréguas, chegando-me dos te, na companhia de martelos geológicos. Há sem‑
locais mais insuspeitos, arrepiando-me a pele, com pre um risco, é claro, tal como na mais comum das
pressentidas insinuações de coisas terríveis. Foi em passeatas. Sou um homem desenvolto e não irei fa‑
vão que tentei convocar todo o meu cepticismo, e zer nada tão arriscado como «Arry possa fazer cem

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vezes quando os Bancos estão fechados. Bem, então sa para si, ontem de manhã, antes de partir, e dis‑
terá de parecer mais entusiasmado, e até amanhã o se-me para não lha dar antes das oito da noite em
mais tardar.» ponto, caso ele ainda não tivesse regressado a casa,
Começou, estugando o passo, a subir a estrada, pois, caso o tivesse feito, teria de lha devolver nas
e vi-o abrir a cancela que marcava o início do bos‑ suas próprias mãos. De modo que, não sei se está a
que. Depois desapareceu, por entre a penumbra das ver, como o Professor Gregg ainda não voltou, acho
árvores. que terei de lhe dar este envelope, pessoalmente.
O dia pareceu-me pesado e estranhamente Retirou um embrulho do bolso e passou-mo
sombrio e, uma vez mais, me senti aprisionada no para a mão, levantando-se ligeiramente. Recebi-o
meio da antiga floresta, fechada numa velha terra de sem comentários e, reparei que Morgan não sabia o
terror e de mistério, como se tudo se tivesse passado que deveria fazer a seguir. Agradeci-lhe e desejei-lhe
há já muito tempo e o mundo exterior nos tivesse as boas-noites, antes de ele nos deixar. Fiquei sozinha
esquecido. Tinha esperanças e receios e, quando nessa sala, com essa encomenda nas mãos, impeca‑
chegou a hora de jantar, fiquei à espera, ansiando velmente selada e dirigida a mim, tal como Morgan
por ouvir no vestíbulo os passos do professor, e a sua me dissera, escrita pela caligrafia solta do professor.
voz exultando sei lá bem que triunfo… Já desenhara Quebrei-lhe o selo de lacre, com um baque no co‑
uma expressão de rosto para o acolher, mas a escuri‑ ração, e, lá dentro encontrei um outro envelope por
dão da noite descera já, e ele não regressava. fechar, também dirigido a mim, onde numa carta se
De manhã, quando a criada me bateu à por‑ dizia:
ta, chamei-a para lhe perguntar se o senhor já tinha
chegado, e quando ela me disse que a porta do seu Minha Querida Miss Lally (assim começava).
quarto vazio ainda estava aberta, senti o frio abraço Para citar o velho Manual de Lógica, a leitura desta
do pesadelo. Todavia, ainda me passava pela cabe‑ nota dever-se-á a um erro que, sem dúvida, cometi.
ça que ele tivesse encontrado boa companhia e que Receio que se trate de um erro que transforme esta mi-
talvez viesse almoçar, ou, quem sabe, aparecesse à nha nota numa espécie de despedida. Quase poderia
tarde, e levei as crianças a passear pela floresta, ten‑ jurar que a menina, e quem quer que seja, não me vol-
tando rir-me e brincar com elas o melhor que po‑ tarão a ver mais. Já fiz o meu testamento, onde inseri
dia, evitando desse modo os meus pensamentos de algumas cláusulas, pensando já nessa eventualidade,
mistério e de terror velado. Esperei hora após hora, e espero que consinta aceitar esta pequena oferta, que
e esses meus pensamentos tornaram-se mais depri‑ lhe dirijo, e os meus mais sinceros agradecimentos,
mentes. Veio a noite e eu ainda estava à espera e, por dado o modo como juntou ao meu o seu destino. O
fim, quando já estava a acabar de jantar e entusias‑ que me coube é desesperado e tremendo, e bem para
mada numa grande conversa, ouvi passos lá fora e além dos sonhos mais remotos da humanidade. Mas
uma voz masculina. trata-se de um destino que terá todo o direito de co-
A criada entrou na sala e olhou para mim de nhecer, se não se importar. Se olhar para o interior da
um modo estranho. — Por favor, menina — assim gaveta esquerda da minha cómoda, irá encontrar nela
começou, — o Sr. Morgan, o jardineiro, quer falar a chave do meu escritório, devidamente etiquetada.
consigo. Não irá demorar nada, se não se importa. Na gaveta falsa da minha escrivaninha está um grosso
— Manda-o entrar, por favor — disse eu, quase envelope selado, com o seu nome. Recomendo-lhe que
sustendo a respiração. o atire sem hesitação para o lume, pois irá dormir me-
O idoso entrou devagar na sala, e a criada vol‑ lhor se assim o fizer. Todavia, deverá tomar conheci-
tou então a fechar a porta. mento de tudo o que se passou, de modo que o escrevi,
— Queira sentar-se, Sr. Morgan — disse eu, para que o possa ler.
— então, que pretende dizer-me?
— Bem, menina, o Sr. Gregg deu-me uma coi‑ A assinatura, mais abaixo, revelava uma cali‑

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grafia segura e, uma vez mais, olhei para a página das raças celtas. Neste caso, julguei detectar um certo
para ler cada palavra, uma a uma, aterrada e com os exagero e uma certa margem de elaboração estética,
lábios já brancos, com as mãos geladas e esse senti‑ nos trajos fantásticos, nesse povo pequeno vestido de
mento doentio que me parecia estrangular. Senti a verde e dourado, gozando a companhia das flores, e
opressão do silêncio absoluto desse quarto, tal como pensei ter descoberto uma analogia específica entre
a dos escuros bosques e das colinas que me cercavam o nome dado a essa raça (supostamente imaginária)
por todos os lados. Senti-me sozinha e indefesa, sem e a descrição dos seus modos e aparência. Tal como
saber para onde me voltar. Por fim, resolvi que, em‑ os nossos antepassados tinham chamado a esses
bora o conhecimento devesse orientar toda a minha seres «fadas» e «génios bons», precisamente por os
vida nos dias vindouros, que me deveria aperceber temerem, também os tinham vestido de um modo
do significado desses indizíveis medos que há muito encantador, ainda que soubessem que a verdade se‑
me atormentavam, cinzentos, vagamente esboçados ria exactamente o contrário. A literatura também
na sua mais hedionda forma, como as sombras no começara a trabalhar desde muito cedo, e ajudara
bosque ao entardecer. Segui, cuidadosamente, as bastante, no que se prendia com essa transformação,
instruções do Professor Gregg, e não foi sem uma de modo que os elfos brincalhões de Shakespeare
certa relutância que quebrei o selo desse envelope, já se encontram bastante afastados dos verdadeiros
abrindo assim, diante dos meus olhos, o seu manus‑ originais, e o medo real encontra-se disfarçado sob a
crito, esse manuscrito que sempre trouxe comigo. E forma de diabruras atrevidas. Mas nas histórias mais
já vejo que não poderei furtar-vos ao desejo, ainda antigas, nas que faziam com que os homens se ben‑
inconfessado, da sua leitura. Eis, afinal, o que li nessa zessem, quando se sentavam em volta das fogueiras,
noite, sentada à secretária, sob o quebra-luz do can‑ temos um cenário inteiramente diferente. Dei-me
deeiro. conta de uma natureza em tudo oposta, em certas
Então, a jovem senhora que se chamava Miss histórias de crianças e de homens e mulheres que
Lally, começou a ler. desapareciam estranhamente da face da terra. Estes
eram geralmente vistos por um aldeão, no meio dos
A DECLARAÇÃO DE WILLIAM GREGG, Membro da campos, a caminharem para alguma pequena coli‑
Real Sociedade, etc. na verde e redonda, para nunca mais serem vistos. E
também havia histórias de mães, que tinham deixa‑
Já se passaram muitos anos desde que o vislumbre do os filhos a dormir sossegadamente, com a porta
de uma teoria, que quase se encontra agora defini‑ das suas cabanas rudemente trancada com um peda‑
tivamente reduzida aos factos, irrompeu no meu ço de madeira, para regressarem, sem que pudessem
pensamento. Uma série de extensas leituras, diversas encontrar esse rosado e gordo pequeno saxão, mas
e obsoletas, contribuíra para desenhar o rumo dos uma criatura magra e mirrada, com uma pele escura
acontecimentos. Mais tarde, quando me tornei até e olhos negros muito brilhantes, ou seja, uma crian‑
certo ponto um especialista, e me dediquei plena‑ ça de uma outra raça. Mas ainda havia mitos bem
mente aos estudos etnológicos, deparava-me, uma mais terríveis, que falavam de sábios e de bruxas, da
vez por outra, com factos que nem sempre se en‑ lúgubre maldade do Sabat, e que sugeriam demónios
caixavam com as ortodoxas opiniões científicas ou que se misturavam com as filhas do Homem. E, tal
com descobertas que me pareciam sugerir algo que como transformámos esse terrível «povo das fadas»
as nossas pesquisas nunca tinham abordado. Mais em toda uma série de benignos e assustadores elfos,
concretamente, convenci-me de que grande parte escondemos também de nós a negra podridão da
dos saberes populares deste mundo não passava de bruxa e dos seus companheiros, sob populares dia‑
um relato exagerado de acontecimentos que, de fac‑ bruras de velhas, cabos de vassouras, e gatos cómicos
to, teriam ocorrido. Assim, interessei-me particular‑ de caudas levantadas. Tal como os gregos chamavam
mente pelas histórias de fadas, por esse bom povo às hediondas Fúrias damas benevolentes, também as

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nações nórdicas seguiram o seu exemplo. Fui pros‑ vés de todos os tipos de literatura geral. Entre outros
seguindo as minhas investigações, tentando roubar exemplos, lembro-me de me ter surpreendido com
horas a outros trabalhos mais urgentes, até me depa‑ a expressão «homens de discurso articulado», em
rar com a seguinte questão: e se essas tradições fos‑ Homero, como se este autor soubesse ou tivesse ou‑
sem verdadeiras, quem eram afinal esses demónios vido falar de homens cujo discurso era de tal modo
que normalmente participavam nesses Sabates?... rude que não lhe poderíamos chamar «articulado»
Não será necessário dizer que não pus de parte o que e, dada a minha hipótese de uma raça que tinha fica‑
se poderia designar como a hipótese sobrenatural da do definitivamente atrás de outras, podia facilmente
Idade Média, chegando à conclusão de que fadas e conceber que esse povo falaria uma linguagem não
demónios pertenciam, vistas bem as coisas, à mesma totalmente distante dos sons inarticulados dos ani‑
raça, tendo também a mesma origem. A invenção, mais selvagens.
sem dúvida resultante da imaginação gótica de anta‑ Era nesse ponto que me encontrava, satisfei‑
nho, tinha já feito muito no que se relacionava com to com o facto de as minhas conjecturas, apesar de
o exagero e com a distorção. Todavia, acreditava fir‑ tudo, não se distanciarem assim tanto da verdade
memente que, sob toda essa série de imagens, existia dos factos, quando, por um mero acaso, um pará‑
um escuro eco de verdade. Quanto aos alegados es‑ grafo num jornal de província me chamou a atenção.
peculadores, hesitei um pouco. Se bem que odiasse Tratava-se de um curto relato do que, segundo me
recorrer ao mais pequeno resquício de espiritualis‑ pareceu, fora uma sórdida tragédia de aldeia: uma ra‑
mo moderno, acreditando que não conteria o mais pariga desaparecera inexplicavelmente e havia toda a
pequeno grão de autenticidade, também não estava espécie de constantes insinuações relacionadas com
de todo preparado para negar que a carne humana a sua reputação. Contudo, eu consegui ler nas entre‑
pudesse, uma vez por outra, talvez uma vez em dez linhas que esse escândalo fora puramente hipotético,
milhões de casos, albergar poderes que nos pareces‑ e muito provavelmente inventado para poder jus‑
sem mágicos, poderes que, longe de procederem das tificar o que, de outro modo, pareceria totalmente
alturas para conduzirem mais rectamente a huma‑ inexplicável. Uma fuga para Londres ou Liverpool,
nidade, eram na verdade sobrevivências, emanadas ou um corpo ainda não descoberto, com uma pedra
das profundezas do ser. A ameba e o caracol têm po‑ ao pescoço, nas profundidades de um lago a meio de
deres que nós não possuímos, e eu pensei ser possí‑ um bosque; ou até mesmo um assassínio, tais eram
vel que a teoria da regressão pudesse explicar muitas as teorias dos vizinhos da infeliz rapariga. Mas, à me‑
coisas que nos pareciam inexplicáveis. Assim se for‑ dida que ia lendo com toda a calma esse parágrafo,
tificou a minha posição, e eu tinha razões para acre‑ um pensamento assaltou-me com a violência de um
ditar que, grande parte da tradição, uma vasta parte choque eléctrico: e se a obscura e horrível raça das
das tradições mais remotas e incorruptas acerca das colinas ainda sobrevivesse? Se ainda assombrasse
chamadas fadas, tinha que ver com factos verdadei‑ locais ermos e colinas desabitadas e, uma vez por
ros, e pensei que o elemento puramente sobrenatural outra, repetindo as horríveis lendas góticas, ainda
nessas tradições se deveria à hipótese de que, se essa existisse, como os turanianos da Ásia ou os bascos de
raça desaparecera da grande progressão evolutiva, Espanha? Mencionei que esse pensamento me che‑
poderia muito bem ter retido, como mecanismo gara violentamente e, de facto, sustive a respiração e
de sobrevivência, certos poderes que, para nós, se‑ agarrei-me aos braços da minha cadeira de encosto,
riam totalmente miraculosos. Assim era a teoria que com uma mistura de sentimentos confusos e de fas‑
concebera e para a qual, seguindo essa perspectiva, cínio. Era como se um dos meus confrades das Ciên‑
parecia encontrar confirmações vindas de todos os cias Físicas, ao passear por um calmo bosque inglês,
lados, desde os despojos de um sarcófago ou de uma tivesse sido fortemente surpreendido pela presença
elevação tumular, aos jornais locais que menciona‑ viscosa e horrível de um ictiossauro, pela figura ori‑
vam antigos encontros nos campos, e também atra‑ ginal das histórias dos tremendos vermes mortos por

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cavaleiros valorosos; ou tivesse visto o Sol a ser ocul‑ chamado aquando da investigação judicial. Esse mé‑
tado por um pterodáctilo, o dragão das tradições. dico, que era um homem como uma certa inteligên‑
Não obstante, como um resoluto explorador do co‑ cia, ficou sem palavras. «Não será bom falar dessas
nhecimento, pensar em tal descoberta inundou-me coisas em zonas rurais» escreveu-me ele, «mas, de
com uma paixão de alegria. Recortei esse pedaço de facto, não há dúvida de que nos deparamos com um
jornal e coloquei-o numa gaveta da minha velha es‑ horrível mistério. Consegui ficar com o machado de
crivaninha, resolvendo que se trataria apenas do pri‑ pedra e quis testar a sua eficácia. Num domingo à
meiro testemunho numa colecção da mais estranha tarde, levei-o até ao jardim, nas traseiras da minha
importância. Sentei-me durante muito tempo nessa casa, quando a minha família e os criados se encon‑
noite, a sonhar com as conclusões a que poderia che‑ travam fora, e aí, abrigado entre ramos de álamos,
gar, sem que reflexões mais frias e objectivas tives‑ iniciei as minhas experiências. Achei que esse objec‑
sem alterado a minha confiança. Contudo, à medida to não era nada fácil de manejar. Talvez requeresse
que ia examinando o caso, pensei estar a construí-lo um balanço peculiar, um ajuste na altura de lança‑
sobre alicerces instáveis. Talvez os factos se tivessem mento, o que pressupunha uma prática constante. Se
passado de acordo com a opinião local, e comecei a um golpe certeiro apenas pode ser infligido através
olhar para esse assunto com toda uma série de reser‑ de uma específica distensão de músculos, é algo que
vas. Todavia, decidi manter-me em alerta, delician‑ não sei, mas poderei jurar-lhe que voltei a entrar em
do-me com a ideia de que apenas eu estava atento e casa com uma desiludida opinião acerca das minhas
desperto, enquanto a grande multidão de pensado‑ capacidades atléticas. Sentia-me como um homem
res e pesquisadores permanecia alheia e indiferente a sem experiência a tentar balançar um martelo. A
tudo isso, não prestando qualquer atenção aos factos força que exercia parecia fazer com que o meu bra‑
mais evidentes. ço recuasse, e até me senti empurrado violentamen‑
Vários anos se passaram, até ter podido juntar te para trás, enquanto o machado se limitava a cair
mais qualquer coisa aos conteúdos dessa gaveta, e a inofensivamente no chão. Numa outra altura, tentei
segunda descoberta não foi de facto valiosa, pois tra‑ a mesma experiência com um exímio lenhador lo‑
tava-se de uma mera repetição da primeira, apenas cal, mas esse homem, que manejara o machado du‑
com a variante de se tratar de uma outra localidade rante mais de quarenta anos, nada podia fazer com
distante. Porém, acreditei ter ganho qualquer coi‑ essa ferramenta de pedra, e falhou claramente cada
sa, pois nesse segundo caso, tal como no primeiro, um dos seus golpes. Para resumir, se não fosse tão
a tragédia ocorrera num campo ermo e afastado, o imensamente absurdo, poder-lhe-ia dizer que, pelo
que parecia justificar a minha teoria. O terceiro caso, menos durante quatro mil anos, ninguém à face da
porém, tornou-se-me mais evidente. Uma vez mais, terra poderá ter desfechado um golpe certeiro com
no meio das colinas mais despovoadas, longe mes‑ esse machado que, sem dúvida, fora usado para ma‑
mo do tráfego ou de uma estrada principal, tinham tar esse homem idoso.» Isto, como se poderá ima‑
encontrado um homem brutalmente assassinado, e ginar, eram para mim notícias muito importantes.
o instrumento que o matara fora deixado a seu lado. Mais tarde, quando ouvi todos os pormenores dessa
Aqui, de facto, houve rumores e conjecturas, pois a história, e vim a descobrir que esse malogrado idoso
arma mortal era um primitivo machado de pedra, tinha falado em coisas que se poderiam ver à noi‑
atado com tiras de tripa seca a um cabo de madeira, te, numa certa encosta selvagem de uma colina, in‑
o que dera lugar às mais extravagantes e imprová‑ sinuando maravilhas desconhecidas, e que ele fora
veis hipóteses. Contudo, ao pensar nisso, não sem encontrado já morto há algum tempo junto à colina
uma certa satisfação, reparei que as conjecturas em questão, fiquei muito exaltado, pois acreditei que
mais ousadas se tinham desviado do caminho cer‑ o cerne dos meus pensamentos não era apenas uma
to, de modo que me dei ao trabalho de estabelecer mera conjectura. Mas o próximo passo revelou-se-
correspondência com o médico residente, que fora -me ainda de maior importância. Possuíra, durante

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muito anos, uma extraordinária chancela, feita de uma série de hieróglifos, que por vezes usam para
uma pedra negra e baça, com cerca de cinco centí‑ comunicarem uns com outros. Visitei há dois dias a
metros desde a parte de cima até à que efectuava os pedra em questão, devido a um doloroso incidente
carimbos, tendo esta uma forma aproximadamente que aqui ocorreu.»
hexagonal, com cerca de três centímetros de diâme‑ Como se poderá calcular, escrevi imediata‑
tro. No geral, era semelhante a um calcador de taba‑ mente ao meu amigo, agradecendo-lhe a cópia dessa
co, de fabrico antiquado. Fora-me enviada por um inscrição, e sugerindo-lhe, de um modo desinteres‑
agente no Oriente, que me disse que a tinham encon‑ sado, que me contasse o incidente que mencionara.
trado perto do local onde se situara a antiga Babiló‑ Para não me alongar demasiado, tive conhecimento
nia. Mas os caracteres gravados nessa chancela eram de que uma mulher, de apelido Cradock, que per‑
para mim um enigma irresolúvel. Até certo ponto dera o marido no dia anterior, tinha ido comunicar
aproximavam-se da escrita cuneiforme, mas havia essa infeliz notícia a uma prima que vivia a cerca de
algumas diferenças, em que reparara logo de início, dez quilómetros, e que seguira por um atalho que
e todas as minhas tentativas para poder decifrar essa passava junto às Grey Hills. A Sr.ª Cradock, que en‑
escrita, semelhante a pontas de seta, acabaram por tão era ainda jovem, nunca chegou a casa da sua fa‑
falhar. Um enigma como esse ofendia o meu orgu‑ miliar. Já tarde, nessa mesma noite, um camponês,
lho e, de vez em quando, retirava essa Chancela Ne‑ que perdera dois carneiros que se teriam afastado do
gra da gaveta da minha escrivaninha, examinando-a rebanho, estava a passar pelas Grey Hills, com uma
tão prolongada e detalhadamente, que já conhecia lanterna e o seu cão, quando a sua curiosidade foi
de cor cada letra, podendo mesmo transcrever essa despertada por um ruído, que ele descreveu como
inscrição, na sua totalidade, sem ter medo de me en‑ uma forma de lamento muito triste, capaz de rasgar
ganar. Imagine-se então, qual não foi a minha sur‑ o coração. Guiado por esse som, encontrou essa infe‑
presa, quando um dia recebi de um correspondente liz Sr.ª Cradock, encolhida e sentada no chão, junto à
meu, no Oeste de Inglaterra, uma carta e uma nota pedra calcária, a balançar o corpo para lá e para cá, a
apensa que me deixou absolutamente varado de es‑ chorar e a lamentar-se de um modo tão afligido, que
panto. Vi então, cuidadosamente desenhados sobre o camponês, segundo disse, teve de tapar os ouvidos
uma folha de papel, caracteres em tudo iguais aos da para não fugir de imediato. A mulher permitiu que a
Chancela Negra, sem qualquer tipo de alteração e, levassem para casa, e uma vizinha veio ver se ela não
por cima desses enigmáticos caracteres, o meu ami‑ precisaria de qualquer coisa. Durante a noite, contu‑
go escrevera: Inscrição encontrada numa pedra cal- do, ela nunca parou de chorar, misturando palavras
cária nas Grey Hills, Monmouthshire. Feita com terra numa linguagem ininteligível às suas lamentações.
ou lama vermelha, e bastante recente. Peguei logo na Quando o médico chegou, achou que ela tinha en‑
carta, onde o meu amigo escrevia: «Envio-lhe esta louquecido. Esta ficou de cama durante uma semana
inscrição com todas as minhas reservas. Um pastor, e, ora gritava como uma alma penada sem salvação,
que passou por essa pedra há cerca de uma semana, ora mergulhava num pesado coma. Todos pensaram
jura que a mesma não tinha quaisquer marcas nessa que a dor, ante a perda do marido, lhe alterara o ju‑
altura. Os caracteres, tanto quanto me pude aperce‑ ízo, e o médico chegou mesmo a prognosticar que
ber, foram feitos usando uma espécie de terra aver‑ ela não teria muito mais tempo de vida. Não será ne‑
melhada e têm uma altura de dois centímetros. Para cessário afirmar que me interessei imenso por essa
mim, assemelham-se a caracteres cuneiformes, em‑ história e que pedi ao meu amigo que me fosse escre‑
bora bastante alterados. Porém, esta hipótese não faz vendo, informando-me dos mais mínimos porme‑
qualquer espécie de sentido. Talvez se trate de uma nores desse caso. Vim então a saber que, cerca de seis
brincadeira, ou mais provavelmente de uma mensa‑ semanas depois, a mulher recobrara o uso de todas
gem deixada pelos ciganos, que grassavam por essa as suas faculdades e que, alguns meses mais tarde,
região do país. Estes têm, como deverá saber, toda dera à luz um filho, de nome Jervase, que infelizmen‑

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te se parecia comportar como um deficiente mental. tigação acerca da Chancela Negra. Transformei o
Eis os factos, tal como estes eram conhecidos nessa meu escritório num Centro e, de todas as partes do
aldeia, mas, enquanto eu empalidecia ao pensar nos mundo e de todas as épocas reuni transcrições de
acontecimentos horríveis que decerto tinham ocor‑ antigos escritos. Nada, resolvera já, me iria passar
rido, tudo se transformava para mim numa certeza, ao lado e o mais pequeno índice deveria ser sem‑
chegando mesmo, incautamente, a sugerir algo mais pre bem recebido e investigado. Quando, apesar de
aproximado da verdade a alguns amigos meus dados tudo, pista após pista dissimulada não me levavam
à Ciência. Todavia, assim que essas palavras me saí‑ a nenhum lado, após todas as minhas tentativas,
ram dos lábios, fiquei logo amargamente arrependi‑ comecei, com o passar dos anos, a desesperar e a
do, sobretudo por ter revelado o grande segredo da pensar se essa Chancela Negra não passaria da úni‑
minha vida. Contudo, foi com um grande alívio mis‑ ca relíquia de alguma raça que há muito desapare‑
turado com uma certa indignação, que me dei conta cera do mundo, sem deixar quaisquer vestígios; e
de que os meus receios não tinham qualquer funda‑ que, por fim, tivesse perecido, tal como a Atlântida,
mento, pois os meus amigos riram-se na minha cara, devido a um tremendo cataclismo, e cujos segre‑
como se estivessem perante um louco, apesar de, sob dos residissem no fundo do oceano ou enterrados
uma ira justificada, me ter sentido tão seguro entre no âmago das colinas. Esse pensamento esfriou
essas cabeças quadradas, como se tivesse confiado um pouco o meu entusiasmo e, embora nunca ti‑
esse meu segredo às areias do deserto. vesse desistido, já não tinha a mesma fé nem uma
Mas, conhecendo já tanta coisa, decidi-me a igual certeza. O acaso, no entanto, veio em minha
conhecer tudo, e concentrei os meus esforços na ajuda. Estava de passagem por uma bela cidade
tentativa de decifrar a inscrição da Chancela Ne‑ do Norte de Inglaterra e tive a oportunidade de
gra. Durante muitos anos, fizera desse enigma o visitar o acreditado museu que há já algum tempo
único objecto dos meus momentos de lazer, pois aí existia. O curador era um dos meus correspon‑
grande parte do meu tempo era dedicada, como dentes e, enquanto estávamos a examinar uma
seria de esperar, a outras tarefas e, só uma vez por vitrina de amostras minerais, um certo espécime
outra, podia dedicar uma semana inteira a essas chamou-me a atenção. Tratava-se de um pedaço
pesquisas. Se me atrevesse a contar toda a história de pedra preta, com oito centímetros quadrados,
desta curiosa investigação, o meu depoimento seria cujo aspecto me lembrava vagamente a Chancela
demasiado cansativo, pois consistiria apenas num Negra. Peguei nele, sem grande cuidado, e estava a
relato das minhas várias e entediantes tentativas rodá-lo na mão, quando reparei, para minha gran‑
falhadas. Não obstante, com o meu sólido conhe‑ de surpresa, que a parte debaixo do mesmo con‑
cimento de antigos textos, estava bem equipado tinha uma inscrição. Disse, quase entre dentes ao
para essa minha «caça», como sempre intimamen‑ curador, que essa amostra me interessava e que lhe
te lhe chamara. Correspondia-me com quase to‑ ficaria imensamente grato se ele me deixasse levá-
dos os cientistas da Europa, de facto, até do mun‑ la para o meu hotel durante dois dias. Ele, como
do, e não era capaz de acreditar que, nesse tempo, seria de esperar, não me pôs quaisquer objecções,
quaisquer caracteres, por mais antigos e intrigantes e eu apressei-me até aos meus aposentos onde me
que fossem, pudessem resistir à luz que, sobre eles, certifiquei de que esse meu primeiro vislumbre
eu faria incidir. Contudo, ir-me-ia demorar ainda não me enganara. Havia nessa pedra duas inscri‑
mais catorze anos, antes de obter sucesso. A cada ções: uma em caracteres cuneiformes regulares;
ano que passava, as minhas tarefas aumentavam e outra contendo os caracteres da Chancela Negra.
o meu tempo livre diminuía. Isto contribuiu bas‑ Dei-me então conta de que as minhas investiga‑
tante para o meu atraso. Porém, quando olho para ções estavam a chegar ao fim. Fiz uma cópia exac‑
trás, para esses anos, surpreendo-me ante os vastos ta das duas inscrições e, uma vez chegado ao meu
resultados obtidos, no que respeita à minha inves‑ escritório em Londres, com a chancela diante de

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mim, poderia finalmente resolver esse grande dile‑ derei deixar de assinalar. No vazio perdido da noite,
ma. A interpretação da inscrição dessa amostra do acordei com o som dessas sílabas ciciadas que eu tão
museu, embora fosse suficientemente curiosa, não bem conhecia e, ao dirigir-me para o quarto do infe‑
se relacionava com o teor das minhas investigações, liz rapaz, viu-o em convulsões e a deitar espuma pela
mas a sua transliteração revelou-me o segredo da boca, debatendo-se na cama, como se ele se estivesse
Chancela Negra. É óbvio que uma certa conjectura a tentar libertar das garras de contorcidos demónios.
teve que entrar nos meus cálculos. Aqui e ali depa‑ Levei-o até ao meu escritório e acendi um candeeiro,
rava-me com uma certa incerteza em relação a um enquanto ele continuava a tremer no chão, pedindo
determinado ideograma, e uma marca, que aparecia ao poder que se apossara do seu corpo que o aban‑
repetidamente na Chancela Negra, intrigou-me du‑ donasse. Vi então de que modo esse seu corpo co‑
rante as várias noites que se seguiram. Todavia, o se‑ meçara a inchar e a distender-se como uma bexiga,
gredo revelou-se finalmente diante dos meus olhos, enquanto o seu rosto começava a escurecer visivel‑
em linguagem corrente, e pude então aperceber-me mente. Foi então que, perante essa crise, fiz o que era
da chave da horrível transmutação das colinas. Ain‑ necessário, de acordo com as indicações da Chance‑
da nem sequer acabara de escrever a última palavra, la, e ignorando todos os meus escrúpulos, tornei-me
quando, com os dedos a tremer, rasguei em peque‑ um cientista que se limitou a observar o que estava
nos pedaços essa folha de papel, para os ver arder a acontecer. No entanto, o que vi foi horrível, quase
e tornarem-se negros, na boca da lareira, e mesmo bem para lá da capacidade de qualquer concepção
depois de queimados acabei por reduzi-los à mais humana ou da mais tremenda fantasia. Algo tentava
fina cinza. Nunca, desde então, me atrevi a voltar a sair desse corpo estendido que se agitava pelo chão
escrever essas palavras, pois nunca hei-de escrever as e, esticando um trémulo e viscoso tentáculo, através
frases que nos dizem de que modo o Homem pode do escritório, essa entidade agarrou no busto que es‑
ser reduzido a uma baba viscosa e forçado a tomar o tava em cima do armário e colocou-o sobre a minha
aspecto do réptil e da serpente. Só haveria então uma secretária.
coisa a fazer. Sabia-o, mas desejava ver tudo com os Quando tudo terminou, e eu fiquei aí, a andar
meus próprios olhos e, após algum tempo, pude ar‑ de um lado para o outro o resto da noite, sobressal‑
rendar uma casa perto das Grey Hills, e não muito tado, pálido e encharcado em suor, tentei em vão pôr
longe da modesta construção onde a Sr.ª Cradock e ordem nos meus pensamentos: convenci-me, assim,
o seu filho Jervase ainda viviam. Não será necessário de que não vira nada de sobrenatural, e de que um
escrever um relatório completo e pormenorizado caracol, ao estender e encolher as hastes, seria uma
acerca dos eventos que aí ocorreram, enquanto es‑ visão, em menor escala, do que de facto vira. Mas
crevo este testemunho. Sabia que iria encontrar em um profundo terror parecia irromper de todos esses
Jervase Cradock traços de sangue do «Povo Peque‑ meus raciocínios e me deixava a tremer e cheio de
no», e vim a saber mais tarde que ele se encontrara, ódio por mim mesmo, sobretudo pela parte que me
mais do que uma vez, com esses seus parentes, em coubera nas peripécias dessa noite.
lugares isolados dessa terra solitária. Quando um dia Não haverá muito mais que eu possa acrescen‑
me vieram pedir que fosse até ao jardim e o vi a ter tar. Dirijo-me agora para a prova final e para o der‑
um ataque, a falar e a ciciar a fantasmagórica lingua‑ radeiro encontro, pois há muito decidi que não iria
gem da Chancela Negra, receio que o meu entusias‑ simplificar as coisas, e hei-de encontrar-me com esse
mo se tivesse sobreposto aos meus sentimentos de «Povo Pequeno» cara a cara. Terei comigo, como
compaixão. Ouvi, irrompendo da sua boca, os segre‑ ajuda, a Chancela Negra e o conhecimento dos seus
dos do mundo subterrâneo, e essa palavra tenebrosa, segredos e, se infelizmente não regressar da jorna‑
«Ishakshar», cujo significado não me vejo obrigado da que me espera, não haverá sequer necessidade de
a revelar. se conceber qualquer imagem acerca do horror do
Não obstante, existe um incidente que não po‑ meu destino.

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Fazendo uma pequena pausa, após o fim do de‑
poimento do Professor Gregg, Miss Lally continuou
a contar a sua narrativa do seguinte modo:
Assim era a história quase incrível que o pro‑
fessor nos deixara. Quando a acabei de ler, já a noi‑
te ia avançada, porém, no dia seguinte, levei Mor‑
gan comigo e iniciámos a nossa busca pelas Grey
Hills, à procura de qualquer rasto desse professor
desaparecido. Não o irei incomodar com a descri‑
ção da erma tristeza dessa zona campestre, uma
zona mergulhada na mais completa solidão, cheia
de verdes colinas desertas, manchadas de cinzen‑
tos pedregulhos calcários, esculpidos pela erosão Arthur Machen (3 de março de 1863 - 30 de
do tempo, em formas que fantasticamente se asse‑ março de 1947) foi um escritor e jornalista
melhavam a homens e animais. Finalmente, após galês, famoso pelos seus contos e novelas
de terror e fantasia, além de ter sido actor
muitas horas de aturada busca, encontrámos o que
durante um certo tempo. BANG!
já lhe contei: o relógio de bolso e a corrente, a bolsa
e o anel, embrulhados num pedaço de rude per‑
gaminho. Quando Morgan cortou os fios de tripa
seca que atavam esse embrulho e eu vi os perten‑
ces do professor, desatei a chorar. Mas, os malditos
caracteres da Chancela Negra, escritos nesse per‑
gaminho, gelaram-me de horror, e foi então que
percebi, pela primeira vez, o destino horrível que
se abatera sobre o meu falecido empregador.
Apenas me resta acrescentar que o advogado
do Professor Gregg reagiu ao meu relato do que se
passara como se fosse uma história de fadas, recu‑
sando-se mesmo a dar uma vista de olhos pelos do‑
cumentos que eu colocara diante dele. Foi esse mes‑ O Grande Deus Pã
mo advogado o responsável pela informação que Arthur Machen
mais tarde apareceu nos jornais, afirmando que o Venha conhecer um dos escritores mais influentes.
Professor Gregg se afogara, e que o seu corpo deveria Arthur Machen é famoso pelos seus contos do sobrenatural e
ter sido arrastado para o mar. horror. Ainda hoje a sua influência se reflecte nos mais variados
Miss Lally parou então de falar e olhou para ramos, da literatura à pintura, da música ao cinema (como em
Labirinto del Fauno de Guillermo del Toro, inspirado em
o Sr. Phillipps com uma expressão interrogativa. O Grande Deus Pã). Os seus temas abordam frequentemente as
Este, por sua vez, estava muito pensativo, entregue implicações psicológicas do sobrenatural e o mundo metafísico.
a um profundo devaneio, e quando levantou os O seu interesse pela religião, paganismo, oculto, alquimia, e ka-
olhos e reparou na azáfama que, nesse fim de tar‑ balla, reflecte-se um pouco por toda a sua obra. Aclamado pelos
maiores nomes do seu tempo: T.S. Eliot, Bernard Shaw, Oscar
de, se espalhava pela praça (homens e mulheres que Wilde e, mais tarde, Jorge Luis Borges, que o reconheceu como
iriam compartilhar um próximo jantar, e as multi‑ um escritor genial e influenciador do realismo mágico
dões que já começavam a encher os teatros de va‑
riedades), todo esse ruído da vida real, tudo lhe Saida de Emergência / 2007
ISBN: 9789896370084
deve ter parecido fantasioso e visionário, como um Preço: 16.59€
sonho matinal após um despertar. BANG! Na página da editora: 14.93€

46
[crítica]

5 Estrelas
Safaa Dib recomenda “A Guerra dos Tronos”

“O talento do escritor para a construção do enredo,


juntamente com o seu impecável domínio de
técnicas estilísticas e narrativas, tornam As Crónicas
de Gelo e Fogo num autêntico tour de force.”

A Guerra dos Tronos estabeleceu uma visão da


fantasia épica de pendor medieval totalmen‑
te distanciada da fantasia a que o leitor se terá ha‑
bituado com autores da linha de J.R.R. Tolkien. O
universo criado pelo autor norte‑americano Ge‑ A Guerra dos Tronos
George R. R. Martin
orge R. R. Martin não será um de várias raças e
demandas, mas é antes uma narrativa fascinante O primeiro volume de As Crónicas de Gelo e Fogo.
de um mundo onde o equilíbro de forças é manti‑ Quando Eddard Stark, lorde do castelo de Winterfell, recebe
a visita do velho amigo, o rei Robert Baratheon, está longe de
do pelo poder de grandes famílias e senhores que
adivinhar que a sua vida, e a da sua família, está prestes a
servem os interesses que os ventos do destino di‑ entrar numa espiral de tragédia, conspiração e morte. Durante
tarem. a estadia, o rei convida Eddard a mudar-se para a corte e a
O rei Robert Baratheon governa a terra de assumir a prestigiada posição de Mão do Rei. Este aceita, mas
apenas porque desconfia que o anterior detentor desse título foi
Westeros após a sua rebelião contra a dinastia real
envenenado pela própria rainha: uma cruel manipuladora do
dos Targaryen, os seus últimos sobreviventes for‑ clã Lannister. Assim, perto do rei, Eddard tem esperança de o
çados ao exílio. É senhor incontestável do reino, proteger da rainha. Mas ter os Lannister como inimigos é fatal:
mas alguns iniciam, nas sombras, um jogo mor‑ a ambição dessa família não tem limites e o rei corre um perigo
muito maior do que Eddard temia! Sozinho na corte, Eddard
tal de traição, enquanto outros cometem actos
também se apercebe que a sua vida nada vale. E até a sua
desesperados para ocultar segredos terríveis que família, longe no norte, pode estar em perigo.
podem destroçar o reino e lançá‑lo num turbilhão Uma galeria de personagens brilhantes dá vida a esta saga.
de caos e violência. Entre eles estão o anão Tyrion, a ovelha negra do clã Lannister;
John Snow, um bastardo de Eddard Stark que, ao ser rejeitado
Em A Guerra dos Tronos uma série de
pela madrasta, decide juntar-se à Patrulha da Noite, uma legião
eventos cruciais está prestes a desencadear um encarregue de guardar uma imensa muralha de gelo a norte,
novo ciclo de guerra e lutas por poder, e cada fa‑ para lá da qual cresce uma assustadora ameaça sobrenatural
mília e personagem ver‑se‑á forçada a jogar de for‑ ao reino. E ainda a princesa Daenerys Targaryen, da dinastia
que reinou antes de Robert Baratheon, que pretende ressuscitar
ma inteligente se quer sobreviver. Em simultâneo,
os dragões do passado e, com eles, recuperar o trono, custe o que
velhas lendas de poderes ancestrais começam a custar.
manifestar‑se de novo nos reinos, e ninguém po‑
derá prever as consequências. Saida de Emergência / 2007
ISBN: 9789896370107
O mundo de Martin não poucas vezes
Preço: 18.85€
vê‑se assolado por intrigas políticas que dão ori‑ Na página da editora: 16.97€

47
[entrevista]

Sangue,
gem a episódios de brutalidade descritas com
enorme realismo. Tem todos os elementos de mis‑
tério e suspense para manter o leitor preso até à

Suor e
última página e o talento do escritor para a cons‑
trução do enredo, juntamente com o seu impecá‑
vel domínio de técnicas estilísticas e narrativas,

Lágrimas
tornam a Canção do Gelo e do Fogo um autêntico
tour de force.
Mas serão as personagens que habitam o
mundo do escritor a guiar e surpreender o leitor,
constantemente assaltando‑o com segredos in‑
suspeitos. Com George R. R. Martin não existem Entrevista a
personagens lineares, paladinos do bem ou do
mal descritos a preto e branco, mas sim persona‑
gens humanas, vulneráveis, com profundas falhas
George R. R. Martin
de carácter, que revelam também grande força e
determinação quando confrontados com circuns‑
tâncias difíceis.
Com uma construção narrativa assente
na perspectiva de cada personagem, o que é certo
é que Martin se revela implacável e tirânico, um
carrasco sem piedade para com o destino das suas George R. R. Martin:
personagens, que tanto podem ser heróis como “Há imensas provas de que os meus
são vilões, que tanto podem ser mártires como
vencedores. Personagens como Tyrion Lannister,
livros parecem ser a fantasia para
Daenerys Targaryen ou Jon Snow conquistaram já pessoas que não lêem fantasia.”
o seu lugar na galeria de figuras memoráveis da
literatura fantástica.
A saga poderá não ser profundamente
original, mas a atenção ao detalhe na construção
do mundo de Westeros, a coerência e consistência
L embra-se da primeira história que escreveu
quando era criança?
A primeira história… Provavelmente, ainda a te‑
narrativa, o realismo das descrições, a naturalida‑ nho guardada algures numa gaveta. Sou o cúmu‑
de dos diálogos, a intensidade das violências e pai‑ lo da poupança; guardo tudo. Tenho uma gaveta,
xões estabeleceram George R. R. Martin como um uma mala – depende de como se define uma his‑
dos autores mais proeminentes da fantasia épica. tória. Tenho um livrinho; é como uma enciclopé‑
BANG! dia espacial que escrevi quando era miúdo. Um
daqueles cadernos, com as capas semelhantes a
Safaa Dib nasceu em 1983 no Dubai. Filha mármore, onde se pega na caneta e se preenche
de um casal de imigrantes libaneses, cresceu
em Lisboa onde frequentou os estudos no a parte branca até ficar azul e preta? Está tudo es‑
Liceu Camões e na Faculdade de Letras crito assim. Uma Enciclopédia dos Planetas, com
de Lisboa. A par do mestrado em estudos o trabalho gráfico feito por mim, consistindo, em
Anglísticos, tem-se dedicado a uma intensa grande parte, em círculos desenhados por mim,
actividade no meio fantástico português
como divulgadora, crítica, tradutora, co- escrevendo eu em seguida algumas coisas acer‑
organizadora do Fórum Fantástico, vice- ca do planeta. É uma mistura estranha de factos
presidente da Épica e autora. BANG! com ficção. Tem lá Marte, planeta vermelho com

48
os seus canais, e depois tem o planeta Orm ou minha própria versão de Super-Heróis, mas não
coisa semelhante, feito por mim, tendo eu inven‑ se pode simplesmente adaptar o que se quiser para
tado coisas acerca do mesmo. E tem os planetas Hollywood. É preciso esperarmos até que um es‑
do Flash Gordon e do Rocky Joe Space Ranger, túdio nos contrate, e eu cheguei a ter entrevistas
que era uma série que eu costumava acompanhar, para alguns trabalhos relacionados com Super-
misturados com planetas totalmente inventados Heróis, mas nunca cheguei a receber nenhum.
por mim e com planetas reais. Foi feito em decal‑ Ao longo destes últimos anos fizeram algumas
ques. Deve ter sido na primeira classe, pois eu ain‑ boas adaptações. Os franchises dos X-Men e do
da não tinha aprendido a escrever. Acho que isso é Homem Aranha destacam-se particularmente. A
só na segunda classe. (Risos) minha primeira publicação numa revista profis‑
sional não foi paga e foi para o Quarteto Fantás‑
Ena. Isso mostra uma dedicação enorme numa tico #17. Era uma carta. (Risos) Eu dizia algo do
idade tão jovem. género “Stan Lee, melhor do que Shakespeare.”
Claro que não está acabado. Não acabei nada du‑
rante décadas. Quais os escritores que mais admira?
Essa seria uma longa lista. Senti um maior impac‑
Então despertou cedo para a ficção científica? to por parte de escritores quando era jovem; nessa
Sim, isso foi mais ou menos o que sempre li. Mui‑ fase da nossa vida, somos mais impressionáveis.
tas vezes penso que foram os livros de banda de‑ Temos menos experiência, ficamos abismados
senhada a fazer de mim leitor assíduo. Aprende-se mais facilmente. Eu lia ficção científica, fantasia,
a ler na escola com o Dick e a Jane, mas as cenas horror, todos de forma alternada, não fazia as dis‑
do Dick e a Jane são tão chatas! (Risos) Corre, tinções de género que hoje se vê pessoas fazerem.
Dick, corre. Vê o Spot a correr. As histórias eram Robert A. Heinlein era, sem sombra de dúvida,
estúpidas, até mesmo para um aluno da primeira o meu escritor preferido. Foi-me dada, por um
ou segunda classe. Anos mais tarde, vi alguns dos amigo da minha mãe, uma edição de capa dura
leitores dos famosos livros escolares McGuffey de Have Spacesuit – Will Travell, publicada pela
recuarem um pouco no tempo, para coisas que a Scribner’s. Foi o primeiro livro de ficção científi‑
geração da minha mãe teria lido nos anos 30 ou ca que eu li, e, por muitos anos, foi o único livro
mesmo nos anos 20, e esse material estava cheio de capa dura que possuí, pois não nos podíamos
de verdadeiras histórias escritas por verdadeiros dar ao luxo de comprar edições de capa dura. Mas
escritores, das quais os miúdos aprendiam. Mas na prendeu-me à ficção científica, e em vez de com‑
minha geração, geração do Baby Boom, tínhamos prar quatro livros de banda desenhada, eu com‑
o Dick e a Jane e isso não me incentivava de for‑ prava um livro por 35 cêntimos. Na preparatória
ma alguma a ler. Já o Batman e o Super-Homem li O Senhor dos Anéis, de Tolkien, e este continua
incentivavam: eram muito mais interessantes do a ser um livro que admiro profundamente. Fo‑
que o Dick e a Jane. E foi assim que me deparei ram várias as vezes em que o reli, ao longo dos
com a banda desenhada, adorei-a e continuei a lê- anos, ou que, pelo menos, dei uma espreitadela.
la por anos a fio. A dada altura, H.P. Lovecraft exerceu uma grande
influência em mim. Verdadeiro terror, as histórias
Sei que realizou algum trabalho em Hollywood dele aterrorizavam-me. Robert E. Howard, com
ao longo dos anos. Alguma vez considerou es- Conan, o Bárbaro, é algo excelente para um rapaz
crever ou adaptar algo para um franchise do de 13 anos. É uma boa idade para se descobrir o
Batman ou algo semelhante? Conan. Há determinados autores que devem ser
Bem, como sabe, tenho a minha própria série de lidos em determinadas idades.
Wild Cards, o que acaba por funcionar como a

49
Concordo plenamente. Li algures que Tyrion é a sua personagem pre-
Por exemplo, deixei Edgar Rice Burroughs passar- ferida.
-me ao lado. Anos mais tarde, quando já trabalha‑ Mas isso não quer dizer que ele esteja a salvo. (Ri‑
va em Hollywood, fui contratado pela Disney para sos) De todas, é a personagem mais fácil sobre a
adaptar Princesa de Marte, por isso peguei no tra‑ qual escrever. Gosto da sua presença de espírito, e
balho de Edgar pela primeira vez, e (risos) ele… ele tem uma boa dose de tormento e angústia, que
não é propriamente um modelo a seguir-se aos 45 ajudam na criação de um ambiente dramático.
anos de idade.
Não são muitas as personagens criadas por si
Quando começou a estudar a série Crónicas de que se encontram isentas de pecado, de várias
Gelo e Fogo, em que género de influências se ba- formas, algo bastante interessante.
seou? Eu quis acrescentar alguma realidade humana.
De certa forma, depende de que altura se está a Não gosto da fantasia onde toda a gente é herói ou
falar. A primeira ideia para a série surgiu-me em vilão, preto ou branco. Prefiro pintar em tons de
1991, altura em que eu trabalhava maioritaria‑ cinzento. Penso que é mais fiel à vida real. Todos
mente em Hollywood. O primeiro capítulo sur‑ nós somos anjos e demónios, mascarados sob a
giu-me de uma forma muito vívida. Escrevi umas mesma pele. Num dia fazemos coisas boas, e no dia
cinquenta páginas até ser novamente chamado seguinte podemos estar a cometer atrocidades.
para Hollywood, e tive de o guardar numa gaveta
durante o que acabou por se tornar um período Alguns críticos descreveram o seu trabalho como
de vários anos. Nessa fase, eu não fazia verdadei‑ high fantasy. O que quer isso dizer para si?
ramente ideia do que tinha. Uns anos mais tarde, Bem, é uma fantasia tolkienesca. Quer dizer, po‑
voltei a trabalhar nele e achei o trabalho tão fres‑ demos cortar a cebola em tantas camadas quanto
co como quando o tinha escrito pela primeira vez. quisermos, mas alguns críticos, mais para sua pró‑
Por fim, escrevi mais 150 páginas e um breve re‑ pria conveniência do que qualquer outra coisa, di‑
sumo da direcção que eu pensava que a história vidiram a vasta área do fantástico em subgéneros,
deveria seguir. Nesse momento, visualizei-a como como fantasia “urbana” ou fantasia dark.
uma trilogia de fantasia, em vez dos sete livros que
agora visualizo. Durante toda a minha vida, sempre li pouca fan-
tasia, mas senti-me de imediato preso aos seus
Enquanto vamos lendo a série, vamos criando livros. Penso que, em parte, terá também a ver
uma ligação com as personagens, e eis que, su- com a intriga política.
bitamente, elas morrem. (Risos de George) É de Eu leio fantasia, mas também leio romances his‑
ficarmos doidos. Algum dos seus editores algu- tóricos e quis dar a estes livros uma boa dose de
ma vez se mostrou verdadeiramente preocupa- ficção histórica. Nesse sentido, provavelmente tor‑
do com a possibilidade de matar personagens na-se mais palpável e realista do que a maioria da
principais? fantasia épica.
Não, toda a gente parece gostar disso.
Muitas pessoas esforçam-se mesmo para encon-
É uma leitura fantástica, mas que simplesmente trar paralelos entre a realidade e estas histórias.
me deixa aterrorizada. Sem sombra de dúvida, senti-me inspirado por
Bem, é essa a ideia – que o leitor se preocupe. Se a acontecimentos da história real. Mas tento evitar
personagem estiver em perigo, o leitor deveria ter correspondência directa. Quer dizer, há certas se‑
medo de virar a página. melhanças. Podemos ver isso em Aegon, o Con‑
quistador, e Guilherme, o Conquistador. Existem

50
certas semelhanças, mas também diferenças im‑ jássemos forma de os alcançar, por isso escolheram
portantes. Guilherme, o Conquistador, não tinha este tipo de capa mais simples, precisamente para
dragões nem se casou com as suas duas irmãs. (Ri‑ aquelas pessoas que diriam “Bem, eu não quero ser
sos) Estas distinções são muito importantes. visto a andar com um livro que tem cavalos e ca‑
valeiros e castelos e dragões na capa”. Isso aborre‑
O casamento com as duas irmãs traz um assunto ceu alguns dos fãs originais. Recebo imensas cartas
importante à baila. Há pessoas que classificam o de fãs a dizer que os volumes já não combinam.
seu trabalho como “perverso”, devido à presença Outros dizem ainda que gostavam mais das capas
de incesto e de cenas gráficas de teor sexual. Al- anteriores.
guma vez se depara com pessoas que lhe dizem
“Eu gosto mesmo muito do seu trabalho, mas às Mas funcionou. Quer dizer, número um na lista
vezes acho que simplesmente tem sexo a mais”? de best-sellers do The New York Times!
Sim, recebo cartas dessas. Não muitas, mas… Parece, de facto, estar a funcionar. Até com algo
como o Harry Potter, que tem agora também uma
Bem, historicamente falando, faz parte da vida. edição com capa para adultos.
Claro. Quer dizer, as pessoas já não se podem casar
com as suas irmãs, mas tenho a certeza de que ain‑ Não estou a ver como poderão vender ainda mais
da há pessoas que dormem com elas. (Risos) Há cópias do Harry Potter. Pensava que toda a gente
milhões de livros publicados pelo mundo fora, é já tinha um exemplar.
essa a minha primeira reacção quando recebo esse Não, eles estão a tentar alcançar todas as pessoas
género de cartas. Se não gostam de muito sexo na que nunca leram nada além de Dan Brown. (Ri‑
fantasia que lêem, então há 37 outros autores que sos) BANG!
podem ler e que não escrevem sobre sexo nas suas Por Andrea Warner, AbeBooks
obras de fantasia. Divirtam-se. É uma parte impor‑
tante da vida humana e necessária para qualquer
tipo de retrato realista. Esse é o meu público. É um
triste comentário na moral americana aquele que
diz que o sexo é a coisa que as pessoas rejeitam.
Acho isso triste, mas é a verdade. Posso descrever
um machado a rebentar com o crânio de uma pes‑
soa, e ninguém protesta, mas se eu descrever um
pénis a penetrar uma vagina, isso causa uma re‑
volta.

Algumas pessoas dizem “Oh, eu evito fantasia


porque as capas são demasiado ridículas”, ou
algo semelhante. Vejo que esta capa de A Feast
for Crows é muito diferente de todas as outras George R. R. Martin trabalhou dez anos
em Hollywood como escritor e produtor de
publicadas anteriormente. diversas séries e filmes de grande sucesso.
Deram uma nova embalagem a toda a série e agora Autor de muitos bestsellers, foi em meados
os livros mais antigos foram reimpressos com um dos anos 90 que começou a sua mais famosa
tipo de arte equivalente. Há imensas provas de que obra: A Guerra dos Tronos. É a saga de
fantasia mais vendida dos últimos anos e
os meus livros parecem ser a fantasia para pessoas os direitos de televisão acabaram de ser
que não lêem fantasia. E os meus editores acham vendidos à HBO - a produtora de Sopranos e
que poderiam haver ainda mais leitores se arran‑ Sete Palmos Abaixo de Terra. BANG!

51
[ficção]

Filho do Sangue
[tradução de David Soares]

Richard Matheson

«Durante meses, Jules foi visitar o morcego‑vampiro


e conversou com ele. O animal tornou‑se a sua única alegria.
Um símbolo vivo dos seus sonhos.»

Q
louco.
uando ouviram falar da condição de Jules, os
vizinhos do seu bairro pensaram que ele era
acreditavam que ele estava a tornar‑se num idiota.
Já tinha feito cinco anos quando falou pela
primeira vez. Certa noite, sentado à mesa antes de
Há algum tempo que suspeitavam. começar a jantar, disse “Morte” em voz alta.
Ele era capaz de os fazer tremer apenas com Os pais angustiaram‑se, divididos entre o
um olhar. Não era natural uma voz rouca, gutural, amor parental e a repulsa. Com o passar dos anos
como a dele, pertencer a um físico tão franzino. A tinham sintonizado essas duas emoções num sen‑
pele pálida perturbava os putos: parecia cair‑lhe no timento intermédio. Achavam que Jules não dava
corpo uns números acima… E ele detestava a luz do conta, assim como ainda não tinha aprendido, cer‑
Sol. tamente, o que significava a palavra “Morte”.
Os vizinhos do bairro pensavam que as Mas ele sabia.
ideias dele eram um pouco estranhas. A partir dessa noite, ele reuniu um vocabu‑
É que Jules queria ser vampiro. lário extensivo que surpreendeu toda a gente que o
Todos concordavam ser verdadeiro que na conhecia. Não só absorveu cada palavra que ouviu,
noite em que Jules viera ao mundo o vento desen‑ mais os nomes que leu em revistas, livros e anúncios
raizara as árvores. Que ele nascera com três dentes. publicitários, como inventou as próprias palavras.
Que ele mordeu o seio da mãe com esses dentinhos Como noitoque! Ou amorte. Imensas pala‑
para beber sangue durante as mamadas. vras que fundiu umas com as outras. Expressavam
Que ele ria e ladrava no berço pela noite den‑ coisas que ele sentia, mas que era incapaz de expli‑
tro. Que começara a andar aos dois meses de idade e car.
que se punha a olhar embevecido para a Lua Cheia Tinha o hábito de se sentar na varanda para
sempre que ela brilhava. ver as outras crianças a brincar à macaca ou a jogar
Eram coisas deste género que as pessoas di‑ basebol com um cabo de vassoura e uma bola de
ziam. borracha. Deixava‑se ficar sentado a olhar para elas
Os pais andavam sempre preocupados com e ia inventando palavras novas.
ele: conheciam bem as imperfeições do único filho. Jules conseguiu manter‑se livre de sarilhos
Achavam que tinha nascido cego até o mé‑ até fazer doze anos.
dico lhes contar que ele apenas possuía um olhar Até ter sido descoberto a despir o Oliver Jo‑
inexpressivo. Que Jules, com uma cabeça assim tão nes num beco. E ter sido apanhado a dissecar um
grande, ou daria em génio ou em idiota. Os pais gatinho em cima da cama.

52
Esses escândalos foram esquecidos com o com o pai. Foi numa noite dessas que descobriram
passar dos anos, mas pode‑se dizer que ele atraves‑ as frases sublinhadas a lápis pelo filho.
sou a infância a meter nojo às pessoas. Frases como: “Os lábios dela estavam molha‑
Frequentou a escola, mas nunca estudou. dos com sangue fresco e brilhante que lhe escorria pelo
Precisou sempre de repetir os anos duas vezes; às ve‑ queixo e pingava sobre o fino sudário de linho, manchan‑
zes, três. Os professores sabiam que ele nunca chega‑ do-o de carmim.”
ria a ser nada, mesmo que fosse um excelente aluno Ou: “Quando o sangue começou a esguichar ele
a ler e a escrever. No resto era uma nódoa. prendeu‑me os pulsos, apertando‑os, e, com a outra mão,
Foi aos doze anos de idade, num Sábado, agarrou‑me o pescoço e abocanhou a ferida…”
que Jules foi ao cinema e viu Drácula. Quando o fil‑ A mãe leu as frases destacadas e atirou com
me chegou ao fim ele saiu agitado da sala de cinema; o livro pela conduta do lixo. Quando acordou Jules
numa pilha de nervos passando entre meninas e me‑ descobriu que não tinha o livro e gritou! Torceu o
ninos bem‑comportados. braço da mãe atrás das costas até ela lhe dizer onde
Correu para casa e trancou‑se na casa de ba‑ o tinha escondido. Desceu até à cave a correr e pro‑
nho durante duas horas. curou na pilha de lixo até o encontrar. Com as mãos
Os pais bateram com força na porta, amea‑ sujas de borras de café e claras de ovos saiu de casa e
çando deitá‑la abaixo, mas ele não a abriu. foi até ao jardim para ler o livro mais uma vez.
Finalmente, saiu e sentou‑se à mesa na sala Durante um mês inteiro leu‑o avidamente.
de jantar. Trazia um penso no polegar e um sorriso Aprendeu‑o de cor e salteado: era capaz de se lem‑
largo no rosto. brar tão bem da história que deitou o livro fora. Já
Na manhã seguinte foi à biblioteca. Sen‑ não precisava de ler, bastava‑lhe pensar.
tou‑se nos degraus da entrada o dia todo à espera As cartas com as faltas enviadas pela escola
que ela abrisse, mas era Domingo. Resignado, voltou começaram a chegar a casa. A mãe perdeu a cabeça,
para casa. Baldou‑se às aulas na manhã seguinte e fez uma chinfrineira e Jules voltou às aulas por uns
regressou. tempos.
Encontrou o livro Drácula. Não podia levá‑lo Queria escrever uma composição.
para casa porque não era sócio e para se fazer sócio Escreveu‑a na aula numa das manhãs se‑
teria de pedir aos pais para fazer a inscrição. Escon‑ guintes. Quando toda a turma acabou de escrever, a
deu o livro dentro das calças, fugiu da biblioteca e professora perguntou aos alunos qual deles desejava
nunca o devolveu. ler a composição em voz alta.
Sentou‑se no jardim e leu‑o de enfiada. Jules levantou o braço.
Quando terminou já era quase noite. Voltou à A professora ficou surpreendida, mas sentiu
primeira página e recomeçou a leitura, iluminado pena dele. Quis estimulá‑lo. Mostrou‑lhe um sorriso
pelos candeeiros de rua no caminho para casa. amarelo e disse:
Fez ouvidos moucos à gritaria dos pais, ‘Muito bem. Prestem atenção. O Jules vai‑nos
furiosos por ele ter faltado à escola e não ter vin‑ ler a composição dele.’
do jantar com eles. Jantou a comida fria, subiu Jules levantou‑se. Estava excitado. A folha de
para o quarto e acabou de ler o livro pela segunda papel tremia‑lhe nas mãos.
vez. ‘O Que Eu Quero Ser…’
Os pais perguntaram‑lhe onde encontrara ‘Anda para aqui, querido.’
aquele livro e ele respondeu que estava caído na Jules pôs‑se à frente da turma e leu outra vez.
rua. Nos dias que se seguiram, Jules leu‑o vezes A professora continuava sorridente.
sem conta. Deixou de ir à escola. À noite, quan‑ ‘O Que Eu Quero Ser. Por Jules Drácula.’
do já se encontrava ferrado no sono, a mãe entra‑ O sorriso murchou.
va‑lhe no quarto e levava o livro com ela para o ler ‘Quando for grande quero ser vampiro.’

53
A boca da professora transformou‑se numa maioria dos pais não quis acreditar, pensaram que os
coisa torta. Arregalou os olhos. filhos estavam a brincar. Depois começaram a achar
‘Quero viver para sempre e vingar‑me de que tinham sido uns péssimos pais, pois haviam
todos os parvos que me tratam mal. Quero trans‑ criado filhos com uma imaginação tão mórbida.
formar todas as raparigas em vampiras. Quero ter o Por isso, escolheram acreditar…
cheiro da morte.’ Depois desse episódio toda a gente passou a
‘Jules!’ vigiar Jules com mão‑de‑ferro. Evitavam falar com
‘Quero ter um bafo fedorento que cheire a ele. Os pais tiravam os filhos dos passeios quando o
terra morta, a criptas e a caixões. A caixões doces.’ viam a aproximar‑se e toda a gente começou a in‑
A professora arrepiou‑se; abraçou‑se sem ventar histórias sobre ele.
querer acreditar no que estava a ouvir. Olhou para Jules disse à mãe que nunca mais voltaria a
a turma. Os miúdos estavam sem pinga de sangue; pôr os pés na escola e que nada o conseguiria fazer
alguns rapazes riam, mas as meninas não estavam a mudar de ideias.
achar graça nenhuma. A escola continuou a enviar‑lhe as faltas para
‘Quero ser gélido e podre com as veias cheias casa.
de sangue roubado.’ Quando algum assistente escolar vinha ba‑
‘Já… hrrumph… chega!’ A professora pigar‑ ter à porta, Jules fugia de casa pelo telhado e corria
reou alto e mandou‑o parar de ler. Jules continuou por cima das casas.
desesperado, elevando o volume da voz: Passou‑se um ano.
‘Quero morder os pescoços das minhas víti‑ Jules deambulava em busca de uma coisa:
mas com os meus dentes afiados e terríveis. Quero…’ mas não sabia o quê. Espreitou nos becos. Procurou
‘Jules! Senta‑te, já!’ nos caixotes do lixo. Nos parques de estacionamen‑
‘Quero cortar‑lhe a carne com os meus den‑ to. Investigou à direita e à esquerda, em cima e em
tes como se eles fossem lâminas e abrir‑lhes as veias’, baixo. E no meio.
leu Jules com ferocidade. Não era capaz de encontrar aquilo que bus‑
A professora levantou‑se. A turma tremia; já cava.
ninguém se estava a rir. Quase nunca dormia. Nunca falava. Sempre
‘E depois quero beber o sangue: deixá‑lo es‑ com a cara voltada para o chão, esquecera as pala‑
correr‑me para a boca e senti‑lo quente na garganta.’ vras secretas que tinha inventado.
A professora agarrou‑o pelos braços, mas ele Até que!
sacudiu‑a e fugiu para um canto. Protegido atrás de Um dia, no parque, Jules entrou no Jardim
uma cadeira gritou: Zoológico.
‘Quero lambê‑las. Beijá‑las! Quero sangue Sentiu um choque quando viu o morce‑
de raparigas!’ go‑vampiro dentro de uma grande gaiola.
A professora esticou‑se e puxou‑o de trás da Os olhos flamejantes do quiróptero fixa‑
cadeira. Ele arranhou‑a e gritou enquanto ela o pu‑ ram‑se nele e Jules viu‑lhe os dentes desbotados
xou até ao gabinete do director. arreganharem‑se num sorriso.
‘É o que eu quero ser! É o que eu quero ser! A partir desse momento, Jules passou a visi‑
É o que eu quero ser!’ tar o Jardim Zoológico todos os dias para contemplar
Não foi bonito. o morcego‑vampiro. Falava com ele e chamava‑lhe
Jules foi posto de castigo no quarto sem po‑ Conde. Sentia no coração que aquele animal era um
der sair. A professora e o director sentaram‑se com homem que se tinha transformado.
os pais dele e contaram‑lhes o que acontecera com A sua mente renovou‑se naquele instante.
vozes sepulcrais. Voltou à biblioteca e roubou um livro sobre
Todo o bairro falava do mesmo assunto. A a vida selvagem.

54
Encontrou uma página que falava sobre taria cá fora dali a pouco. Então poderiam ir à caça
aquela espécie de morcego. Arrancou‑a e deitou o de raparigas para lhes beber o sangue.
livro fora. À noite, Jules voltou ao Jardim Zoológico.
Aprendeu o texto de cor. Puxou para fora o restos dos arames e conseguiu en‑
Aprendeu como o morcego‑vampiro fazia trar por um pequeno buraco para dentro da gaiola.
as feridas nas vítimas. Que se empanturrava em san‑ Estava muito escuro.
gue, lambendo‑o como um gato bebe leite. Que se De joelhos, aproximou‑se do pequeno ni‑
deslocava no chão com as patas traseiras e as asas em nho de madeira onde o morcego‑vampiro descansa‑
movimentos aracnídeos. E qual o motivo pelo qual va e pôs‑se à escuta, esperando ouvir os guinchos.
apenas bebia sangue e nada mais. Enfiou o braço no ninho e chamou o Con‑
Durante meses, Jules foi visitar o morce‑ de.
go‑vampiro e conversou com ele. O animal tor‑ Deu um salto quando sentiu uma picadela
nou‑se a sua única alegria. Um símbolo vivo dos num dedo.
seus sonhos. O rosto macilento iluminou‑se de prazer e
Jules agarrou o morcego‑vampiro, peludo e exaltado,
* puxando‑o contra o peito.
Saiu da gaiola com ele e fugiu do Jardim
Um dia, Jules reparou que no fundo da enorme gaio‑ Zoológico. Correu para fora do parque e entrou nas
la do morcego‑vampiro havia um arame solto. ruas silenciosas.
Olhou em volta, piscando muitas vezes os A madrugada estava a ir‑se embora. A pri‑
olhos de pupilas negras. Não viu ninguém. Estava meira luz do dia pintava o céu de cinzento. Jules não
mau tempo e pouca gente se encontrava no Jardim podia voltar para casa. Tinha de encontrar outro sí‑
Zoológico naquele dia. Jules puxou o arame da gaio‑ tio.
la. Meteu por um beco e trepou uma cerca.
Moveu‑se um poucochinho. Agarrou o animal com segurança: continuava cur‑
Viu um homem sair da casa dos macacos. vado sobre o sangue que lhe escorria do dedo.
Escondeu a mão e afastou‑se, assobiando. Atravessou um pátio deserto e encontrou
Mais tarde, à noite, quando os pais pensavam uma barraca abandonada. Estava cheia de lixo: latas,
que ele estava a dormir, passou descalço pelo corre‑ caixotes de cartão ensopados de humidade e excre‑
dor. Podia ouvir o pai a ressonar. Despachou‑se, cal‑ mentos. Jules certificou‑se que o morcego‑vampiro
çou os sapatos e correu para o Jardim Zoológico. não tinha por onde fugir e fechou a porta da barra‑
Sempre que o segurança desaparecia, para ca.
mais uma volta, Jules puxava o arame. Acabou e co‑ Sentia o coração aos pulos e as pernas a tre‑
meçou a puxar outro. mer. Largou o morcego‑vampiro! Voou para um
Continuou a puxar até ele ficar quase solto. canto e agarrou‑se ao tecto de madeira. Jules abriu a
Antes de regressar a casa, voltou a engatar os camisa à bruta. Os lábios tremiam‑lhe: sorriu como
arames no sítio para que ninguém visse que estavam um maníaco.
desprendidos. Meteu a mão no bolso e tirou a faca de abrir
Jules permaneceu esse dia diante da gaiola os envelopes que roubara de cima da secretária
do Conde, a rir e a dizer‑lhe que, em breve, ele esta‑ da mãe. Cortou um dedo com ela e o sangue mo‑
ria livre. lhou‑lhe a mão toda.
Contou ao Conde todas as coisas que sabia. ‘Conde! Conde!’, gritou, excitado. ‘Bebe o
Que iria treinar como se descia pelas paredes com a meu sangue! Bebe‑me! Bebe‑me!’
cabeça para baixo. Arquejou sobre as latas abandonadas e, ata‑
Disse‑lhe para não se preocupar. Que ele es‑ balhoado, tentou apanhá‑lo. Escorregou. O morce‑

55
go‑vampiro bateu as asas e sobrevoou‑o, indo pou‑ ras, acabou por cair com a cara em cima da relva da‑
sar do outro lado da barraca. nificada.
Jules começou a chorar. Rangeu os dentes. Quis chamar alguém para o ajudar.
O sangue escorrera‑lhe pelo braço para o peito. Tre‑ Só conseguiu balbuciar um murmúrio.
meu, delirante. Cambaleou e avançou em direcção Ouviu o bater de asas do morcego‑vampiro.
ao morcego‑vampiro. Tropeçou e sentiu‑se a ser cor‑ O ruído aproximou‑se. E desapareceu.
tado por uma lata afiada. Silêncio.
Empinou‑se e agarrou o morcego‑vampiro. Sentiu mãos grandes e fortes levantá‑lo com
Encostou‑o à garganta e sentou‑se no chão frio e hú‑ delicadeza.
mido. Suspirou. Moribundo, Jules conseguiu ver um homem
Gemeu e bateu no peito. O estômago co‑ alto, de pele escura, cujos olhos relampejavam como
meçou‑lhe a andar às voltas. O morcego‑vampiro fachos de uma fogueira.
lambeu‑lhe o sangue em silêncio. ‘Meu filho’, disse o homem. BANG!
Jules sentiu‑se a desfalecer.
Pensou no passado. A angústia. Os pais. A
escola. Drácula. Sonhos. Tudo por este momento.
Este momento glorioso.
Abriu os olhos de repente.
O interior fétido da barraca flutuava‑lhe
diante dos olhos.
Não conseguia respirar. Abriu a boca para
tragar o ar e engoliu tudo o que conseguiu. Sabia a
merda. Fê‑lo tossir. O corpinho franzino dele enco‑
lheu‑se no chão frio e húmido.
O cérebro enevoou‑se.
Camadas de dormência como lençóis em
cima de uma cama.
De repente, a mente clareou. Um terrível Richard Burton Matheson foi autor,
momento de lucidez. argumentista e as suas obras incidiram
Sentiu a dor aguda. principalmente nos géneros da fantasia,
terror e ficção cientifica. Foi autor de
Percebeu que estava seminu, sentado em
uma das mais emblemáticas noveletas de
cima de um monte de lixo numa barraca abandona‑ vampiros: Eu Sou a Lenda. Nascido em
da, a deixar que um morcego‑vampiro lhe bebesse o Nova Jersey, de pais noruegueses, Matheson
sangue. cresceu em Brooklyn e graduou-se na
Brooklyn Technical School em 1943. Alistou-
Amotinou‑se, com um grito, e atirou com o
-se e passou a Segunda Guerra Mundial
morcego‑vampiro para longe. Voltou logo a seguir, como soldado de infantaria. Em 1949 obteve
guinchando; batendo‑lhe com as grandes asas pretas o bacherelado em jornalismo na University
no rosto. of Missouri-Columbia e mudou-se para a
California em 1951. Casou-se em 1952 e teve
Jules levantou‑se com dificuldade.
quatro filhos, três dos quais (Chris, Richard
Avançou para a porta, mas mal conseguia Christian e Ali) são autores de ficção
ver o que tinha em frente do nariz, pressionou a pal‑ científica e argumentistas.
ma da mão na garganta para estacar o corrimento de A Saída de Emergência publicou em
Dezembro de 2007 a versão tie-in de Eu Sou
sangue.
a Lenda. Está planeado para meados de 2008
Conseguiu abrir a porta. uma edição especial do mesmo livro, com
Arrastando os pés para um pátio das trasei‑ mais contos e uma capa exclusiva. BANG!

56
[ficção]

O Mundo Apagado
Vasco Luís Curado

«Agora estou aqui, nesta instituição.


O meu corpo e o meu espírito estão isolados de tudo.
Nada penso, nada sinto. Creio que sou nada.»

O meu corte de relações com a Laura já esta‑


va latente há algum tempo. Há pessoas que
mudam, nem sempre para melhor, e ela mudou
raço através do humor tortuoso e destrutivo que
a caracteriza. Laura, ou a imagem dela, tornou‑se
o alvo do rancor que eu destilava secretamente,
bastante depois de termos cancelado a nossa re‑ em pensamentos. Um dia decidi apagar a Laura
lação amorosa. O decorrer da vida encarregou‑se do meu mundo mental, visto que me dominavam
de nos afastar um do outro. Cada um de nós veio ideias de retaliação. Nunca mais frequentei dois
a cultivar outras amizades e relacionamentos, cafés onde ela ia habitualmente. Apesar de eu ser
mas isso não justifica a atitude que ela, gradual‑ também cliente antigo desses estabelecimentos,
mente, foi adoptando em relação a mim. Come‑ deixei de lá ir. Alguém poderá argumentar que
çou a utilizar uma das suas principais armas: a na vida nada é definitivo, mas posso asseverar,
ironia. Confesso que não lido muito bem com os contra quem quer que seja, que aquela decisão
ditos irónicos e espirituosos que me possam lesar. era alimentada por todas as forças do meu ser e
E nisso a Laura revelou‑se bastante cruel, ela que, tinha carácter de coisa irrevogavelmente defini‑
mais do que ninguém, conhecia os meus pontos tiva. Quando eu passava diante da porta daque‑
fracos e sabia como atingir‑me. O que provocou les cafés, virava os olhos para o chão ou para o
nela essa mudança, ao ponto de fazer de mim o lado oposto. Agia como se tivesse apagado com
alvo principal da sua chacota, não sei dizer. uma borracha aquelas duas fachadas na corrente
Não era raro que, em presença de outras de casas e prédios. No lugar onde antes existiam,
pessoas, a Laura provocasse o riso geral com agora havia duas lacunas, dois buracos brancos.
alusões à minha pessoa. Quando me encontra‑ Este apagamento não me livrava de um
va e nos confrontávamos sozinhos, sem que ela vago mal‑estar que sentia quando passava per‑
tivesse o apoio do seu séquito de amigos, cum‑ to daqueles lugares. Então, tive de vetar as duas
primentava‑me com um ar trocista e condes‑ ruas. Apaguei‑as também do meu itinerário cita‑
cendente (sou ultra‑sensível ao mínimo sinal de dino. Aquelas duas ruas deixaram de existir para
condescendência) e fazia um comentário ocioso mim e creio que nem que fosse sonâmbulo tor‑
que, obviamente ou subtilmente, denegria a mi‑ naria a entrar nelas. Anulei‑as da minha planta
nha imagem. Isto, para mim, era pelo menos tão da cidade e também do meu pensamento e da
grave como o resto que ela já me fazia. minha memória.
O facto é que já nada tínhamos a dizer um Mas isto não era suficiente. Para que a
ao outro, e penso que ela lidava com esse emba‑ possibilidade de me cruzar com a Laura fosse

57
ainda menor, vetei também a rua onde ela mora. marem eram reduzidas à condição de uma asso‑
E, por desenvolvimento lógico, tive de apagar o ciação mais, e não já uma eficaz contra‑associa‑
espaço urbano entre a rua onde ela mora e as ção. Deste modo, o meu propósito de ir vetando
ruas daqueles cafés que mencionei. Formou‑se lugares e memórias alimentava o próprio perigo
assim uma sombra ou área negra sobre a planta de que pretendia ser o remédio. Mas quem se co‑
da cidade, uma área proibida para os meus pas‑ locar no meu lugar descobrirá que não há outra
sos e mesmo para os meus pensamentos. Direi maneira de lidar com essas associações que cani‑
antes uma zona de vazio que o meu trabalho de balizam a nossa inteligência e a nossa capacidade
apagamento produziu. de empreender e de pensar. O meu esforço deve
Estas manobras, no entanto, não me ser visto como uma tarefa ciclópica, digna de um
trouxeram paz. Se de facto conseguiram que eu daqueles heróis que se engrandeciam pela pró‑
deixasse de pensar na Laura, levaram a que eu pria impossibilidade dos seus feitos, e não como
activamente não pudesse pensar nela e promo‑ uma falácia lógica ou uma armadilha intelectu‑
vesse mais e mais estratégias para a manter fora al.
do meu mundo. Isto não é tarefa fácil, pois as Por contaminação associativa, por re‑
consequências de se criar uma tal zona de va‑ produção viral dos tabus e interdições que eu ia
zio interferiam no meu quotidiano: havia certos elaborando em torno da imagem da impensável
estabelecimentos dentro da zona apagada (uma Laura, a zona apagada não parava de crescer.
papelaria, uma tabacaria, um cinema) que, ten‑ Percebi que eu não apagava cada vez mais coi‑
do‑se‑me tornado inacessíveis, obrigavam‑me a sas em redor das coisas já apagadas, mas que o
procurar alternativas noutros pontos da cidade. vazio é que ia invadindo o espaço. Aconteceu,
Só o facto de ter de procurar essas alternativas, e por isso, que toda a cidade se apagou, e no meio
os contratempos suplementares que isso acarre‑ desse vazio flutuava apenas a minha casa. Dei‑
ta, fazia com que quase tivesse de me lembrar da xei de sair de casa, porque só o pôr o pé na rua
Laura, e então tinha de desenvolver contra‑tare‑ evocava, por associação, todas as outras ruas e
fas e contra‑estratégias para combater as conse‑ o que há nelas. Fechei todas as janelas e cerrei
quências das anteriores. Assim se foi ramificando as cortinas, porque só o vislumbrar um objecto
uma rede, cada dia mais densa, de actos, factos e citadino, lá fora, ameaçava colorir ou preencher
procedimentos que era preciso tecer. Tudo o que o vazio que eu criara. Passei a demorar‑me cada
podia entrar em associação, próxima ou remo‑ vez mais no compartimento mais remoto, sem
ta, com a zona apagada, eu tinha de suprimir: os janelas, da casa, para não chegarem até mim os
nomes das ruas vetadas, por exemplo, podiam ruídos exteriores que invadiam insolentemente
conduzir associativamente a milhares de coisas o meu reduto. Calafetei a porta desse comparti‑
que eu tinha de apagar do meu pensamento, me‑ mento, revesti as paredes e o tecto com materiais
mória e sensibilidade. Assim, paralelamente à isolantes, criei ali uma câmara de paz e esque‑
teia crescente de factos e associações proibidas, cimento. A minha velha mãe, que enfrentou as
foi‑se desenvolvendo um vácuo, não apenas ur‑ minhas bizarrias, único elo de ligação entre mim
bano, mas também mental. e o mundo exterior, trazia‑me comida, lavava os
Este trabalho de contra‑associação pro‑ lençóis da minha cama, limpava o penico que eu
vocou o alastrar da zona apagada da cidade. É deixava à porta.
espantoso o poder absorvente da associação. As Concluí que a simples existência da mi‑
associações são insaciáveis no seu anseio de con‑ nha mãe era já a prova de que havia um mundo
quista e alargamento. As minhas contra‑associa‑ exterior e que dentro desse mundo havia uma
ções, apesar de corajosas e enérgicas, iam sendo cidade e, algures nessa cidade, havia ruas e lu‑
derrotadas, uma a uma, porque logo após se for‑ gares determinados, e nestes a silhueta daquela

58
[entrevista]

Como
em quem eu não podia pensar. Num instante,
aquele vácuo no seio do qual a minha câmara fi‑
nal flutuava, comigo lá dentro, podia ser invadi‑

organizar
do violentamente pelas cores, cheiros, sabores e
dados concretos da cidade. Todo o meu trabalho
podia desfazer‑se instantaneamente e do interior

uma
do vácuo emergir, zombeteira e cruel, a cidade
que eu apagara. E o resto, todo o resto, vinha logo
a seguir. Tive de esquecer a existência da minha
mãe e daquela porta através da qual comunicava
com ela. A minha câmara isoladora não podia ter
porta. Para eficazmente apagar a minha mãe, não
podia precisar dela. Não podia mudar de roupa
e de lençóis. Não podia comer. A câmara reve‑
monarquia
lou‑se não ser o termo da minha fuga, o porto
de abrigo que eu procurava. Tinha ela também
Entrevista a
de ser apagada. Só eu podia existir, não física ou
mentalmente, mas num vácuo. Mergulhei nesse
Octávio dos Santos
vácuo, diluí‑me nele, tornei‑me vácuo, coisa apa‑
gada.
Agora estou aqui, nesta instituição. O Octávio dos Santos é o organizador
meu corpo e o meu espírito estão isolados de
tudo. Nada penso, nada sinto. Creio que sou da antologia de história alternativa:
nada. Tenho momentos em que torno a ser algu‑ A República Nunca Existiu!
ma coisa e então vejo pessoas à minha volta, uma a publicar pela Saída de Emergência
cama branca, galhos de árvores para lá das jane‑
las. Mas anulo esses momentos de fraqueza que dia 21 de Janeiro
trazem consigo a realidade do mundo e regresso
à minha diluição. Nos meus sonhos, vejo‑me às
vezes a vogar numa paisagem branca e lisa como
uma folha. Tem de ser assim, caso contrário re‑
C omo nasceu a ideia desta antologia?
Como eu explico na introdução, a antologia
nasceu de um conjunto de factores, de influências.
nasce o mundo a partir do nada, e dentro dele a Principalmente, de leituras que fiz no Verão de
figura daquela que não vou nomear e a lembran‑ 2006: «Roma Eterna», de Robert Silverberg, e «A
ça das ofensas que me dirigiu. BANG! Invenção de Leonardo», de Paul J. McAuley. Da
conferência de Gerson Lodi‑Ribeiro no Fórum
Fantástico desse mesmo ano, sobre o conceito de
«história alternativa»... e a necessidade de haver
Vasco Curado nasceu em 1971. Publicou, no mais narrativas deste tipo em português. De ou‑
domínio da ficção, o livro de contos
tro livro meu, escrito há quase três anos e ainda
“A Casa da Loucura” (Ausência, 1999) e
o romance “O Senhor Ambíguo” (Escritor, não publicado, intitulado «Espíritos das Luzes»,
2001). Em 2006 participou na antologia que versa sobe um Portugal... diferente. Enfim,
lovecraftiana A Sombra Sobre Lisboa da Saída da própria efeméride, dos 100 anos do Regicí‑
de Emergência. Psicólogo clínico, publicou
dio, que eu sabia que iriam ser assinalados em
uma tese de mestrado em Psicopatologia,
“Sonho, Delírio e Linguagem” 2008... e a verdade é que, nos últimos anos, eu te‑
(Fim de Século, 2000). BANG! nho dedicado especial atenção, tenho concebido

59
vários projectos, à volta de efemérides nacionais da Monarquia e da Família Real! Porém, e talvez
importantes. E esta é uma das mais importantes. surpreendentemente, isso acabou por não acon‑
tecer assim tanto. Há um conto em que, de facto,
Qual foi o critérina selecção dos contistas? a Casa de Bragança é «brindada» com palavras
Muito simplesmente, acabei por escolher princi- muito duras, nas quais eu não me revejo, mas isso
palmente pessoas que eu conheço pessoalmente, foi uma prerrogativa do seu autor. Aliás, nunca
mas que eu sei que escrevem bem, mesmo que será de mais salientar que, dos 14 autores do livro,
algumas não tivessem ainda obra publicada, ou só três são monárquicos assumidos, militantes e
que não conhecia pessoalmente... mas das quais «encartados»: João Aguiar, Luís Richheimer de
já lera, e gostara, dos seus livros. Como eu tam‑ Sequeira e eu.
bém refiro na introdução, há várias ligações que
podem ser estabelecidas entre os autores, quase Um dos contos é do autor brasileiro, Gerson
todas a partir de mim, mas não só. Exemplos: Lodi‑Ribeiro. Por que é que se manteve a orto-
Luísa Marques da Silva, Maria de Menezes, Sér‑ grafia brasileira?
gio Sousa‑Rodrigues e eu publicámos livros na Antes de mais, há que dizer que eu nunca «per‑
colecção «Bibliotheca Phantastica», que António mitiria» que o Gerson não integrasse a antologia.
de Macedo organizou e dirigiu para a já falida Afinal, ele foi talvez o principal «culpado», o prin‑
editora Hugin; Alexandre Vieira, Bruno Martins cipal inspirador, deste projecto! E mantive a orto‑
Soares, Luís Bettencourt Moniz e eu pertencemos grafia brasileira por respeito e homenagem a ele,
a uma tertúlia, que é também um blog, denomi‑ para manter a «autenticidade» da sua história, para
nada Esquinas; João Aguiar, além de ser um dos manter o... digamos, «sabor tropical», e também
nossos maiores escritores, foi igualmente o meu como uma forma, muito singela, simbólica, de de‑
primeiro director na TV Mais, quando eu inte‑ monstrar que é possível a coexistência... pacífica
grei a equipa inicial desta revista, em 1992; Luís das diferentes ortografias da língua portuguesa.
Richheimer de Sequeira e eu conhecemo‑nos em Sou um total opositor desse grande disparate cha‑
2003, quando ele foi, com António de Macedo, mado «Acordo Ortográfico», que pretende mudar
um dos apresentadores na sessão de lançamento «por decreto» a forma como escrevemos, falamos
de «Visões», o meu primeiro livro; Miguel Real e até pensamos! Nunca nada nem ninguém me
e eu conhecemo‑nos pessoalmente na Feira do obrigará a escrever «baptismo» sem «p», «facto»
Livro de 2006, e nesse mesmo ano convidei‑o sem «c»... e, claro, «Octávio» sem «c»!
para ser orador em dois colóquios que eu propus
à Biblioteca Nacional e que com esta organizei... Depois desta entrevista a Bang! oferece um dos
contos da antologia, O Patriota Improvável, de
És o organizador da antologia e és monárquico. Maria de Menezes. Porque escolheste este conto
Esperavas apenas contos pró‑monárquicos? para apresentar a antologia!?
Se entendermos «contos pró‑monárquicos» como Sem desrespeito e desprimor pelos outros contos
textos que fazem claramente a apologia daquele e pelos seus autores, escolhi «O Patriota Imprová‑
tipo de regime político, devo confessar que não. vel» porque considero‑o.. aliás, já o disse à Maria
Apenas exigi aos autores que respeitassem os dois de Menezes... como que o «conto‑âncora» deste li‑
princípios básicos do projecto: o Regicídio de 1 de vro. É, aparentemente, um dos menos espectacula‑
Fevereiro de 1908, tal como o conhecemos, nun‑ res, mas, na minha opinião, consegue plenamente
ca aconteceu; e a República nunca foi instaurada atingir um dos objectivos implícitos deste projec‑
em Portugal, nem em 5 de Outubro de 1910 nem to: tornar credível, através da utilização de situa‑
depois. A partir daí, tinham liberdade de fazer ções, de personagens e de diálogos que nós pode‑
quase tudo... até para dizerem mal, se quisessem, ríamos conhecer, ouvir ao nosso lado, encontrar

60
«ao virar da esquina», tornar credível pelo recurso Se quisesses convencer alguém a ler A República
a elementos de uma época e de um quotidiano que Nunca Existiu!, o que lhe dirias?
conhecemos e que é o nosso, uma hipótese abso‑  Poderia dizer‑lhe qualquer coisa como isto: «Se
lutamente... fantástica, que seria a de Portugal, até queres saber como Portugal poderia ter sido, se
hoje, ter sido um Reino e não uma República! queres imaginar um Portugal diferente e prova‑
velmente para melhor, se queres ler um bom livro
Como esperas que esta antologia seja recebida? que resulta de uma ideia original, se queres ter “14
Pela crítica, pelos monárquicos, pelos republi- autores pelo preço de um”, então lê “A República
canos? Nunca Existiu!”» BANG!
Primeiro que tudo, espero, e desejo, que este li‑
vro seja bem recebido pelos leitores! Que venda
muito! Pelos «críticos»? Sinceramente, não acre‑
dito que eles prestem muita atenção a algo que
é, e perdoe‑se‑me a imodéstia, tão diferente, tão
inovador no panorama da literatura em Portugal.
Pelos monárquicos? Espero que eles gostem, e que
façam desta antologia como que uma «bandeira».
Pelos republicanos?! Mas... eles existem?! Se exis‑
tirem, que comprem... para depois dizerem mal!

Que outros projectos tens para o futuro? Have-


rá lugar para mais antologias?
Literariamente falando, projectos não me faltam. Octávio dos Santos nasceu em Lisboa a 16
de Abril de 1965. É jornalista e foi redactor
A «solo», tenho para publicar: o «Espíritos das Lu‑ das revistas TVMais, África Hoje, Cyber.
zes», que já mencionei; «Festas – Quando o Carna‑ Net, Inter.Face e Comunicações. É autor dos
val encontrou o Natal», uma narrativa infanto‑ju‑ livros: «Visões», uma colectânea de contos
venil; «Visões 2», que ainda não comecei a escrever inserida na colecção Bibliotheca Phantastica
dirigida por António de Macedo (2003,
mas que já está praticamente todo delineado na Hugin; áudio-livro em 2005, SbH); «Os
minha cabeça; três, quatro livros de poesia... Isto Novos Descobrimentos – Do Império à CPLP:
na ficção. Quanto à não‑ficção, tenho três, quatro Ensaios sobre História, Política, Economia e
livros de ensaios, de artigos, textos que fui escre‑ Cultura Lusófonas», escrito com Luís Ferreira
Lopes e com prefácio de José Manuel Durão
vendo e publicando desde há mais de 20 anos, e Barroso (2006, Almedina). É autor do projecto
que se intitulam «Nautas», «Estados», «Sentidos» MAR (http://mar.pt) e «um apaixonado pelo
e «O Novo Portugal». E ainda «Códigos – Outras século XVIII»: iniciou em 2004 um projecto
Maneiras de Ouvir os Mesmos Discos», que resul‑ e respectiva equipa para a recriação virtual,
em computação gráfica, do Teatro Real do
ta de um passatempo, de uma experiência contí‑ Paço da Ribeira ou Ópera do Tejo (http://
nua que eu faço há quase 20 anos... Quanto a ou‑ operadotejo.org); participou, no mesmo ano,
tras antologias... Se «A República Nunca Existiu!» na campanha «Salve um Livro II» promovida
vier a ter, pelo menos, um sucesso moderado, não pela Biblioteca Nacional, tendo sido mecenas
de «O Uruguai» (1769) de José Basílio da
coloco de parte a hipótese de vir a organizar um Gama; à BN propôs, e com esta co-organizou,
«A República Nunca Existiu! – Parte 2», com ou‑ os colóquios «Arcádia Lusitana – 250 Anos» e
tros autores, e que poderia, talvez, ser publicado «Cinco Livros de 1756» (2006); e está a tentar
mesmo antes de 5 de Outubro de 2010. Se a Saída concretizar um plano de gravação e edição de
músicas daquele período.
de Emergência estiver interessada e quiser apostar http://octanas.blogspot.com
na continuação desta «aventura», quem sabe? http://esquinas.org/blog/author/quinas BANG!

61
[ficção]

O Patriota Improvável
Maria de Menezes

O Patriota Improvável é um dos 14 contos


que irá constar da antologia de história alternativa,
A República Nunca Existiu!

–D evo dizer que sou totalmente a favor do


referendo. Totalmente a favor. E olhe que
me considero um patriota e um verdadeiro monár‑
A boa educação há‑de dar cabo de mim.
– Pois foi – retomou ele, animado. Não per‑
cebeu o subtilíssimo tom de remate da minha res‑
quico! posta; mas como esperar subtileza de um amigo da
– Não tenho a menor dúvida – murmurei eu, Idalete? Serviu‑se com liberalidade do meu melhor
num arquejante esforço de urbanidade. whisky, animado por ver reconhecida a sua heredi‑
O sujeito era mais uma daquelas criaturas que tária devoção nacionalista. Eu engoli um golo de vi‑
a Idalete costuma arrastar consigo para despejar em nho branco, a minha fiel companhia em noites de
minha casa, porque acredita que, desde o nosso di‑ festa – se excluirmos a Idalete, parceira obrigatória,
vórcio, eu vivo solitário e amargurado – não tendo embora indesejada. Este pensamento orientou as
sequer, como ela, uma profissão entusiasmante para minhas divagações para um muito conhecido beco
preencher o vazio da minha existência – e necessito sem saída: como diabo conseguiria a minha «ex» sa‑
de consórcio sentimental; acode ao pobre sofredor ber antecipadamente a data das reuniões que eu or‑
com a imutável inevitabilidade de um pássaro mi‑ ganizava de vez em quando, em princípio só para os
gratório em jornada para os climas quentes. Aparece amigos? Aquela questão perseguia‑me há anos.
sempre com homens porque se convenceu de que – Eu já não o conheci, mas lembro‑me como
sou gay – de outra forma, como explicar os meus se fosse hoje de ouvir o meu avô contar a história
gostos delicados e a minha perene fascinação pela – prosseguia o meu companheiro, com o ímpeto de
beleza? Que melhor e mais inócua explicação para um actor bem treinado ao ouvir a sua deixa. – Esta‑
eu ter desertado miseravelmente do nosso «projecto va‑se em Fevereiro, fazia frio e o bisavô, que na altu‑
comum de vida»? ra era ainda rapaz solteiro, andava constipado. Pediu
– Não sei se já lhe contei que foi o meu bisavô para sair um bocadinho – era caixeiro na Rua dos
quem impediu que D. Carlos I fosse assassinado, na‑ Fanqueiros – e foi tomar um cacau bem quente num
quela conjura horrível de 1908 – transmitiu o fulano, botequim ali à Rua dos Correeiros. Enquanto ia be‑
após uma pausa. bendo o seu cacau, calhou a reparar num homem de
Como só nos apresentaram há meia hora, não barba muito negra, que estava sentado sozinho num
é de estranhar que alguns episódios da saga da sua canto, com um copo de bagaço. E deu fé de uma coi‑
família ainda me sejam estranhos. Reprimi a vonta‑ sa que achou estranha: o tipo vestia modestamente,
de de lhe dizer isto mesmo e sussurrei polidamente: como um operário, de boné e gabão coçado, mas ti‑
– A sério? Mas que interessante! nha mãos macias e limpas, de quem não trabalhava

62
em arte mecânica. De repente o tipo virou‑se para gabardina, e reconheceu o vulto de uma espingarda.
espreitar a rua, o casaco abriu‑se um pouco e o meu Dois homens armados, e o terceiro provavelmente
bisavô viu brilhar o cano de uma espingarda... também o estaria: a coisa era séria. Os sujeitos acen‑
A Idalete passou com um pudim de gelatina deram os cigarros e saíram, o que estava sentado ati‑
de sua autoria (as sobremesas que faz costumam rou umas moedas para cima da mesa e saiu também,
geralmente incluir gelatina, vá‑se lá saber porquê; e o meu bisavô aproveitou logo para dar às de Vila
em alternativa, contêm bolacha‑maria esmagada, Diogo, que até as pernas lhe tremiam de medo. Os
e às vezes as duas coisas) e serviu‑me, indiferente três homens desciam a rua a andar depressa, como
aos meus protestos. Também serviu o outro sujeito quem tem alguma coisa para fazer. Lá fora, o bisavô
– nem sei como se chama; é de esperar que tenha hesitou: sentia vontade de arrepiar caminho, voltar à
nome, e mesmo que a Idalete o tenha mencionado, loja e não pensar mais no assunto, mas a curiosida‑
mas varreu‑se‑me de todo. Ele limitou‑se a lançar de foi mais forte e seguiu atrás deles, a boa distância,
um olhar indiferente sobre o pudim, que realmente encolhido como um ratinho.
não merecia mais, pousou o prato e prosseguiu a sua A Idalete veio saber se não queríamos mais
história: pudim, e ralhou com o monárquico patriota (afi‑
– O meu bisavô ficou sem pinga de sangue, nal sempre tem nome, chama‑se Rui) por não ter
porque morria de medo de armas. Julgou que o ou‑ tocado no dele. O Rui levou uma colherada à boca,
tro fosse um assaltante e quis fugir dali; mas deixar o com lentidão estratégica. A atenção da minha «ex»,
cacau e largar a correr, assim sem mais nem ontem, entretanto, foi atraída por uma garrafa que tombou;
ia dar nas vistas. correu logo a levantá‑la e enxugar o vinho derra‑
Não vou tocar no pudim: é um dos meus privi‑ mado, devotadamente. Fá‑lo‑ia com o próprio ca‑
légios de divorciado. No entanto, não é prudente que belo, como Maria Madalena os pés de Jesus, caso a
a Idalete o perceba, ou ficará de pé, em minha frente, Natureza não lhe tivesse avaramente fornecido um
mirando‑me com ressentido ar de censura até eu o ridículo pêlo de rato, agora cortado curto e tingido
comer todo, coisa que acabarei inevitavelmente por de vermelho – por ela própria, em casa, aposto; ca‑
fazer, para escapar a tal provação. Escondo o prato beleireiro algum seria capaz de provocar tamanho
debaixo do sofá, tomando mentalmente nota para o desastre. Vendo a costa livre, o Rui abandonou com
recolher, mais tarde. Enquanto decidia comigo mes‑ tranquilidade o prato, e prosseguiu:
mo esta estratégia, o meu companheiro avançava na – Chegados ao Terreiro do Paço, foi cada qual
sua narrativa, com evidente gosto: para seu lado. «A quem será que estes velhacos vão
– Enquanto o bisavô ia engolindo o cacau o fazer a espera?» pensou o meu bisavô com os seus
mais depressa que podia – estava a escaldar – apare‑ botões. E então reparou que a praça se encontrava
ceram mais dois sujeitos, de gabardina abotoada até cheia de gente. «Por que é que cá está tanto povo?»
acima. Não se sentaram com o primeiro, mas o meu perguntou ele a uma velhota de xaile e lenço que es‑
bisavô reparou que trocaram um olhar de entendi‑ tava sentada nas arcadas, sobre uma cesta. «Homes‑
mento. Ficaram de pé ao balcão e também pediram sa!», disse a mulher, surpreendida, «então vosseme‑
bagaço, sempre fazendo de conta que não conheciam cê não sabe que chega hoje o Rei do Alentejo? Cá o
o homem da mesa. Um deles sacou de um relógio, povo acudiu para o ver; eu por mim, quando vai e
abriu‑o e viu as horas. O bisavô apurou o ouvido e quando volta, não há vez nenhuma que não venha
ouviu‑o dizer ao outro: «Temos de ir, a esta altura o vê‑lo passar, que é nosso Pai, e a Rainha nossa Mãe
comboio já deve ter chegado, o telegrama dizia que e uma linda senhora, benza‑a Deus, e os filhos uns
traz atraso de uma hora; e o vapor põe‑se do Barrei‑ ricos mocetões, que a Santa Virgem lhos conserve
ro aqui num instante.» «É só comprar cigarros», tor‑ com saúde!» E então o meu bisavô percebeu ao que
nou o outro. Quando estendeu a mão para o tabaco, vinham os três homens.
o meu bisavô reparou numa saliência por baixo da Não fazia ideia como é que o bisavô do tipo

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chegara ao Terreiro do Paço, e quem era a velha, e a galope por entre a multidão, directo à estação dos
sobretudo o que é que os tais três homens andavam a barcos, esporeando o cavalo e gritando «Arreda! Ar‑
tramar, mas não tinha lata de fazer perguntas: iriam reda!», e arriando o pingalim nas pessoas que não se
revelar a minha completa desatenção. Não era de afastavam. Ia com tal velocidade que as ferraduras
todo culpa minha, desculpei‑me: quem consegue do cavalo até faziam faíscas nas pedras da calçada…
prestar sentido a alguma coisa quando tem uma lou‑ A minha ex interrompeu os seus quefazeres
ca à solta em casa, atafulhando os convidados com domésticos para exortar os presentes a unirem es‑
gelatina? forços «contra o aquecimento global». Diz isto com
– Fantástico! – exclamei, porque a entoação do aquele ar de loucura fanática nos olhos que, infe‑
tipo me deu a entender que era altura de produzir lizmente, conheço demasiado bem. Daqui a pouco
algum encorajamento. «Fantástico» é uma excelente começará a perorar sobre a globalização – também
palavra para tais ocasiões. Ele abanou a cabeça, satis‑ é contra a globalização, claro. Tenho de conseguir
feito por haver atraído um ouvinte tão aplicado: afastá‑la da minha casa de uma vez por todas ou,
– O meu bisavô ficou para morrer. Entretan‑ mais dia, menos dia, não tenho amigos.
to, já não se viam os assassinos, nem estava polícia – De repente, o meu bisavô deu com o ho‑
nenhum ali nas redondezas; só ao pé da estátua uns mem das barbas ali mesmo ao lado. Tinha posto um
guardas reais a cavalo. Mas era preciso deter aqueles joelho em terra e apontava a espingarda ao tenen‑
carrascos antes que matassem o Rei. Então ele sentiu te: havia percebido que este ia avisar o Rei, e que‑
subir‑lhe uma espécie de fúria lá de dentro e, sem ria abatê‑lo antes que desse o alarme. O bisavô dizia
pensar em mais nada, desatou a correr na direcção que nem teve tempo de pensar: que saltou para cima
que o homem das barbas tinha tomado e a gritar: do homem e desviou o tiro; com o choque, a arma
«Aqui d’el‑rei! Aqui d’el‑rei! Agarra, que querem voou pelo ar. O guarda fez o cavalo carregar sobre o
matar Sua Majestade!» A multidão começou a me‑ assassino, atirou‑o ao chão e apontou‑lhe a pistola.
xer‑se, inquieta; uns tantos, com medo, desataram Por essa altura, já estava a praça inteira amotinada;
a fugir e a atropelar‑se uns aos outros. «Apanhem os outros bandidos tinham sacado também das es‑
essa canalha! Querem matar o Rei! Há mais dois! pingardas e desataram aos tiros, para tentarem abrir
São uns de gabardina! Trazem espingardas consigo! caminho e salvar a pele, mas a multidão atacou‑os,
Aqui d’el‑rei! Agarra! Agarra!», berrava o meu bi‑ aos gritos de «Agarra que é assassino!», tirou‑lhes as
savô, sempre correndo. Ao longe ouviu‑se um tiro armas e matou‑os ali mesmo, à cacetada e ao ponta‑
isolado, como se fosse um sinal. Apareceram então pé. Só veio a sair dali com vida o homem das barbas,
dois tropas da Guarda, um tenente e um soldado, e que se chamava Buíça…
o tenente fez parar o meu bisavô e perguntou‑lhe o Ainda não se chegou à globalização: enca‑
que é que se passava… lhámos temporariamente nos alimentos transgé‑
Sentada à mesa, a Idalete, sempre solícita, ras‑ nicos. A Idalete, como não podia deixar de ser, «é
pava os restos dos pratos, hábito que tem o condão contra»; manifesta com alarido a sua convicção e
de me irritar; depois há‑de levar a louça para dentro chama «criptofascistas» ao Tomás e à Helena, que
e esfregá‑la à mão, porque «não merece a pena ligar não partilham a sua convicção; não sei onde terá ido
a máquina por causa disto». Mais tarde ver‑me‑ei encontrar tal palavra. As suas atitudes começam a
obrigado a lavar tudo de novo, porque as nossas no‑ ultrapassar todos os limites toleráveis da inconveni‑
ções de higiene não coincidem, como aliás quase to‑ ência: tento pedir licença ao meu interlocutor para ir
das as outras. acabar com aquilo, mas ele prende‑me o braço com
– Então o tenente disse para o praça: «Amílcar, força inesperada:
tu segues aqui com este amigo a procurar o tal tipo; – Deixe‑se ficar quieto: não vê que toda a gente
se ele o avistar, prende‑o logo, que depois se vê ao se está a divertir à grande?
que veio. Eu vou prevenir Sua Majestade.» E partiu Olho para o sujeito – pela primeira vez. Devo

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confessar que, até ali, a sua presença tinha sido tão das suas festazinhas. Você tem o hábito de ir comprar
insignificante e importuna como a de uma mosca; as bebidas na véspera e de as mandar levar a casa. As
agora reparo que tem uns olhos invulgarmente inte‑ duas têm uma combinação: sempre que chega a car‑
ligentes e perspicazes. O rosto, a figura e o vestuário, rinha das entregas, a porteira vai a correr telefonar à
em contraste, são banais – talvez demasiado banais, Sr.ª Doutora.
o que é estranho nesta época, em que todos procura‑ Volto a corar, desta vez de raiva. Eu tinha ima‑
mos ostentar a nossa pitada de originalidade, como ginado muitíssimas hipóteses para explicar aquele
pavões sacudindo vistosamente as caudas. fenómeno, desde bisbilhotices da minha mãe, mo‑
– É desagradável para ela – replico, algo inco‑ vida por lunáticas fantasias de reconciliação, taga‑
modado com a penetração daqueles olhos e a frie‑ relices imponderadas da Gina, a minha irmã, indis‑
za daquelas palavras. – É indecente da minha parte crições irreflectidas dos meus irmãos, involuntárias
consentir que a gozem, em minha casa, ainda por inconfidências da D. Rosa, minha fiel empregada
cima. doméstica, mesmo revelações imprudentes de al‑
O fulano olha‑me com um sorriso: guns amigos, e havia‑as descartado todas. Estava a
– Você é boa pessoa. Estive a observá‑lo en‑ pontos de acreditar que a minha «ex» possuía uma
quanto contava a minha história, e você pareceu‑me invulgar capacidade de premonição, apontada para
um tipo decente; daquelas pessoas que ainda têm a minha pessoa e as minhas actividades festivas; a
consideração pelos outros. revelação de que tal anteconhecimento se resumia a
Coro contra vontade. Estou habituado a uma reles habilidade rasteira pareceu‑me o cúmulo
ver‑me a mim próprio, com algum peso na consci‑ do desaforo.
ência, como um narcisista egocêntrico e hedonista. – Vai‑me perguntar por que razão lhe conto
– Não é culpa sua se a Dr.ª Idalete se põe a jei‑ isto – disse o Rui, com aquela serena segurança de
to para ser gozada, não é assim? – prossegue o meu si próprio e das reacções dos outros que parecia ser
companheiro, sensatamente. a viga mestra do seu carácter. Eu de facto não ia per‑
Claro que não. Mas aquilo incomodava‑me. A guntar‑lhe coisa nenhuma, porque ainda estava di‑
educação constitui, muitas vezes, um sério handicap. gerindo a informação anterior, mas acenei que sim,
Contudo, mesmo que quisesse, não seria capaz de numa tentativa de recuperar o pleno uso da minha
refutar as suas palavras porque ele tinha inteira ra‑ mente abalada.
zão: longe de mim negá‑lo. A Idalete, no outro lado – Antes do mais, como é que sabe? – interro‑
da sala, comprovava mais uma vez aquelas ponde‑ go.
rações, reclamando com veemência a proibição das – Foi ela que me contou. É muito fácil sacar‑lhe
pesquisas genéticas – e exasperando a Fátima, que coisas. Eu sou fotógrafo – prossegue ele. – Trabalho
trabalha nessa área. O resto dos convidados ria à so‑ para o jornal O Guardião e faço uns serviços por fora
capa. como free‑lancer. No outro dia fui cobrir a abertura
– Quer acabar de ouvir a história do meu bisa‑ de uma exposição...
vô, ou vamos falar de negócios? – Você parece que engoliu a cassete da Iniciati‑
– Temos negócios para falar? – perguntei eu, va de Esquerda – retine através da sala a voz irritada
completamente perplexo. da Fátima.
– Claro que sim – respondeu o Rui, com se‑ – Na posição que ocupo – replica com digni‑
gurança. – Foi para isso que vim. Para lhe provar a dade a Idalete, na sua entoação mais freirática – não
minha boa vontade e mostrar que faço jogo limpo, posso manifestar preferências políticas.
vou‑lhe dar uma informação que você procura há Quem a ouvir fica com a ideia de que ocupa
anos: é através da porteira. um cargo de Secretária do Reino, pelo menos; de
– Perdão? «É através da porteira» o quê? facto, é apenas a chefe dos Serviços Educativos do
– É através da porteira que a Dr.ª Idalete sabe Museu da Pré‑História, ou seja, criada de servir, ca‑

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pacho e bombo da festa do respectivo director; para por calma, tranquilidade, um lar, filhinhos peque‑
compensar, inferniza a vida de todos os seus subor‑ nos... Filhos sempre me recusei a ter, para evitar
dinados. Ocupa o resto do tempo a congeminar que se parecessem comigo, ou com a mãe, ou ainda,
brincadeiras idiotas, e alegadamente educativas, que horror dos horrores, com ambos! Mas deixei‑me
impinge às infelizes crianças que pais e educadores seduzir pela embaladora canção doméstica. Pensei
imprevidentes arrastam até o Museu. Chama a isto que nunca seria capaz de atrair parceira mais apete‑
a sua «carreira» – fazendo sempre acompanhar a cível: casei. Descobri que a Idalete, além de feia, era
palavra do adjectivo «apaixonante». também presunçosa, mesquinha e ignorante, mas
– Você não está a ouvir nada – observa pa‑ suportei‑a com estoicismo durante sete anos. Aí tive
cientemente o Rui. – Tem mesmo de se ver livre uma revelação, como S. Paulo na estrada de Damas‑
dela, sabe? Ela perturba‑o. co: resolvi atacar o mal pela raiz. Divorciei‑me e …
– Diga‑me alguma coisa que eu ainda não sai‑ – Então, não responde? – anima o Rui, com
ba – suspiro eu. um meio‑sorriso cáustico.
– Por que diabo se casou com ela? – Parvoíces que se fazem na juventude – sin‑
Em geral, eu ignoraria tal pergunta como tetizo.
uma impertinência; mas o meu interlocutor mos‑ O meu recente amigo suspira e sacode a ca‑
trava um dom de exigir respostas a questões emba‑ beça:
raçosas que faria honra ao mais calejado urologista. – Ser novo é uma chatice, mal sabem eles...
Como responder‑lhe? Eu sou o deplorável resultado – A quem o diz – pronuncio eu, soturnamen‑
de uma perversa roleta russa genética: o meu pai foi te.
um belo homem, a minha mãe lindíssima mulher, Fazemos um breve silêncio, de desenganado
os meus irmãos saíram ambos bonitos, a Gininha companheirismo emocional; depois o Rui sacode os
chegou a finalista do concurso da Miss Portugal... e humores depressivos:
eu exibia uma versão grotesca dos graciosos traços – A Dr.ª Idalete contou‑me das suas opera‑
familiares, desprovido de queixo mas com um nariz ções plásticas – refere, naquela sua expedita manei‑
descomunal, orelhas de abano, dentes espetados; e, ra de banalizar as realidades incómodas. Mira‑me
para mais, magricela e sem músculo. «Deixa lá, o de lado, com ar avaliador, e declara, com o típico
que importa é que seja bom rapaz!», diziam família desprendimento com que um provado macho he‑
e amigos, procurando alentar a minha pobre mãe. terossexual avalia o aspecto físico de outro, que eu
Grande consolo! Acanhado e inseguro atravessei a agora «estou bem».
infância e a adolescência, sempre de barrete enfiado Coro de novo: sou doentiamente sensível a
na cabeça para esconder as orelhas, suspirando por elogios. Claro que «estou bem» agora, depois de
uma burka que me tapasse o rosto por inteiro e me muita cirurgia e trabalho dentário – para não men‑
poupasse a olhares avaliadores. Nunca tive uma na‑ cionar as horas no ginásio. Coro de agrado mas
morada. Na Faculdade conheci a Idalete, que era tão decido ajuizadamente não particularizar, e manter
feia como eu mas parecia não reparar, e que se mos‑ secreta a depilação a laser, que iniciei quando uma
trava interessada em mim, e compreendia os meus das minhas recentes namoradas, num momen‑
padecimentos. De facto, não compreendia nada, to íntimo, me chamou «felpudinho». Uma coisa é
nem de mim, nem fosse do que fosse; mas já nes‑ certa: sempre que ganho mais uma batalha contra
sa altura possuía aquela sedativa voz monocórdica a fealdade sinto‑me, de facto, «bem» – como se o
que, aos ouvidos de um jovem inexperiente, soava meu espírito e a minha alma se desanuviassem e eu
compadecida e extremosa. Os vinte e tal anos são ficasse cada vez mais parecido com aquele autênti‑
uma altura sensível na vida de um homem, porque co «eu» que existe dentro de mim. Não disse Platão
as hormonas, exaustas dos efervescentes galopes ju‑ que o Bom, o Belo e o Verdadeiro partilham a mes‑
venis, seguem agora num trote sossegado e anseiam ma essência? Assim, à medida que me aproximo da

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Beleza, também me torno mais bondosa pessoa, e bastante chateado a aturar os discursos; mas adian‑
mais fiel a mim próprio... A voz do Rui, prática e te. No final, a Dr.ª Idalete meteu conversa com ela...
terra‑a‑terra, faz‑me despenhar bruscamente do As pessoas comuns não conversam com os
Mundo das Ideias: membros da Família Real, eles é que conversam
– Vamos então discutir os nossos negócios. connosco; mas tal noção é inacessível ao cérebro da
– E você a dar‑lhe com os negócios! – excla‑ minha «ex», refractário a questões de boas manei‑
mo, um tanto agastado, porque me estavam agra‑ ras. Corro maquinalmente os olhos pela sala: a Ida‑
dando aquelas meditações. – Que lata! Você julga lete não se vê em lado algum, nem se ouve, e isto há
que é só entrar por aqui dentro, contar uma história já um bocado. Tal ausência quer dizer que ou estará
da carochinha qualquer e dizer que quer falar de ne‑ lavando a loiça, ou bisbilhotando nos meus armá‑
gócios? Que negócios são esses? Que demónio quer rios. O Rui segue a direcção do meu olhar:
de mim? – Deixe a tipa em paz e preste atenção! – so‑
– Vamos por partes – replica ele calmamente, pra, aborrecido. – A Dr.ª Idalete meteu conversa
reforçando o gelo do copo com mais três dedos de com ela e disse que o seu ex‑marido a conhecia. A
whisky. – A história do bisavô tem uma razão de ser: Duquesa ergueu as sobrancelhas mas perguntou
às vezes preciso de sacar como são as pessoas, o que educadamente quem era o cavalheiro em causa, e
lhes interessa na vida, essas coisas que a malta não fez um sorriso ao ouvir o seu nome: «Conheço‑o
diz, e tenho reparado que, se lhes conto uma histó‑ muito bem, fomos colegas no colégio. Dê‑lhe um
ria qualquer, elas distraem‑se e sem querer abrem o abraço quando o vir», disse ela, e depois virou‑lhe
jogo, e aí eu topo‑as. as costas e acabou com a conversa.
– Ai sim? E o que é que topou a meu respei‑ Aquilo era mesmo da Madalena – Sua Alteza
to? Real a Duquesa de Portalegre, para os não‑íntimos.
– Que a coisa que mais deseja no mundo é Muito capaz de se dar ao respeito, quando é preci‑
ver‑se livre da sua «ex», de uma vez por todas. so; mas uma jóia de rapariga, e a pessoa mais des‑
Aquelas palavras deixam‑me embasbacado. pretensiosa e afável que existe. Eu, ela e a irmã mais
– Mas eu nem sequer... – começo a dizer, e nova, a Duquesa da Guarda, andámos juntos no an‑
interrompo‑me. tigo Colégio D. Luís II; o Rei é bastante mais velho
– Nem sequer ouviu uma palavra da história que as irmãs e não cheguei a conhecê‑lo. A Mada‑
– conclui sorridente o Rui. – E não ouviu porque lena e eu fomos colegas de turma do princípio ao
trazia sempre o sentido nela, danado com as tonti‑ fim do liceu, e tornámo‑nos inseparáveis. A Idalete
ces que a via fazer. sempre me invejou tal amizade – é uma alpinista
Tudo aquilo era de uma lógica inabalável; mas social determinada – mas a época do nosso casa‑
havia ainda muita coisa por explicar. mento coincidiu com a invalidez e morte do Duque,
– Como raio é que a conhece? – pergunto, e felizmente nunca tive de a apresentar à Madalena,
algo suspeitoso. coisa de que decerto não me orgulharia. Sorri inti‑
– Pois era isso mesmo que eu tinha começado mamente ao pensar que dali a uma semana teria o
a dizer, como é que conheci a Doutora; você é que prazer de encontrar a minha amiga no Rally Real
me interrompeu – profere ele pacientemente. – Eu dos Automóveis Históricos, ela conduzindo o seu
tinha ido fazer uma reportagem sobre a nova secção Hispano‑Suiza de 1933, eu o mais modesto Lancia
do Museu da Pré‑História, uma treta qualquer para Aurelia de 1957, herança do meu avô; iríamos jun‑
os miúdos... tos tomar uma cerveja, como sempre, e passar um
Bem sei: a Idalete massacrou‑nos as orelhas alegre fim de tarde a rir e a contar histórias malucas
com isso durante meses a fio. um ao outro.
– Quem veio à inauguração foi a Duquesa de – Aquilo deixou‑me com a pulga atrás da ore‑
Portalegre – que, por acaso, até estava com um ar lha – prosseguia o Rui. – Disse à repórter que ainda

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queria tirar mais umas fotos, e que ela fosse andan‑ – Porque é um pãozinho sem sal! É ainda nova,
do, e corri atrás da sua «ex»... alta e jeitosa, mas não tem glamour, nem sex‑appeal,
Falai no mau... A Idalete reaparece, deita‑me nem nada! Nada de nada! E sabe que mais? Todas
um olhar oblíquo e, pondo a sua expressão mais vir‑ elas são assim: a Duquesa da Guarda parece uma
tuosa, ocupa‑se a alinhar os guardanapos. De certe‑ couve murcha, a Rainha veste uma roupa que nem a
za que andou a mexericar nas minhas coisas. Já mal minha avó de noventa anos quereria, e até as Prince‑
me atrevo a guardar seja o que for nas gavetas. Faço sas, que são miúdas giras, andam sempre de carinha
um esforço para focar o cérebro naquilo que o Rui lavada e cabelinho escorrido, e com uns trapinhos
vai dizendo: tão desenxabidos que até fazem dó!
– Contei‑lhe umas tretas – continuava ele – e – É a aparência típica das jovens católicas
prometi‑lhe uma entrevista, combinei um almoço de boas famílias – explico. – Conhecida por «esti‑
com ela num sítio jeitoso; e depois não tive dificul‑ lo Chefe de Guias». E o que tem isso a ver com a
dade em conseguir que me trouxesse a sua casa. minha pessoa? E com a Duquesa? Quer ensiná‑la a
As minhas desconfianças recrudescem: vestir‑se?
– E para que raio queria vir a minha casa? – Quero ensiná‑las a todas. Não me faça per‑
– Porque queria conhecê‑lo: preciso que me guntas e preste atenção! E deixe lá a sua «ex» em
apresente à sua amiga Duquesa. paz!
– E por que razão haveria eu de fazer tal coisa? A Idalete erguia nesse momento a voz, a ensi‑
– Se você me deixasse falar, percebia tudo nar os segredos da confecção da verdadeira tarte de
num instante. Que diabo de mania de interromper! gelatina de morango sobre base de bolacha‑maria.
– barafusta impaciente o meu interlocutor, e adicio‑ Uma breve olhadela mostrou‑me que se dirigia ao
na mais whisky ao copo, que já não tem gelo. – Ora Jorge. O Jorge é maître pâtissier et chocolatier e prati‑
bem, sabe que eu sou fotógrafo e que trabalho para cou em Viena e Bruxelas.
O Guardião; nas horas livres, faço uns biscates como – Vamos a ver se nos entendemos – prosseguia
paparazzi. o Rui, acalmando‑se. – Na minha maneira de ver, as
– Paparazzo – corrijo, maquinalmente. – Pa‑ pessoas só estimam aquilo que conhecem – ou jul‑
parazzi é plural. gam que conhecem, para o caso vem a dar ao mes‑
– Tanto faz – rosna ele, bastante abespinhado mo. O que não sabem, não ligam; e só sabem o que
já. – Seja paparazzo ou lá o que quiser, o que é cer‑ aparece nos media. Ora a nossa Família Real é tão
to é que palmilho Lisboa inteira e arredores, cosido apagada que a gente até se esquece que existe. E isso
com as paredes para não me toparem, a bater fotos não é bom para a monarquia. Sim, não é bom para
das estrelinhas da televisão a saírem entornadas das a monarquia! – repete com calor, perante a minha
discotecas ou a passearem de carro com os maridos expressão interrogativa. – Por isso é que esses tipos,
das outras. Há‑de compreender que isto não é coisa esses republicanos e trabalhistas de meia‑tigela, têm
que me satisfaça nem que dê grande sentido à mi‑ a lata de vir propor referendos ao regime! Já ouviu
nha vida; quando eu era rapaz novo, ainda achava falar em referendar a Rainha de Inglaterra?
piada em andar à caça, mas agora sinto necessidade – Mas você... – começo eu. Ele interrompe‑me
de uma ocupação com mais substância... ardorosamente:
– E quer fotografar a Duquesa de Portalegre? – Eu disse que era a favor do referendo. E sou.
Desculpe lá, não me interprete mal, eu adoro a Du‑ Sou a favor porque o referendo iria mostrar, sem
quesa, mas ela deve ser o pior modelo que existe margem para dúvidas, que o nosso povo deseja con‑
para um fotógrafo de celebridades, porque... por‑ tinuar em monarquia.
que, enfim, porque é... – Em Portugal, o povo é monárquico, e os po‑
O Rui dá um murro excitado na mesa, fazen‑ líticos, republicanos – recito eu.
do saltar os copos: – E é bem verdade; não é por ser uma frase ve‑

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lha que deixa de ter fundamento – diz ele, acenando E depois hei‑de ver se esses malandros continuam a
com a cabeça e acalmando‑se. – Se quer a minha querer brincar aos referendos!
opinião, isso do referendo, para já, não vai para a – E consegue fazer tudo isso sozinho? – per‑
frente. Falam nisso para irem minando o prestígio gunto, assombrado com aquela veemência.
da Realeza e, a andarem as coisas assim, talvez daqui – É evidente que, só eu, não posso fazer tudo
a uns anos tenham sorte. E eu não quero deixar que isto; mas trago em vista um grupo de pessoas com‑
isso aconteça. petentes que poderão orientar todo o processo de
– E pensa consegui‑lo ensinando a Duquesa styling; eu ficaria responsável pelo campo das notí‑
de Portalegre a arranjar‑se... cias, artigos e fotografias. Tenho isso tudo estudado.
Do outro lado da sala, o processo de trituração – E por que motivo se quer meter nesse pro‑
da bolacha‑maria era alvo de descrição detalhada. jecto?
– Deixe‑se de piadas – sibila o Rui, exaspera‑ – O motivo... bom, já lhe disse parte dele: te‑
do. – Sim, quero ensinar a Duquesa e as outras a nho quarenta e três anos, ou seja, muito boa idade
arranjar‑se, porque elas são muito importantes. São para um homem fazer qualquer coisa que o realize,
elas que levam o povo a afeiçoar‑se à monarquia e não trabalhe só pelo dinheiro – faz uma pausa, res‑
– ou julga que isso acontece porque o Rei cumpre pira fundo, morde os lábios e prossegue: – E há ou‑
exemplarmente os seus deveres constitucionais? O tro motivo ainda; vai‑se rir, mas não importa. Isto,
problema é que, actualmente, todas elas são tão de‑ para mim, é uma espécie de missão, uma obrigação
sengraçadas que ninguém lhes liga nenhuma; e isso sagrada. O meu bisavô, como lhe disse, salvou a vida
é uma coisa que está a pôr em risco o regime e o de D. Carlos I; a partir daí, todos nós, seus filhos,
país. netos e bisnetos, julgamo‑nos a bem dizer respon‑
Jamais semelhante ideia me ocorreria, devo sáveis pelo Rei e pela Monarquia, como se fôssemos
confessar; mas também estou pronto a admitir que, os seus guardiões, incumbidos de velar por eles e
como não leio as revistas do coração, é capaz de ha‑ de impedir que qualquer coisa má lhes aconteça. É
ver muita coisa que me escape. O meu companheiro esquisito, mas é assim que nos sentimos; não pode‑
prosseguia, com ar enérgico: mos fazer nada contra este encargo – deita‑me um
– O que há a fazer então? Primeiro, mostrá‑las olhar de desafio, ao fim desta tirada.
todas giras e elegantes, para atrair as atenções; a se‑ – Decerto que Sua Majestade não poderia
guir, interessar as pessoas na vida delas: o que fazem, desejar súbditos mais devotados – grasno eu, com
o que não fazem, se vão viajar e aonde e com quem, aquele aborrecido nó na garganta que sempre nos
os passatempos das meninas, os desportos que pra‑ assalta nas ocasiões solenes. – Mas não sei se a Du‑
ticam, quem são os namorados, etc. – quanto mais quesa apreciaria ter alguém atrás dela a escolher‑lhe
historietas interessantes aparecerem por aí, cada vez as toilettes...
mais a malta há‑de trazer a Família Real na ideia; e – Deixe‑me tentar, é tudo quanto lhe peço.
há‑de conhecê‑la melhor e estimá‑la cada vez mais. Apresente‑me à Duquesa e deixe o resto comigo
Porque é isto que me importa: quero fazer com que – o tom de urgência é bem nítido na sua voz; depois
eles sejam queridos e populares; que a malta adore esta desliza para uma coloração tentadora e trocista:
a Rainha, as Princesas e as Duquesas, que as imite, – Em troca, garanto‑lhe que arranjo uma posição
que saia à rua para as ver, que espere por elas duran‑ para a Dr.ª Idalete, bem longe daqui, num dos países
te horas a fio, debaixo de chuva, só para lhes acenar e da Concordância Lusófona. Tenho um primo nos
oferecer flores. Quero que apareçam nas notícias de Negócios Estrangeiros que me trata disso dum dia
todo o mundo. Quero que, daqui a uns anos, quan‑ para o outro. Que me diz?
do se casar a Senhora D. Beatriz, a nossa Princesa Nesse preciso momento, a Idalete rematava a
Real, a cerimónia seja seguida da Alemanha aos Es‑ sua preciosa receita da tarte de gelatina:
tados Unidos, passando pela China e pela Austrália! – Por cima mete‑se chantilly; há um em bom‑

69
ba, que é óptimo e não dá trabalho nenhum. que te consegues aguentar sem o meu apoio?
Tomo uma decisão: – Idalete, não te preocupes – pronuncio, com
– Não vai vesti‑las como cantoras de rock? venturosa magnanimidade – Eu cá me arranjo. Tu
Nem arranjar‑lhes namorados trapezistas? trata da tua vida. Parabéns pelo teu novo posto; se
– Por quem é que me toma? – replica o Rui, alguém o merece, és tu com certeza. BANG!
indignado.
– Negócio feito – respondo, estendendo‑lhe a
mão.

De vez em quando há alturas assim, gloriosas e má‑


gicas, onde tudo desliza tão manso e fácil como as
mansas águas murmurantes dos rios do Paraíso. Na
quarta‑feira principiou o rally, com o tradicional
desfile de viaturas de bombeiros; a Madalena e eu,
depois das diversas obrigações protocolares a que
ela não se podia furtar, refugiámo‑nos no bar de um
hotel sobre a baía de Cascais, vazio e luminoso no
último andar, cada qual com a sua bitter, e começá‑
mos a pôr a conversa em dia, eu roído de ansiedade,
Maria de Menezes nasceu no Funchal a 27
porque não sabia como introduzir a proposta do de Fevereiro de 1952. É licenciada em
Rui. Numa pausa, a minha amiga olhou‑me com ar História pela Universidade de Lisboa,
admirativo: professora do ensino secundário desde 1972
e «escritora nas horas vagas, que nunca
– Quem te viu e quem te vê, Eduardo! Não é
são tantas como desejaria.» Em Portugal
só te teres feito um borracho giríssimo com montes publicou: em 1993 «Três Histórias com Final
de charme, é esse teu ar sempre tão chique e noncha‑ Feliz», obra pela qual recebeu o Prémio
lant! Fazes‑me uma inveja! Adorava ser uma mu‑ Revelação de 1991 da Associação Portuguesa
dos Escritores; e, em 2001, «Contos Místicos»,
lher elegante, mas – encolheu os ombros, fatalista
que inclui dois contos galardoados com uma
– há que reconhecer, não tenho gosto nenhum; se menção honrosa no Concurso Nacional
ao menos alguém me dissesse o que devo usar... de Contos Manuel da Fonseca de 2000.
– Obrigado, Madalena, é dos teus olhos, não Participou com regularidade nas antologias
e nos encontros de FC & F organizados pela
mereço tantos elogios – tornei eu com modéstia, er‑
Simetria/Associação Portuguesa de Ficção
guendo infinitas graças aos deuses. – Mas tem piada, Científica e Fantástico, e na revista Paradoxo,
nem de propósito: ainda no outro dia estive a con‑ da mesma associação. No estrangeiro
versar com um sujeito que trabalha nesse ramo... publicou: no Brasil a noveleta «Boas vindas»,
incluída na antologia «Como Era Gostosa a
Dois dias depois, telefonou‑me a Idalete, ex‑
Minha Alienígena!», coordenada por Gerson
citadíssima: Lodi-Ribeiro, com a qual recebeu o Prémio
– Recebi um convite para ir instalar o Museu Argos para o melhor trabalho de FC & F
Etnográfico de Bolama! – lança, num guincho estri‑ publicado no Brasil em 2002, e o conto «Zen»
na revista Scarium, com direcção de Rogério
dente que me eriçou os tímpanos.
Amaral; em Itália «Giorni di burrasca» na
– Óptimo – digo eu. – Onde fica Bolama? antologia «Nostalgia dei Giorni Atlantici»,
– Na Guiné, tonto. É uma oportunidade única sob coordenação de António Fournier; em
na vida, não podia recusar: já apresentei a minha de‑ França «Pédagogies diversifiées», na revista
Miniature, com direcção de Pierre-Jean
missão no Museu, e agora tenho duas semanas para
Brouillaud, e o conto «Ad maiorem Dei
tratar das coisas todas, vai ser um sufoco! – larga ela gloriam», incluído na antologia «Utopiae
de jacto; depois hesita um segundo: – E tu, achas 2006». BANG!

70
[ensaio]

A Perspectiva Alienígena
João Seixas

«O que distingue a Ficção Científica


dos demais géneros é a sua perspectiva:
a perspectiva do alienígena.»

1. (comigo modestamente inserido nos 50% que res‑


pondem não), não é possível deixar de notar que

É quase impossível falar de FC sem que a discus‑


são escorregue, mais cedo ou mais tarde, para
a questão de determinar a sua relação com o cam‑
a pergunta apenas se coloca com tanta frequência
(e quase exclusivamente no âmbito da FC) porque
existe a percepção, quase inconsciente, de uma
po literário em geral e com a Literatura em parti‑ outra questão que se agita como peixe furioso no
cular. Para os adeptos do género (e observe‑se, só limiar da percepção: o que é que separa a FC da
os adeptos do género farão desde logo a concessão demais literatura?
de que se trata de um “género”) esta questão é des‑ Tal como numa sucessão de bonecas russas,
provida de interesse: literatura ou não, o consumi‑ poderíamos continuar a retirar questões do ventre
dor de FC obtém dela aquilo que pretendia, quer se da anterior: será que realmente algo separa a FC
trate de aventuras espaciais em cenário de fantasia da demais literatura? E o que a separa dos outros
tecnológica, complexas extrapolações científicas géneros?
ou um sentido de estranheza muito para além da No entanto, para os propósitos destas notas,
ostranenie de que falava Shklovsky. Onde tal deli‑ tomemos como adquirido que a FC se justifica
mitação se reveste de putativo interesse é na deter‑ como género porquanto dotada de particularidades
minação da utensilagem crítica a utilizar na disse‑ que a diferenciam dos demais géneros, nos quais
cação de um texto genérico. E a pergunta que mais poderemos subsumir igualmente a Literatura que,
frequentemente se coloca é “deve a FC ser avaliada cada vez mais, se encontra reduzida a um género
pelos critérios da literatura em geral?” A resposta literário que podemos designar por mimético‑rea‑
parece‑nos evidente, e Damon Knight, pai da críti‑ lista ou, por privilégio de idade, mainstream.
ca especializada de FC deixou‑nos um volume que Acrescentemos ainda que estas notas resul‑
o prova à saciedade, In Search of Wonder (Advent tam do trabalho de pesquisa que tenho levado a
Publishing, Chicago, 1956, 1967). cabo para a composição da minha Breve História
Questão conexa, e talvez mais relevante, se‑ da Ficção Científica a ser publicada em www.spa‑
ria apurar se os critérios de avaliação da literatura ceshipdown.blogspot.com a partir de 2008, e re‑
em geral são bastantes para a devida contextuali‑ presentam apenas algumas reflexões sobre aspec‑
zação de um texto de FC. E se um prognóstico de tos do género que não devem ser tomados pelo
mera opinião me levaria a afirmar que a resposta todo. Porém, pelo valor explicativo que podem ter
se repartiria 50%‑50% em qualquer amostragem para a análise de alguns trabalhos dentro do géne‑

71
ro, resolvi não as deixar na gaveta e trazê‑las a pú‑ qualquer novidade a um mercado enfatuado e su‑
blico onde a sua discussão poderá revestir alguma per‑saturado. Ao fim e ao cabo, não é necessário (e
utilidade prática. é mesmo redundante) recorrer ao simbólico zoo‑
lógico intergaláctico para descrever as atrocidades
2. de um campo de concentração nazi (e menos ain‑
da para tentar instilar uma ética ecológica nos seus

A FC é um género literário que sofre da parti‑


cularidade de trair a sua própria definição. Se
por um lado não queremos correr o risco de que
leitores).
Nesse sentido, o Horror, enquanto género
literário, revela‑se um meio superior de proceder
o próprio termo Ficção Científica se limite a um à análise moral da comédia humana. Sem estar
oximoro, tal contradição é por vezes inconscien‑ restringido pelo real (ao contrário do mainstream
temente agravada pelos cultores do género, atra‑ – contido pela realidade – e da FC – espartilhada
vés da moralização e humanização da natureza e do pela ciência – e sendo aliás sua característica es‑
universo. E se é verdade que essa traição é mais sencial a recusa do real, o Horror constitui‑se em
evidente no cinema, também a literatura de FC campo onírico com exclusivo privilégio do simbó‑
por vezes se deixa arrastar para essa patética hu‑ lico e do moral.
manização. Compare‑se “The Cold Equations”, essa A moral do Horror, porém, estende‑se por
obra prima de Tom Godwin com “The Wait” (Ste‑ um largo leque prismático, desde o clássico (no
phen L. Burns, Analog, January 1997) ou mesmo sentido mais estrito da palavra em referências
com “Criança Entre as Ruínas” de Luís Filipe Silva às obras primas da cultura helenística) triun‑
(1991). fo‑do‑bem‑sobre‑o‑mal‑e‑recompensa‑do‑justo
Pode‑se argumentar que a humanidade, en‑ (é o caso da parte mais significativa – mas não da
quanto único motor (conhecido) da literatura é, melhor – da obra de Stephen King) até ao mais
obviamente, o centro do mundo literário ou, mais politicamente incorrecto satisfazer das frustrações
simplesmente, que a literatura se refere sempre individuais [como acontece com grande parte dos
– ainda que através de símbolos e máscaras – ao livros de Richard Laymon – sobretudo The Cellar
Homem. (1980), The Island (1995), Body Rides (1996) ou
Tais proposições não deixam de ser verda‑ “The Hunt” (1989)].
deiras, mas negam aquela que deve ser a especifi‑ Mas não se pense por isso que a FC está isen‑
cidade da FC. ta do seu próprio horror, da sua dose de inquieta‑
Ao apor o qualificativo “científica” a um gé‑ ção. Só que é um tipo diferente de frisson aquele
nero de ficção, exige‑se que os seus cultores ob‑ que faz estremecer o adepto: um misto de fascínio
servem essa ‘frieza’ científica, esse distanciamento e terror perante o numinoso, de curiosidade infan‑
laboratorial que se busca salientar. A perspectiva til e pueril deleite face ao derrubar de conceitos e
humana que se deve encontrar sob a óptica da FC preconceitos, quantas vezes representados pelo de‑
é a do homem enquanto ser‑natural, enquanto sabar de toda uma cidade, um mundo, uma socie‑
ser‑natureza, i.e., enquanto elemento integrante e dade planetária.
indistinto dessa ‘imensa, complexa e muito bela má‑ Brian Aldiss, em entrevista à revista france‑
quina ecológica de proporções planetárias’ (Sagan & sa Science Fiction Magazine nº3, de Junho/Julho
Druyan, Shadows of Forgotten Ancestors, 1992). de 1999: ‘Aujourd’hui, on se tourne vers Marion Zim‑
Só assim pode a FC afirmar‑se enquanto mer Bradley pour le confort alors qu’à mon avis la SF
género específico e especificamente científico. Se devrait provoquer une sensation d’inconfort. Quelque
a FC se limita a repetir os gritos e suspiros da li‑ chose doit survenir qui transforme radicalement le
teratura mainstream, estará a negar a sua própria monde, et pas forcément pour le bien de l’humanité’
natureza e, simultaneamente, deixará de aportar

72
3. (1726, 1735), Micromegas (1752), Rip van Winkle
(1819), Erewhon (1872), Odd John (1935) são to‑

“I have been told that thousands of birds are de‑


stroyed during every test. (...) They take wing at
the flash, but then fall to earth, burned and blinded.”
dos espelhos desta identificação com o outro, com
o diferente, com o distinto de nós. Porém, não ca‑
rece ser observado que essa identificação com a
(Andrei Sakharov, Memoirs). alteridade é uma identificação intra‑específica. É
Como esta memória de Sakharov, que mais uma identificação apenas com o caleidoscópio de
tarde viria a ser um campeão dos direitos humanos manifestações (físicas, culturais e sociais) do Hu‑
e um adversário dos testes nucleares, nos recorda a mano. O Outro olha para nós criticamente, olha
fragilidade do ambiente e, simultaneamente, evo‑ para nós de fora, mas é, ainda assim, um de nós.
ca a poética profética da FC. Desde que pequenos Um rebelde, um cavalheiro de ideias mais avan‑
canários serviam aos mineiros como detectores çadas, um estrangeirado, alguém que está de fora
vivos da presença de gases tóxicos, que as aves se por força das circunstâncias, mas que quer per‑
encontram intimamente ligadas à humanidade en‑ tencer, ou pretende que os outros pertençam às
quanto arautos da sua desgraça. O crime ambien‑ vistas mais amplas das novas ideias.
tal do D.D.T. foi denunciado no livro The Silent Consta que Hitler terá dito, fascinado pela
Spring (1962), cujo título se referia ao silêncio das vitória fulminante de Jesse Owens nas Olimpíadas
aves na primavera inglesa, antecipando a vingança de 1936, “é incrível, mas não é justo. É como pôr uma
do magnífico The Birds (1963) de Hitchcock. pantera a correr com humanos. Não passa de um ani‑
É sobretudo a fragilidade das aves que des‑ mal”. O que sempre me arrepiou nesta lenda histó‑
poleta o vínculo emocional forte que existe entre rica, é a dissonância cognitiva que transparece da
as nossas espécies (talvez por as termos em casa, justaposição de fascínio e horror com que o novel
fechadas em gaiolas, talvez porque todo o planeta ditador encara a superioridade de Owens. A in‑
se transforme lentamente numa gigantesca mina capacidade de ver aquele self in others, ao mesmo
envenenada). tempo que deixa transparecer a admiração pelo
Nunca o começo do fim foi tão poético e evo‑ feito e pelas capacidades do atleta (para ele um Ou‑
cativo, pela sua simplicidade, do que quando Dick tro tão radical como para nós uma ratazana ou um
nos informa em Do Androids dream With Electric monstro lovecraftiano).
Sheep? (1968) de que ‘primeiro foram os pássaros que E qual é o leitor (incluindo neste termo o
começaram a cair das árvores’. Levantando voo com sentido pós‑moderno de leitor de um texto, escrito
o clarão, como se Deus tivesse tirado uma fotogra‑ ou filmado) de FC que nunca experimentou essa
fia (Ballard, The Empire of the Sun (1984)). dissonância cognitiva ao admirar a superioridade
intelectual de Hannibal Lecter, a letal eficácia dos
4. velociraptores de Jurassic Park (1993) (“clever girl”,
é a última expressão do caçador transformado em

M as, divagamos.
S.E. Hinton, referindo‑se a Rebel
Without a Cause (1955), escreveu que ‘one of the
presa) ou a elegância predatória do alien de Giger
e Scott?
A Ficção Científica é a lupa privilegiada pela
most satisfying pleasures from a work of art is the rec‑ qual contemplamos o self in others, mesmo quando
ognition of self in others.’ (PREMIERE, December esses others são tão alienígenas quanto os vermes
1999, p. 96). E podemos afirmar com alguma se‑ que encontramos sob as pedras do nosso quintal
gurança, que essa componente reflectora da arte e ou os mais fantasiosos alienígenas de Próxima de
da literatura sempre esteve presente, desde o iní‑ Centauro. É o reconhecimento de que nenhuma
cio, na literatura do Fantástico, e da Ficção Cien‑ espécie – nem o homo sapiens – ocupa um espaço
tífica em particular. Frankenstein (1818), Gulliver insubstituível no “grande esquema do universo”.

73
5. nossas experiências serão como as que Bova, Asi‑
mov, Robinson, et. al. nos descrevem; um dia será

P oderá estar aí a grande linha divisora que se‑


para a Ficção Científica dos demais géneros?
Digamo‑lo desde já, varrendo de cima da mesa
possível desenvolver esta ou aquela tecnologia; e
é possível que hoje exista já vida inteligente nou‑
tros planetas, que poderá ser tão vasta e inacessível
questões que nos levariam demasiado tempo a dis‑ quanto o oceano de Solaris, ou tão fria, impiedosa
secar: a Fantasia comercial é um género essencial‑ e indiferente quanto os marcianos de Wells.
mente escapista, onde a identificação com o outro É esta tripla tensão, entre a ficção, a possibi‑
(a Irmandade do Anel, os Elfos e os Gnomos, as lidade e a garantia de verdade, que gera aquilo que
Fadas e os Duendes) é uma fuga ao self que nos de‑ Moscowitz designou como “sense of wonder” e que,
sagrada. Não é uma posição crítica, muito menos acompanhando Knight, podemos definir como
uma análise racional, mas o levar da emoção (do “some widening of the mind’s horizons, no matter in
sense and sensibility do mainstream comercial) à sua what direction – the landscape of another planet, or a
última instância: a emoção por interposta pessoa.. O corpuscle’s‑eye view of an artery, or what it feels like to
Horror, enquanto e porquanto abrace o sobrenatu‑ be in rapport with a cat… any new sensory experience,
ral é uma manifestação da húbris humana, elevan‑ impossible to the reader in his own person (…)”.
do já não a pessoa física, ou o ideal de humanida‑ Em última instância, a FC leva‑nos a deslo‑
de, mas a própria “alma” ao estatuto de mais alto car a nossa perspectiva do reconhecimento do self
valor do universo. No Horror sobrenatural, todas in others para a visão do self as other, do “eu como
as forças do universo (por vezes, até Deus e o Dia‑ outro”. Uma perspectiva que apenas se tornou pos‑
bo) conspiram e batem‑se pela alma de um único sível após a publicação de On the Origin of Species
humano. by Means of Natural Descent (1859) de Charles Da‑
E a Ficção Científica? rwin.
Recorda‑nos Boris Vian (Cinéma Science Podemos dizer, sem receio de exagero, que
Fiction ‑ textos coligidos por N. Arnaud, 1978) pela sua influência e repercussões, a Origem das Es-
que é característica distintiva da FC a sua credibi‑ pécies foi o livro mais importante dos tempos mo‑
lidade, o sermos capazes de acreditar no conteúdo dernos; as suas repercussões fizeram‑se sentir em
das suas páginas. É portanto tarefa do escritor de todos os campos do saber e da cultura. No entanto,
FC fazer‑nos acreditar naquilo que lemos. A plau‑ nenhum campo cultural se mostrou tão fértil ao ex‑
sibilidade é requisito essencial. No entanto, o mun‑ plorar e extrapolar das suas consequências quanto a
do em que normalmente decorrem as narrativas Ficção Científica: precisamente por trazer o apodo
de Ficção Científica, não é o nosso mundo, ou é‑o “científica” no seu bilhete de identidade. Se puder‑
modificado por um elemento de irredutível extra‑ mos admitir que a Ciência “é o processo de descoberta
neidade. Sendo que tal elemento e o seu reflexo no da verdade sobre o funcionamento da ordem natural”,
mundo ficcional que dele deriva deve ainda assim independentemente dos seus resultados (Stuart
ser plausível à luz dos conhecimentos científicos D. Jordan, The Global Warming Debate: Science and
contemporâneos da sua criação. Scientists in a Democracy, Skeptical Inquirer, No‑
É, tal como thriller, tal como no policial, tal vember/December 2007), devemos admitir que,
como no romance de aventuras, esta tensão entre em certo grau, há uma intenção de verdade nas
a possibilidade e a ficção que vai gerar no leitor a narrativas de FC (não em todas, como é bom de
mecânica de imersão textual. No entanto, e ao con‑ ver, mas isso será assunto para outra ocasião).
trário desses outros géneros, a FC acrescenta um E os ecos de Darwin cedo se fizeram sentir
condimento insubstituível a essa tensão: a promes‑ nos precursores do género, e nunca tanto, nem tão
sa de que as coisas um dia serão assim, ou que po‑ bem, como na obra de H.G. Wells. Wells, quiçá o
dem já o ser: um dia colonizaremos as estrelas e as “verdadeiro” pai da Ficção Científica, foi o primei‑

74
ro a tratar a Humanidade da novel perspectiva que avançados do que a Humanidade, como podem
surgiu do darwinismo: pela primeira vez, a Huma‑ ser descendentes de um antepassado similar ao
nidade é apenas uma espécie mais, tão importante humano (por muito que hoje saibamos o impossí‑
ou irrelevante como qualquer outra. E, precisa‑ vel que isso é). O caos e a destruição a que o exér‑
mente por isso, tornou‑a muito mais humana e cito invasor submete a Terra e a Humanidade per‑
preciosa, antecipando em meio século o “pequeno mite a Wells explorar satisfatoriamente um leque
ponto azul” de Sagan. de respostas das suas personagens, mas o que mais
São imortais as linhas de abertura de The War ressalta ao leitor é o carácter imparável do avan‑
of the Worlds (1898): “No one would have believed in ço. A humanidade vê‑se reduzida a gado, recolhi‑
the last years of the nineteenth century that this world da para proporcionar alimento aos alienígenas,
was being watched keenly and closely by intelligences e as instituições sociais desabam, uma depois da
greater than man’s and yet as mortal as his own; that outra, revelando as suas hipocrisias e fragilidades
as men busied themselves about their various concerns (e Wells, as should be, não é nada meigo para com
they were scrutinised and studied, perhaps almost as a Igreja de Inglaterra). E no final, indiferente aos
narrowly as a man with a microscope might scrutinise caprichos, vontades e auto‑proclamados direitos
the transient creatures that swarm and multiply in a fundamentais, é apenas um processo natural que
drop of water”. detém finalmente o avanço dos Marcianos.
Linhas das quais nasceu todo um género. Sob o ímpeto de Darwin, Wells varreu a Hu‑
Atente‑se na economia das palavras usadas (ne‑ manidade do centro do tabuleiro, arrancou‑a da
nhuma tem mais de três sílabas), na precisão com asa protectora de Deus e entregou‑a aos caprichos
que, num universo literário dominado ainda pelo indiferentes de um processo cego e contingente,
romance mimético‑realista, Wells introduz já a como é o da evolução. Tornou‑a, por isso mais
perspectiva única da Ficção Científica: em primei‑ preciosa. E no entanto, nunca esqueceu, nem dei‑
ro lugar o jogo que resulta de “ninguém teria acre‑ xou os seus leitores esquecer, que a Humanidade
ditado” e “nos anos finais do século XIX”, o século não é essencial. É meramente acidental. E todas as
da revolução industrial e do progresso, que nos maravilhas que nos narra, da luta da Humanidade
prepara para o motivo da dificuldade de aceitação pela sobrevivência, não o impedem de desfrutar da
de que “intelectos maiores do que o humano” nos singela e bucólica beleza de um mundo sem huma‑
observam atentamente. Duas particularidades res‑ nos, no ocaso da Terra, milhões de anos no futuro
saltam de imediato; primeiro, este “nos” aplica‑se (cf. The Time Machine).
à Terra, à qual Well se refere como “this world”, in‑ Um quadro tão belo quanto a inesquecível
timando a existência de outros; em segundo, esses cena final de The Birds de Hitchcock.
intelectos, superiores ao humano, são tão mortais
quanto ele. Não se trata de seres sobrenaturais, 6.
nem de deuses ou demónios, mas de outras cria‑
turas, também resultado do processo da evolução
(mais à frente, no segundo capítulo do segundo li‑
vro, após proceder a uma descrição exaustiva – e
Q ue separa, então, a FC dos demais géneros?
Estou convicto de que é a sua particular pers‑
pectiva da morte. De uma morte que nunca é in‑
científica – dos Marcianos, o narrador da obra co‑ dividual, mas colectiva, da própria espécie. Uma
menta: “To me it tis quite credible that the Martians noção de morte que se encontra sempre por detrás
may be descended from beings not unlike ourselves”). de cada uma das narrativas de FC, mesmo as mais
Por último, a atenta observação a que os Marcia‑ disparatadas, e que transmite o desespero de viver‑
nos sujeitam a Terra, não é distinta daquela a que mos numa era que sabe – pela primeira vez – que a
um cientista poderia sujeitar um micróbio. morte é o bilhete final para o esquecimento, e que
Portanto, não só os Marcianos são mais há muito que se poderia conseguir trabalhando

75
numa frente unida (colonização espacial, maior complexo ecossistema terrestre (e quiçá, planetá‑
longevidade e qualidade de vida, maiores conhe‑ rio), ‘as pretensões e conceitos desta ou daquela espécie
cimentos) e que vamos deixando cair pelas frestas podem ser prontamente ignorados’ (Sagan & Druyan,
dos nacionalismos serôdios, da religiosidade atávi‑ op.cit.).
ca e do moralismo caduco. O que distingue a Ficção Científica dos de‑
O tema essencial da arte (e da literatura) mais géneros é a sua perspectiva: a perspectiva do
sempre foi o amor e a morte. Isso explica a fraca alienígena. BANG!
reputação da literatura de género face ao mainstre‑
am (bem como a excepção que sempre foi o Po‑
licial). No mainstream não há tema mais sério e
solene do que essa dicotomia – amor e morte – e
não é tolerado (excepto na sátira) um tratamen‑
to menos do que adequando para esse tema. Na
literatura de género, o amor e a morte são redu‑
zidos a actos laterais (perfunctórios, chamou‑lhes
Knight), secundarizados pelos demais elementos
distintivos do género. O Policial sempre escapou a
este estigma, pois a morte no policial reveste‑se da
dignidade de ser o motor da acção e da busca de
justiça/verdade.
Na Ficção Científica, a morte apenas alcança
uma dimensão poética quando é o sacrifício pelo
saber [como em “Transit of Earth” (1956) de Clarke],
como resultado do desenvolvimento tecnológico
[como em Beyond Apollo (1971), de Malzberg) ou João Seixas nasceu em Viana do Castelo
por aplicação das frias equações do universo (Tom a 24 de Dezembro de 1970. Cresceu com
Godwin). O Universo é o principal adversário. uma «dieta» de filmes de aventuras, ficção
científica e horror que lhe traçaram o destino
Os heróis de Ficção Científica nunca morrem por
de forma «inapelável». Licenciado em Direito
amor, e as guerras estelares não trazem consigo a e advogado, é também autor e crítico na
carga emotiva que os grandes acontecimentos his‑ área do fantástico, tendo publicado contos e
tóricos acarretam. ensaios no suplemento DN Jovem do Diário
de Notícias, nas revistas Bang, Ler, Megalon e
Why does a man cry? Pergunta Dick em Flow
Paradoxo, nos sítios E-Nigma e Tecnofantasia,
My Tears, the Policeman Said (1974) (…) Not for e na revista Os Meus Livros, onde todos os
sentiment. A man cries over the loss of something, meses assina a recensão de obras na área da
something alive. A man cry over a sick animal that he FC&F. Em 2005 fundou, com Pedro Marques,
a editora Livros de Areia. Mais recentemente,
knows won’t make it. The death of a child: a man can
publicou as noveletas «As Sombras Sobre
cry for that. But not because things are sad. Lisboa» na antologia «A Sombra Sobre
Lisboa» (Saída de Emergência, 2006) e
A man, he thought, cries not for the future or the
«Djinn» na antologia «Contos de Terror
past but only for the present. do Homem-Peixe» (Chimpanzé Intelectual,
2007). Em 2008 deverá também publicar o seu
7. primeiro livro, «A Alma do Louva-a-Deus»,
segunda parte do «tríptico» denominado
«Projecto Candyman» escrito com João

D e todos os géneros literários, a FC é aquele


que, por excelência, compreendeu que no
Barreiros e Luís Filipe Silva.
http://spaceshipdown.blogspot.com BANG!

76
[ficção] [tradução de Luís Rodrigues]

Crupe dos Doenceiros


Dr. Neil Gaiman
Este conto e o seguinte, são uma antevisão do “Guia de Bolso Thackery
T. Lambshead das Doenças Excêntricas e Desacreditadas” a publicar
pela Saída de Emergência nos finais de 2008. Esta antologia vai estar
aberta a submissões. Mais informações na página da editora.

D escrição e sintomas
Padecimento mórbido em intensidade, e in‑
feliz no alcance, que aflige aqueles que, por hábito
e cinquenta gramas fervidos no ponto de asfixia;
a cara fica inchada e lívida, a garganta é uma ten‑
dência hereditária, e a língua adquire as caracterís‑
e patologia, catalogam e constroem doenças. ticas naturais dos pulmões, sobrevêm. A emoção é
Os sintomas iniciais mais óbvios incluem passível de ser excitada por quaisquer recordações
dores de cabeça, cólicas nervosas, tremores pro‑ forçosas à doença em questão, exibida ao público
nunciados e uma de várias erupções cutâneas de com tanta perseverança e tão aviltantemente por
natureza íntima. Estes, juntos ou em separado, to‑ charlatães.
davia não bastam para garantir o diagnóstico. A Crupe dos Doenceiros Terciária pode
O segundo estádio da doença é mental: ser diagnosticada através da infeliz tendência que
uma fixação na ideia de doenças e patogenias, des‑ o paciente tem para interromper raciocínios e des‑
conhecidas ou por descobrir, e nos seus pretensos crições normais com comentários sobre doenças,
criadores, descobridores ou demais personagens reais ou imaginadas, curas sem nexo, e aparente‑
envolvidas na descoberta, tratamento ou cura das mente lógicas. Os sintomas são os de uma febre ge‑
referidas doenças. Independentemente das cir‑ neralizada; abrupto, um inchaço redondo, imedia‑
cunstâncias, o autor aconselha de forma peremptó‑ tamente acima da rótula. Quando deveras crónica
ria que não se deposite confiança nas aparências da e, por fim, quiçá vómitos de neblinas ofensivas. A
publicidade enganosa, nos olhos projectando‑se; o jalapa é um alcalino e apresenta‑se incolor, pintan‑
habitual. A aplicação de pequenas injecções de ex‑ do os grandes vermes redondos que surgem nos
tractos ou caldos de carne ajudará na preservação intestinos.
das energias. A parte mais complicada na detecção des‑
A doença é tratável nestes estádios. ta doença reside na classe de pessoas passíveis de
É, no entanto, no terceiro estádio da Crupe sofrer de Crupe dos Doenceiros Terciária, preci‑
dos Doenceiros que a sua real natureza é revelada samente aquela que é menos contestada e à qual
e o diagnóstico confirmado. É nesta fase que cer‑ se dá mais atenção. Assim: é possível, sustento não
tos problemas afectando discurso e pensamento se de gengibre e álcool rectificado, as veias túrgidas, o
manifestam na fala e na escrita do paciente—que último em evaporação por efeito do calor.
dará pela rápida deterioração do seu estado a me‑ Só com grande força de vontade é que o
nos que colocado sob cuidados imediatos. doente pode continuar a escrever e falar com na‑
Tem‑se observado que a invasão do sono turalidade e fluência. Por fim, todavia, nos derra‑

77
deiros estádios da forma Terciária da doença, toda de amónia e álcool rectificado, a tosse expulsiva
a conversa degenera numa algaraviada mefítica de persiste, o consumo habitual de quantidades de
repetições, obsessões e fluxões. Enquanto a tos‑ comida para lá das julgadas necessárias.
se expulsiva persiste, as veias túrgidas, os olhos Quando a mente as cenas amadas.
projectando‑se; a estrutura fica tão abalada que a Enquanto as cenas amadas.
invasão da epidemia foi precedida por denso e es‑ Também elas se podem dilatar. BANG!
curo, e caso não seja satisfeita, melancolia, perda
de apetite, quiçá vómitos, calor e a língua adquire
as características naturais da raiz triturada.
Nesta fase, a única cura com eficácia de‑
monstrada na guerra contra a Crupe dos Doen‑
ceiros é uma solução de escamónea. É preparada
misturando partes iguais de escamónea e resina de
jalapa, e o autor aconselha de forma peremptória
que não se deposite confiança na evaporação por
efeito do calor. A escamónea é amplamente dis‑
tribuída, ainda que nem sempre seja activamente
desenvolvida; a cara fica inchada e lívida, a gargan‑
ta mais inflamada e, quiçá, o autor aconselha de
forma peremptória que não se deposite confiança
nos intestinos.
Os pacientes com Crupe dos Doenceiros Neil Gaiman é autor de romances e de banda
só raramente estão conscientes da natureza do seu desenhada. Vive nos Estados Unidos da
América, com a sua mulher, Mary McGrath, e
mal‑estar. De facto, a sua descida ao inferno dos três filhos: Holly, Michael e Maddy Gaiman.
disparates pseudomédicos é tal que o espectador Entre as suas obras em prosa podemos
não pode senão sentir pena e simpatia por ele; nem encontrar “American Gods” e “Bons
as frequentes erupções de sentido no meio destes Augúrios”, a segunda em parceria com
Terry Pratchett. A sua criação de banda
disparates fazem mais do que obrigar o médico a desenhada mais famosa é “Sandman”, que
resistir, e a declarar, de forma peremptória, a sua tem como personagens principais Sandman,
oposição à prática de criar doenças imaginárias, uma personificação antropomórfica do Sonho,
que não têm lugar no mundo moderno. que também é conhecido por Morfeu, numa
referência à mitologia grega, e os seus irmãos:
Quando a hemorragia das sanguessugas Morte, Destino, Delírio, Desejo, Desespero e
persiste para lá do requerido pelo sistema. São Destruição.
tomadas por cinquenta gramas fervidos de sono Em 1991, Gaiman publicou os “Livros da
e cinquenta gramas fervidos da publicidade en‑ Magia”, uma mini-série em quatro partes que
relata uma excursão aos lugares mágicos e
ganosa em questão, exibida ao público com tanta mitológicos do universo DC, com uma história
perseverança e tão aviltantemente por charlatães. focada num adolescente inglês que descobriu
A escamónea é passível de ser excitada por efeito que tem por destino talvez tornar-se no maior
do calor. No segundo dia, quando a erupção numa mago do mundo. A mini-série foi popular e
rendeu uma série regular escrita por John Ney
tintura forte de iodo chegará, geralmente, para Reiber. Muitas pessoas aperceberam-se de
tudo. semelhanças entre Tim Hunter (protagonista
Isto não é loucura. da série) e a personagem criada mais tarde
É uma aflição. por J.K. Rowling, Harry Potter. Ao ser
interpelado sobre essa semelhança, Gaiman
A cara fica inchada e lívida, escura, consis‑ respondeu que um jovem como feiticeiro tem
tindo de bicarbonato de potassa, sesquicarbonato precedentes na literatura. BANG!

78
[ficção]

Síndrome Fasciolar
[tradução de Luís Rodrigues]

Cerebral dos Carteiros


Dr. Stepan Chapman

I nfestação cerebral por Tubifex corbellis, fascíola


parasítica da classe dos trematodes
Os miracídios migram para os gânglios cefá‑
licos e cloaca da barata hospedeira. A barata sente
então uma necessidade avassaladora de se expor
Vectores de contágio junto a uma fonte de luz, habitualmente um poste
Desde 1996 que a Síndrome Fasciolar Cerebral dos de iluminação pública, e rebolar como se tivesse
Carteiros se tem observado com frequência na área sido envenenada.
da grande Los Angeles. Documentação meticulo‑ Um pombo (Columbidae americanis) observa
sa acerca deste platelminte microscópico está hoje as movimentações frenéticas da barata e, num voo
a ser compilada nos Centros de Controlo de Do‑ rasante, faz dela sua refeição. No interior do esófa‑
enças de Atlanta. O ciclo vital da fascíola cerebral go, o malfadado insecto evacua os intestinos. Um
dos carteiros (FCC) obedece a um cenário solida‑ dia volvido, surgem miracídios na corrente sanguí‑
mente demonstrado. Para reconstituir os estados nea do pombo. Muitos fundem‑se em rédias, corpos
deste ciclo, podemos começar com um espécime amorfos que se alojam na glândula pituitária da ave.
do hospedeiro primário do verme durante os pri‑ Uma rédia fabrica grandes quantidades de cer‑
meiros sintomas da mortalidade. cárias larvais. Impelidas pelas suas caudas em vibra‑
Na imundície de uma zona industrial, no silên‑ ção, as cercárias migram para o esogeu mesofundi‑
cio da noite, jaz, no passeio, o cadáver fumegante de bular no pescoço do pombo. Abster‑me‑ei de relatar
um carteiro de uniforme azul claro. o percurso anatómico estabelecido pelas larvas nesta
A massa glial pré‑frontal deste cadáver alberga extensa viagem, dado ser tão desnecessariamente
centenas de fêmeas da fascíola, carregando sacos de complicado quanto tudo o resto acerca da FCC.
ovos. Estas maternais fascíolas abrem caminho pelas O pombo sente‑se na obrigação de passear de
fossas ópticas e reúnem‑se nos olhos do cadáver— maneira ofensiva à frente do rafeiro mais tinhoso
mais precisamente, no fluído da câmara anterior por que consegue encontrar (Canis lupus familiaris).
trás da córnea. Aqui, as fêmeas surgem em grande Voa então na direcção do cão para lhe arranhar o
número e morrem, libertando, ao mesmo tempo, focinho. O cão, naturalmente, arranca‑lhe as goe‑
milhões de miracídios ciliados. De passagem, uma las à dentada. Enche assim a boca com a pele, as
barata agradecida (Blattodea occidentalis) sorve deste penas e as cercárias da ave. Combatendo o sistema
fluído infectado. (Se outro animal chega primeiro aos imunitário do mamífero a cada passo, estes intré‑
olhos—um melro, gato vadio ou médico legista—o pidos invasores avançam em direcção ao tronco
ciclo vital do verme sofre um curto‑circuito. No en‑ cerebral e fígado caninos.
tanto, estes parasitas preferem as jogadas de risco.) Enquanto as cercárias vão devorando tecido

79
conjuntivo e fagócitos, atingem o desenvolvimento seio—um cadáver fumegante em convulsões. E foi
sexual da fascíola—machos adultos e fêmeas adultas aqui que entrámos, por assim dizer.
exibindo o tradicional aspecto de torpedo invertido Os carteiros afligidos são capazes de sobreviver
que os trematodes tanto adoram. As fêmeas nave‑ por muitos anos à doença, nunca deixando de sofrer
gam o sistema linfático canino, infiltram os grandes episódios compulsivos. Contudo, se o carteiro é im‑
músculos das patas traseiras e enquistam‑se. pedido de subir aos postes, engolirá a própria língua,
Em contraste, os machos da fascíola nadam azulando e asfixiando‑se.
rumo às gengivas do cão. Enquanto isso, o cão Se me é permitida uma divagação de cariz zooló‑
parte em busca do tom exacto de azul‑claro que gico neste texto clínico, peço apenas que se contemple
caracteriza os calções dos uniformes dos cartei‑ a absoluta estranheza deste ciclo vital. O êxito repro‑
ros de Los Angeles. Finca os dentes no tornozelo dutivo da fascíola depende de uma cadeia de aconte‑
do primeiro carteiro que encontra. Os machos da cimentos tão improvável que roça o implausível.
fascíola sentem o cheiro do tornozelo e penetram As fascíolas são reconhecidas entre os vermes
apressadamente o folículo mais próximo. triblásticos acelomados pela complexidade desne‑
O incómodo canídeo é deixado cego com cessária e aparentemente desajustada dos seus ciclos
uma dose de spray de pimenta, capturado por um vitais, e que podem incluir até onze hospedeiros dis‑
agente de controlo animal, e posto a dormir com tintos. (1) No entanto, até entre as fascíolas, a FCC
uma injecção de barbitúricos. A carcaça é vendida parece excessiva, exibicionista até. Parecem desafiar
a um fornecedor de carne por atacado e revendida a própria extinção num número de trapézio cujo in‑
aos mercados locais, restaurantes e bancas de co‑ tuito único é impressionar os demais parasitas. (2)
mes e bebes com o rótulo de 100 por cento carne
de vaca triturada. (O termo “100 por cento carne Curas
de vaca triturada” é aplicado de forma um tanto Apresenta‑se um conjunto de intervenções vermífu‑
liberal em Los Angeles.) gas. A Clínica Comunitária e Canil de Sunset Bou‑
Quando as fêmeas que hibernam na carne levard informa que se podem usar doses concentra‑
do cão pressentem intestinos humanos à sua volta, das de Slavopropin e Meforbifak de modo a induzir
libertam‑se dos seus quistos, abrem túneis nas vi‑ apoplexias clonotrônquicas na fêmea da fascíola, com
losidades, e circulam, quimicamente disfarçadas de subsequente prolapso e enfarte do ovipositor. O efeito
corpúsculos humanos, até invadirem as meninges. nos pacientes infectados foi imediato, com resultados
Se forem fêmeas com sorte, o seu novo hospedeiro fatais em menos de 40 por cento dos casos registados.
é um carteiro recém‑mordido. Assim sendo, os ma‑ Em alternativa, testes clínicos com os vermi‑
chos da fascíola (vistos pela última vez no tornozelo cidas experimentais Spinwex D e Cactosprain 113
do hospedeiro) anteciparam‑se na sua chegada ao têm sido recomendados por vários farmacologis‑
crânio e usaram as suas ventosas bucais para cons‑ tas desempregados. Todas estas vias de tratamen‑
truir ninhos de amor onde acasalar sem distracções. to encontram‑se repletas de dissabores, mas são,
Aí anichadas, as fêmeas agarram‑se com firmeza e ainda assim, uma possível melhoria em relação à
dilatam os poros genitais. escalada de postes em noites de trovoada com os
Na primeira fase da síndrome, o carteiro afli‑ bolsos cheios de pequenos objectos metálicos.
gido sente calores e tonturas todos os dias ao anoi‑ Se vermeologistas qualificados com ligações à
tecer. Começa a cultivar uma fantasia obsessiva na legislatura do estado da Califórnia forem capazes de
qual enche os bolsos de moedas ou outros peque‑ obter tecidos conservados para dissecação, recomen‑
nos objectos metálicos e sobe aos postes telefónicos da‑se um aturado exame histológico. Na eventualida‑
em noites de trovoada. Na eventualidade de uma de de adquirir espécimes vivos da fascíola, qualquer
tempestade nocturna, concretiza‑se a fantasia. Se o jovem rato de laboratório com alguma inteligência a
carteiro é atingido por um relâmpago, cai no pas‑ trabalhar no sector público seria capaz de elaborar

80
[opinião]

Apanhar
um plano de investigação onde fazer carreira. Bara‑
tas, pombos, cães e uma população responsável de
presidiários ou chimpanzés poderiam ser empregues

as canas
como hospedeiros. Uma investigação dos mecanis‑
mos moleculares subjacentes à navegação, supressão
imunitária e técnicas de modificação comportamen‑

do FF 2007
tal da fascíola decerto se iriam seguir. (3)

Autor
Stepan Chapman, Doutorado em Zoologia dos In‑
vertebrados pelo Instituto de Estudos Ulteriores,
Waxwall, Arizona, EUA Rogério Ribeiro
Referências
(1) Vectors of Parasitism Considered As Sub‑Chaotic Attractors

E
For Symbiotic Neurolepsy, Forsfed Forbran DTZ, The Royal m 2007 na sua terceira edição consecutiva
Journal of Worms vol. 59 #4, Berna, Suíça, 1987.
(2) Vanity: Watch Spring of Evolution, Verner Kempt DDT, (quarta, se contarmos com o 1º Encontro Lite‑
Catarrh Press, Oshkosh Wisconsin, 1993. (Edição portugue‑ rário que lhe deu origem), o Fórum Fantástico (FF)
sa: Vaidade — A Mola no Relógio da Evolução, trad. Vladimiro encontra‑se numa encruzilhada, em parte fruto do
Sousa Pústula, Grávida Publicações, Lisboa, 1996.) seu próprio sucesso.
(3) Parasite Rex, Carl Zimmer, The Free Press, Nova Iorque,
Mas, antes de irmos aos deves e haveres do
EUA, 2000. BANG!
evento, permitam‑me tirar publicamente o chapéu à
minha cara‑metade na organização, a Safaa Dib. Não
querendo escorregar para a “pancadinha nas costas”,
não fujo nada à verdade ao afirmar que, sem a sua
prontidão para lidar com a maior parte do trabalho,
este ano não haveria evento. Obrigado, Safaa.
Mas voltemos ao assunto inicial.
Quase sem darmos por isso, o FF passou
a ser olhado como uma iniciativa estabelecida, um
evento sólido que já deixou as “fraldas” para trás.
E notámos isso simultaneamente de várias fontes:
editores, autores, jornalistas, entidades patrocinado‑
ras. O que, se nos enche de orgulho pelo trabalho
realizado estar a ser reconhecido, também nos aler‑
Stepan Chapman nasceu em 1951 em Chicago, ta para que, a partir de agora, os amadorismos e as
no Illinois, e estudou teatro na Universidade inconsistências serão menos tolerados. E não haverá
de Michigan. Em 1969, a sua primeira história maior reflexo disso do que a reacção do público.
publicada foi escolhida por John W. Campbell Este ano tivemos algumas situações que
para a Analog. Nos anos 70, a sua ficção
apareceu em quatro das antologias Damon acabaram por ser lições de gestão de programação
Knight’s Orbit. Participou em peças nos EUA (embora o horário do FF2007 tenha já indiciado essa
e Inglaterra, e as suas comédias para crianças nossa preocupação), nomeadamente com o editor
foram produzidas para o Edinburgh Drama da Marvel Chester Cebulski. Primeiro vários atrasos
Festival. Em 1997, a Ministry of Whimsy Press
lançou o seu primeiro romance, The Troika, no voo obrigaram ao adiamento de uma das suas
que venceu o Philip K. Dick Award. BANG! intervenções, passando por um encurtamento à úl‑

81
tima hora do horário em que poderíamos ocupar o série de fantasia de Robert Jordan e a colectânea de
auditório, até à mudança repentina das regras que o António de Macedo). Mas uma aposta renovada terá
próprio havia imposto para a realização das activida‑ de ser feita nesta área, sob risco de descaracterizar
des relacionadas com o ChesterQuest. Mesmo com parte da própria definição do FF.
esses percalços, foi sem dúvida um dos pontos altos Também de notada erudição foi a palestra de
do evento, sempre com sala cheia, demonstrando à David Soares sobre os aspectos esotéricos que estive‑
audiência uma simpatia e acessibilidade que poucos ram na base do seu recente romance “A Conspiração
estariam à espera, falando tanto da Marvel como da dos Antepassados”. A prova que um livro publicado
banda desenhada em geral e dos problemas relacio‑ é por vezes apenas a ponta do icebergue que lhe dá
nados com a sua criação e produção. origem. A autora espanhola Blanca Riestra fez tam‑
Outro convidado que provocou salas cheias, bém uma apresentação académica sobre o Fantás‑
principalmente nos workshops que realizou parale‑ tico, para além de apresentar o seu livro “O Sonho
lamente ao FF2007, foi Bruce Holland Rogers. Tendo de Borges”. Ambas trouxeram à conversa obras da
vindo a Portugal lançar a colectânea “Pequenos Mis‑ literatura fantástica hispânica pouco conhecidas em
térios”, foi muito pela sua participação que a ficção Portugal.
curta se tornou um dos focos do FF2007. Para além Recém galardoada com um prémio de car‑
disso, os workshops que realizou na Faculdade de reira em Espanha, Elia Barceló veio ao FF2007 apre‑
Ciências Sociais e Humanas e na Faculdade de Le‑ sentar o seu “O Segredo do Ourives” e encantou a
tras, apinhados de ouvintes atentos, mostraram que audiência com a sua participação numa entrevista
é essencial criarem‑se mais iniciativas para quem com o autor britânico Steve Redwood e com Luís Fi‑
procura melhorar a sua escrita. lipe Silva, e com as suas intervenções em várias das
Mas a ficção curta foi também abordada outras palestras.
através de um debate e da apresentação de um nú‑ Também bastante interventivo, o autor ho‑
mero anormal de publicações. Para além da colec‑ landês WJ Maryson lançou o seu livro “O Não‑Ma‑
tânea de Bruce Holland Rogers, foram apresentada go” e manteve uma conversa bastante interessante
as antologias “Por Universos Nunca Dantes Nave‑ com a autora portuguesa Inês Botelho.
gados” (ed. Luís Filipe Silva), “Contos de Terror do Para terminar o FF2007 com chave de ouro,
Homem‑Peixe” (ed. Miguel Neto) e “A República juntaram‑se a Chester Cebulski quatro desenhado‑
Nunca Existiu” (ed. Octávio dos Santos), a colectâ‑ res portugueses já com carreira internacional: João
nea “A Conspiração dos Abandonados”, de António Lemos, Ricardo Tércio, Nuno Alves e Ricardo Ve‑
de Macedo, e o primeiro volume do tríptico “A Bon‑ nâncio, numa sessão que despertou o interesse da
dade dos Estranhos”, de João Barreiros. audiência perante a qualidade dos trabalhos apre‑
Ao contrário do que tinha vindo sendo hábi‑ sentados.
to, a edição deste ano revelou um domínio das com‑ O balanço foi, à semelhança dos anos ante‑
ponentes comercial e autoral, com a grande maioria riores, bastante positivo. Mas, pela nossa ambição,
das sessões dedicada à apresentação de livros e/ou para o ano será ainda melhor. E, para isso, contamos
autores, em detrimento da componente académica. também com as vossas opiniões e sugestões, que nos
Excepção feita para Cláudia Pinto (ficção gótica), poderão fazer chegar através do email forumfantas‑
José Manuel Lopes (literatura de terror, com Fernan‑ tico@gmail.com.
do Ribeiro), José Saraiva (ciência espacial) e Maria Até breve, em forumfantastico.wordpress.com. BANG!
do Rosário Monteiro, que protagonizou duas apre‑
sentações que mais uma vez demonstraram uma
particular capacidade de comunicação e um à von‑ Rogério Ribeiro é editor da revista Bang!,
fundador e presidente da Épica – Associação
tade em transmitir uma visão emotiva mas correcta Portuguesa do Fantástico nas Artes,
dos livros (nomeadamente os primeiros volumes da e organizador do Fórum Fantástico. BANG!

82
[informação]

Prémio Bang! para


Literatura Fantástica
2008 Regulamento geral

O Prémio Bang! para Literatura Fantástica, instituído pela


editora Saída de Emergência, é um prémio anual e pretende
divulgar obras portuguesas dentro do género denominado
literatura fantástica. A literatura fantástica inclui manifestações
tão diferentes como a fantasia, a ficção científica, a história
alternativa, o horror, o realismo mágico, etc... Para ver alguns
exemplos de livros destes géneros, visite a Colecção Bang!
da Saída de Emergência em www.saidadeemergencia.com

ADMISSÃO A CONCURSO 2. As obras devem apresentar um mínimo de


quarenta e cinco mil palavras de texto, dando‑se
Ao Prémio Bang! para Literatura Fantástica primazia ao formato romance (embora também
podem concorrer todos os indivíduos que se aceitem livros de contos).
apresentem os seus trabalhos nas condições que
se seguem: 3. As obras concorrentes, devem observar as
seguintes condições de apresentação:
1. São admitidas a concurso exclusivamente obras 3.1. Quatro exemplares;
inéditas em língua portuguesa; 3.2. A capa deverá apresentar o título da
1.1. Consideram‑se como inéditas obras que obra e o pseudónimo do autor; o título (ou
não tenham sido publicadas, no todo ou uma abreviatura) e o pseudónimo deverão
em parte, em nenhum meio físico (livros, constar igualmente de todas as páginas da
revistas, jornais, em edições profissionais obra, em cabeçalho ou em rodapé, bem
ou de autor, e afins) nem em nenhum meio como o respectivo número de página;
virtual (blogues, fóruns, listas de discussão, 3.3. Juntamente com os quatro exemplares
revistas e demais publicações electrónicas, deverá ser apresentado um sobrescrito
em formato texto, áudio ou vídeo, e afins), fechado, contendo no interior os elementos
nem estejam ou tenham estado disponíveis de identificação do concorrente (nome
em soluções de print‑on‑demand, quer em verdadeiro, morada, email e contacto
Portugal quer no resto do mundo. telefónico) e, no exterior, o título da obra e o
pseudónimo;

83
3.4. As obras admitidas a concurso terão ATRIBUIÇÃO DO PRÉMIO
que respeitar as seguintes características
gráficas: suporte papel, formato A4, 6. O nome do vencedor será publicado na página
tamanho 12, espaço e meio entre linhas, e da editora (www.saidadeemergencia.com) no
tipo de letra Times New Roman; dia 10 de Outubro de 2008. A atribuição do
3.5. Cada concorrente poderá apresentar prémio será uma cerimónia pública, com local e
mais do que um trabalho, desde que os data a anunciar, mas sempre antes do dia 31 de
envie separadamente e com pseudónimos Dezembro de 2008.
diferentes;
3.6. Os textos devem ser fixos por agrafos, 7. A obra premiada será publicada pela editora
argolas ou qualquer outro sistema. Saída de Emergência durante o ano de 2009
e o autor receberá um prémio de 1500 Euros
aquando da cerimónia de atribuição do prémio.
ENTREGA DE TRABALHOS 7.1. As obras alvo de Menções Honrosas
não darão lugar a um prémio financeiro,
4. Os textos a concurso deverão ser enviados reservando‑se a editora Saída de
por correio para a morada da editora (Av. da Emergência no direito de considerar a sua
República, nº 861, Bloco D, 1º Dtº, 2775‑274 eventual publicação, em comum acordo
Parede) até ao dia 31 de Julho de 2008, com a com o autor.
indicação expressa “Candidato ao Prémio Bang!
para Literatura Fantástica 2008”.
DISPOSIÇÕES GERAIS

COMPOSIÇÃO E ATRIBUIÇÕES DO JÚRI 8. Os exemplares de participações não


enquadradas dentro do regulamento ou que
5. Em 2008 o júri será formado pelos seguintes não obtenham o prémio serão destruídos após a
quatro elementos: David Soares, Luís Filipe Silva, divulgação do Prémio.
João Seixas e Luís Corte Real;
5.1. É vedada aos membros do júri a 9. A partir do momento em que os concorrentes
apresentação de textos a concurso; enviam as obras para a editora aceitam na íntegra
5.2. O júri reserva o direito de não atribuir o regulamento para atribuição do Prémio Bang!
prémio caso considere que a qualidade para Literatura Fantástica.
literária dos textos a concurso não é
satisfatória; 10. Sem prejuízo dos números anteriores, os
5.3. Em caso de atribuição, o prémio deverá autores mantêm os direitos de autor referentes às
recair sobre uma única obra, não podendo obras enviadas.
haver situações de obras galardoadas em
ex‑aequo;
5.4. O júri poderá, caso assim entenda e se
Entrega das obras:
a qualidade literária dos textos a concurso 1 de Janeiro 2008
o justificar, propor a atribuição de Menções a 31 de Julho de 2008
Honrosas, para além da obra premiada;
5.5. A decisão do júri será tomada por Boa sorte e muita inspiração.
unanimidade ou maioria e dela não haverá Os Editores, Dezembro de 2007
Recurso. BANG!

84
[informação]

Colecção Bang!
Apresentação do primeiro trimestre de 2008
A melhor colecção de literatura
fantástica do país vai trazer 4 livros
fabulosos no início do ano: de um
autor consagrado norte americano,
de um autor maravilhoso inglês, de
um dos mais talentosos escritores
A República Nunca Existiu espanhóis, e uma antologia com
Miguel Real, João Aguiar, José Manuel Lopes e mais... autores portugueses consagrados e
E se o Regicídio de 1 de Fevereiro, tal como o conhecemos, não
alguns estreantes
tivesse acontecido? E se a República nunca tivesse sido instau-
rada em Portugal, nem em 5 de Outubro de 1910 nem depois? novo também se proclama rei, suportado por uma hoste que
Estas hipóteses constituem o ponto de partida para 14 «histórias reúne quase todas as forças do sul. Para pior as coisas, nas Ilhas
alternativas», escritas por outros tantos autores, que aceitaram de Ferro, os Greyjoy planeiam a vingança contra aqueles que
o desafio de imaginar um país distinto daquele que verdadeira- os humilharam dez anos atrás. O Trono de Ferro é ocupado
mente existiu no século XX, e não só. Sempre um Reino, sempre pelo caprichoso filho de Robert, Joffrey, mas quem de facto
uma Monarquia! Passado, presente e futuro de uma nação governa é a sua cruel e maquiavélica mãe. Com a afluência de
foram rescritos, e o resultado é um livro como nunca houve em refugiados e um fornecimento insuficiente de mantimentos, a
Portugal. Entre numa dimensão diferente e seja bem vindo à cidade transformou-se num lugar perigoso, e a Corte aguarda
«outra» costa mais ocidental da Europa, onde «A República com medo o momento em que os dois irmãos do falecido rei
Nunca Existiu!» avancem contra ela. Mas quando finalmente o fazem, não
Publicação dia 21 de Janeiro. é contra a cidade que investem... O que os Sete Reinos não
sabem é que nada disto se compara ao derradeiro perigo que se
avizinha: no distante Leste, os dragões crescem em poder, e não
faltará muito para que cheguem com fogo e morte!
Publicação dia 11 de Fevereiro.

A Fúria dos Reis


George R. R. Martin

Quando um cometa vermelho surge nos céus de Westeros


encontra os Sete Reinos em plena guerra civil. Os combates O Império do Medo
estendem-se pelas terras fluviais e os grandes exércitos dos Stark Brian Stableford
e dos Lannister preparam-se para o derradeiro embate.
No seu domínio insular, Stannis, irmão do falecido Rei Esta é a história de uma cruzada pelo maior
Robert, luta por construir um exército que suporte a sua de todos os segredos: a imortalidade.
reivindicação ao trono e alia-se a uma misteriosa religião O Império do Medo é um magnífico épico histórico, repleto da
vinda do oriente. Mas não é o único, pois o seu irmão mais melhor aventura e da mais brilhante fantasia, que se desenrola

85
[convite]

Publique
ao longo de três séculos. Saltando de Inglaterra para o coração
de África, e de Malta para o Novo Mundo, Brian Stableford
oferece-nos a visão sublime de uma realidade que parece a nossa
mas não é. Afinal, este é um mundo governado por uma pode-

o seu conto
rosa aristocracia de imortais: humanos extraordinariamente
belos e imunes à dor mas que precisam de beber o sangue dos
mortais.
A história começa na nebulosa Londres do século XVII. Ed-

na revista
mund Cordery, sábio da corte de Ricardo Coração de Leão,
acredita que a cerimónia supostamente mágica que transforma
um mero humano num vampiro deve ter uma explicação natu-
ral. Mas descortinar o segredo da criação dos imortais também

Bang!
é saber como os destruir, como tal, quando as suas investigações
o aproximam da verdade, a elite que governa o mundo decide-
se pela sua morte. Mas antes de morrer, Edmund passa os seus
segredos ao filho Noell, transformando este no homem mais
procurado em Inglaterra e forçando-o a fugir pela vida. Para
continuar as investigações do pai, Noell viaja até ao coração de
África, onde acredita que os primeiros vampiros nasceram há
milhares de anos. Na companhia do fiel monge Quintus, do
pirata Langoisse e da sua amante Leilah, Noell terá de enfrentar
guerras, pestilências e todos os perigos de uma época violenta,
A revista Bang! está à procura de novas vozes
na literatura fantástica. Envie‑nos o seu conto
(de horror, ficção‑científica, fantasia, história alter‑
na derradeira cruzada pelos segredos da imortalidade.
Publicação dia 11 de Fevereiro. nativa, realismo mágic, etc) e, se for esolhido para
publicação, para além da glória eterna ao imorta‑
lizar‑se nas páginas da única revista de literatura
fantástica em Portugal, ainda recebe 3 livros grátis
na sua caixa de correio. São eles:
• Os Ossos do Arco-Íris de David Soares;
• Sr. Bentley, o Enraba-Passarinhos de Ágata Simões;
• Fragmentos de uma Conspiração de José Lopes;
Um grande livro de horror, um grande livro de hu‑
mor e um thriller bem português serão suficientes
A Loucura de Deus para tirar cá para fora o que de mais fantástico há
Juan Miguel Aguilera em si?

Inícios do século XIV. O mito de Prestes João, das suas
terras míticas e exércitos invencíveis, dá esperança a uma
Europa destroçada por guerras. É então que um grupo de
mercenários, acompanhados por Ramón Llull, o Doutro
Iluminado, decide partir numa arriscada expedição para
Oriente, ao encontro desse rei cristão.
Mas a loucura dos homens, ou talvez de Deus, guia-os a
um destino diferente e insólito: a estranha, misteriosa e
desconhecida cidade de Aristarcópolis. E o que vão encontrar
desafiará toda a ciência que conhecem, a tecnologia que já
viram, a crença no Homem e até a fé em Deus.
A Loucura de Deus é um feito que comprova a mestria
narrativa de Juan Miguel Aguilera, um dos autores espanhóis
mais surpreendentes da actualidade. Os contos candidatos devem ser submetidos para
Publicação dia 10 de Março.
joaog@saidadeemergencia.com, tendo o email o
seguinte título “submissão de conto para revista
Bang!” E agora, boa inspiração! BANG!

86
[ficção]

Dois contos súbitos


Luís Filipe Silva

DES‑SINCRONICIDADES do da vida eterna pouco depois de bater as botas...


Infelizmente, nunca viria a saber se isso tinha

Q uando acabou de estudar foi quando intro‑


duziram os métodos hipnossomáticos de
aprendizagem, no qual se aprendia sonhando com
sido verdade, pois pouco tempo depois da crioge‑
nização, surgiu uma singularidade tecnológica que
fez retroceder culturalmente a humanidade aos tem‑
experiências de vida concretas, pelo que depressa pos da força motriz a animais.
se viu rodeado de malta muito mais jovem e mais Ainda lá se encontra, resguardado nas profun‑
dinâmica que não perdera tantos anos mergulhada dezas do refúgio da montanha, alimentado por en‑
nos livros nem em tanta teoria sem prática. ergia solar, até que as máquinas se gastem ou o sol
Quando teve um filho foi quando legalizaram a se apague... e morra mesmo antes de surgir a nave
limpeza e melhoria genética dos fetos com apoio da extraterrestre. BANG!
Segurança Social, pelo que o bebé foi a última gera‑
ção daquele país a ainda ter um raciocínio básico e Contra a Demagogia
uma desenvoltura física não aumentada.
Quando o negócio do canal de televisão estava
a arrancar, foi quando se começou a vender óculos
e até olhos artificiais que misturavam imagens do
‑F unciona assim, sr. Presidente: fica residente
no seu cérebro e vai contando as palavras que
profere ao falar e escrever. Ao atingir o limite, zás!
mundo fisico com as vindas constantemente da in‑ Abre os milhões de contentores de cianeto que lhe
ternet, e num único ano a televisão, nos moldes con‑ injectámos nas veias. E ao fim de cinquenta pala‑
hecidos, desapareceu. vras...
Quando começou ele mesmo a usar olhos ar‑ ‑ Cinquenta palavras?! – berrou o Presidente.
tificiais, não tinha dinheiro para comprar a versão ‑ Quarenta e oito... – corrigiu maliciosamente o
a cores, pelo que durante muito tempo teve de viver terrorista. BANG!
num mundo a preto‑e‑branco; quando finalmente
conseguiu poupar o suficiente, os olhos a cores cai‑ Luís Filipe Silva foi galardoado em 1991
ram de preço, e tornou‑se chique ver o mundo em com o prémio Caminho de Ficção Científica.
É autor do Ciclo da GalxMente, composto
tons de cinzento. à data pelos romances Cidade de Carne e
Daí que não foi surpresa para ninguém que Vinganças, e colaborou com João Barreiros
tivesse decidido congelar‑se no final da vida e no “Terrarium” - Um Romance em Mosaicos.
aguardar pelo avanço das tecnologias, para ficar fi‑ Nos últimos anos tem mantido uma presença
assídua na internet, onde publicou uma revista
nalmente sincronizado com o desenvolvimento da por email («Eventos») que se transformou no
sociedade. Por aquele andar, descobririam o segre‑ actual site TecnoFantasia.com.. BANG!

87
[preview]

Não perca
no próximo
número
da Bang!
Em Abril no seu PC

J oão Seixas assina ZEPPELINS SOBRE LISBOA,


um alucinante SERIADO em três partes que fará as
delícias de todos os fãs de INDIANA JONES e DOC
SAVAGE. Que terríveis planos foram roubados do
alto comando Italiano em plena I Guerra Mundial?
Que rosto sinistro se esconde sob a máscara do mis‑
terioso Barão K? Qual o papel do macabro Farang
Dao e da ameaçadora Liga do Arabesco? Quem
é o excêntrico cientista que se abriga sob o manto
protector de D. Carlos numa Lisboa que é um oá‑
sis civilizacional numa Europa mergulhada na mais
sangrenta guerra do século XX?
Não perca ZEPPELINS SOBRE LISBOA e vis‑
ite uma Lisboa ninho de espiões, onde personagens
Deixe a sua opinião em:
como Mata Hari e Buíça se vêem envolvidos na mais revistabang.blogspot.com
terrível e mortal conspiração de todos os tempos.
Novela de aventuras em cenário de história alterna‑ Bang! 3 - Janeiro 2008 - Trimestral
tiva, ZEPPELINS SOBRE LISBOA é o primeiro ro‑ www.saidadeemergencia.com
mance RETRO PULP português. Uma publicação Saída de Emergência.
Todos os direitos reservados.

E ainda, contos de José Manuel Lopes, João Bar‑


reiros, Robert E. Howard, H. P. Lovecraft, Ágata
Ramos Simões, Richard Matheson, Luís Filipe Silva e
Redacção Av. da República, 861, Bloco D, 1º Dto.
2775-274 Parede
Editores Luís Corte Real e Rogério Ribeiro
David Soares, entre outros. Mas porque há vida para Design Saída de Emergência
lá da ficção, também temos dois estupendos ensaios Copyrights Textos propriedade da editora e/ou
de João Seixas e António de Macedo para lhe apre‑ dos respectivos autores
sentar. BANG! Capa Phil Hale

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