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Teoria da acção

A moderna dogmática do Direito Penal entende que o conceito de


acção deve desempenhar no sistema do crime, cumulativamente, as
três seguintes funções:

1. Uma função de elemento básico ou fundamental da sistemática do


crime (Maihofer) ou função classificatória (Jescheck)

Significa isto que o conceito de acção deve poder abarcar em si todas


as formas de manifestação do comportamento punível. Deve ser, por
isso, um conceito suficientemente amplo para englobar as acções em
sentido restrito e as omissões, quer dolosas, quer negligentes. É neste
sentido que Maihofer considera a acção como o "elemento
fundamental" do Direito Penal, ou seja, no sentido de que o conceito
de acção deve constituir o conceito mais genérico do sistema do
crime, algo capaz de abranger todas as formas de comportamento
punível.
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2. Uma função de elemento de ligação das restantes categorias


do sistema da infracção

Neste sentido, o conceito de acção deve servir de elemento de ligação


entre a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade, já que a acção
constitui o substrato de todos esses predicados ou qualificativos. A
acção representa, de certo modo, a "coluna vertebral" do sistema do
crime (Roxin).

Para poder desempenhar a "função de elemento de ligação" das várias


categorias da estrutura do crime, o conceito de acção deveria
apresentar, segundo a Doutrina, duas características:

a) Por um lado, deveria ser neutral relativamente à tipicidade, à


ilicitude e à culpabilidade, que são apenas atributos da acção. Não
poderia, portanto, abranger em si nenhum aspecto que só numa fase
valorativa posterior lhe deva ser adicionado como atributo. Isto é:
deveria ser possível falar de uma acção que não seja típica, não seja
ilícita, não seja culposa, pois, de contrário, o conceito de acção
estaria a antecipar o juízo próprio das outras categorias do sistema
da infracção. A "importância sistemática" que cabe ao conceito de
acção como "elemento de ligação" ficaria prejudicada se o conceito
que estabelece a ligação fosse caracterizado pelos predicados
valorativos que ele, precisamente, apenas deve ligar. Neste sentido
diz Maihofer que "o conceito de acção tem que ser completamente
indiferente face a todos os predicados dos quais ele é suporte, dos
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quais ele é sujeito". Adiante veremos se é possível ao conceito de


acção satisfazer esta "neutralidade absoluta" a que se refere
Maihofer.

b) Mas, se por um lado o conceito de acção deve ser neutral


relativamente às categorias que se lhe seguem na estrutura da
infracção, por outro lado ele deve possuir o conteúdo material
suficiente para lhes servir de suporte; algo que se repete em cada
nível da construção do crime, mas que em cada nível é
complementado com novos atributos valorativos, atingindo em
cada novo nível uma caracterização cada vez mais rigorosa (nessa
medida fala Jescheck de uma função de definição), embora, como
se disse, esse conteúdo não deva ser tal que antecipe qualquer dos
outros juízos (de tipicidade, de ilicitude, de culpabilidade).

3. Uma função delimitadora dos comportamentos que, à partida, já


se sabe não poderem vir a ser considerados típicos

O conceito de acção deverá permitir, por si só, excluir todos os


comportamentos irrelevantes para o Direito Penal, como, por
exemplo, (comportamentos interiores ou intenções), actos praticados
em estado de sonambulismo ou em estado de hipnóse, movimentos
reflexos decorrentes de caíbras, ataques convulsivos, etc., bem como
comportamentos de animais e factos naturais.
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Mas, por outro lado, o conceito de acção terá que permitir abranger os
actos de inimputáveis (por exemplo, actos de doentes mentais) que
podem perfeitamente ser típicos e ilícitos - dando lugar a medidas de
segurança - embora não sejam culposos e, portanto, não passíveis de
punição.

II

Conceito de acção do sistema clássico

1. O conceito de acção do sistema clássico foi apelidado pelos finalistas


de conceito causal ou naturalístico, designação que passou a ser
corrente na Doutrina. Os criadores deste sistema foram von Liszt e
Beling. Daí que o sistema clássico seja também referido pelos
penalistas como sistema de von Liszt/Beling.

Von Liszt começou por definir a acção como "produção de uma


alteração no mundo exterior recondutível à vontade humana".
Como, porém, este conceito de acção se mostrasse incapaz de
abranger a omissão, von Liszt substituíu-o, posteriormente, por um
conceito mais lato, segundo o qual "a acção é um comportamento
voluntário que se repercute no mundo exterior ou, mais
exactamente, a alteração ou não impedimento de uma alteração (de
um resultado) do mundo exterior através de um comportamento
voluntário". E, para Beling, a acção consiste num "comportamento
humano assente na vontade". Neste conceito naturalístico de acção
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(assim chamado por pretender descrever a acção recorrendo a


categorias das ciências naturais, independentemente de qualquer
referência a valores) a voluntariedade aparece como núcleo central.
Assim, a omissão é descrita por Beling como "uma retenção
voluntária dos nervos motores" e von Liszt (para referir um exemplo
que ficou célebre) dizia que a injúria consiste na produção volunária
de "ondas sonoras" que se repercutem nos tímpanos de outrem. Com
isto perdia-se, no entanto, todo o sentido da injúria, que se traduz
numa manifestação da desconsideração do agente relativamente a
outra pessoa.

A voluntariedade era entendida em termos que abstraíam


rigorosamente do conteúdo da vontade. Quer dizer: reputava-se
necessário que o movimento corpóreo ou ausência dele fosse produto
da vontade humana, mas, uma vez apurada a voluntariedade do
comportamento, prescindia-se, em absoluto, de averiguar o conteúdo
dessa vontade, ou seja, o que foi que o agente efectivamente
pretendeu com esse movimento corpóreo ou ausência dele. A
averiguação do conteúdo da vontade só teria importância ao nível da
culpa, segundo entendiam os defensores do conceito de acção em
análise.

2. Relativamente às funções do conceito de acção que atrás se referiram,


o conceito naturalístico de acção consegue preencher bem a função
delimitadora, dado que permite excluir, à partida, todos os
comportamentos que não são relevantes para o Direito Penal.
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Já quanto à função de elemento básico do sistema, que vimos deve


caber à acção, o conceito clássico de acção mostra-se incapaz de a
satisfazer. Os seus defensores (entre os quais ainda hoje se incluem
Baumann/Weber) pretenderam encontrar na voluntariedade um
denominador comum à acção e à omissão. Contudo, a voluntariedade
em sentido naturalístico - que seria, na omissão, uma contenção dos
nervos motores - não se verifica, normalmente, nos casos de omissão,
pois, como observa Roxin, os nervos motores não se põem em
movimento por si mesmos. O que acontece nos casos de omissão é
que não há vontade de os mover, o que é diferente da existência de
vontade de os reter.

Além disso, este conceito causal-naturalístico de acção não consegue


abranger as omissões por negligência inconsciente (por exemplo as
omissões por esquecimento), porque aí não há qualquer
voluntariedade detectável.

Para escapar a esta crítica, os defensores do conceito naturalístico de


acção passaram a falar de comportamento humano em vez de acção.
Simplesmente, como já acentuou Radbruch, no seu estudo clássico
sobre a acção (de 1903), a expressão "comportamento humano" não
resolve o problema, porque se limita a reunir sob uma mesma
designação a acção em sentido restrito e a omissão sem, no entanto,
indicar qual a característica comum a ambas. Como diz Radbruch, não
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se pode unificar num mesmo conceito a afirmação e a negação ("A e


não A") referentes ao mesmo objecto.

Finalmente, o conceito de acção do sistema cássico da infracção não


realiza, de um modo satisfatório, a função de elemento de ligação das
várias categorias do sistema de infracção. É certo que esse conceito
satisfaz o requisito da neutralidade em relação aos restantes elementos
da estrutura do crime, mas ele é demasiado pobre de conteúdo para
poder servir de suporte aos predicados tipicidade, ilicitude e culpa. O
próprio Beling dizia que o seu conceito de acção - na medida em que,
embora exigindo o requisito da voluntariedade, prescindia em
absoluto do conteúdo da vontade - constituia um "fantasma sem
sangue".

III

Conceito final de acção

1. O principal arquitecto do conceito de acção final foi Welzel, que o


erigiu em conceito central da teoria da infracção, partindo da ideia de
que a finalidade caracteriza a estrutura ontológica do agir humano.
Quer dizer: o agir humano caracterizar-se-ia pelo facto de o homem se
propor determinados fins e procurar atingi-los, utilizando, para o
efeito, o seu conhecimento das leis naturais, ou seja, antecipando
mentalmente e supra-determinando os processos causais capazes de
conduzirem á realização desses fins.
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A finalidade seria, portanto, uma categoria que pressupõe a


causalidade mas não se esgota nela, uma vez que a finalidade
consiste, precisamente, em orientar a causalidade para a realização de
determinados fins que o homem se propõe. Welzel e os seus
discípulos denominaram de causal o conceito de acção do sistema
clássico, exactamente para pôr em relevo a sua insuficiência e a
necessidade de substituir a categoria da causalidade pela da finalidade
para definir a acção.

O conceito final de acção dominou a discussão científica na


dogmática penal alemã entre meados dos anos 30 e meados dos anos
60. Segundo os seus defensores, do conceito de acção final (que seria
anterior a quaisquer valorações do legislador) deveriam retirar-se
determinadas consequências para a teoria da infracção,
nomeadamente no que concerne ao regime do erro sobre os
pressupostos fácticos das causas de justificação (teoria rigorosa da
culpa) e ao regime da participação criminosa (instigação e
cumplicidade).

Hoje, este conceito de acção perdeu, na Alemanha, em muito larga


medida, a aceitação que teve.

2. O conceito de acção final não pode satisfazer a função de elemento


fundamental ou básico do sistema de Direito Penal, porque não
consegue abranger a omissão nem os comportamentos negligentes.
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Estas críticas têm sido, ao longo dos tempos, muito contestadas pelos
finalistas, mas, ao fim e ao cabo, revelam-se exactas. Vejamos porquê.

a) No que respeita à omissão o conceito finalista de acção revela-se


tão incapaz de a abranger como o conceito de acção do sistema
clássico, a que os finalistas chamaram causal ou naturalístico. Na
verdade, como ficou referido, a categoria da finalidade, embora não
se identifique com a da causalidade, pressupõe esta, uma vez que a
finalidade consiste, precisamente, na supra-determinação, na
condução pelo homem de processos causais, para atingir
determinados fins. Onde não há causalidade não pode, portanto,
haver finalidade.

Ora, sucede que, relativamente à omissão, como já foi acentuado,


não se pode falar de causalidade. Da inactividade nada resulta. Só
podemos aqui pensar em termos análogos aos de um processo
causal, na medida em que imaginarmos o que teria acontecido se o
agente tivesse actuado. Então teríamos, com efeito, um processo
causal, mas um processo causal apenas pensado, imaginado, um
processo causal hipotético, mas não real, não verdadeiro. Portanto,
na omissão não existe causalidade e, não existindo esta, ela não
poderá ser conduzida pelo agente. O agente não intervém no
processo causal, não o supra-determina; o processo causal segue o
seu curso, intocado pelo agente. Nesta medida o conceito finalista
de acção é, portanto, tão incapaz de abarcar as omissões como o
conceito, dito causalista, do sistema clássico de von Liszt e Beling.
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b) Por outro lado, o conceito de acção final revela-se também incapaz


de abarcar os crimes negligentes. A este respeito tem-se processado
na Doutrina uma longa discussão, que ainda não se encontra
encerrada, entre os adeptos do finalismo e os seus adversários.
Vejamos, com mais detalhe, como se processou essa discussão e de
que lado está a razão.

Tendo em vista a negligência inconsciente, na qual o


comportamento do agente não é supra-determinado em relação às
consequências penalmente relevantes, mas sim causa-as de modo
cego - para aplicar aqui a expressão usada pelos finalistas
relativamente ao conceito de acção do sistema clássico -, Welzel
começou por dizer que nesses casos há uma forma de acção final
atrofiada ou degenerada mas, ainda assim, continua a existir
finalidade. Só que a finalidade no caso das acções dolosas seria
uma finalidade real e no caso das acções negligentes seria uma
finalidade potencial ou possível. Mas é claro que esta resposta não
pode satisfazer porque, na realidade, a finalidade potencial não é
finalidade nenhuma. É apenas uma possibilidade, uma
potencialidade de finalidade, mas não se identifica com a finalidade
que caracteriza a generalidade das acções dolosas. Portanto,
continua a faltar um denominador comum às acções dolosas e às
acções negligentes, nomeadamente no que toca às acções praticadas
com negligência inconsciente.
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3. No princípio dos anos 50 (1951), Niese, num famoso trabalho


intitulado "Finalidade, dolo e negligência", veio tentar demonstrar a
existência de uma finalidade também nas acções negligentes,
seguindo um caminho diferente daquele que fora trilhado por Welzel.
Para Niese, a finalidade também existe na acção negligente, pois, em
seu entender, todas as acções humanas são finais. Assim, diz Niese, se
alguém está a limpar uma espingarda, sem ter o cuidado de se
certificar que ela está, ou não, descarregada e por descuido dispara um
tiro que mata uma pessoa, há uma acção final, que é o limpar a arma.
O agente não quis matar a pessoa vítima do tiro, não supra-
determinou o processo causal para conduzir ao resultado que se
traduziu na morte da vítima, mas supra-determinou o processo causal
para limpar a arma. Deste modo, haveria em todos os crimes, mesmo
nos negligentes, uma acção final. A punibilidade continuaria a ser a
categoria que abarca todas as formas de comportamento punível.

Esta tentativa, empreendida por Niese, de salvar o conceito final de


acção como elemento básico do sistema do crime, não se nos afigura
procedente. É verdade que, mesmo no caso de comportamentos
negligentes, o agente também prossegue uma finalidade qualquer.
Mas essa finalidade real não é abarcada pelo tipo legal de crime e,
portanto, a finalidade real existente no caso dos crimes negligentes, é
uma finalidade penalmente irrelevante. Nesses crimes, não é a acção
final que vai servir de base aos atributos da tipicidade, da ilicitude e
da culpabilidade e, como já vimos, a função da acção como elemento
básico do sistema do crime consiste, exactamente em ser ela o
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substantivo ou o substrato desses predicados que lhe vão sendo


atribuídos através da afirmação de tipicidade, de ilicitude e de
culpabilidade. Na generalidade dos crimes dolosos, pelo contrário, a
acção final, na sua finalidade real, constitui na verdade o substrato da
tipicidade, da ilicitude e da culpa, o que não acontece quanto às
acções negligentes.

Continuamos, assim, apesar da tentativa de Niese, sem denominador


comum aos crimes dolosos e aos crimes por negligência. A explicação
de Niese traduzir-se-ia até, no fundo, num regresso ao conceito de
acção proposto pelos defensores do sistema clássico, mais
concretamente por Beling, que se contentava com a verificação de que
o agente quis alguma coisa, mas abstraía daquilo que ele quis. Só
assim é que se pode dizer que existe uma finalidade no caso do
homícidio por negligência quando o agente estava a limpar a arma.
Pois, aquilo que o agente quis - limpar a arma - não é o que conta para
o Direito Penal. Seria, portanto, a voluntariedade, despida do seu
couteúdo, que mais uma vez, constituiria o denominador comum do
conceito de acção capaz de abarcar a acção e a omissão, o crime
doloso e o crime por negligência.

4. Numa fase mais tardia do seu pensamento, Welzel, para escapar às


objecções de que o seu conceito de acção era inapto para abarcar as
omissões e os crimes negligentes, não podendo, por isso, servir como
conceito superior do sistema do crime, veio dizer que, afinal, o que há
de característico na acção, tal como ela ontologicamente se configura,
190

é que a acção consiste numa condução dos acontecimentos externos


pela vontade (do homem). O acento tónico estaria então na condução
dos acontecimentos pela vontade. Ele chega a dizer que seria melhor
falar de um conceito "cibernético" de acção em vez de um conceito
final de acção, na medida em que a quinta - essência do conceito de
acção não seria já constituida pela finalidade mas sim pelo facto de a
acção ser conduzida pela vontade humana e isso é comum a todos os
comportamentos humanos relevantes para o Direito Penal.

Quanto a este novo conceito de acção de Welzel, cuja característica


essencial é a condução dos acontecimentos pela vontade humana, ele
pode, sem dúvida, preencher a função de ligação entre os vários
predicados que se lhe seguem, mas continua a não poder satisfazer a
função de elemento básico do sistema. Isto porque, nos crimes
dolosos há realmente uma condução efectiva dos acontecimentos pela
vontade do homem, mas, nos crimes culposos não há mais do que a
omissão de uma condução dos acontecimentos pela vontade humana.
E, sendo assim, não é possível encontrar neste conceito de acção um
denominador comum a todas as formas de comportamento punível,
pois não podemos identificar A e não A, algo que existe e a negação
disso (a existência de uma condução dos acontecimentos pela
vontade, no caso dos crimes dolosos, e a omissão dessa condução, no
caso dos crimes negligentes).

5. Mais recentemente, sobretudo em trabalhos publicados a partir de


1987, tem sido feita uma tentativa por parte de Struensee, um adepto
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actual do finalismo, de responder a esta crítica ao conceito de acção


final. Este autor entende que nos crimes negligentes, inclusivamente
nos casos de negligência inconsciente também existe uma acção final,
com relevância para o Direito Penal, que abrange as circunstâncias de
que resultam determinados riscos que o Direito proíbe que se corram.
Por exemplo: o automobilista que, ao atravessar um cruzamento,
passa com o sinal vermelho, ou que faz uma ultrapassagem numa
curva sem visibilidade, está conscientemente a fazer algo de que
resultam riscos que o Direito não lhe permite correr e, embora possa
até não pensar nos resultados possíveis da sua conduta (caso de
negligência inconsciente), tem consciência de que está a passar com o
sinal vermelho ou que está a ultrapassar numa curva sem visibilidade.
Ora, esses actos conscientes, proibidos pelo Direito, são, diz
Struensee, verdadeiras acções finais que, ao contrário do que acontece
com as acções finais a que se refere Niese (no exemplo da limpeza da
arma), têm relevância penal em relação ao resultado produzido (por
exemplo a morte de uma pessoa), porque a proibição de correr esses
riscos, emitida pelo Direito, visa exactamente evitar um tal resultado.

Esta posição de Struensee não é aceitável porque a caracterização que


ele faz da finalidade da acção só é possível tomando em conta normas
jurídicas. Quer dizer: só existe acção final na medida em que há uma
determinada proibição, ou seja, uma determinada configuração da
ilicitude. Só ao nível do tipo de ilícito é que nós iríamos encontrar a
acção final. Ora isto é uma concessão que não tem sentido do ponto
de vista finalista porque, segundo este, o conceito de acção é
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ontologicamente anterior ao Direito, anterior a quaisquer proibições


efectuadas pelo legislador. O conceito de acção final construído por
Struensee é, portanto, uma incoerência que não permite salvar o
sistema finalista, antes está em contradição com ele.

Acresce que, em muitos casos de negligência inconsciente o agente


nem sequer pratica conscientemente o acto de que emerge o risco.
Pode acontecer que o agente vá tão distraído que nem sequer repare
que o sinal está vermelho ou que se encontra numa curva. E é
evidente que, nestes casos, o acto não deixa de ser punível. Ora, actos
deste tipo também têm de ser abrangidos pelo conceito de acção como
elemento básico do sistema da infracção; e o conceito de acção final
de Struensee não permite abarcar estas situações em que o acto
perigoso não foi praticado conscientemente. Portanto, mesmo
abstraindo de que o conceito de acção final proposto por Struensee
transporta para o plano da ilicitude a fundamentação da acção final, o
que é um pecado mortal do ponto de vista das premissas de que parte
o finalismo, ele não abarca todas as formas de negligência
inconsciente e, portanto, continua a não servir como elemento básico
do sistema da infracção.

6. Outra crítica que tem sido feita ao conceito final da acção é que ele
claudica como elemento delimitador, porque existem determinadas
formas de comportamento que são relevantes jurídico-penalmente e
que não se integram na categoria da finalidade entendida como
Welzel a definia, ou seja, como supra-determinação do processo
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causal. É o que acontece, nomeadamente, com as chamadas acções


automatizadas ou automáticas (por exemplo o automobilista que
perante determinado perigo carrega instintivamente no travão,
provocando o despiste do veículo que leva á morte de uma pessoa).
Estas acções são algo de automático e, portanto, não constituem uma
supra-determinação do processo causal; são algo que emerge do plano
da subconsciência do agente, ou do plano da semiconsciência ou, até,
do plano do inconsciente, e que se exterioriza quando é necessário em
face de determinadas situações, não se situando, portanto, ao nível do
consciente, como acontece no caso da verdadeira finalidade. Daí que
Stratenwerth, que é finalista, fale de uma "finalidade inconsciente",
que corresponde, efectivamente, à realidade em casos como o
descrito. Só que, a ser assim, parece que terá de se abandonar o
conceito de finalidade como supra-determinação do processo
causal, que constitui a quinta - essência do conceito finalista de
acção.

7. Finalmente, e sobretudo, o conceito final de acção não merece


concordância, na medida em que os seus defensores pretendem retirar
dele determinadas consequências jurídicas que, segundo eles, seriam
impostas pela estrutura final da acção, esquecendo que os regimes
jurídicos a que se referem, nomeadamente o regime do erro e o regime
da participação criminosa (instigação e cumplicidade), dependem das
opções do legislador, não de categorias ontológicas anteriores ao
Direito. O que acontece é que a finalidade só tem relevância penal na
medida em que é assumida nos tipos legais de crime, mas logo que
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isso acontece ela passa a constituir matéria que é produto da opção do


legislador. Daí que a questão de saber se a falta de consciência da
ilicitude afasta o dolo, ou de saber se quanto ao erro sobre os
pressupostos fácticos das causas de justificação se deve seguir uma
teoria limitada da culpa ou uma teoria estrita ou rigorosa da culpa, não
possa ser deduzida - ao contrário do que pretendem os finalistas - de
um conceito ontológico de acção. São problemas que têm de ser
resolvidos a partir das opções valorativas do legislador. Esta é, a meu
ver, a crítica principal que deve fazer-se à doutrina da acção finalista.

8. Com isto não pode, porém, esquecer-se o muito que a moderna


dogmática do Direito Penal deve ao finalismo no plano histórico-
dogmático. Foi ele que contribuiu, decisivamente, para que viesse a
impor-se, por exemplo, a doutrina do ilícito pessoal, hoje dominante e
que merece concordância, na sua tese central de que o ilícito abrange
não só um desvalor de resultado, mas também - e até em primeira
linha - um desvalor de acção. Só que a doutrina do ilícito pessoal,
embora historicamente ligada ao finalismo, não pode fundamentar-se
na estrutura ontológica da acção, como pensavam Welzel e os seus
seguidores.

Já se tem dito que há um certo oportunismo dos críticos da doutrina


final da acção, na medida em que se aproveitam das conquistas
dogmáticas a que chegou essa doutrina, negando as suas premissas. É
claro que a questão posta nestes termos não tem qualquer sentido,
pois no plano científico tem que se aceitar aquilo que se afigure certo
195

e rejeitar aquilo que se afigure improcedente. Nesse plano, não se


pode concordar com o que há de erróneo numa dada teoria, por
"gratidão" fundada no facto de essa teoria, no plano histórico-
dogmático, ter constituído um impulso importante para o avanço da
ciência respectiva.

IV

O conceito social de acção

1. O conceito social de acção corresponde a uma orientação da


dogmática penal que, em rigor, é ainda anterior à própria doutrina da
acção final, mas só adquiriu maior importância há cerca de 20 anos
para cá. Nessa medida, mas só nela, pode dizer-se que o conceito
social da acção é mais recente do que o conceito final da acção.

Foram, ou são, defensores deste conceito nomes muito ilustres na


ciência do Direito Penal, nomeadamente, Eberhard Schmidt, Engisch,
Maihofer, Jescheck, entre outros.

Denominador comum das posições de todos estes autores é a ideia de


que a acção é um fenómeno social ou socialmente relevante. Engisch,
cuja definição da acção social se pode, porventura, considerar a mais
elaborada de entre os seus vários defensores, entende a acção como
"uma causação voluntária de consequências calculáveis e socialmente
196

relevantes" e Maihofer diz que "a acção é um comportamento


dirigido à lesão ou violação de bens sociais" (bens sociais no sentido
de que têm relevância social). Jescheck, por seu lado, define a acção
como "todo o comportamento socialmente relevante".

2. As vantagens de um tal conceito de acção, que põe o acento tónico na


relevância social dos comportamentos humanos em causa, residem,
sobretudo, em ele ser mais apto do que, quer o conceito clássico de
acção, quer o conceito finalista de acção, para desempenhar a função
de elemento básico ou fundamental do sistema da infracção.
Efectivamente, ao Direito em geral e ao Direito Penal em particular, o
comportamento humano só interessa na medida em que é socialmente
relevante, independentemente de se poder falar ou não de
"voluntariedade" ou "finalidade" desse comportamento.

3. Mas o conceito social de acção também tem os seus pontos fracos.


Assim ele não consegue desempenhar a função delimitadora em
termos satisfatórios, pois também as consequências da vis absoluta, os
movimentos puramente reflexos ou que não são psiquicamente
controláveis, podem ser socialmente relevantes e, apesar disso, são
claramente irrevelantes para o Direito Penal, pelo que, deveriam ser
afastados, logo à partida, ao nível da acção.

Os defensores da doutrina social da acção, para evitar esta crítica,


fazem acrescer ao critério da relevância social outros critérios, como,
por exemplo, o critério da voluntariedade, do controlo objectivo do
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comportamento, etc.. Mas o recurso a tais critérios já nada tem a ver


com a relevância social do comportamento, pois é manifesto que
podem ser socialmente relevantes comportamentos não voluntários ou
não controláveis objectivamente. Pense-se, por exemplo, no
automobilista que derrapa numa mancha de óleo que está na estrada,
ou que tem um ataque cardíaco, ao volante, e não pode impedir o
acidente em que atropela um peão. Estes actos, não voluntários, e não
controláveis objectivamente, não deixam, por isso, de ter relevância
social. Nestes casos já não será então a relevância social a
desempenhar a função de elemento delimitador que deve caber à
acção, mas sim, eventualmente, o critério da voluntariedade, do
controlo objectivo, ou outros.

A mesma crítica merece a posição de Jescheck, segundo o qual acção


é um "comportamento socialmente relevante", entendendo o
comportamento como "resposta do homem a uma exigência
situacional reconhecida ou, pelo menos, reconhecível, mediante a
realização de uma possibilidade de reacção de que aquele dispõe, em
razão da sua liberdade".

Efectivamente, partindo-se da posição de Jescheck, já não é o critério


da relevância social que permite a delimitar o campo de acções
relevantes para o Direito Penal, mas sim o critério da "resposta do
homem a uma exigência situacional", o que, tal como o critério da
voluntariedade ou o critério do controlo objectivo, nada tem a ver
com relevância social dos acontecimentos como se viu.
198

Acresce que a definição que Jescheck dá de comportamento, na


medida em que recorre à liberdade do homem (mesmo abstraindo de
toda a discussão filosófica sobre o livre arbítrio), não pode abranger
os comportamentos dos inimputáveis, pois o legislador pressupõe que
os inimputáveis não têm a necessária liberdade de determinação e, por
isso, são incapazes de culpa. Mas os inimputáveis podem praticar
actos típicos e ilícitos, podendo ser-lhes aplicadas medidas de
segurança, devendo, portanto, os seus actos ser abrangidos no
conceito de acção, sob pena de ele não poder servir a sua função de
elemento fundamental do sistema do crime.

4. Outra crítica que se tem feito ao conceito social de acção é que ele
claudica como elemento de ligação das diversas categorias do sistema
do crime, na medida em que antecipa, em boa parte, o juízo sobre a
existência de tipicidade, isto porque não é sempre e só a relevância
social que determina a relevância jurídica, mas também pode
verificar-se o contrário. Por vezes, é por o legislador atribuir
relevância jurídica a determinados acontecimentos que eles passam a
ter relevância social. Pense-se, por exemplo, no caso de alguém que,
por esquecimento não apresenta dentro do prazo, estabelecido por lei,
uma declaração de impostos que estava obrigado a apresentar,
omissão essa que é punida com pena de multa. Este comportamento
só tem relevância social porque o legislador incrimina a conduta.
Quer dizer: é a própria regulamentação jurídica que determina, neste
caso e noutros idênticos, a relevância social dos acontecimentos.
199

Por causa desta interdependência recíproca entre a valoração jurídica


e a valoração social, a categoria do social não pode aparecer como
prévia ao tipo, pois ela, em certos casos, resulta do próprio tipo de
ilícito.

Adiante, veremos melhor se é justificado rejeitar, por este motivo, o


conceito social de acção, ou se não deverá antes entender-se que a
"neutralidade" que deverá exigir-se ao conceito de acção (em relação
às categorias da tipicidade, ilicitude e culpa) tem de ser entendido em
sentido menos rigoroso.

Outros Conceitos de acção

1. Os três conceitos de acção expostos e analisados - o conceito


causal ou naturalístico do sistema clássico, o conceito finalista e o
conceito social de acção - são aqueles que conquistaram maior
ressonância na doutrina penalista. Mas não são, evidentemente, os
únicos que têm sido defendidos. Não é no entanto, possível expor e
analisar também, no âmbito deste curso, mesmo só aqueles outros
conceitos de acção que, além dos três expostos, se podem considerar
mais significativos.
200

Limitar-no-emos, portanto, a referir ainda as posições assumidas


pelos Profs. Cavaleiro de Ferreira, Eduardo Correia e Figueiredo
Dias, bem como a posição da Dra. Tereza Beleza acerca desta
matéria, antes de indicarmos a posição que nos parece preferível.

2. O Prof. Cavaleiro de Ferreira acolhe, na 3ª ed. das suas "Lições de


Direito Penal, Parte Geral", de 1988, p. 65, o conceito de acção do
sistema clássico ao escrever que "todo o crime é.... uma acção ou seja
um comportamento humano voluntário, quer consista em acção
positiva ou em omissão".

Valem quanto a este conceito de acção as críticas, atrás referidas, que


têm sido opostas ao conceito de acção do sistema clássico.

3. O Prof. Eduardo Correia, assumindo uma posição frequente entre


os defensores do sistema neo-clássico, sustentou um conceito de
acção de carácter vincadamente normativo, identificando a acção em
sentido lato com uma "negação de valores ou interesses pelo homem"
(Direito criminal, I, 1963, p. 231 ss.). Explicitando este conceito,
referia o dito penalista que a acção assim definida não antecipava
qualquer valoração jurídico-criminal, pois os valores, ou interesses
em cuja negação a acção se traduz, tanto podem ter como não ter
relevância juridico-criminal. Só com a categoria da tipicidade é que
seriam afastadas as acções negadoras de valores ou interesses sem
relevância jurídico-criminal.
201

Com esta explicação, o Prof. Eduardo Correia conseguiu, realmente,


evitar a objecção de que o seu conceito de acção só se aplicaria às
acções típicas. Mas, mesmo assim, o conceito de acção em análise não
nos parece certo, visto que ele não preenche em termos minimamente
satisfatórios a função delimitadora que lhe cabe desempenhar. Na
verdade, as negações de valores, relevantes em Direito Penal incluem
(como reconhecia e bem o Prof. Eduardo Correia) o desvalor do
resultado. Ora o desvalor do resultado pode perfeitamente provir de
actos que deveriam ser excluídos do âmbito da teoria da infracção
logo ao nível do conceito de acção como, por exemplo, os actos
reflexos, os actos praticados em estado de hipnóse ou por um
sonambulo, etc., etc.. Definindo a acção como negação de valores, o
Prof. Eduardo Correia não consegue excluir tais actos ao nível da
acção e, por isso, o conceito de acção por ele proposto é demasiado
amplo. Não pode realizar, como dizíamos, de modo minimamente
satisfatório a função delimitadora.

5. A Dra. Tereza Beleza no seu livro de Direito Penal (II vol., 1983, p.
18) define a acção como um "comportamento humano dominado ou
dominável pela vontade com reflexos no mundo exterior".

Este conceito de acção, também sustentado por diversos autores


estrangeiros, em termos idênticos ou muito semelhantes (veja-se por
exemplo, Heymann Drosien, na 9ª ed. de Leipziger Kommentar, ou
Baumann/Weber, na 9ª ed. do seu Tratado sobre a Parte Geral do
Direito Penal), constitui um desenvolvimento do conceito de acção do
202

sistema clássico, do qual, bem vistas as coisas, não diverge


essencialmente.

Tal como acontece com o conceito sustentado por Von Liszt e Beling,
este conceito de acção não preenche a função de elemento básico ou
fundamental do sistema da infracção, porque não consegue abranger
os
casos de omissão, sobretudo os de omissão inconsciente. Poderia
pretender-se o contrário argumentando que a expressão
"comportamento humano" é suficientemente ampla para abarcar a
acção e a omissão, quer nos casos de dolo, quer nos casos de
negligência, e que, de qualquer modo, a omissão inconsciente, para
ter relevância em Direito Penal, terá que ser dominável pela vontade
e, por isso, ainda estará abrangida pela definição de acção em apreço.
Mas não é assim.

No que respeita à expressão "comportamento humano" tal como


"conduta humana" ou outras expressões equivalentes, viu-se já que
constituem uma mera designação utilizada para abranger a acção em
sentido restrito (agir positivo) e a omissão, mas não indicam o que há
de comum entre uma e outra. Ora, a omissão (ausência de actividade)
não pode subsumir-se num conceito comum com a acção em sentido
restrito (existência de actividade), a não ser que se indique alguma
característica essencial comum a ambas e não apenas uma mera
designação que se utiliza para abranger as duas formas de
comportamento, sem esclarecer o que elas têm de comum. Expressões
203

como: "comportamento humano", ou "conduta humana", continuam,


portanto, a merecer, quando sejam utilizadas para definir a acção em
Direito Penal, a crítica feita por Radbruch, no princípio do século, ao
conceito de acção do sistema clássico. Não é possível subsumir num
conceito único "A e não A", um determinado ente (a actividade
humana) e a ausência desse mesmo ente (inexistência de actividade
humana).

Quanto à parte da definição em apreço que indica ser a acção um


comportamento humano "dominado ou dominável pela vontade",
também não se mostra capaz de realizar a função de elemento básico
do sistema da infracção, desde logo porque introduz uma alternativa
(dominado ou dominável) que ilude o problema.

Na verdade, o que se pretende dizer é que se trata de um


comportamento humano que, nuns casos é dominado pela vontade e
nos restantes casos não é dominado pela vontade, embora pudesse tê-
lo sido.

Continua, portanto, nesta medida, a persistir o problema de se estar a


reunir num conceito comum A e não A, um determinado ente
(domínio pela vontade), e a ausência desse mesmo ente (falta de
domínio pela vontade). É claro que se poderia opôr a isto que os casos
em que um comportamento é realmente dominado pela vontade são
apenas um sub-grupo daquele grupo de casos mais vasto em que ele é
dominável pela vontade e, portanto o ser dominado é a melhor prova
204

de que era dominável. Por isso, o denominador comum estaria em


que, em todos os casos a considerar, o comportamento humano seria
dominável pela vontade.

Mas nos casos de omissão inconsciente não é detectável sequer


qualquer possibilidade de domínio, pela vontade, do comportamento
em causa. Pense-se, por exemplo, na omissão de um acto por
esquecimento ou porque o agente nem sequer sabe que tem que
praticar esse acto.

Acresce que nos casos de acção em sentido restrito (agir positivo),


para haver acção não basta que o acto seja dominável pela vontade; é
preciso que se verifique um domínio efectivo pela vontade para que
esses comportamentos por agir positivo possam ser considerados em
Direito Penal. Aquelas formas de agir positivo em que não há um
domínio positivo da vontade, devem, à partida, ser excluidas do
âmbito das acções juridico-penalmente relevantes.

6. O Prof. Figueiredo Dias, seguindo, no fundo, a opinião já


sustentada por Radbruch no princípio deste século (e mais tarde por
vários outros penalistas como, por exemplo, Gallas), propõe que se
renuncie, pura e simplesmente, a autonomisar dentro da sistemática da
infracção a teoria da acção, integrando-se esta na categoria da
tipicidade. Deixaria, assim, de se falar em acção tout court, como
conceito anterior ao do tipo, e passaria a falar-se apenas de acção
típica, pois só esta interessa para efeitos jurídico-penais.
205

Não concordamos com esta posição. Quando se diz que só a acção


típica interessa ao Direito Penal, está-se, logicamente, a pressupor a
possibilidade de existência de uma acção não típica, sob pena de o
qualificativo "típica" constítuir mera redundância e ser supérfluo. Ora,
se a acção tanto pode ser típica como não típica, é porque ela
constitui, na sistemática da infracção, uma categoria anterior à
tipicidade. O penalista deve, portanto, tentar delimitar essa categoria.

IV

Posição adoptada

1. Das considerações acabadas de fazer resulta que não estaria certo


renunciar, pura e simplesmente à autonomia da categoria sistemática
da acção e integrá-la na tipicidade.

A difinição da acção terá que ser feita em termos de onde decorra que
também há acções não típicas. Mas isto não significa que não existam
algumas acções que só merecem essa qualidade em resultado das
valorações jurídicas expressas no tipo e que, portanto, são
necessariamente acções típicas. É o que se passa, nomeadamente,
com as omissões, nos casos de negligência inconsciente, quando o
dever de agir tenha o seu exclusivo fundamento num determinado
preceito de Direito positivo. Recordemos o exemplo, acima referido
206

de alguém, por esquecimento, não apresentar dentro de determinado


prazo uma declaração que estava obrigado a apresentar, por
imposição de uma norma de Direito Fiscal. Nenhum conceito de
acção consegue abranger estes casos mantendo-se absolutamente
neutral em relaçã à categoria da tipicidade.

2. Estamos agora em condições de dizer que a neutralidade que


frequentemente se exige ao conceito de acção relativamente às
restantes categorias da infracção, para que ele possa satisfazer a
função de ligação, é excessiva. A neutralidade que se pode e deve
exigir ao conceito de acção perante a categoria da tipicidade tem que
ser menos ambiciosa, bastando-se com a circunstância de haver (aliás
frequentemente) acções que não podem chegar a ser típicas. Isto é
suficiente para justificar a autonomia do conceito de acção perante o
da tipicidade e para satisfazer as exigências atendíveis que decorrem
da função delimitadora do conceito de acção, sem tornar impossível a
este conceito exercer a função de elemento básico, que também lhe
cabe.

3. A posição que se nos afigura preferível, quanto à delimitação da


acção como categoria sistemática do Direito Penal, corresponde,
essencialmente à do chamado "conceito pessoal de acção", já
defendido em 1966 por Arthur Kaufmann e que acaba se ser objecto
de uma extensa e cuidada exposição e fundamentação por aquele que
é, actualmente, o seu principal defensor: Claus Roxin, no seu Tratado
207

sobre Parte Geral do Direito Penal, cujo I volume acaba de ser


publicado na Alemanha.

A ideia central desta doutrina é a de que "a acção é uma


exteriorização da personalidade do agente", entendendo a
personalidade como unidade de corpo e espírito.

Esta definição permite excluir, desde logo, do âmbito do conceito de


acção, por um lado os fenómenos interiores que não se projectam no
mundo externo, como os simples pensamentos, desejos, estados de
espírito, intenções, etc., os quais, embora radiquem na personalidade
daquele em cujo espírito se verificam, não exteriorizam, não
manifestam no mundo externo tal personalidade. Por outro lado,
permite também excluir todos os casos em que, embora havendo um
movimento corpóreo do agente, ele não é imputável à sua
personalidade enquanto centro de acção mental e psíquica, antes se
situa no plano puramente somático, sem estar sujeito ao controlo do
"eu", da instância, mental e, psíquica de onde provém a auto-
determinação da pessoa. É o que acontece com os movimentos
corpóreos praticados em estado de hipnóse ou sonambulismo, no
âmbito de um ataque epiléptico, em consequência de uma caíbra, e
casos semelhantes, bem como os casos de "vis absoluta", em que o
corpo do agente não constitui mais de que uma massa inerte.

Mas o conceito pessoal de acção como exteriorização da


personalidade do agente, não exclui, por exemplo, os actos praticados
208

por inimputáveis (ao contrário do que acontece com o conceito


pessoal de acção proposto por Arthur Kaufmann - segundo o qual a
acção é "a configuração responsável e com sentido da realidade com
consequências causais domináveis pela vontade" -, ou o conceito
social de acção proposto por Jescheck), pois também esses actos
constituem exteriorização da personalidade (doente ou anómala) do
agente respectivo, desde que não se situem no plano puramente
somático.

4. Este conceito realiza satisfatoriamente a função delimitadora que


cabe ao conceito de acção, pois exclui, à partida, tudo aquilo que é
irrelevante do ponto vista jurídico-penal e, por isso, não teria sentido
sujeitar à apreciação das categorias da tipicidade, ilicitude e culpa.
Nesta medida, apresenta superioridade em relação ao conceito social
de acção, dado que, como vimos, o carácter social cabe também a
movimentos reflexos ou inconscientes etc., de que resultam danos,
porventura graves.

5. No que respeita à função de elemento básico ou fundamental que o


conceito de acção deve desempenhar na sistemática da infracção, o
conceito pessoal de acção satisfaz tanto como o conceito social de
acção (desde que não se defina o comportamento humano por
referência à liberdade do homem, como faz Jescheck) e
manifestamente melhor que o conceito de acção do sistema clássico e
dos finalistas, pois cobre todas as formas de comportamento com
relevância penal. É certo que, no que respeita a certas omissões por
209

negligência inconsciente, o conceito pessoal de acção - tal como,


aliás, acontece também com o conceito social de acção - só as abrange
recorrendo a normas jurídicas, que impõem determinados deveres de
agir. Mas isto, como vimos, acontece com todo e qualquer conceito de
acção. A alternativa seria renunciar, pura e simplesmente ao conceito
de acção como categoria sistemática autónoma, como faz o Prof.
Figueiredo Dias. Mas a tal se opõem as razões atrás expressas.

6. Assim, o conceito pessoal de acção, apesar de em relação a


determinados casos de omissão inconsciente só poder englobar acções
típicas, não viola a neutralidade que se pode e deve exigir ao conceito
de acção como elemento delimitador (cfr. o exposto em 1 e 2, supra).

7. Deve, no entanto, dizer-se que os problemas relativos ao conceitos de


acção têm menor importância do que por vezes, se lhes atribui e,
nomeadamente, da sua solução não decorrem, como pretendem os
finalistas, consequências jurídicas. Estas decorrem de valorações do
legislador que vamos encontrar nos planos da tipicidade, ilicitude e
culpa.

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