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N ewton Moreno
“Nossa sociedade se importa mais com a ori- Agreste sinaliza o encontro de duas verten-
ginalidade do que com a herança e isso, po- tes de minhas preocupações estéticas: conexões
deríamos acrescentar, na medida, em que para possíveis entre homoerotismo e teatro; e o re-
a obra de arte, se trata menos de ser entendi- torno à cultura popular nordestina, ao berço
da em termos de legitimação do que em ter- nordestino de onde vim, uma ‘nostalgia das ori-
mos de ruptura.” (Jean Pierre Ryngaert) gens’, como diria Artaud.
Cultura popular que foi o primeiro en-
A
Memória guiou os primeiros escritos de tendimento do fenômeno cênico/teatral: o ca-
Agreste. No início, a memória de uma gran- valo-marinho, o pastoril, o mamulengo, o con-
de companheira de teatro nordestino que tador. Artistas do povo que freqüentaram a
dividia comigo os relatos de suas visitas ao minha infância e juventude no trânsito entre
interior do Pernambuco, onde trabalhava Recife e o interior do estado.
com orientação sexual de mulheres camponesas/ O cruzamento destas vontades potencia-
lavradoras há quinze anos atrás. lizava/gestava a escrita de Agreste.
A cada retorno à cidade do Recife, conta- Um breve olhar sobre dois textos anterio-
va-me assustada do desconhecimento que essas res pode me ajudar a pensar o trampolim/mo-
mulheres tinham de seu corpo, que elas tinham tor para/de criação de Agreste.
de sua sexualidade, de sua máquina-corpo, do Deus sabia de tudo e não fez nada (2000)
silogismo tortuoso de sua feminilidade. Aterro- deitava-se sob as relações possíveis entre teatro
rizava-a a ignorância que essas mulheres tinham e sexualidade, com vontades políticas claras.
de si. Deus, centrada na dramaturgia do fragmento,
A peça começou ali. E veio se organizan- costurava uma seqüência de crônicas cortantes
do em dois eixos centrais: a medida aterradora e ágeis que se encontravam ao discutir cruelda-
desse desconhecimento e os desdobramentos da de e aceitação dentro e fora da comunidade gay.
ignorância que se disseminava nestas comuni- Para fugir da armadilha de representar a ‘iden-
dades; e o recurso do contador de estórias do tidade’ da comunidade gay, optei pela drama-
Nordeste. turgia fragmentada, recorrendo a vários olhares
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para edificar um mosaico, um recorte, um pai- E é desse movimento de retorno que gos-
nel. A supressão do ‘diferente’ é o nervo da peça taria de falar.
e que contamina o universo criador de Agreste. A memória, guardiã de sabedoria, de an-
Body Art (2002-2003) lambuza-se no açu- cestralidade, de permanência e eternidade con-
de poético de práticas e rituais subterrâneos ho- segue construir uma rede de significações para
moeróticos, sacralizando-os de metáforas numa um coletivo, para um agrupamento social.
busca descaradamente ‘genetiana’. A peça cap- Essa memória com função política forma-
tura dois rituais de recordação e despedida en- dora de consciência de trajetória e de valores.
tre um casal de body-modificadoras (artistas que Essa memória como resistência.
modificam o corpo com incisões, provocando- Essa musculatura da memória que se per-
se cicatrizes) e fist-fuckers (adeptos da prática se- de e enfraquece nosso entendimento como povo.
xual que se utiliza do punho). Começo a de- Essa memória que me guia para tecer a
molir o conceito de ritual como algo fossilizado, dramaturgia do espetáculo Assombrações do Re-
estático, imutável. Nestas duas peças curtas que cife Velho, livre adaptação de livro homônimo
compõem Body Art (Dentro e A cicatriz é a flor), de Gilberto Freyre.
o comportamento humano nestes locais ‘escu- O artista a serviço/servo da memória e a
ros’ acendia minha curiosidade literária. Os có- memória como exercício poético em Agreste.
digos, o ritual, o condutor do ritual, a carne em Aí a lembrança é a do contador de estórias.
sacrifício, o templo subterrâneo, tudo alimen- A memória dos contadores de minha in-
tava a consciência de que estas histórias de amor fância na Zona da Mata de Pernambuco. Essa
serviam a um ato sacralizado regido por códi- era a forma, a fôrma com que minha memória
gos internos àquelas comunidades/tribos (os se vestia, ou despia-se. Forma de que essa estó-
body-modificadores e os fist-fuckers). O ritual da ria deveria valer-se.
cicatrização tem inspiração nas práticas africa- Essa figura épico-popular que organiza a
nas de corte de membros das tribos para outor- História. A força mantenedora de sua arte oral,
gá-los de significado dentro da história da co- de seu testemunho. Escreve, com cada recorda-
munidade. Feminilidade/fertilidade e bravura ção, o futuro ao restaurar o passado.
do guerreiro ou mesmo ritos de passagem da O contador como sábio, como fonte do
adolescência para a vida adulta. Um belíssimo arsenal do imaginário, o contador como quem
livro intitulado Masks (... ) está recheado de perpetua, como quem organiza o passado no
imagens destas tribos. Body Art funciona como momento em que o conta.
um flerte antropológico no teatro, referendado Aí o meu retorno se configura coerente
pela leitura da obra concisa e inspiradora Ritu- se adequado à vontade/ao desejo da memória, à
ais ontem e hoje de Marisa Peirano. O campo forma que ela tem para mim. Volto ao conta-
sagrado do ritual dentro do cenário contempo- dor como condutor de minha estória/história.
râneo e seu caráter performativo. O ritual e a Obedeço à narrativa, ao cúmplice direto com a
ancestralidade. platéia, à nostalgia de um apelo direto ao espec-
Agreste ganha sua forma definitiva após tador. Acima e inserido no universo que aos
esses textos iniciais e carrega consigo algumas poucos o toma. E como acontece com um bom
heranças temáticas e formais (se é possível se- contador, ele é obrigado a entrar em sua estó-
pará-las). Agreste nasce numa encruzilhada que ria. E, aos poucos, o contador aponta persona-
confronta o imaginário nordestino e o discurso gens, o contador vive todos os personagens, o
contemporâneo da frágil linha limítrofe da contador assume os diálogos. Ele salta de si para
sexualidade. a personagem e retorna para si, absoluto senhor
Agreste é, contudo, o grande movimento da narrativa. Um artesanato de contar. Imitar
de retorno regido pela memória. narrando e imitar agindo.
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A greste : uma nostalgia das origens
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dições míticas referentes ao arroz. ‘Ele passa quando apareceu pela primeira vez. (...) ele o
a noite na cabana de plantação, recitando as força magicamente a retornar à origem, isto é,
lendas que explicam como o homem veio a a reiterar sua criação exemplar.”
possuir o arroz (mito de origem).’ Recitando
o mito de origem, obriga-se o arroz a crescer Contar para que o arroz cresça tão belo
tão belo, vigoroso e abundante como era quanto na origem de sua criação.
Referências bibliográficas
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