Professional Documents
Culture Documents
2. Na Memória do Conservatório Real, Garrett afirma conhecer bem a tradição literária sobre Frei Luís de
Sousa. Ora as principais fontes que tinha lido eram a “Memória do Sr. Bispo de Viseu, D. Francisco
Alexandre Lobo”, e a “romanesca mas sincera narrativa do padre Frei António da Encarnação”. Afirma
Garrett na referida Memória que “discorrendo um Verão pela deliciosa beira-mar da província do Minho,
fui dar com um teatro ambulante de actores castelhanos fazendo suas récitas numa tenda de lona no
areal da Póvoa do Varzim. (…) Fomos à noite ao teatro: davam a comédia famosa não sei de quem, mas
o assunto era este mesmo de Frei Luís de Sousa.” Esta representação teve lugar na Póvoa em 1818.
3. Garrett consultou ainda muitas colecções de “comédias famosas” mas não encontrou mais nada a
respeito de Frei Luís de Sousa. Ouviu na sala do Conservatório, a leitura do relatório sobre o drama O
Cativo de Fez. Nessa altura, Garrett sentiu a diferença entre a fábula engenhosa e complicada desse
drama e a história tão simples de Frei Luís de Sousa. Tal facto inspirou-lhe a vontade de fazer o seu
drama.
4. Tem-se escrito que este drama é a projecção poética da sua própria vida. Não se devendo confundir a
obra e autor, não deixa de ser curioso mostrar as coincidências entre ambos.
Conclusão: Garrett construiu o seu drama, realizando o que tinha anunciado na Memória ao
Conservatório Real. São notáveis a simplicidade de construção e a harmonia dos três actos.
Personagens
D. Madalena de Vilhena
Nobre: cavaleiro de Malta (só os nobres é que ingressavam nessa ordem religiosa) (I,2 e 4)
Racional: deixa-se conduzir pela razão no que contrasta com a sua mulher
Bom marido e pai terno (I,4; II,7)
Corajoso, audaz e decidido (I,7, 8, 9, 10, 11, 12; III, 8)
Marcado pelo destino (I, 11; II, 3 e 8)
Encarna o mito romântico do escritor: refúgio no convento, que lhe proporciona o isolamento
necessário à escrita
Até à vinda do romeiro, representa o herói clássico racional, equilibrado e sereno. A razão
domina os sentimentos pela acção da vontade
Tem como ideal de vida o culto pela honra, pelo dever, pela nobreza de acções (daí o seu
nacionalismo e o incêndio do palácio)
Porém, no início do acto III, após o aparecimento do romeiro, Manuel de Sousa perde a
serenidade e o equilíbrio clássico que sempre teve e adquire características românticas. A razão
deixa de lhe disciplinar os seus sentimentos, e estes manifestam-se com descontrolada
violência. Exemplos: Revela sentimentos contraditórios (deseja simultaneamente a morte e a
vida da filha); Utiliza um vocabulário trágico e repetitivo, próprio do código romântico (“desgraça”,
“vergonha”, “escárnio”, “desonra”, “sepultura”, “infâmia”, etc.); Opta por atitudes extremas (a ida
para o convento) como solução para uma situação socialmente condenável; Ao optar por esta
atitude, encarna o mito do escritor romântico, como um ser de excepção, que se refugia na
solidão para se dedicar à escrita
Embora esteja ausente, de uma forma expressa, de todo o mito sebastianista que atravessa o
drama, Manuel de Sousa insere-se nele pela defesa dos valores nacionalistas.
Prof. Pedro Viana
Português – Ano lectivo 2010-2011
D. João de Portugal
D. Maria de Noronha
patriotismo e do Sebastianismo; Apresenta uma fragilidade física em contraste com uma intensa
força interior (é destemida); Morre como vítima inocente.
Telmo Pais
Frei Jorge
Tempo
Tempo da acção Tempo simbólico
Acto I Visão de Manuel de Sousa Coutinho pela
primeira vez, à sexta-feira
28/07/1599
Alcácer-Quibir
Sexta-feira 04/08/1578
Sexta-feira
Fim da tarde
Casamento com Manuel de Sousa
Noite Coutinho: 7 anos depois da batalha
Prof. Pedro Viana
Português – Ano lectivo 2010-2011
Acto II Sexta-feira
04/08/1599 Regresso de D. João de Portugal no 21º
aniversário da batalha
04/08/1599
Resumo do 3º acto:
a) Diálogo sereno e dolorido de Manuel de Sousa com Frei Jorge. Contraste com o movimento passional
do acto anterior. Leves tons românticos no queixume do sofrimento. Explicam-se os antecedentes da
solução a adoptar.
b) Encontro de Telmo com o Romeiro e alvitre deste para se evitar o desfecho. Alvitre que iria ao
encontro de D. Madalena nas suas esperanças de que o Romeiro tivesse mentido. Esperanças que são
psicologicamente fundadas, mas que Frei Jorge corta pela raiz. Último adeus dos esposos, precedido do
engano de D. João de Portugal, a tender para o melodrama.
c) Mudança de quadro e cena da Profissão. Intervenção desvairada de Maria que, ao ver o Romeiro,
morre nos braços do pai. Há qualquer coisa de gratuito, de expediente um pouco apressado no plano do
Romeiro de ainda querer salvar o irremediável, sobretudo na sua intervenção final, a mão da cerimónia
litúrgica Tem-se a impressão de que a intriga ganharia em ser conduzida por outro caminho. Dai a
necessidade de meter dois quadros no último acto. E daí, também certa tonalidade de melodrama
romântico, no desencontro, da intriga com os caracteres. A morte de Maria era mais que verosímil, mas
seria mais sóbria noutras circunstâncias.
a) De conflito familiar. O conflito dramático reside na oposição entre a felicidade e a :honra de uma
família nobre e uma série de acontecimentos que se temem e se vêm a declarar ao modo de fatalidade
irremediável. Sobre aqueles que muito se amam paira, desde o princípio, a ameaça de acontecimentos
inevitáveis, com certo carácter de desonra, tanto mais dolorosa quanto são nobres e justas as
personagens, e com carácter de caso de consciência, tanto mais angustioso quanto eles são inocentes,
e a situação temida é provocada por factos que não têm solução.
b) Repercussão nacional. O drama doméstico e amplificado pela sua inserção dilacerante no sobressalto
da pátria e nas suas ânsias de messianismo. Dilacerante, porque a segurança e a felicidade familiares
parecem depender da infelicidade da pátria, isto é, na morte averiguada de D. Sebastião e de seus
Prof. Pedro Viana
Português – Ano lectivo 2010-2011
companheiros. É o sebastianismo que introduz, no lar feliz o susto continuado. E é a fidelidade patriótica
de Manuel de Sousa, o ímpeto de liberdade com que incendeia a casa, o que impele a família para o
palácio e ,para a sombra de D. João de Portugal, para a grande tragédia.
c) O conflito é, pois, familiar e nacional, simples e grandioso. As personagens são muito pouco
numerosas, todas simpáticas e boas, sem antagonismos morais. O antagonista é uma personagem
oculta e também sem culpa, que se diria encarnação da fatalidade. A revelação progressiva de D. João
de Portugal, desde a primeira cena até ao fim do 2º acto, é uma obra-prima de economia dramática, no
encadeamento, inevitável e simbólico, dos mais pequenos pormenores. Esse desfecho magnífico é uma
«anagnórisis» ou «reconhecimento», ao modo grego (1), identificação de alguma personagem
desconhecida, que provoca uma situação trágica e insolúvel. Com uma diferença, aqui: é que o drama
não acaba por nenhum crime fatídico, ou pelo desespero cego, mas sim numa renúncia religiosa, ungida
de esperança. A Providência e um amor mais alto soldaram, de novo e noutro plano, os destinos sem
sentido. Se se tratasse de alguma tragédia pagã, a economia dramática da peça seria outra; porque, a
«catástrofe» final seguir-se-ia ao reconhecimento, e o 3º acto, no que tem de solução, não existiria.
2. Romântico...
a) Peça histórica, ao gosto do tempo, reconstituindo uma época, sem deixar de ser familiar. Por isso,
Garrett não copiou personagens, pura e simplesmente; não trouxe o Bandarra, ou o Sapateiro Santo, ou
o Manuelinho; mas fez com que as figuras vivam do espírito da época e palpitem nos mesmos anseios.
O sebastianismo de Telmo entra-lhe na psicologia, pedido pela fidelidade ao velho amo. A sensibilidade
dolorida e exaltada de D. Madalena e de Maria parece lançar raízes no ambiente de depressão, de
agonias e de visionarismo que sucedeu à Batalha de Alcácer. Nem falta o flagelo da peste. Por detrás do
drama familiar aparece, pois, dando-lhe seiva, o drama da nação. Notar como símbolo deste fundo
psicológico o cenário de retratos diante dos quais decorre o 2º acto.
b) Ciclo do cavaleiro que regressa da Cruzada. Pelo assunto, o drama retoma o motivo frequente do
guerreiro que, à volta da Terra Santa, reencontra a sua prometida casada com outro (2). Mas aqui, é
colocado naturalmente no seu clima histórico, sem cair no melodrama, como Castilho, e com uma
simplicidade de situações que lhe adensam o sentimento. Tema também do amor irremediável (a seguir
virá o adultério, ao longo do século XIX) e da vocação religiosa que surge, ao fim, como solução.
Recurso mais que justificado, mas que entra na linha romântica dos grandes amores fracassados. O que
aqui é remédio, no Eurico é ponto de partida.
c) A psicologia, sobretudo de D. Madalena e de Maria, reflecte a psicose romântica da fragilidade e, ao
mesmo tempo, da exaltação do sentimento das almas femininas. A figura de Maria dir-se-ia que é a
Joaninha das Viagens na Minha Terra, mas agora em delírio febricitante, num acesso de visionarismo
apaixonado. D. Madalena é, também, a mulher frágil, agoirenta, possuída de medos e de fantasmas,
carecida da certeza e do apoio moral, varonil, do marido.
3....de Garrett
a) Transferência de uma preocupação pessoal, o drama coloca em conflito alheio a angústia que sentia o
dramaturgo ao ver o labéu social que haveria de recair sobre sua única filha, nascida de amores
ilegítimos. O amor profundo, e quase maternal, que lhe consagrava produzia nele um sobressalto moral
Prof. Pedro Viana
Português – Ano lectivo 2010-2011
que se repete na aflição de D. Madalena. E sobre Maria projectou, de algum modo, o ideal e o tom
feminino que nas cartas inculca à sua própria filha. A figura hirta de D João de Portugal será a
personificação do juízo da sociedade que não reconhecia a sua ligação com Adelaide Deville.
b) O drama da fidelidade. Não só na figura de D. Madalena, fiel, por dever, a D. João de Portugal, e por
amor, a Manuel de Sousa, mas também na personagem, aparentemente secundária, de Telmo Pais (que
Garrett interpretou na primeira representação) projecta-se a própria figura do dramaturgo, dilacerado
toda a vida pela fidelidade a diversos amores – viu-o muito bem António José Saraiva Telmo, aio de D.
João de Portugal e de Maria, filha de Manuel de Sousa, vive dolorosamente repartido entre a dedicação
antiga e a nova afeição (cf. sobretudo 3º acto, cena IV). Garrett infeliz como esposo, infiel como amante,
foi incapaz da doação total de si mesmo; viveu sempre dividido homem de sinceridades sucessivas, sem
poder alcançar a plenitude e a calma das situações bem definidas. Sempre entre a verdade e a ilusão, a
vida tornou-se-lhe assim coisa absurda e amarga, dilacerante e desiludida, que só na morte encontrou
sentido e acalmia.
c) A solução da renúncia. Manuel de Sousa é um Garrett ideal, como ele desejaria ter sido e nunca foi,
por falta de coragem para a renúncia. Garrett via bem que era essa, para ele, a única solução. Mas não
teve decisão para isso aquela decisão calma e enérgica de que deu mostras Manuel de Sousa. Assim, o
Carlos das Viagens na Minha Terra, nos antípodas de Manuel de Sousa, corresponde ao Garrett real,
como Manuel de Sousa ao Garrett ideal, que desse modo renuncia e morre, mas em efígie e por
interposta pessoa. E assim remata o complexo de Empédocles, a que nos havemos de referir. O fogo,
ambivalente, que lhe encheu a vida de paixões sucessivas, foi também na ambiguidade, que
imaginativamente lhe é própria, o fogo purificador que o atraiu e libertou na renúncia total. É esse mesmo
fogo que consome, no delírio e na febre interior, as figuras de D. Madalena e de Maria; e a esta, para
mais, golfando sangue sobre o peito do pai.