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Artigo

A base ecológica dos cacicados amazônicos

Robert L. Carneiro1 Resumo


Tradução para o português de Denise
Os cacicados encontrados na Amazônia
Pahl Schaan2 do manuscrito inédito:
na época do primeiro contato europeu
The Ecological Basis of Amazonian Chie- têm se tornado objeto de crescente in-
fdoms (s.d.)3 teresse antropológico. Esse artigo inicia
por discutir as várias teorias que têm sido
propostas para explicá-los, incluindo
aquelas de Julian Steward, Betty Me-
ggers e Clifford Evans, Donald Lathrap e
Anna Roosevelt. Depois de descrever as
várias teorias, o autor apresenta sua pró-
pria, que enfatiza fatores ecológicos, in-
cluindo a guerra. Atenção é dada à im-
portante distinção entre terra firme e
várzea. O foco então se volta para a ar-
queologia da ilha de Marajó, cuja inter-
pretação tem sido ardorosamente dis-
putada. O artigo conclui com a discus-
são mais detalhada por parte do autor
sobre a formação de cacicados, apresen-
tando duas teorias similares, mas de
certa forma diferentes, sobre como ca-
cicados emergiram, e dando suas pró-
prias razões para favorecer uma delas.

Palavras-chave: Cacicado, Complexida-


de social, Arqueologia amazônica

1
American Museum of Natural History, New York.
2
Universidade Federal do Pará, Laboratório de Antropologia, Coordenadora do Curso de Pós-Gradua-
ção em Arqueologia. Contato: denise@marajoara.com.
3
Esse ensaio foi escrito por Robert Carneiro há mais de dez anos e permanecia inédito, sendo compar-
tilhado apenas por alguns poucos antropólogos e arqueólogos interessados no desenvolvimento de
complexidade social na Amazônia. Apesar de não contemplar a bibliografia produzida nos últimos 8 ou
10 anos, o trabalho continua bastante atual e sua revisão da história do debate sobre cacicados,
esperamos, será de grande valia para os estudiosos dos processos de mudança cultural na Amazônia.

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Carneiro, R. L.

os culpados mesmo com a morte e, sob a


Abstract liderança do chefe supremo, requisitar ho-
The chiefdoms found in Amazonia at the mens e mantimentos para a guerra (Oberg,
time of first European contact have be- 1955:484).
come the subject of increased anthro-
Como um delineamento das maiores
pological interest. This paper begins by
características de um cacicado, essa pas-
discussing various theories that have
sagem pode dificilmente ser melhorada.
been proposed to account for them, in-
Mesmo assim, na época em que o artigo
cluding those of Julian Steward, Betty
de Oberg apareceu, recebeu pouco re-
Meggers and Clifford Evans, Donald La-
conhecimento. Não foi senão sete anos
thrap, and Anna Roosevelt. After descri-
depois, com a publicação de Primitive
bing their various theories, the author
Social Organization (1962), de Elman
presents his own, which emphasizes eco-
Service, que o conceito de cacicado co-
logical factors, including warfare. Atten-
meçou a receber atenção geral. O caci-
tion is also paid to the important ecolo- cado era o terceiro estágio, na seqüên-
gical distinction between terra firme and cia dos quatro tipos de Service: bando,
várzea. The focus then turns to the ar- tribo, cacicado e estado. Graças ao gran-
chaeology of Marajó Island , the inter- de impacto do pequeno livro de Service,
pretation of which has been keenly dis- aparecendo, como foi, em tempo extre-
puted. The article concludes with the mamente oportuno no âmbito do ressur-
author’s more detailed discussion of chi- gimento do evolucionismo cultural, o
efdom formation, presenting two simi- conceito de cacicado logo encontrou um
lar but somewhat different theories of lugar estável na paisagem antropológi-
how chiefdoms arose, and giving his re- ca. Hoje, é indispensável na reconstru-
asons for favoring one of them. ção da evolução política, não somente
na América do Sul, mas onde quer que
Key words: Chiefdom, Social complexi- um alto nível cultural tenha sido alcan-
ty, Amazonian archaeology. çado (veja, por exemplo, Carneiro,
1992).
Introdução A origem do cacicado como um está-
gio evolucionário, na verdade, começa
O conceito de cacicado, que alcan- mesmo antes de Service e Oberg, e se
çou tanta proeminência nas últimas três deve a Julian Steward. Enquanto editava
décadas, tem sido associado com a Amé- o Handbook of South American Indians,
rica do Sul desde seus primórdios. O es- no começo dos anos 1940, Steward co-
tágio de cacicado, assim como o próprio meçou a se dar conta de que certas so-
termo, foram primeiramente propostos ciedades que ele tinha agrupado origi-
por Karlevo Oberg em seu pouco citado nalmente com as simples “Tribos da Flo-
artigo principal: Types of Social Struc- resta Tropical” na verdade tinham tido,
ture Among the Lowland Tribes of South aboriginalmente, uma cultura distintiva-
and Central América (1955). O cacicado mente mais elevada. Nesse sentido, ele
era o terceiro dos seis tipos, ou níveis as separou das culturas de floresta tro-
de organização política de Oberg, e ele pical e colocou-as em um volume sepa-
o caracterizava da seguinte forma: rado. E porque essas altas culturas ti-
Unidades tribais pertencendo a este tipo são nham, em sua maioria, circundado o mar
cacicados formados por muitas aldeias, do Caribe, ele deu ao volume onde as
governadas por um chefe supremo em con- colocou, o título de The Circum-Carib-
trole de distritos e aldeias governadas por
bean Tribes. Steward foi prejudicado pela
uma hierarquia de chefes subordinados. A
característica distintiva desse tipo de orga- falta de um nome próprio para elas, mas
nização política é que os chefes têm pode- hoje nós reconhecemos tais “tribos”como
res judiciais para resolver disputas e punir cacicados.

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Cacicados não mais existem na Amé- Apesar de reconhecer as maiores áre-


rica do Sul. Logo, são tipos de culturas as ribeirinhas da Amazônia como ecolo-
pouco conhecidas, sombrias, etéreas, e gicamente superiores aos interflúvios,
nós temos muitas questões acerca de- Steward não pensava que elas eram su-
las. Uma das principais questões é: o ficientemente produtivas para que altas
que deu origem aos cacicados em pri- culturas – cacicados – lá tivessem sur-
meiro lugar? E de interesse especial para gido. Ainda que possa parecer surpre-
nós aqui é: por que os cacicados surgi- endente, ele não estava muito a par de
ram em certas partes da Amazônia e não que cacicados de magnitude considerá-
em outras? O resto desse artigo irá tra- vel estavam florescendo ao longo do rio
çar as tentativas que têm sido feitas para Amazonas quando europeus o explora-
responder a essas questões. ram pela primeira vez. Ele estava cien-
Ao editar o Handbook, Steward pro- te, contudo, de que cacicados tinham
curou uma forma de organizar as cultu- uma vez existido em Llanos de Mojos,
ras da América do Sul de acordo com na Bolívia. Entretanto, uma vez que sua
alguma lógica básica que fosse mais do existência ia contra sua visão sobre a
que meramente geográfica. O que ele limitada capacidade de sustentação da
obteve foi a quádrupla tipologia de mar- floresta chuvosa, ele buscou a difusão
ginal, floresta tropical, circum-caribenho para dar conta de sua presença nos Mo-
e andino. Enquanto essas categorias têm jos, derivando-os dos Andes.
uma base regional, elas são mais do que Steward postulava que uma cultura
simples áreas culturais. Elas eram tam- formativa, ou do tipo chefatura tinha pri-
bém estágios evolutivos. Hoje, nós po- meiro se desenvolvido nos Andes, e ele
demos relacionar marginal com bando, foi adiante para caracterizar esta cultu-
floreta tropical com tribo (ou, como pre- ra formativa como tendo um chefe po-
firo dizer, aldeia autônoma), circum-ca- deroso, como sendo estruturada em clas-
ribe com cacicado e andino com estado. ses, como tendo um culto ídolo-templo-
sacerdote, e assim por diante.
A teoria de Steward Dos Andes centrais, esta cultura for-
mativa ter-se-ia movido em direção ao
Dados seus interesses evolucionistas, norte para a Colômbia e então em dire-
Steward sentiu que precisava tentar re- ção leste através da América do Sul, mais
construir de maneira geral a pré-histó-
tarde penetrando nas índias ocidentais.
ria sul-americana, incluindo a Amazônia.
Quando povos portadores desta cultura
Uma vez que pouca evidência arqueoló-
alcançaram elevações mais baixas,
gica estava disponível, ele teve que ten-
Steward pensou, não tiveram problema
tar essa reconstrução com base na et-
em subjugar ou deslocar os povos mar-
nologia do continente e em certas no-
ginais pré-agricultores que encontraram
ções de ecologia cultural. Mas Steward
vivendo lá. O que lhes causou proble-
estava consciente de que a única maior
distinção dentro da Amazônia era aque- ma, entretanto, foi o meio-ambiente. O
la entre áreas ribeirinhas e interfluviais. clima mais chuvoso e os solos mais po-
Dessa maneira, ele escreveu (Steward, bres que encontraram nas terras baixas,
1948a:886): Steward considerou, não puderam sus-
tentar a agricultura intensiva sobre a
...as diferenças ecológicas importantes
qual essa cultura formativa de nível ca-
eram aquelas entre povos ribeirinhos e po-
vos do interior... As diferenças estavam nos cicado tinha se baseado. A cultura cir-
recursos, e esses parcialmente determina- cum-caribenha, dizia Steward (1948b:
ram a densidade populacional e tamanho 14), dependia de populações densas
da comunidade, o que em seu turno condi- agrupadas em aldeias grandes e está-
cionou os padrões sociopolíticos.
veis e este tipo de padrão de assenta-

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mento tornou-se difícil de manter nas clusão parecia inevitável: onde quer que
florestas tropicais, onde a agricultura de cacicados tivessem aparecido no norte
coivara é praticada... da América do Sul, eles tinham aparen-
Desta maneira, a cultura circum-ca- temente se desenvolvido localmente a
ribenha foi forçada a declinar para o ní- partir de culturas simples, mas ainda as-
vel de floresta tropical. Cacicados desfi- sim agricultoras (Rouse, 1953:195-197).
zeram-se em aldeias autônomas. Che- Vamos agora voltar nossa atenções
fes supremos foram reduzidos a chefes para Betty Meggers e Clifford Evans e
de aldeias locais. Especialistas em tem- seu papel no desenvolvimento de teorias
po integral perderam seus empregos. E sobre a pré-história amazônica. Por qua-
os cultos ídolo-templo-sacerdote se de- se um século é sabido que grandes e bem
sintegraram, deixando em seu lugar ornamentadas urnas funerárias eram
somente simples xamanismo. Para encontradas em vários sítios na ilha de
Steward, então, a cultura de floresta tro- Marajó, na foz do Amazonas. A alta qua-
pical não tinha se desenvolvido a partir lidade da artesania desses vasos suge-
das culturas marginais, mas tinha invo- ria que tinham sido feitos por uma cul-
luído a partir da cultura circum-caribe- tura relativamente avançada. Qual era
nha. Da foz do Orenoco, Steward a natureza e origem daquela cultura? E,
(1949:770) viu essa cultura, agora di- uma vez que não tinha sobrevivido à épo-
minuída, espalhando-se ainda mais na ca do contato, o que teria levado ao seu
direção leste através das Guinas e en- desaparecimento? Essas eram questões
tão subindo o Amazonas para o coração que Meggers e Evans se propuseram a
do continente. responder quando eles começaram a
Esta interpretação da pré-história escavar na ilha de Marajó em 1949.
Amazônica foi logo colocada em teste por O que eles encontraram parecia con-
Irving Rouse para o norte da América do firmar a visão de Steward. Suas escava-
Sul e por Betty J. Meggers e Clifford ções mostraram que uma cultura com-
Evans para a foz do Amazonas. Rouse plexa, que eles chamaram Marajoara, ti-
começou por assinalar que, se a teoria nha uma vez existido em Marajó, e so-
circum-caribenha de Steward estava cer- bre essa cultura eles escreveram:
ta, iriam ser encontradas culturas nessa Toda a evidência arqueológica indica que
região mostrando a seguinte seqüência representa uma cultura de nível de desen-
estratigráfica: volvimento circum-caribenho ou sub-andi-
no, com uma tecnologia e organização so-
1. Uma série de Culturas Marginais, re- ciopolítica mais avançada do que de seus
presentando a ocupação original da área. predecessores ou sucessores no baixo Ama-
zonas. As grandes obras de terra erigidas
2. Cultura Circum-Caribenha, indo dos como sítios de habitação e os cemitérios
Andes e se disseminando por toda a parte. implicam a organização de trabalho e de
liderança para dirigi-los. Estratificação so-
3. Cultura de Floresta Tropical, desenvol- cial é mais diretamente revelada no trata-
vendo na parte central da área e se espa- mento diferenciado aos mortos. Divisão do
lhando em direção sul para as Guianas ... trabalho é também sugerida pela elabora-
(Rouse 1953:189). da e variada arte cerâmica ... Ainda que
não existam templos, a existência e ídolos
Mas essa seqüência não foi o que a e de elaboradas práticas funerárias indica
evidência arqueológica revelou. Em ne- um sistema religioso bem desenvolvido (Me-
ggers & Evans, 1957:593).
nhum lugar onde a cultura circum-cari-
benha foi encontrada era a primeira cul- A natureza da cultura Marajoara era
tura cerâmica e horticultora a ter surgi- evidente, mas sua origem continuava a
do. Em todos os lugares, era antecedida ser um mistério. Essa cultura parece ter
pela cultura de floresta tropical. A con- chegado na ilha de Marajó no ápice de

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seu desenvolvimento eles escreveram. e Evans (1957:604) não encontraram


O destino da cultura Marajoara era tam- nenhuma evidência ... para sustentar a
bém claro: ... sua história local revelada conclusão de que uma rota importante
no registro arqueológico é de uma lenta de migração passasse para baixo ao lon-
deterioração (Meggers & Evans, 1957: go da costa e então em direção ao inte-
593). rior e rio Amazonas acima.
Por que Marajoara ter-se-ia dissolvi- Além disso, ainda que Meggers e
do? Meggers e Evans (1957:594) suge- Evans acreditassem na deterioração ine-
rem a seguinte resposta: vitável de qualquer cultura de nível cir-
Uma análise dos recursos de subsistência cum-caribenho introduzida na Amazônia,
da floresta tropical em geral, e da ilha de eles não acreditavam, como Steward,
Marajó em particular, leva à conclusão de que tal deterioração era a melhor ma-
que estes não são suficientes para a ma- neira de explicar a origem da cultura de
nutenção de uma cultura altamente desen- floresta tropical em primeiro lugar. Afi-
volvida. As demandas da fase Marajoara
estavam então em desequilíbrio com a ca-
nal, a primeira cultura que eles encon-
pacidade normal de produção de alimentos traram em Marajó não era Marajoara,
do meio-ambiente e, quando esse foi co- mas Ananatuba, uma cultura agrícola
brado além de seus recursos, o empobreci- simples de ceramistas, claramente do
mento resultante refletiu-se no conteúdo tipo de floresta tropical (Meggers &
da cultura. Uma vez que o ambiente não
Evans, 1957: 590, 598). Logo, eles con-
poderia moldar-se às demandas da cultu-
ra, a cultura deveria se submeter às limita- cluíram: Nós não acreditamos que o pa-
ções do ambiente, o que significa uma sim- drão de cultura de floresta tropical como
plificação a um nível que era adaptado aos um todo é derivado por desculturação
recursos de subsistência. do nível circum-caribenho de desenvol-
vimento... Apesar da falta de provas
E, é claro, se o ambiente da floresta
naquele tempo, eles preferiam ver o pa-
tropical não poderia sustentar chefatu-
ras como a Marajoara, certamente não drão de cultura de floresta tropical como
poderia dar origem a elas. Talvez o re- tendo-se desenvolvido de uma antiga
sultado mais claro dessa pesquisa, Me- cultura de caçadores, pescadores, cole-
ggers e Evans (1957:589) afirmaram, tores, com a ajuda de técnicas difundi-
das do oeste (os Andes) onde uma evo-
tenha sido a conclusão de que a cultura nos lução similar tinha tido lugar algum tem-
arredores desse delta não pode ser enten-
dida exceto como um reflexo dos eventos
po antes (Meggers & Evans, 1957:605).
que tiveram lugar nos centros vitais em Mesmo antes de terminar o trabalho
outros lugares do continente em épocas em seu relatório sobre a pesquisa em
mais antigas. Marajó, Meggers audaciosamente elabo-
Eles não entram em detalhes com re- rou uma teoria sobre empecilhos ambi-
lação aonde as raízes da cultura Marajo- entais. Ela argumentava que o ambien-
ara estariam, mas, seguindo Steward, te de floresta tropical da Amazônia ti-
eles voltaram-se para os Andes como o nha colocado limites estritos ao nível que
único ambiente que poderia ter permiti- uma cultura poderia atingir. A tese de
do tal cultura emergir. Meggers, colocada em seu famoso arti-
Entretanto, se a tese geral de Steward go Environmental Llimitations on the De-
pareceu confirmada, alguns elementos velopment of Culture (1954), era que o
específicos não foram. Steward tinha principal fator determinando o quanto
sugerido que a cultura de Floresta Tro- uma cultura poderia desenvolver-se era
pical tinha parado sua expansão em tor- o potencial agrícola de seu habitat. Este
no das Guianas, e continuado ao sul para fator determinava densidade populacio-
a foz do Amazonas e então se direciona- nal, que em seu turno determinava de-
do rio acima a partir dali. Mas Meggers senvolvimento cultural. Meggers estava

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convencida de que a bacia amazônica nha impedido o estado de desenvolver-


tinha um potencial agrícola baixo, logo se na Amazônia. Mas o ambiente natu-
não poderia suportar a densidade popu- ral é multifacetado. Ele pode agir em uma
lacional necessária para que cacicados variedade de maneiras para limitar o de-
emergissem. Logo, se um cacicado tinha senvolvimento cultural. Se as maneiras
existido lá, deveria ter sido intrusivo. que Meggers tinha sugerido não era as
A interpretação de Meggers não fi- verdadeiras, quais seriam?
cou sem críticas. Edwin Ferdon (1959) No final de meu artigo de 1961 eu
argumentou que potencial agrícola não explorei essas questões e concluí que a
era uma característica fixa e imutável dos maior diferença crítica entre as duas re-
solos, mas poderia ser grandemente giões, no que tange à formação do esta-
modificado pela tecnologia. Eu, também, do, era circunscrição ambiental. Estava
juntei-me ao debate. Eu tinha recém re- presente nos Andes, mas ausente na
tornado de um trabalho de campo entre Amazônia. Então eu propus uma teoria
os Kuikuru do Brasil central quando o geral sobre a origem do estado baseada
artigo de Meggers foi publicado, e tinha especificamente neste fator.
percebido que algumas das limitações Agora, o estágio intermediário entre
que Meggers pensava serem inerentes a a aldeia autônoma – característica da
qualquer região tropical não se aplica- Amazônia – e o estado – característico
vam ao alto Xingu. Em um artigo publi- dos Andes – era o cacicado. Apesar de
cado em 1961, eu argumentava que, eu ter usado o termo cacicado em meu
mesmo com seu cultivo simples de coi- artigo de 1961, eu falhei em notar que,
vara, era tecnicamente possível para os durante o século XVI, cacicados gran-
Kuikuru produzir um excedente de ali- des, poderosos e complexos tinham exis-
mentos, ter tempo de sobra após tare- tido ao longo de grandes extensões do
fas de subsistência, e ter sustentado uma rio Amazonas. Mas eles existiram. E fo-
aldeia de mais de mil pessoas. ram descritos como tal nos relatos de
Clifford Evans (1955:90) tinha escri- antigos viajantes do Amazonas (por
to que exemplo, Medina, 1934; Ursua, 1861;
o ambiente da floresta tropical... não per- Acuña, 1859 e 1891). O fato de que ca-
mite a produção agrícola intensiva que re- cicados estiveram lá em número consi-
sulta em grande rendimento por homem/ derável, era, é claro, repleto de signifi-
hora de trabalho, o que é essencial para o cado.
sustento contínuo de um nível avançado de
desenvolvimento cultural. Certamente, nem todos os cacicados
mencionados nestas primeiras fontes
Eu podia mostrar, entretanto, que, no poderiam ter sido intrusivos na Amazô-
que tange à produção de alimentos, seja nia. A maioria, se não todos, deveria ter-
medida por unidade de terra ou por uni- se desenvolvido in situ. Logo os fatos,
dade de trabalho, a agricultura Kuikuru assim como se apresentavam, aponta-
poderia facilmente superar a dos Incas! vam claramente para o desenvolvimen-
Mas, é claro, os Kuikuru nunca tinham to indígena de cacicados ao longo do
dado origem a um cacicado, enquanto Amazonas. A conclusão parecia inesca-
que os Incas tinham desenvolvido um pável: contrário ao que Meggers e Evans
império. Por quê? tinham argumentado, condições especi-
Se as explicações tradicionais em ter- ais em certas partes da Amazônia tinham
mos de excedente de produção de ali- permitido – e de fato promovido – a
mentos não funcionavam, então o que emergência de cacicados nativos. E este
era? Como Meggers, eu acreditava no fato clamava por uma explicação, prefe-
forte efeito matriz do ambiente. E, como rencialmente uma, mais em termos de
Meggers, eu pensava que o ambiente ti- fatores ecológicos gerais do que em ter-

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A base ecológica dos cacicados amazônicos

mos de circunstâncias históricas parti- Amazonas em direção a suas muitas ar-


culares. Mas minha luta com as causas térias, quer dizer, seus tributários.
dos cacicados amazônicos se encontra- Mas esta maneira de desafogar do
ria ainda alguns anos no futuro. confinamento pela pressão populacional
A década de 1960 assistiu a uma nova provou ser somente temporária, e o pro-
figura adentrando o campo da pré-his- cesso recomeçou. De fato, nesse mode-
tória amazônica: Donald Lathrap. Em seu lo, o coração é do tipo que está sempre
livro The Upper Amazon, que apareceu batendo, Lathrap (1970:75) supondo
em 1970, Lathrap tentou proporcionar que teria havido pressão populacional re-
uma ampla síntese da história cultural lativamente constante, [e] graus de mi-
da Amazônia. Diferentemente de outros gração relativamente constantes... Por
estudiosos da área, ele considerava a contrações sucessivas dos ventrículos
ecológicos, rios de Arawaks, Caribes e
Amazônia não um recipiente passivo,
Tupis foram, no curso de milênios, im-
mas uma grande doadora de cultura para
pulsionados aos pontos mais distantes
o resto da América do Sul. Consistente
do Amazonas (Lathrap, 1970:74).
com isso, Lathrap rejeitou a noção de
Meggers e Evans de que a cultura de ní- Eu acho que o modelo cardíaco de
vel cacicado era intrusiva na Amazônia. Lathrap é plausível. Ele proporciona um
mecanismo efetivo para dar conta de
Eu tenho persistentemente mantido a
grande parte das distribuições lingüísti-
visão, escrevia ele, de que a cultura
cas e tribais que existiam em 1500. O
Marajoara desenvolveu-se dentro das
que estava acontecendo ao longo do
florestas tropicais da América do Sul...
Amazonas central parece ser a chave
(Lathrap, 1970:150).
para os aspectos mais importantes da
Apesar de sua defesa da emergência pré-história amazônica no resto da ba-
local dos cacicados amazônicos, Lathrap cia amazônica.
não fez nenhuma tentativa de propor No mesmo ano da publicação de La-
uma teoria detalhada e coerente sobre thrap do livro The Upper Amazon, eu re-
como estes cacicados teriam emergido. tornei ao problema da evolução política
Ele meramente indicou os abundantes em um artigo intitulado A Theory of the
recursos alimentares da Amazônia e a Origin of State (Carneiro, 1970). Desta
pressão populacional como ingredientes vez, eu prestei mais atenção ao cacica-
no processo. Antes de 2000 AC até 1500 do. Não bastava dar conta da emergên-
AD, ele escreveu cia de cacicados em áreas com circuns-
a história cultural da bacia do alto Amazo- crição ambiental, como o vale de Cauca
nas pode ser mais bem entendida em ter- na Colômbia, por exemplo; mas e sobre
mos do funcionamento de um potencial a Amazônia, onde cacicados floresceram,
econômico e demográfico do padrão de mas não eram tão circunscritos? Como
cultura da floresta tropical... (Lathrap, poderíamos explicar os cacicados lá? Al-
1970:45).
gum fator adicional seria necessário, e
O único modelo que ele apresentou este fator adicional, me ocorreu, era con-
estava relacionado mais com a migra- centração de recursos. E aqui está como,
ção de povos do que com a evolução da então, eu pensei que esse fator tinha
cultura. De acordo com o modelo cardí- operado.
aco de Lathrap, como gosto de chamá- Com contínuas regiões de terras ará-
lo, quando a pressão populacional ao veis estendendo-se para dentro a partir
longo do Amazonas central atingiu um do rio Amazonas por centenas de mi-
certo nível, ventrículos ecológicos come- lhas, por que haveria cacicados ali?
çaram a contrair, empurrando rios de Para responder a essa questão, nós
pessoas para fora do lotado coração do precisamos olhar de perto as condições

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Carneiro, R. L.

ambientais sustentadas pelo rio Amazo- ainda estavam faltando, e algumas fei-
nas. Ao longo das margens do rio, e so- ções tinham que ser retocadas. Mas estes
bre suas ilhas, existe um tipo de terra refinamentos estariam somente alguns
chamado várzea. O rio inunda essa ter- dez anos à frente na estrada, então me
ra a cada ano, cobrindo-a com uma ca- deixem continuar a contar a história de
mada de lodo. Por causa desse reabas- maneira cronológica.
tecimento anual, a várzea é uma terra No ano seguinte ao aparecimento de
agrícola de primeira qualidade que pode
A Theory of the Origin of State, Betty
ser cultivada ano após ano sem nunca
Meggers publicou Amazonia, Man and
ter que deixá-la descansar. Logo, entre
Culture in a Counterfeit Paradise (1971).
os agricultores nativos, era altamente
Esse livro mostrou claramente que, du-
considerada e grandemente cobiçada.
rante os anos que se passaram, Meggers
As águas do Amazonas eram também tinha ampliado e aprofundado seu en-
extraordinariamente generosas, proven- tendimento da pré-história Amazônica.
do peixes, peixes-boi, tartarugas e ovos Primeiro de tudo, ela estava, agora, to-
de tartarugas, assim como outros ali- talmente consciente da existência pré-
mentos ribeirinhos em quantidades ine-
via de cacicados ao longo do Amazonas.
xauríveis. Em virtude dessa concentra-
De fato, um capítulo de seu livro (Me-
ção de recursos, o Amazonas, como ha-
ggers, 1971:121-149) apresentava um
bitat, era distintivamente superior às
esboço de duas dessas chefaturas, os
terras do interior.
Omágua e os Tapajós. Em segundo lu-
A concentração de recursos ao longo gar, Meggers não mais sustentava que
do Amazonas equivalia quase a um tipo qualquer cacicado encontrado na bacia
de circunscrição. Enquanto não existia amazônica fosse necessariamente intru-
clara separação entre terras produtivas sivo; eles poderiam muito bem ter emer-
e improdutivas, como havia no Peru, gido ali. E em terceiro lugar, ela descar-
existia um gradiente ecológico claro.
tava a visão da Amazônia como um am-
Logo, muito mais recompensador era o
biente indiferenciado de floresta tropi-
rio Amazonas e áreas adjacentes e tão
cal com capacidade de carga baixa e
desejado se tornou como habitat que os
uniforme. Agora ela claramente reconhe-
povos das regiões vizinhas foram atraí-
cia a diferença crucial entre várzea e
dos a ele. Eventualmente, concentração
terra firme, e enfatizou como algo im-
ocorreu ao longo de muitas partes do
portante essa distinção. Logo, ela sus-
rio, ocasionando guerras nas áreas ribei-
rinhas. E os que perdiam a guerra, para tentava que, por causa de seu rico alu-
que continuassem a ter acesso ao rio, vião e seus recursos aquáticos inesgo-
freqüentemente não tinham escolha se- táveis, a várzea era totalmente capaz de
não submeter-se aos vitoriosos. Por essa dar origem a culturas do tipo cacicado,
subordinação de aldeias a um chefe su- enquanto a terra firme não era.
premo que surgiu ao longo do Amazo- Ao final de seu capítulo sobre as cul-
nas, cacicados representaram um passo turas da várzea, Meggers (1971:146)
além na evolução política que tinha ocor- mais uma vez levanta a questão que por
rido em outras partes da bacia Amazô- muito tempo a intrigava.
nica (Carneiro, 1970:736-737).
O alto nível de desenvolvimento cultural
Com isso, eu pensei ter apresentado adquirido na várzea, [ela escreveu], nos faz
um relato coerente, consistente e con- questionar se isso é principalmente um re-
clusivo sobre como os cacicados amazô- flexo da grande acessibilidade dessa por-
ção das terras baixas amazônicas às influ-
nicos teriam emergido. Alguns aconte-
ências emanando da área andina ou se isso
cimentos, no entanto, iriam me mandar pode ser explicado como conseqüência de
de volta ao atelier. Algumas pinceladas evolução cultural.

124 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

Para responder a essa questão, ela Primeiro, deixe-me ir de volta a


comparava os Kamayurá, Kayapó, Omá- Clifford Evans, que, ao criticar The Upper
gua e Tapajós, sociedades com estrutu- Amazon de Lathrap, escreveu o seguinte:
ras sociopolíticas sucessivamente mais Não existe indicação... de que pressão po-
complexas, e, encontrando que as dife- pulacional da magnitude necessária para
renças entre elas estão correlacionadas dinamizar o modelo [modelo cardíaco de
com aumento da densidade populacio- Lathrap] existiu em algum lugar da Ama-
zônia, muito menos em torno da boca do
nal, ela é levada a concluir: rio Negro. Nem existe nenhuma evidência
Se essa correlação entre complexidade cul- de que grupos amazônicos lutaram pela
tural e concentração populacional é válida, terra; ao contrário, os primeiros explora-
é óbvio que nenhuma familiaridade com dores estiveram universalmente impressi-
estas práticas em outra sociedade poderia onados pelo fato de que a aquisição de ter-
provocar sua adoção antes que certo pata- ritórios nunca era produto da guerra...
mar de densidade populacional fosse alcan- (Evans, 1971:1416).
çado. Conseqüentemente, uma vez que
essa densidade crítica foi alcançada, a adap- No entanto, enquanto esta afirmação
tação efetiva não apenas permite, mas re- pode servir para alguns grupos amazô-
quer o desenvolvimento de novos meca- nicos, não se aplica aos povos vivendo
nismos integrativos, de modo que esses irão ao longo do Amazonas propriamente
emergir independente do modelo estar dis-
dito, que, como as primeiras fontes dei-
ponível ou não (Meggers, 1971:148).
xam claro, lutavam precisamente sobre
Uma conclusão mais satisfatória, a a possessão de áreas junto ao rio.
meu ver. Sobre esse assunto, Meggers é mais
Agora, permitam-me uma última cautelosa do que Evans. Tendo lido as
contestação. Enquanto Meggers pensa- primeiras fontes cuidadosamente, ela
va que os cacicados eram intrusivos na tem consciência do que elas dizem so-
Amazônia, talvez houvesse pouca neces- bre a causa da guerra. Portanto, ela ja-
sidade de explicar sua origem, onde quer mais minimiza ou ignora o papel da guer-
que tenham emergido. Mas se ela ago- ra na criação dos cacicados amazônicos.
ra pensava que esses cacicados surgi- Logo, ela fala de guerra ao longo do
ram na Amazônia, então havia mais uma Amazonas no século XVI como sendo
razão para propor uma teoria sobre sua conduzida, primariamente, entre os ocu-
origem. No entanto, apesar de apontar pantes da várzea e os ocupantes da terra
firme, o que certamente era verdadeiro;
para a generosa subsistência e a densa
mas, e sobre tempos mais antigos? Po-
concentração de pessoas na várzea, e
deria a guerra ter sido o instrumento que
falar sobre a necessidade correspondente
originalmente acabou com a autonomia
de desenvolver novos mecanismos inte-
das aldeias e forçou a agregação de al-
grativos, ela não fez isso.
deias sob um líder bem-sucedido na
O requerimento primário de qualquer guerra? E isso não criou as condições
teoria que pretende dar conta da origem que trouxeram à tona aqueles mecanis-
dos cacicados é que proporcione um meio mos integrativos que ela corretamente
para a transcendência da autonomia lo- via como uma característica essencial do
cal. Aldeias autônomas, como todos sa- processo de formação de cacicados?
bemos, apegam-se às suas soberanias E agora deixe-me pular um pouco à
individuais de maneira tenaz. Como essa frente, para 1980. Neste ano, adentrando
resistência a perder a soberania é su- na arena da pré-história amazônica,
plantada? Na minha opinião, a guerra usando botas de sete léguas, veio Anna
de conquista é a única maneira. Como, Roosevelt. Em seu livro Parmana,
então, Meggers se posiciona quanto ao Roosevelt revisita as teorias existentes
papel da guerra? da pré-história amazônica, achando que

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 125


Carneiro, R. L.

não são de seu gosto, e oferecendo sua os grupos vencidos poderiam ter se mu-
própria, audaciosa e ambiciosa, recons- dado para o interior e desta maneira per-
trução. manecido autônomos, mas, em vez dis-
As primeiras 56 páginas de Parmana so, eles teriam escolhido não fazê-lo.
contêm a mais completa e incisiva críti- Frente às alternativas de manter sua
ca das interpretações teóricas da Ama- autonomia, por um lado, e ficar perto
zônia jamais realizadas. Um por um, dos generosos recursos alimentares do
Roosevelt pega os argumentos de todos Amazonas, por outro, eles tinham esco-
os teóricos antropológicos conectados lhido a última.
com a Amazônia, e cada um deles cai O que estava faltando em minha apli-
sentindo a dor de sua chicotada. Ao dis- cação da teoria, para que não fosse vo-
cutir minha teoria sobre a origem dos luntarista, era algo que dissesse que o
cacicados amazônicos, Roosevelt pare- grupo vencido não poderia ter se muda-
ce pronta para aceitar dois de seus ele- do para longe, porque não havia para
mentos: a noção de que cacicados emer- onde ir. E, ao omitir tal afirmação, aca-
giram através da guerra de conquista e bei implicando que existia um local para
o fato de que a pressão populacional foi ir, mas que eles tinham escolhido não
o que causou a guerra. ir; logo, meu cenário era de fato volun-
tarista.
Entretanto, Roosevelt fez uma obje-
ção à cadeia de argumentos que eu apre- Eu devo dizer que, mesmo antes de
sentei para dar conta do estopim da Roosevelt ter publicado sua crítica, eu
guerra de conquista. Especificamente, estava vagamente consciente dessa con-
ela argumentou que meu uso da con- tradição. Mas só vagamente. E em vez
de enfrentar isso de frente, eu tinha dei-
centração de recursos estava falho. A
xado essa questão adormecida em al-
maneira com que eu apliquei à Amazô-
gum lugar da minha mente. Agora eu
nia, ela disse, continha um elemento de
era forçado a confrontá-la e, se possí-
voluntarismo. Bem, em meu artigo de
vel, resolvê-la.
1970 eu tinha enfaticamente rejeitado
teorias voluntaristas de desenvolvimen-
to político, argumentando que somente A reformulação da
uma coercitiva poderia fazê-lo. Logo, dis-
se Roosevelt, minha introdução e certo concentração de recursos
voluntarismo na descrição da emergên- Desde 1980, eu tinha pensado bas-
cia dos cacicados amazônicos envolvia- tante sobre concentração de recursos, e
me em uma contradição. E ela estava acabei por vê-lo sob uma nova perspec-
certa. tiva (Carneiro, 1987). Concentração de
Sem que eu me desse conta, a ex- recursos esteve realmente envolvida na
planação dos cacicados amazônicos que emergência dos cacicados amazônicos,
eu tinha proposto de fato estava man- mas não agiu sozinha. Ela operou ao criar
chada com voluntarismo. Considerando circunscrição social, com todas as suas
esta frase-chave de meu artigo: ...e os inevitáveis conseqüências.
vencidos na guerra, para que pudessem Eu devo dizer uma palavra aqui so-
ainda ter acesso ao rio (e a seus recur- bre circunscrição social. Esse conceito
sos) freqüentemente não tinham outra não estava em minha formulação origi-
escolha senão submeter-se aos vitorio- nal da teoria da circunscrição. Ele foi adi-
sos [ênfase adicionada]. Mas as palavras cionado em 1970, tendo sido empresta-
freqüentemente não tinham outra esco- do de Napoleon Chagnon, que inventou
lha eram ambíguas e ilusórias. O que eu e cunhou o termo em 1968. Tão logo
estava realmente dizendo era que eles Chagnon o propôs, eu reconheci sua uti-
tinham uma escolha. Isso implicava que lidade. Para mim parecia ser a chave para

126 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

entender como o estado poderia emer- Essa pode não ser uma evidência con-
gir em áreas como as terras baixas Mai- clusiva para a existência de circunscri-
as, onde a circunscrição ambiental não ção social ao longo do Amazonas no
existia. momento em que os primeiros cacica-
Brevemente, circunscrição social re- dos surgiram, mas pelo menos aponta
sulta quando densidade populacional naquela direção.
cresce em uma dada área, chegando ao Com essa reformulação da teoria da
ponto em que as pessoas são impedidas circunscrição aplicada à Amazônia, o
de se mover de seus locais porque todas demônio do voluntarismo tinha sido
as terras em volta estão ocupadas. As exorcizado. Assim como os cacicados em
conseqüências militares e políticas da outros lugares do mundo, aqueles da
circunscrição social são claras. Ela age Amazônia emergiram através da guerra
essencialmente da mesma maneira que de conquista, desencadeada pela pres-
a circunscrição ambiental. Um grupo são populacional, operando em uma re-
vencido na guerra, não tendo para onde gião tão densamente ocupada que es-
ir, é então subjugado à incorporação for- capar era efetivamente impossível.
çada na unidade política dos vencedo-
res.
A questão central agora surge: cir- A crítica de Roosevelt
cunscrição social esteve realmente pre- Mas existia ainda mais para ser dito.
sente ao longo do Amazonas logo antes Ao apontar uma inexatidão em minha
da emergência dos cacicados? Para ser reconstrução da história cultural da Ama-
consistente e correta, minha teoria re- zônia, Anna Roosevelt me fez um gran-
quer um sim. Mas a realidade seria gen- de favor. Agora eu gostaria de retribuir
til o suficiente para se conformar à mi- esse favor.
nha teoria? Vamos ver. Em seu livro, Parmana, Roosevelt
As fontes etno-históricas sugerem está profundamente interessada nos fa-
que a circunscrição social esteve real- tores ecológicos por trás dos cacicados
mente operando aqui, mesmo antes de amazônicos. De fato, ela propõe uma
1542. Para começar, elas falam de as- nova proposta ecológica de como os ca-
sentamentos muito próximos uns dos cicados emergiram. E o ator principal
outros ao longo do Amazonas. Em um nessa teoria é o milho. Antes de exami-
trecho do rio de 240 milhas de compri- nar sua tese, contudo, vamos voltar um
mento, por exemplo, Carvajal relata que pouco.
não havia mais do que um tiro de bales-
Todos os participantes do “Grande
tra entre as aldeias (Medina, 1934:198).
Debate Protéico”, que tem tido lugar por
E para o interior, longe do rio, o quadro
mais de duas décadas na Amazônia, con-
não era diferente. Então, não havendo a
escolha de habitar a frente do rio, o in- cordam perfeitamente em uma coisa.
terior era também habitado. E esses ha- Para se desenvolver como um cacicado,
bitantes do interior vinham todo o dia uma sociedade precisa possuir uma fonte
para o rio para tentar deslocar aqueles de proteína substancial e essencialmen-
que estavam assentados lá (Medina, te imóvel. Qualquer sociedade que de-
1934:190). Além disso, um século de- pende da caça para a maior parte de sua
pois, Cristoval de Acuña (1959:196) en- proteína não seria uma boa candidata
contra os Omágua ainda guerreando con- para um cacicado.
tra muitos outros grupos, que estavam Com a caça eliminada, somente duas
continuamente atacando-os a partir do fontes de proteína estão abertas a um
interior. Logo, um anel apertado parece possível cacicado: peixes e outros recur-
ter sido forjado em torno das margens sos aquáticos por um lado, e cultivo, de
do grande rio. outro. De todos os maiores cultivos da

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 127


Carneiro, R. L.

Amazônia (sendo feijão um menor), o jal, cronista da viagem de Francisco de


único com uma maior proporção de pro- Orellana em 1542. Descendo o rio Ama-
teína é o milho. E foi o milho, disse Roo- zonas, Orellana e seus homens freqüen-
sevelt, que proporcionou a proteína so- temente passavam fome. Não acostuma-
bre a qual os cacicados do Amazonas e dos a subsistir no ambiente tropical, eles
do Orenoco se criaram. freqüentemente paravam em aldeias in-
Para começar, ela disse (1980:150), dígenas para trocar algo por comida ou,
todas as populações humanas têm uma algumas vezes, para tomá-la à força.
tendência a crescer e a colocar pressão Carvajal (apud Medina, 1934: 204, 409,
nos recursos de subsistência. Além dis- 414-415, 419, 430) repetidamente men-
so, ela considera que tal pressão estava ciona encontrar suprimentos de peixes
já crescendo ao longo do Amazonas no nestas aldeias e, ocasionalmente, fala
começo do primeiro milênio a.C, no tem- algo sobre as quantidades nas quais eles
po em que a agricultura era ainda base- eram encontrados. Por exemplo, Orella-
ada na mandioca, que notoriamente é na mandou um oficial com 25 homens
pobre em proteína. para a aldeia de um chefe Omágua cha-
Por conseguinte, ela argumenta mado Machiparo e o oficial lhe relatou
(1980:159), se cultivo intensivo de ... que
grãos poderia ter elevado a capacidade havia uma grande quantidade de comida,
de carga dos habitats da várzea, então tal como tartarugas em currais e tanques
o cultivo do milho teria sido levado a sé- de água, e uma grande quantidade de car-
rio logo após a planta ter sido introduzi- ne, peixe e biscoito [beiju], e tudo isso em
tal abundância que seria suficiente para ali-
da.... Com a chegada do milho, o palco
mentar uma força expedicionária de mil
estaria preparado para um incremento homens por um ano... (Medina, 1934:192).
ainda maior de populações ao longo do
Amazonas. E foi esse crescimento, diz Ouvindo isso, Orellana mandou um
Roosevelt, que impulsionou o surgimento segundo oficial à terra para buscar al-
dos cacicados. guma comida, e o oficial retornou quan-
Agora, para a teoria de Roosevelt ser do ele tinha juntado mais de mil tarta-
verdade, o milho deveria ter sido a úni- rugas... (Medina, 1934:193). E, eviden-
ca fonte que poderia ter sustentado as temente, isso era uma fração das tarta-
sociedades amazônicas com quantidades rugas normalmente mantidas à mão,
adequadas de proteína. Peixe e outros uma vez que, 18 anos mais tarde, quan-
recursos aquáticos não poderiam ter do a expedição de Pedro de Úrsua tam-
cumprido esse papel. Tivessem peixes e bém parou na aldeia de Machiparo eles
peixes-boi e tartarugas e ovos de tarta- viram lagos cercados por paliçadas que
rugas sido capazes de proporcionar a mantinham seis a sete mil tartarugas
quantidade requerida de proteína, en- (Ursua, 1861:31).
tão a teoria do milho de Roosevelt se Mais longe, rio abaixo, em uma al-
tornaria supérflua. E o que é supérfluo deia em algum lugar entre a boca do rio
pode ser dispensado. Dando-se conta Negro e do rio Madeira, Carvajal relata:
disso, Roosevelt (1980:94-112) continua nós encontramos muita comida, especial-
sistematicamente a minimizar a contri- mente peixe, e de tantas variedades, e tanta
buição da fauna ribeirinha à dieta dos abundância que bem poderíamos ter car-
cacicados do Amazonas e Orenoco. Se regado totalmente nosso bergantim... [E,
ela é bem-sucedida nessa empreitada, ele continua] este [peixe] os índios tinham
secado, para ser transportado ao interior e
isso é então crucial para o argumento.
vendido... (Medina, 1934:207).
Vamos ver o que a evidência mostra.
O mais antigo relato dos índios do Quase um século depois, em 1639,
rio Amazonas é o de Gaspar de Carva- Padre Cristoval de Acuña encontrou es-

128 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

ses índios ainda subsistindo em tama- ele contém e, nunca temendo faltar peixe
nha fartura de animais aquáticos. De- no dia seguinte, eles nunca [se dão ao tra-
balho de] prover o anterior, mas, sustenta-
pois de descrever quanta mandioca e
dos pelo que pegam hoje irão comer o pro-
milho os índios colhiam, Acuña duto de outra pescaria amanhã.
(1891:45) diz, contudo, o que eles mais
comem e, como dizem, fazem uso para O quadro da pesca no rio Amazonas
uma refeição são peixes, que, de uma que emerge dessas primeiras fontes en-
abundância incrível, eles pegam todos tão, é bastante diferente daquele pinta-
os dias nesse rio (1891:50). “Mas”, ele do por Roosevelt. Era marcado, não por
adiciona, entre todos [esses peixes], escassez, mas por abundância, e não
aquele que, como um rei, reina sobre pelo uso ocasional ou sazonal de peixe,
todos os outros desse rio, das cabecei- tartarugas e peixes-boi, mas por uma
ras a sua boca, é o peixe-boi, que então
forte dependência deles todo o ano. E
pensavam era um peixe (1891:50). Os
não somente o peixe parece ter existido
peixes-boi, que os índios pegavam em
em grande abundância para a subsistên-
grande quantidade, Acuña observou
(1891:51) que assados sobre uma gre- cia de aldeias junto ao rio, mas havia,
lha duram mais de um mês; completan- em algumas aldeias ao menos, um ex-
do que, por falta de sal, não poderiam cedente dele para trocar com aldeias do
ser preservados por um ano inteiro interior que aparentemente não tinham
(1891:51; ver também Carvajal, apud acesso ao rio.
Medina, 1934:417, 419). Vamos nos voltar agora ao Orenoco
Apesar do fato de que eles não podem pre- e ver como estava a proteína aquática
servar a carne do peixe-boi seco por muito no rio onde Roosevelt trabalhou. A me-
tempo, [Acuña (1891:52) continua], eles lhor fonte para o médio Orenoco é o li-
não deixam de ter carne fresca durante a vro de Padre José Gumilla, El Orenoco
estação chuvosa, que [falando da carne de
tartaruga], apesar de não tão saborosa
Ilustrado y Defendido, que descreve a
como a outra, é mais saudável e não me- vida indígena observada por ele entre
nos satisfatória. Eles pegam essas tartaru- 1715 e 1738.
gas, [ele continua] em tal abundância que
Gumilla (1963:219) nunca se cansa
não existe curral que não tenha cem ou mais
tartarugas, de maneira que esses nativos de notar as vastas quantidades de peixe
nunca sabem o que é fome, uma vez que que foram encontradas no Orenoco e nas
uma só tartaruga é suficiente para satisfa- lagoas e canais as quais o rio inundava.
zer uma família inteira independente de Por exemplo, ele fala de
quantos membros tenha (1891:54).
...quantidade [e] variedade ... de inume-
Em certo momento Roosevelt (1980: ráveis espécies de peixes que o Orenoco
109) escreve: produz e mantém... [E novamente] Não é
concebível, nem é a caneta capaz de ex-
Não é provável que as técnicas de seca- pressar a quantidade de grandes peixes se-
gem, salga e defumação ... teriam tornado guramente à disposição dos índios... (Gu-
possível para as populações aborígines que milla, 1963:223).
habitavam as várzeas estocar suficiente
carne de peixe por tempo suficiente para E ainda mais:
compensar a disparidade sazonal de oferta
de peixe. ... a abundância de peixes e tartarugas no
Orenoco é dificilmente crível àqueles que
Mas o que ela apresenta como uma os vêem e tocam com suas próprias mãos.
desvantagem pode em verdade ter sido O que eu posso dizer, então, àqueles que
somente lêem essas linhas? (Gumilla,
uma virtude. Ouçam mais uma vez a Pa- 1963:223; ver também pp. 220, 221).
dre Acuña (1891:55):
Com grande facilidade os habitantes desse Pescaria, além disso, era enorme-
rio dispõem de todos os tipos de peixe que mente recompensadora independente da

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 129


Carneiro, R. L.

estação do ano. Sobre a estação das chu- os grãos de areia nas vastas praias do rio
vas, Gumilla (1963:222) escreve: assim como contar a imensa quantidade de
tartarugas que se alimentam ao longo de
Durante os meses em que o Orenoco está suas margens e canais (Gumilla,1963:229).
alto, os índios fazem uso [para pescar] so-
mente de paus ou, os que preferem, lan- E, se isso não fosse suficiente,
ças. Eles vão para os llanos baixos onde a Gumilla (1963:232) diz, mas muito
enchente proporciona cerca de três pés de maior ainda é a quantidade de ovos de
água, e lá várias espécies de peixe apare-
cem para brincar e alimentar-se ... Então,
tartaruga que eles consomem... e conti-
pode-se vê-los nadando entre os juncos, e, nua a descrever sua abundância em ví-
como cada um preferir, os índios vão em vidos detalhes.
torno abatendo-os, não ao acaso, mas se- Mais poderia ser dito, mas esse ca-
letivamente: uma pessoa gosta de ‘catfish’,
outra ‘cachama’, outra ‘morcoto’, ou ‘paya-
tálogo de riquezas aquáticas está já se
ra’. Há todos os tipos de peixe para cada gastando, e a questão justificada.
um, e em uma incrível abundância. Em resumo, então, a evidência acu-
Durante a estação seca, a pesca era mulada das antigas fontes, tanto para o
ainda maior: Amazonas como para o Orenoco, parece
esmagadora e incontroversa. Peixes, pei-
Os índios experimentam pesca ainda maior xes-bois e tartarugas existiam nessa
e mais abundante com o rio Orenoco está
águas em quantidades prodigiosas. E
baixo e começa a receber suas águas de
volta, que estavam previamente espalha- eles proporcionaram aos índios vivendo
das por uma grande área, porque eles en- ao longo desses rios um suprimento de
tão bloqueiam com barreiras os canais que proteína variado, de fácil obtenção, anual
levam para as lagoas, deixando uma inu- e inexaurível. Por comparação, a quan-
merável incrível quantidade de peixes à sua tidade de proteína que o milho poderia
disposição em águas muito baixas. Mas a
contribuir à sua dieta perde em signifi-
captura verdadeiramente incalculável de
peixe ocorre nas grandes lagoas, que são cância. Logo, qualquer teoria que sus-
invadidas por inumeráveis tartarugas e ‘ca- tente que o crescimento de grandes po-
tfish’ de 50 a 75 libras de peso, ‘laulaos’ de pulações e a emergência de cacicados
250 a 300 libras, e especialmente um sem ao longo do Amazonas e Orenoco não
número de peixes-boi, cada um pesando poderia ter ocorrido na base de recursos
de 500 a 750 libras (Gumilla, 1963:222).
aquáticos, mas teria que aguardar a che-
Uma vez, os índios esqueceram-se de re- gada do milho, parece insustentável.
mover uma barragem de feixes de um ca-
nal conectando uma certa lagoa com o rio
principal, de maneira que os peixes e pei-
xes-bois que entraram a lagoa durante a
Trabalho recente no Marajó
época da cheia não podiam voltar ao Ore- O que ocorreu com a interpretação
noco quando as águas baixaram. Então, dos cacicados amazônicos desde o apa-
lembrando-se de repente dessa lagoa, os recimento de Parmana? Para começar,
índios foram inspecioná-la, e apenas um pé nenhuma nova teoria foi exposta. Os ele-
e meio de água restava, e eles encontra-
ram mais de 3000 peixes-bois mortos e uma
mentos teóricos a partir dos quais irá
grande quantidade de peixe! (Gumilla, emergir uma teoria final, bem-sucedida
1963:223) da origem dos cacicados amazônicos
Quando Gumilla fala de tartarugas, parecem já estar na mesa. O que resta
os números são anda mais impressio- a ser feito agora é cortar e apará-los um
nantes: pouco, e colocá-los juntos em uma sim-
ples e coerente explanação.
A quantidade de tartarugas que abundam
no Orenoco é tão grande que, não importa O que a última década tem assisti-
como eu tente expressá-la, tenho certeza do, portanto, é uma acumulação de evi-
de que vai parecer menos do que realmen- dências em torno desse problema. Os
te é ... mas é certo que seria difícil contar anos 1980 foram uma década de pes-

130 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

quisa contínua na arqueologia, etnolo- sítio-habitação permanente ocupado,


gia e etno-história amazônica. E os da- construído ao longo de séculos, parcial-
dos produzidos por essas pesquisas têm mente por acréscimo artificial e parcial-
proporcionado um aprofundamento de mente por acumulação de camadas de
nosso conhecimento sobre a antigüida- restos de assentamento (Roosevelt,
de, distribuição e dimensão dos cacica- 1991:400-401). Fazendo uso de técni-
dos amazônicos. Eu gostaria nesse pon- cas de sensoriamento remoto, Roosevelt
to de tentar uma breve recapitulação dos (Roosevelt, 1991:160-186) inicialmen-
pontos altos dessas investigações. te identificou feições arqueológicas sob
Sob qualquer perspectiva, o traba- o solo antes de começar com escavações
lho arqueológico de maior fôlego reali- sistemáticas.
zado na Amazônia nos anos 1980 foi a A altura a que Teso dos Bichos foi
escavação de Anna Roosevelt na ilha de construído trouxe sua superfície de ha-
Marajó. Esse trabalho, conduzido no co- bitação bem acima do nível das cheias,
ração de onde Meggers e Evans inaugu- e isso, mais o fato de que uma estrutura
raram a arqueologia Amazônica, colocou de terra circundava o teso, sugere a
em evidência as muitas questões que Roosevelt (1991: 333-334) que os ha-
continuam a intrigar – e dividir – os es- bitantes tinham procurado se defender
tudiosos da pré-história amazônica. de seus inimigos. Vou comentar sobre o
Roosevelt não faz muitos rodeios para significado dessas estruturas daqui a
dizer exatamente o que Meggers e Evans pouco.
fizeram para elucidar a arqueologia de Diversas grandes casas foram esca-
Marajó, que serviu como uma linha base vadas no teso, e em seus interiores
para sua própria pesquisa. Quando ela Roosevelt (1991:405) encontrou gran-
fala sobre Meggers e Evans é principal- des fogões de cerâmica que evidencia-
mente para concordar com sua interpre- ram terem sido mantidos por um longo
tação de Marajoara, a cultura de nível tempo. Entre os muitos cacos escava-
cacicado da ilha. Meggers e Evans, em dos estavam espécimes da ornamenta-
seu trabalho, prospeccionaram grandes da tradição policrômica, bem conhecida
porções de Marajó e fizeram escavações- da cultura Marajoara. A riqueza dessa
teste em vários locais de maneira a esta- cerâmica, que é geralmente tomada para
belecer uma cronologia de tipos cerâmi- indicar que era feita por especialistas, é
cos. Roosevelt, por outro lado, concen- uma das maiores razões porque se pen-
trou seus esforços em escavar somente sa que Marajoara era um cacicado.
um teso, algo que ela afirmou nunca ti- Todas juntas, cerca de 25 casas co-
nha sido feito antes. Os resultados de munais foram localizadas em Teso dos
seu trabalho foram publicados em Moun- Bichos, com uma média, Roosevelt
dbuilders of the Amazon (Roosevelt, (1991:342) estima, de 40 pessoas por
1991). casa, dando uma população total de cer-
Teso dos Bichos, o teso que ela esco- ca de mil pessoas para o assentamento.
lheu para escavar, está localizado perto Tudo o que Roosevelt recolheu do teso a
do lago Arari, na porção central-leste da levou a aceitar a visão de que Marajoara
ilha. É um monte artificial elevando-se tinha se constituído como um cacicado.
a 7m de altura sobre a planície circun- De fato, como veremos, ela é generosa
dante e ocupando um total de cerca de sobre o que diz sobre o alto nível dessa
três hectares. De acordo com Roosevelt cultura.
(1991:404), anteriormente se pensava Ao examinar as conclusões de
que grandes tesos eram apenas estru- Roosevelt sobre Marajoara, será especi-
turas cerimoniais, mas foi possível a ela almente elucidativo apresentar o que ela
determinar que Teso dos Bichos era um diz em conjunto com as visões de Betty

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 131


Carneiro, R. L.

Meggers sobre essa cultura. Meggers terial. Portanto, quando, onde e como
tem, de fato, questionado a descrição de cacicados emergiram continua a ser uma
Roosevelt de Marajoara em diversos pon- questão central para a arqueologia ama-
tos. Ela fez isso em duas resenhas de zônica. E onde quer que cacicados se-
Moundbuilders of the Amazon. Além dis- jam discutidos, o foco tende a cair sobre
so, em diversos artigos recentes, Me- Marajó, que se destaca como a mais
ggers tem defendido suas últimas opi- antiga cultura de tipo cacicado até ago-
niões sobre a pré-história amazônica em ra descoberta na Amazônia.
geral, e essas dizem respeito também
Se é, de fato, a mais antiga, depen-
às suas interpretações da cultura Mara-
de, é claro, de sua datação. Meggers e
joara. Como veremos, suas percepções
Evans, em seus primeiros trabalhos, fo-
atuais representam uma significativa di-
ram cautelosos nesse ponto: A duração
vergência daquelas expressadas em
da fase Marajoara não pode ser estimada
Amazônia, a ilusão de um paraíso.
acuradamente nesse momento (Meggers
Em sua resenha crítica de Moundbuil- & Evans, 1957: 404). Na ausência de
ders, Meggers (1992b) aponta diversos datação radiocarbônica, eles conferiram
problemas técnicos no livro, mas aqui, datas provisórias a essa fase, de 1200 a
podemos deixar de lado certos detalhes 1450 AD (1957:422).
e focalizar nas questões mais gerais en-
volvidas. E são muitas. A estimativa se manteve até 1967,
quando datas radiocarbônicas obtidas
A característica saliente da cultura
por Mário Simões empurram o começo
Marajoara era que, em seu ápice, repre-
da fase Marajoara para cerca de 500 AD.
sentava um nível superior de cultura do
E essa data antiga foi depois confirma-
que aquele atingido pelas aldeias autô-
da por outras datas radiocarbônicas (Me-
nomas da cultura de floresta tropical nos
ggers, 1988b:247). Baseado na datação
interiores da Amazônia. Era, de fato, um
de materiais que ela mesma escavou,
cacicado. Meggers e Roosevelt concor-
Roosevelt (1991:214, 242) afirma que
dam nesse ponto, mas aqui a concor-
dância acaba. Ainda controversas entre as datas radiocarbônicas dos sítios de
elas estão coisas como a data do início Marajó indicam uma variação temporal
de Marajoara, sua derivação, sua dura- provável para a fase Marajoara de cerca
ção, o nível de complexidade a que che- de 400 a 1300 AD.
gou, a capacidade de carga de seu habi- Que Marajoara emergiu muito antes
tat, a população total que suportou e as do que originalmente pensado, parece
razões para seu desaparecimento. E es- colocar nenhum sério problema teórico.
sas questões, surgindo dos dados de No entanto, a nova estimativa para sua
Marajó, projetam-se sobre a grande tela duração – 900 anos – certamente colo-
da pré-história amazônica. ca. Enquanto que a datação original de
O mais importante degrau galgado Meggers e Evans dava a Marajoara uma
na pré-história amazônica, uma vez que duração de 200 anos, as novas datas a
a agricultura se estabeleceu, foi a emer- estendem por quase mil anos. E o pro-
gência de cacicados. Nesses poucos lu- blema que essas novas datas colocam
gares onde eles emergiram, represen- para Meggers é esse: se o ambiente de
taram um salto quântico. Não somente floresta tropical não poderia suportar
as antigas aldeias que os constituíram uma cultura do nível cacicado por muito
perderam sua independência e torna- tempo, como ela tinha argumentado
ram-se subordinadas aos chefes pode- desde o começo, como poderia Marajoara
rosos e supremos, mas também sofre- ter durado tanto? Por que teria levado
ram muitas outras mudanças em sua todos esses 900 anos para declinar de
vida social, econômica, religiosa e ma- cacicado ao nível de floresta tropical?

132 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

Igualmente importante era a ques- relacionado à capacidade de carga da ilha


tão de como a cultura Marajoara pode- a tinha impedido de ver uma origem lo-
ria ser explicada em primeiro lugar. Me- cal para Marajoara, Meggers retrucou:
ggers tinha argumentado desde o come-
nossa interpretação da fase Marajoara como
ço que condições ecológicas não poderi- intrusiva não foi baseada em um conceito
am ter permitido que se originasse em teórico incorreto, mas na seqüência seria-
Marajó. Então, deve ter sido intrusiva na da mostrando que os sítios mais antigos
ilha, vinda de algum outro lugar, talvez [em Marajó] tinham os remanescentes mais
de perto do sopé dos Andes (Meggers e elaborados (Meggers, 1992c:33).
Evans, 1957:589). E de fato, no relatório final de suas
Entretanto, à noção de que Marajoa- escavações em Marajó, Meggers e Evans
ra teria que se derivar de uma grande (1957:395) disseram:
distância, mesmo fora da Amazônia,
As maiores mudanças temporais na deco-
Roosevelt levanta sérias objeções. Fa- ração cerâmica da fase Marajoara pode ser
lando em geral, ela afirma que as carac- resumidas no seguinte:
terísticas de [cacicados amazônicos]... 1. Vasilhas complexas utilizando dois ou
mostram ser de origem indígena, nasci- mais tipos de tratamento de superfície...são
dos de culturas locais das terras baixas mais abundantes nos sítios mais antigos e
declinam marcadamente com a passagem
tropicais, ao invés de serem intrusivos
do tempo.
de outros lugares (Roosevelt, 1991:436). 2. Concorrentemente, a qualidade técnica
Mais especificamente, ela afirma que o dos motivos excisos e a quantidade de su-
estilo Marajoara emergiu no baixo Ama- perfície da vasilha que eles cobrem é nota-
zonas a partir de precursores das terras velmente reduzida.
baixas (1991:3). E à sugestão de Me- 3. As vasilhas mostrando aumento em
popularidade...são aquelas que requerem
ggers e Evans de que o estilo de cerâmi-
menos tempo para sua execução.
ca Marajoara deve ter derivado da cerâ- 4. ... existe alguma indicação de motivos
mica Napo que eles escavaram mais tar- complexos e delicados são mais freqüentes
de, Roosevelt (1991:314) retrucou que nos sítios mais antigos.
Pode-se discernir a mesma tendência em
a fase Marajoara começou mais de mil anos direção à simplificação quando outras ca-
antes do que Meggers e Evans tinham esti- racterísticas da cerâmica além do tratamen-
mado e, portanto, não poderia ter derivado to de superfície são examinados.
do horizonte policrômico da fase Napo, dos
séculos XII a XV, no sopé dos Andes ... Agora, duas das principais sub-fases
de Marajoara que Meggers e Evans iden-
Ainda, Roosevelt não está pronta para
tificaram foram Pacoval e Camutins. Ape-
afirmar que em verdade começou em
sar de não estar dito claramente em seu
Marajó. Uma vez que ela não escavou
relatório, Meggers e Evans parecem ter
até os níveis mais inferiores de Teso dos
considerado Pacoval a subfase mais an-
Bichos, ela não poderia afirmar com al-
tiga e Camutins a mais recente. Quanto
guma segurança se marajorara emergiu
a isso, eles escreveram:
in situ a partir de um começo simples,
ou apareceu como nova, totalmente a ... seriação dos fragmentos decorados
pronta, no sítio (Roosevelt, 1991:114). desses sítios [os cemitérios do Pacoval,
Fortaleza, Camutins, e Guajará] mostra que
Como sabemos, Meggers tinha ba- Pacoval e Fortaleza são de algum modo an-
ses teóricas para acreditar que Marajoa- teriores que os tesos no oeste [que inclu-
ra não poderia ter surgido em Marajó. A em o Camutins] e exibem um número de
isso ela adicionou o argumento empíri- refinamentos cerâmicos que foram poste-
riormente perdidos ... (Meggers & Evans,
co de que nenhuma cultura claramente 1957:410).
antecessora da Marajoara tinha sido en-
contrada lá. Logo, para a acusação de Baseado nos achados anteriores, Me-
Roosevelt de que o preconceito teórico ggers (1992c:34) desafia Roosevelt que

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 133


Carneiro, R. L.

estabelecer um desenvolvimento in situ tante. Precisa-se ter cuidados para não


para Marajoara requer que ela invalide difundir cacicados daqui de outros luga-
nossa evidência para as fases anteriores res, antes de os tê-lo desenvolvido in
não relacionadas e para o declínio em situ – mesmo se outros lugares aconte-
complexidade durante a fase Marajoara. cem de serem perto como outra parte
De fato isso é precisamente o que do baixo Amazonas. Uma distinção cla-
Roosevelt tenta fazer em Moundbuilders ra precisa ser feita aqui. Estilos cerâmi-
of the Amazon. Ela se refere aqui a uma cos podem prontamente difundir-se e
tese de doutorado defendida por Joanne serem facilmente emprestados, mas o
Magalis (1975), escrita quando ela era estabelecimento de um cacicado - uma
estudante de Donald Lathrap, em que estrutura sociopolítica complexa – é uma
ela reexamina a datação relativa de Pa- proposição bem diferente. Um cacicado
coval e Camutins: não pode difundir-se rapidamente, deve
Baseado em seu estudo de coleções e re-
crescer no local, organizadamente, a
sultados de escavações de outros, Roose- partir de básicas condições ecológicas e
velt (1991:111) escreve, Magalis concluiu sóciopolíticas. Portanto, se Marajoara
que Meggers e Evans tinham na verdade deve ser chamada doadora, deve-se es-
invertido a seqüência cronológica para Ma- pecificar o que realmente estaria doando.
rajó e determinado que o que é agora cha-
mado de subfase Camutins era anterior à
subfase Pacoval. A conclusão de Magalis
coloca a subfase mais complexa no final da
A emergência da cultura
seqüência, não no começo, documentando Marajoara
um florescimento local do estilo, antes do
que uma deterioração. As implicações des- Meggers enfatiza o fato de que um
sa conclusão ... eram de que a cultura Ma- hiato de diversos séculos separou as
rajoara poderia ser indígena da Amazônia antigas culturas cerâmicas de Marajó –
antes do que simplesmente uma difusão das Ananatuba e Mangueiras – da Marajoa-
civilizações andinas.
ra. Então, seguindo-se um longo perío-
Saber onde fica a verdade é, clara- do sem evidência de ocupação humana,
mente, uma questão de importância con- um novo povo chegou na ilha, trazendo
siderável para a pré-história amazôni- com eles um estilo cerâmico que Meggers
ca. De acordo com Roosevelt, Magalis e Evans chamaram Formiga. E entre essa
era incapaz de continuar sua pesquisa cultura e a Marajoara não houve uma
folga cronológica. De fato, as duas se
baseada em coleções com escavações no
sobrepõem (Meggers, 1988b:248).
Marajó e então, até onde sei, a questão
da datação relativa de Pacoval e A questão pode ser colocada: pode-
Camutins continua sem solução. ria Marajoara ter-se desenvolvido a par-
tir de Formiga? Meggers (1992c:34)
Não somente Roosevelt rejeita a afir-
nega essa possibilidade com veemência,
mação de que Marajoara é intrusiva, ela
observando que
parece considerá-la como uma doadora,
a primeira e a fonte de outros cacicados nenhuma das técnicas decorativas diagnós-
ticas da Marajoara (engobo branco, exci-
amazônicos:
são, pintura) motivos, formas de vasilhas,
... parece que a cultura Marajoara foi uma e artefatos cerâmicos estão representados
cultura ancestral importante, até agora a entre a antiga [Formiga] fase, nenhum se-
mais antiga conhecida de uma série de cul- pultamento em urnas foi encontrado, e as
turas relacionadas que emergiram todas ao vasilhas definindo cada fase são distintas
longo do Amazonas de sua boca até o sopé em aparência e textura.
dos Andes (Roosevelt, 1991:1).
Ela e Evans tinham observado em
Além disso, a questão de uma cultu- 1957 que enquanto o início da fase For-
ra doadora levanta um assunto impor- miga é incerto... seu final é aparente-

134 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

mente o resultado da chegada da fase realmente obrigados a aceitar uma ori-


Marajoara...(Meggers & Evans, 1957: gem intrusiva para ela? De fato, deve-
242). Logo, antes do que surgir a partir mos excluir a possibilidade de que te-
de Formiga, Marajoara parece tê-la obli- nha surgido na ilha de Marajó, algo em
terado. que mesmo Anna Roosevelt não insiste?
Antes vimos que, em seu relatório de Deixe-me sugerir um argumento teóri-
1957, Meggers e Evans estavam incli- co de por que uma origem local da cul-
nados a derivar Marajoara de algum lu- tura Marajoara pode não estar totalmen-
gar na área andina. Em um artigo re- te fora de questão.
cente, Meggers foi um pouco mais espe- Equacionar a possessão de uma ce-
cífica. A tradição de cerâmica policrômi- râmica ornamentada como a da tradi-
ca, ela escreve, ção polícroma da Amazônia com um ní-
não foi encontrada no leste da Venezuela,
vel de cultura do tipo cacicado deriva da
nas Guianas, ou no alto curso dos tributá- seguinte suposição: que a excelência téc-
rios sul do baixo Amazonas. O padrão exis- nica que ela representa parece requerer
tente, então, sugere uma intrusão do no- as mãos hábeis de um ceramista espe-
roeste da Venezuela ou da adjacente Co- cializado – como Meggers e Evans
lômbia... (Meggers, 1987:158).
(1957:403) argumentaram de maneira
Uma origem fora da Amazônia no noroeste convincente anos atrás. E somente em
da América do Sul, [ela continua] ...está cacicados – não em aldeias autônomas
de acordo com evidência para a ocorrência – nós encontramos a profissionalização
generalizada de um nível similar de desen- do ofício de ceramista necessário para
volvimento sóciopolítico [quer dizer, caci- produzir tais vasilhas. Como membros
cados] nas áreas dos Andes e Caribe (Me-
ggers, 1987:158). de um cacicado, ceramistas podem es-
banjar suas habilidades no artesanato
Meggers admite, no entanto, que a porque são sustentados, direta ou indi-
diversidade de suas técnicas decorati- retamente, pelo chefe supremo e a no-
vas breza rica associada com ele, que pro-
sugere que a Tradição Policrômica é uma curam refletir nos meios materiais seu
amalgamação de traços introduzidos de di- alto status social. Além disso, a elabo-
ferentes direções e combinados de diferen- ração de rituais religiosos e cerimônias,
tes maneiras. Tal origem poderia explicar a que é característico de cacicados, pro-
falha em identificar seja um núcleo local de
porciona um ímpeto adicional para a
desenvolvimento ou um complexo ances-
tral fora da Amazônia (Meggers, manufatura de vasilhas de formatos ela-
1988a:290). borados e decoração exuberante. Um
cacicado, então, proporciona as condi-
Sejam quais forem as origens dessa ções para o surgimento do virtuosismo
Tradição Policrômica, entretanto, Me- cerâmico.
ggers (1987:158) vê seus ingredientes
Como eu tinha observado anterior-
básicos chegando na Amazônia Central
mente, em termos de organização socio-
por volta do começo da era Cristã. Sua
política um cacicado representa um
dispersão subseqüente, ela diz,
avanço de categoria. Ele marca um afas-
parece ter sido rápida ao longo do baixo tamento radical das comunidades autô-
Amazonas e em direção ao alto rio Madei-
nomas e díspares que o precederam, e a
ra, onde solos férteis da várzea e a rica
fauna aquática proporcionaram um supri- emergência de um agregado de aldeias
mento confiável de alimentos. controladas por um chefe poderoso. Tal
mudança, me parece, pode ocorrer muito
Entretanto, em vista da falta de uma rapidamente. Após certos movimentos
cultura ancestral identificável e especí- antecipatórios nessa direção, um ponto
fica para a cultura Marajoara, estamos crítico é alcançado e a transição tem lu-

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 135


Carneiro, R. L.

gar. E com o cruzamento desse limiar do ... (Roosevelt, 1991:136), uma das
muitas possibilidades rapidamente se mais excepcionais conquistas culturais
abrem. Inovações nas artes e no artesa- indígenas no Novo Mundo ... (Roosevelt,
nato, que o sustento da chefatura faz 1991:29); um extenso domínio igual ou
possível, agora começam a tomar lugar. maior do que aqueles de sociedades
Um ceramista hábil que previamente complexas já conhecidas (Roosevelt,
produzia somente vasilhas utilitárias 1991:96), que, em sua extensão geo-
para si mesmo ou sua própria família, gráfica obscurece algumas das famosas
se repentinamente tem tempo para ex- civilizações do velho mundo (Roosevelt,
perimentar com novos modos de deco- 1991:1, 436).
ração, formas de vasilhas, métodos de Com relação ao tamanho, Roosevelt
tempero, técnicas de queima, etc, pode, coloca a população total Marajoara em
em curto tempo, trazer à tona surpre- 100.000 a 200.000 pessoas, e em seu
endentes vasilhas novas que mostram entusiasmo sem limites, está pronta para
pouca continuidade com as anteriormen- dizer que poderia ser até um milhão...
te existentes. Com o estabelecimento de (Roosevelt, 1991:38). A conclusão a que
um novo cacicado, então, uma florescên- não se pode fugir, ela completa, é que o
cia eruptiva da feitura de cerâmica pode padrão de assentamento Marajoara é
ocorrer, para a qual a tradição cerâmica urbano em escala (Roosevelt, 1991:39).
antecedente deu muito pouco impulso. A matéria requer um pouco mais de
Logo, enquanto não estou pronto discussão, entretanto. Nós vimos que
para afirmar que Meggers está equivo- Roosevelt indicou uma população de mil
cada com relação à tradição ceramista pessoas para Teso dos Bichos, o que
Marajoara como intrusiva na ilha de Ma- parece uma típica comunidade de um
rajó, penso que devemos estar prontos teso. Esse é um bom tamanho de aldeia
para antever a possibilidade de sua ori- pelos padrões atuais da Amazônia, mas
gem autônoma lá. Evidência para tal dificilmente urbano. Com relação ao to-
origem relativamente abrupta pode ain- tal da população da ilha, Roosevelt diz
da ser encontrada em algum lugar na que
ilha, em sítios ainda não escavados. uma vez que as centenas de tesos conhe-
Logo, dificilmente existe uma necessi- cidos devem... ser pensados... como cen-
dade forçosa de derivar Marajoara do tros permanentemente habitados, antes do
que sítios cerimoniais vazios ou habitações
sopé dos Andes ou mesmo do Amazo-
temporárias, a população da cultura como
nas Central. um todo parece ter sido de bom tamanho,
possivelmente maior do que 100.000 pes-
soas... (Roosevelt, 1991:404).
A escala de Marajoara
Mas mesmo se isso é correto, ainda
Vamos agora às diferentes visões de
fica em aberto a questão de se qualquer
Meggers e Roosevelt com relação ao ta-
assentamento individual pode ser carac-
manho e complexidade das unidades po-
terizado como urbano. O mais perto que
líticas do Marajó. Mesmo em seus pri-
Roosevelt chega de defender essa ca-
meiros relatos, Meggers e Evans pinta-
racterização é quando ela fala de sítios
ram-nas como “circum-caribenhas”, ou
com 20 a 40 tesos, que podem ter tido
seja, cacicados. Mas Roosevelt não es-
populações acima de 10.000 pessoas
tava satisfeita com isso. Ela iria pintar
(Roosevelt, 1991:404).
Marajoara em tons mais fortes e brilhan-
tes que seus predecessores. De fato, al- Existe uma questão não respondida
gumas vezes ela derrama louvores so- aqui, no entanto: quantos desses tesos
bre a cultura, descrevendo-a como um são contemporâneos? Depois de tudo,
dos grandes cacicados tropicais do mun- se a cultura Marajoara durou por 900

136 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

anos, não é provável que muitos desses a interpretação da organização social, polí-
tesos contíguos não duraram todo o pe- tica e econômica [é ainda um dos grandes]
problemas prementes (p.422). [Novamen-
ríodo, mas foram abandonados algum te ela diz] ... a história da ... sociedade [Ma-
tempo ao longo do período de séculos e rajoara] e a natureza de sua organização
novos tesos adjacentes construídos e não são ainda bem compreendidas (p.404).
ocupados? Logo, até que a datação des- [E novamente] ...a iconografia Marajoara
não dá evidência de uma administração po-
se grupo de tesos tenha sido seguramen-
liticamente centralizada focalizada em um
te estabelecida, nada pode ser dito com chefe... (p.398; ver também p.420). [E fa-
segurança sobre Marajoara ser urbano. lando de Marajoara, entre outros cacicados,
Meggers (1992b:403) corretamente ela diz] o nível de hierarquia política e cen-
tralização na sociedade é ainda uma ques-
faz objeções às assertivas extravagan- tão em aberto... (p.2). [E ela vai mais lon-
tes de Roosevelt sobre a escala e mag- ge ao dizer que] ... não é possível avaliar
nificência da cultura Marajoara. Obser- hipóteses para um governo centralizado
vada a conclusão de Roosevelt de que (p.417).
os povos Marajoaras dependiam de pe-
Enquanto ela está pronta para acei-
quenos peixes e sementes silvestres para
tar o fato de que os Tapajós, mais acima
sua subsistência, Meggers (1992b:402)
no Amazonas, possuíam todos os atri-
observa, jocosa: sustentar uma popula-
butos que os marcavam como um caci-
ção de 100.000 ou mais por quase um
cado, se Marajoara era, ou não, é incer-
milênio nessa dieta parece requerer in-
to (Roosevelt, 1991:428). De fato, às ve-
definidamente a repetição do milagre dos
zes (por exemplo, Roosevelt, 1991:420)
pães e dos peixes.
parece como se Roosevelt não quisesse
que Marajoara fosse um cacicado!
A natureza das unidades O que essas idas e vindas nos mos-
políticas Marajoaras tram é, de fato, quão difícil é para a ar-
queologia inferir muito sobre estrutura
Chegamos agora à questão central da política a partir daquilo que se retira do
natureza dos cacicados Marajoaras. solo. E Roosevelt (1991:421) reconhece
Como Roosevelt os caracteriza? Aqui a isso:
encontramos extremamente equivocada.
Como Meggers (1992c:26) observa, Roo- ...é difícil pensar em um teste conclusivo,
ela admite, para a evidência de diferentes
sevelt falha em oferecer uma definição tipos de organização social e política por
clara de um cacicado e de fato ela oscila causa da falta de evidência sistemática para
entre a questão de se Marajoara era re- as características materiais...
almente um cacicado ou não. Eu citei os
que normalmente acompanham um ca-
termos luminosos com que Roosevelt
cicado. Logo, me parece uma esperança
algumas vezes caracteriza a sociedade
vã de sua parte que a evidência de Ma-
Marajoara. Mas quando ela aperta o cin-
rajó poderá ser importante para infor-
to para discutir a evidência para sua es-
mar teorias gerais com relação a cacica-
trutura sóciopolítica, nós a encontramos
dos... (Roosevelt, 1991:420). Parece-me
tentativa e incerta. Ela reconhece a im-
muito mais provável que fosse o contrá-
portância geral da questão da natureza
rio. Teorias robustas sobre a origem de
das sociedades cacicados... (Roosevelt,
cacicados poderão vir de relatos etno-
1991:397), mas deixa-nos tentando adi-
gráficos e etno-históricos de cacicados
vinhar qual seu entendimento sobre a
observáveis, que irão então ser aplica-
natureza precisa dessas sociedades.
das à interpretação das manifestações
Em certo ponto, Roosevelt (1991) nos arqueológicas dessas polis. Parece-me
fala que inevitável que a arqueologia está con-

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 137


Carneiro, R. L.

denada a ser uma importadora de teo- E algumas páginas depois em seu li-
ria, não uma geradora. vro ela observa que durante os tempos
Roosevelt está no caminho certo, pré-históricos tardios, a várzea amazô-
entretanto, quando escreve: nica estava literalmente coberta por as-
sentamentos, alguns dos quais parecem
Para realmente demonstrar uma organiza- ter sido de complexidade e escala urba-
ção centralizada, deve-se encontrar evidên-
cia objetiva de que os centros era funcio-
na (Roosevelt, 1991:113).
nalmente distintos, de maneira que centros Não somente Meggers e Roosevelt
politicamente conhecidos estão controlan- discordam sobre o tamanho de sítios ar-
do certos recursos e dirigindo certas ativi- queológicos individuais, elas também di-
dades importantes... Logo, se existia um
governo central ou não será difícil respon-
ferem sobre o total da população aborí-
der até que uma prospecção compreensiva gine da Amazônia na época do contato.
de assentamentos possa ser conduzida para Meggers (1992a:203) iria reduzir dras-
testar a centralização ao investigar a dis- ticamente o quadro atualmente aceito
tribuição de estruturas, feições, artefatos, de 5 a 6 milhões para 1.500.000 e
e grupos ocupacionais e de status dentro 2.000.000. Se a população total da Ama-
de diferentes tipos de sítios no sistema de
assentamentos (Roosevelt, 1991:420). zônia era substancialmente menor do
que geralmente pensado, então o tama-
Entretanto, na discussão de Roose- nho de sítios individuais deveria prova-
velt sobre os cacicados Marajoaras exis- velmente diminuir de acordo. E isso Me-
te um importante ponto cego. Com a di- ggers resolve fazer, astutamente desin-
minuta exceção acima citada, ela nunca flando o tamanho que Roosevelt atribuiu
se pergunta se, durante seus dias, Ma- a muitos sítios arqueológicos.
rajoara consistia de um cacicado ou vá- Essa redução no tamanho dos assen-
rios. E de fato isso é uma questão absolu- tamentos amazônicos está enraizada na
tamente crítica. Marajoara dificilmente premissa de Meggers sobre a baixa ca-
poderia atingir a grandeza que Roosevelt pacidade de carga da floresta tropical
vez ou outra lhe imputa se consistisse chuvosa. Mas não se limita a isso; ela
de uma dúzia ou dois pequenos cacica- também oferece um argumento empíri-
dos. Somente se comportasse um gran- co. Seu ceticismo sobre a existência de
de cacicado, cobrindo boa parte da ilha, grandes assentamentos provém dos re-
e abarcando dezenas de milhares de pes- sultados de um extensivo programa de
soas, poderia ser considerado como uma prospecção arqueológica conduzido des-
unidade política realmente imponente. de os anos de 1970 pelo PRONAPABA
Mas Roosevelt parece quase esquecida (Programa Nacional de Pesquisas Arque-
da importância dessa questão. ológicas na Bacia Amazônica), que Me-
ggers ajudou a organizar. Durante o cur-
so daquelas prospecções, ela diz
Marajoara extrapolada
nenhuma ocupação grande ou permanente
As diferentes interpretações de Roo- foi identificada entre as centenas de sítios
sevelt e Meggers se estendem para toda investigados. Ao contrário, excetuando os
a Amazônia. Pensando principalmente no pequenos sítios, todos eram resultado de
sítio de Santarém, Roosevelt (1991:98) múltiplas reocupações pelas mesmas fases
audaciosamente afirma que ou fases sucessivas durante centenas de
anos (Meggers, 1990:202).
existe agora incontroversa evidência arque-
ológica e etnohistórica para a existência de Em diversos de seus artigos recen-
sociedades complexas indígenas nos tem- tes, Meggers reitera que as múltiplas re-
pos pré-históricos tardios, com padrões de ocupações de um mesmo sítio tinham
assentamento de caráter urbano e exten-
sos domínios culturais de milhares de qui-
criado a ilusão de que se tratava de um
lômetros quadrados. só grande assentamento. Logo, a incon-

138 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

troversa evidência de Roosevelt para a numerosos ao longo do Amazonas e So-


existência de culturas grandiosas na limões no período pré-histórico do que
Amazônia se apóia sobre a suposição in- durante o período do contato, mas ar-
correta de que a extensão da superfície gumenta que se a expansão populacio-
é sinônimo de área habitada... (Meggers, nal ocorreu, foi confinada dentro da re-
1992c:35; ver também 1988:291, gião dominada pelos rios de água bran-
1991:200). ca, ricos em sedimentos (Meggers,
Mas pode esse argumento realmen- 1992a:201). Em outras palavras, com
te ser aplicado a um sítio como Santa- relação a Meggers, a pressão populacio-
rém, que Roosevelt (1991:113-114) cha- nal não cumpriu nenhum papel nos gran-
ma de capital do cacicado pré-histórico des movimentos de povos que ocorre-
tardio, e descreve como um sítio arque- ram em tempos pré-históricos subindo
ológico cujos resíduos domésticos e mon- os muitos tributários do Amazonas. Pode,
tículos se espalham sobre mais de no entanto, haver uma falha em seu ra-
5km²...? Eu acho difícil acreditar que ciocínio.
Meggers poderia convincentemente Meggers supõe que qualquer ex-ha-
diminuir Santarém ao tamanho de uma bitante da várzea, que pode ter deixado
aldeia autônoma ou mesmo a um pe- as margens do Amazonas, subiu seus tri-
queno cacicado. É simplesmente muito butários e se estabeleceu ao longo de
grande. Somente por que Roosevelt tem suas margens, poderia ser prontamente
uma tendência de exagerar sua causa, identificado por sua cerâmica elabora-
isso não significa que a mesma não seja da. Mas isso parece inconsistente com
válida. sua visão fortemente sustentada que cul-
turas elevadas deixaram as férteis vár-
Pressão populacional e zeas e moveram-se rio acima para a terra
firme, onde eles iriam inevitavelmente
migrações decair para o nível de floresta tropical.
Considerando os assentamentos De acordo com essa premissa, quaisquer
amazônicos pequenos em tamanho, e a migrantes, após deixarem a várzea, vi-
população total da bacia relativamente ajando rio acima, cessariam de ser caci-
modesta, Meggers não vê razão para cados e teriam que ter desistido de sua
acreditar que os movimentos de povos cerâmica ornamentada. Logo, qualquer
na Amazônia foram impulsionados por resíduo cerâmico que eles depositaram
pressão populacional. Com Donald La- ao longo do médio e altos cursos dos
thrap em mente, Meggers (1991:199) tributários do Amazonas seriam indistin-
coloca: güíveis em qualidade daqueles dos gru-
a Amazônia Central tem sido descrita como pos típicos de floresta tropical ainda vi-
o lócus de contínua explosão populacional, vendo lá. Em suma, nós podemos dizer
e a ‘luta por uma oferta limitada de terra que o argumento de Meggers contra o
cultivável produtiva’ tem sido citada como fato de que pressão populacional cum-
a ‘mais importante força única na história
priu um papel nas dispersões e migra-
cultural dessa região
ções amazônicas não é totalmente con-
Meggers considera que essa interpre- vincente.
tação não é sustentada pela evidência
arqueológica coletada pelos participan-
tes do Programa Nacional de Pesquisas Várzea e terra firme
Arqueológicas da Bacia Amazônia. Nessa conexão, precisamos retornar
Meggers admite, no entanto, que as- às distinções entre várzea e terra firme
sentamentos podem ter sido um pouco e olhar mais de perto para o papel que
maiores, mais permanentes, e mais jogam nas interpretações de Meggers e

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 139


Carneiro, R. L.

Roosevelt. E vamos encontrar mais al- vantagem, uma que teria tornado uma
gumas surpresas. Primeiro, então, uma estupidez, senão tornado impossível para
necessária revisão. os agricultores confiarem nela exclusi-
O que eu disse anteriormente em re- vamente. Não se pode contar com a vár-
lação à várzea e terra firme precisa ser zea para cultivo todos os anos. Eu esta-
amplificado. Como os brasileiros usam o va em Manaus no início de agosto de
termo, terra firme é terra alta o suficiente 1975, quando as águas do Amazonas ti-
em relação aos rios adjacentes de forma nham recuado substancialmente. Mas a
que nunca é inundada. A maior parte da estação chuvosa daquele ano tinha vis-
bacia Amazônica, incluindo a terra en- to o rio chegar a um nível bastante alto,
tre os grandes rios – os chamados e estava demorando mais do que o usu-
interflúvios – consiste de terra firme. al para descobrir a terra que tinha inun-
dado. Uma grande parte da várzea que
Várzea se refere às terras baixas ao
deveria estar seca e pronta para o culti-
longo do Amazonas e outros rios maio-
vo estava ainda sob as águas.
res que sazonalmente transbordam suas
margens e inundam ao redor. Uma vez As implicações dessa incerteza para
que os sedimentos depositados pelas os agricultores nativos devem ser cla-
cheias anuais de tais rios são ricos em ras: eles não podiam se dar ao luxo de
nutrientes minerais, trazidos do sopé dos colocar todos os seus ovos em um mes-
Andes, a várzea possui alto valor agrí- mo cesto. Várzea nunca poderia ser a
cola. E uma vez que sua fertilidade é única terra reservada para plantio. Al-
renovada a cada ano, não precisa ser guma confiança deveria ser colocada na
abandonada após somente dois ou três terra firme.
anos de plantio, como é a regra para a Ainda que os antigos cronistas pare-
terra firme. Em vez disso, pode ser plan- çam silenciosos nesse ponto, a regra
tada ano após ano. Como terra agrícola geral para os agricultores pré-colombia-
de primeira qualidade, a várzea era mui- nos era provavelmente essa: durante os
to procurada – e disputada – pelos índi- anos normais, cultivar milho, e tanta
os que viviam em sua vizinhança mandioca quanto possível, na várzea,
(Medina, 1934:190). mas estar pronto para voltar-se para a
terra firme para ambos os cultivos du-
Apesar de sua alta fertilidade, no en-
rante os anos em que as águas da inun-
tanto, a várzea tem algumas desvanta-
dação falhassem em retroceder rápido o
gens. Estando sob a água metade do ano,
suficiente.
não pode ser cultiva durante todo o ano.
Logo, qualquer planta a ser cultivada Como vimos, tanto Meggers quanto
deve ser colhida em cerca de seis me- Roosevelt cantam as maravilhas da pla-
ses. Isso apresenta um problema para a nície inundável ou várzea. Roosevelt
mandioca, cujos tubérculos levam de 16 (1991:8) descreve os solos de Marajó
a 18 meses para alcançar o tamanho como sedimentos densos e ricos..., e os
ideal. Por causa disso, os cultivadores relacionada com os solos férteis ao lon-
indígenas que uma vez viviam ao longo go do Mississipi, o rio Amarelo, e o Nilo
do Amazonas encontraram uma solução (Roosevelt, 1991:10).
parcial para esse problema. Eles de- Começando com Amazônia, a Ilusão
senvolveram uma variedade de mandi- de um Paraíso, Meggers, em diversas de
oca – chamada mandioca purê no Brasil suas publicações, tem distinguido clara-
– que fornece tubérculos de tamanho co- mente entre terra firme e várzea com
mestível, senão ideal, em apenas seis base em sua capacidade de carga. Por
meses (Loureiro, 1986:27). exemplo, ela fala do
Somando-se à sua curta estação de contraste marcante nas densidades [de
crescimento, a várzea tem outra des- assentamentos] para a várzea e terra fir-

140 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

me, que refletem importantes diferenças na tações a diferentes recursos, e que isso
capacidade desses dois tipos gerais de ha- explica a incapacidade de ambas as tra-
bitat de sustentar grandes concentrações
de populações humanas sedentárias
dições de expandir-se dentro do territó-
(Meggers, 1984:629). rio da outra... (Meggers, 1992a:200).
Essa alegada barreira deixou de ser cru-
Fora a grande variedade e abundân- zada porque estratégias de subsistência
cia de fauna aquática encontrada nos apropriadas para explorar a várzea fo-
grandes rios (especialmente o Amazo- ram inapropriadas para a terra firme e
nas), o que faz a várzea tão bem consi- vice-versa (Meggers, 1991:205). No en-
derada é sua grande produtividade para tanto, o que estas diferenças em estra-
agricultura. O rejuvenescimento anual do tégias de subsistência podem ter sido,
solo tem duas importantes conseqüên-
Meggers não nos conta.
cias, Meggers observa,
(1) milho, que requer solos mais férteis do
que a mandioca, pode ser cultivado com Os solos da Ilha de Marajó
grande retorno, e (2) os mesmos terrenos
podem ser usados indefinidamente, [conti- Uma questão interessante surge
nuando a produzir] com um nível continu- quando a matéria da várzea versus ter-
amente elevado (Meggers, 1984:632, 641). ra firme é levada à ilha de Marajó espe-
cificamente. De tudo o que foi dito até
Essa diferença na capacidade de car- agora sobre o alto nível da cultura Ma-
ga desses dois habitats Meggers encon- rajoara, poderia ter sido subentendido
tra refletida na arqueologia da região. que os solos nos quais ela depende seri-
Uma distinção clara existia, ela disse, am várzea. E Roosevelt certamente pin-
entre os altos cursos dos tributários do
ta-os dessa maneira:
Amazonas onde a terra era a terra fir-
me, e aqueles localizados na planície Os remanescentes da cultura construtora
de tesos pré-histórica, Marajoara, são en-
inundável, onde a várzea predominava.
contrados primariamente no interior da
Povos acima da linha limite faziam metade leste da ilha. Derivada principal-
cerâmica simples e viviam em peque- mente de recentes depósitos aluviais, o les-
nas aldeias autônomas. Moradores da te-centro de marajó é uma das maiores
várzea, no entanto, produziam a mais extensões de planície (várzea) na Amazô-
nia (Roosevelt, 1991:7-8). Boa parte da
elaborada e ornamentada louça policrô- superfície de Marajó é composta de sedi-
mica, e experimentavam formas de or- mentos profundos e ricos...(p.8). ... os so-
ganização sociopolítica mais avançadas. los [de Marajó] são bem supridos com ele-
De fato, Meggers acha tão marcada a mentos nutrientes para plantas... (p.10).
distinção entre os povos do alto curso e O potencial agrícola dos solos das planícies
inundáveis de Marajó é, portanto, signifi-
aqueles da planície que ela presume que
cativo ... (p.10).
eles teriam diferentes origens e histó-
rias (Meggers, 1988a:288). Além disso, Meggers, entretanto, faz uma obje-
ela considerava o limite ambiental entre ção. A terra que suportava os povos
eles agudo e difícil de cruzar: Marajoaras, ela diz, não era várzea, mas
fragmentos ocasionais com decoração di- terra firme. Marajoara é ... uma exce-
agnóstica de uma região [ocorrendo] em ção entre as fases da Tradição Policrô-
outra podem refletir troca, mas não exis- mica, ela escreve (Meggers, 1992b:403),
tem um exemplo de intrusão de sítio de ne-
ao ocupar um ambiente que não é de
nhum lado dessa barreira ecológica (Me-
ggers, 1992a:200). várzea. E ela observa que a parte leste
de Marajó, onde a maioria dos sítios Ma-
Falando dos dois tipos de culturas rajoara estão localizados tem sido des-
descritas, Meggers (1991:200) acredita crita [pelo ecólogo H.Sioli] como uma
que seus limites estáveis implicam adap- ‘terra firme consolidada’... (Meggers,

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 141


Carneiro, R. L.

1992b:402). Em outra ocasião Meggers capazes de produzir. Como arqueólogas,


diz que não como etnólogas, tanto Meggers
uma publicação oficial do Instituto Brasilei-
quanto Roosevelt estão, quem sabe, um
ro de Geografia colocava, mais de 30 anos pouco distantes do tipo de dados con-
atrás que o leste de Marajó não era parte cretos que se requer para responder a
da várzea e caracterizava os solos como essa questão. Anos atrás, Meggers e
especialmente ‘pobres e frágeis’... (Me- Evans (1957:607) observaram que a flo-
ggers, 1992b:29). resta tropical amazônica
E novamente, referindo-se a Marajó, proporciona uma oportunidade ímpar para
ela fala da deficiência do solo em nutri- arqueólogos e etnólogos colaborarem na
entes essenciais (Meggers, 1992b:402). solução desses... problemas [a origem e
declínio da cultura Marajoara] que não so-
E finalmente, após citar as opiniões de
mente irão melhorar nosso entendimento
vários cientistas naturais que questio- do desenvolvimento cultural local, mas tam-
nam a qualidade dos solos de Marajó, bém terão ampla significância teórica.
Meggers (1992c:36) afirma que até que
Roosevelt proporcione apoio similar para Esse foi um convite simpático, e eu
sua avaliação, eu prefiro confiar no jul- estou pronto a aceitá-lo.
gamento desses especialistas. Acontece que os dados de meu pró-
Eu certamente não tenho o conheci- prio trabalho de campo entre os Kuikuru
mento específico requerido para decidir da região do alto Xingu, no Brasil cen-
entre essas posturas divergentes com tral, são extremamente pertinentes a
relação à natureza dos solos de Marajó. esse assunto. De fato, eu acredito que
No entanto, eu penso que posso resolver esses dados podem nos levar a uma so-
esse assunto – cortando o nó górdio! lução satisfatória para o que parece uma
O fato mais relevante envolvido aqui, anomalia.
no que diz respeito á pré-história Mara- Não existe questionamento de que
joara, não é a qualidade intrínseca dos os solos que os Kuikuru cultivam são
solos de Marajó. É quão bem eles foram solos de terra firme. Seu conteúdo nu-
levados a produzir. Isso depende não tricional é baixo, e uma vez que eles
somente das propriedades inerentes do nunca são cobertos pelas águas das chei-
solo, mas também das plantas cultiva- as, sua fertilidade não é sazonalmente
das e do sistema de cultivo usado. E o renovada. A única maneira de melhorar
fato permanece que, bom, ruim, ou in- a qualidade desses solos é pela adição
diferente, os solos de Marajó foram ca- de cinzas de madeira quando a floresta
pazes de proporcionar uma subsistência que os cobre é pela primeira vez derru-
adequada para milhares de pessoas ao bada e queimada. Além de serem po-
longo de muitos séculos. A produtivida- bres em nutrientes, os solos cultivados
de desses solos, além disso, era sufici- pelos Kuikuru são altamente ácidos. De
ente para suportar um cacicado (ou di- fato, um pedólogo da Universidade de
versos) que, mesmo se não para a estu- Cornell que os analisou para mim disse
pefação do mundo, como Roosevelt quer que aqueles eram os solos mais ácidos
que acreditemos, eram ao menos uni- que ele já havia testado (Carneiro,
dades políticas substanciais. 1983:67).
Mas se Meggers e seus especialistas Pobres como são, no entanto, e cul-
estão certos, e os solos de Marajó não tivados por nenhum método mais sofis-
são várzea, mas terra firme, como isso ticado que a coivara, esses solos ainda
foi possível? Para responder a essa ques- produzem grandes quantidades de man-
tão nós devemos examinar a agricultura dioca, a base da alimentação Kuikuru.
da terra firme mais de perto e determi- De fato, a produção de 5 ou 6 toneladas
nar que magnitude de cultivo eles são de tubérculos por acre é a regra

142 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

(Carneiro, 1983:95). E uma vez que um tidade de excedente sazonal substancial


homem freqüentemente tem duas ou de mandioca. Se houvesse razão para
três roças cultivadas ao mesmo tempo, fazê-lo, ele poderia facilmente ter tra-
ele tem ainda mais mandioca para obter balhado uma hora extra por dia e pro-
se necessário. Esse fato foi me mostra- duzido um verdadeiro excedente, quer
do de forma dramática quando uma fa- dizer, um excedente maior e acima do
mília Kuikuru perdeu diversas centenas que sua família necessitaria em um ano.
de libras de farinha de mandioca em uma Por que os agricultores Marajoaras não
casa em chamas. Eu pensei que por cer- poderiam ter feito isso? E com relação
to eles teriam que pedir mandioca de ao tamanho do assentamento que teria
seus vizinhos ou parentes, mas não foi que ser sustentado, eu demonstrei anos
o caso. A família simplesmente foi às atrás que, no que tange à agricultura,
suas roças e colheu mais tubérculos. os Kuikuru poderiam ter sustentado, no
Durante a estação seca as famílias Kui- mesmo local e sem ter que se mover,
kuru vão às suas roças diversas vezes e uma aldeia de cerca de 2000 pessoas –
colhem mandioca, acumulando grandes duas vezes maior do que a estimativa
quantidades excedentes de mandioca de Roosevelt para a população de Teso
que processam na forma de farinha, que dos Bichos (Carneiro, 1960:232).
é estocada dentro da casa. Esse exce-
dente estocado dispensa as mulheres de
terem que ir freqüentemente às roças Fatores envolvidos na
para pegar tubérculos durante a maior emergência dos cacicados
parte da estação chuvosa.
Nós precisamos agora voltar atrás um
Em suma, então, apesar dos solos pouco e considerar, em uma perspectiva
pobres e nenhuma técnica agrícola me- ampla, os vários fatores envolvidos na
lhor do que a coivara, graças à capaci- emergência de cacicados, e a maneira
dade da mandioca de produzir muito e pela qual esses fatores interagem para
de maneira confiável sob condições bem surtir tal resultado. Em minha opinião,
menos do que ideais, a agricultura Kui- nem Meggers nem Roosevelt possuem
kuru é ampla e segura. uma compreensão clara sobre o proces-
Agora, se os Kuikuru poderiam atin- so de formação dos cacicados. Pelo me-
gir produção adequada na terra firme, nos nenhuma delas têm articulado um
não poderia o povo Marajoara ter feito o relato claro, detalhado e compreensivo
mesmo? Contra essa idéia pode ser ar- de exatamente como pensam que os ca-
gumentado que os Kuikuru eram ape- cicados surgiram. Com uma teoria pró-
nas uma única aldeia de 145 pessoas, pria na mão, então, muito do mistério
enquanto Marajoara abarcava um ou em torno da emergência do cacicado
mais cacicados, com uma população de Marajoara, assim como de outros caci-
diversos milhares. Não seria uma pro- cados amazônicos, pode ser dissipado.
dutividade maior requerida para supor- Na poeira da batalha entre Meggers
tar tal nível cultural? É verdade que uma e Roosevelt, certas questões-chave têm
maior produtividade por agricultor po- sido negligenciadas ou obscurecidas.
deria mesmo ser requerida para alimen- Muito tem sido dito, talvez, sobre a mai-
tar uma classe não-produtiva da elite or fertilidade da várzea com relação à
Marajoara, supondo que tal existia. Mas terra firme. Essa diferença era, é claro,
os Kuikuru poderiam facilmente ter atin- importante, mas existiam outros fatos
gido uma maior produtividade também. relativos a esse assunto. Por exemplo,
Com pouco mais do que três horas de nós devemos ter em mente que a vár-
trabalho na roça por dia, um homem zea tem suas desvantagens também. E
Kuikuru é capaz de produzir uma quan- essas desvantagens podem em verdade

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 143


Carneiro, R. L.

ter jogado um papel construtivo na emer- ce provável que esse lago era uma fonte
gência de cacicados. Uma dessas des- importante de proteína aquática para a
vantagens é, como já vimos, a incons- população aborígine dos arredores du-
tância da várzea: o fato de que em cer- rante os séculos passados. E competi-
tos anos pode ainda estar sob as águas ção pela proximidade do lago e pelos di-
quando chega a hora de plantar. E deve- reitos de pescar deve ter jogado um pa-
se então lidar com os problemas que isso pel crucial no processo que levou à for-
cria. Meggers se baseia neles para pro- mação de cacicados.
por algo que em seus escritos é o mais Roosevelt (1989:82) observa que,
próximo de uma teoria sobre como os apesar da emergência de cacicados na
cacicados surgiram: ilha de Marajó em torno de AD 400 ter
a necessidade de monitorar o regime do rio ocorrido muito antes do que tinha sido
[Amazonas], estabelecer a época para plan- anteriormente previsto – foi, entretan-
tar, e arranjar e dirigir a força de trabalho to, mais tarde do que na costa do Peru.
levou à emergência de chefes e pajés com
autoridade para requerer obediência
Isso, é claro, está completamente de
(Meggers, 1984:643). acordo com nossas explanações teóricas.
No que tange aos fatores favorecendo o
Mas aqui eu acho que Meggers esco- desenvolvimento político, os vales da
lheu o caminho errado na encruzilhada. costa peruana têm a vantagem distinta
A mini-teoria encapsulada nessa passa- com relação ao Marajó por serem muito
gem parece ser voluntarista, e como tal mais agudamente circunscritos. O cres-
sofre dos defeitos de todas as teorias vo- cimento da pressão populacional levan-
luntaristas, como argumentei anterior- do eventualmente à emergência de ca-
mente. cicados teria ocorrido muito mais rapi-
A outra desvantagem da várzea, que damente lá. Sendo menos altamente cir-
vou examinar agora, é sua escassez. cunscrito, Marajó, por seu turno, teria
Desde que, em adição a ser louvada, a que esperar o efeito mais vagaroso da
várzea é também limitada quanto à sua concentração de recursos para dar ori-
ocorrência, uma vez que as populações gem à circunscrição social e a relativa
amazônicas tinham crescido a um certo pressão populacional: isso, em seu tur-
tamanho, a várzea veio a faltar. E não no, teria resultado em competição so-
havendo em quantidade suficiente, a bre a terra, com os resultados que de-
competição em torno dela iniciou-se. correm daí.
A cadeia de eventos que então se Não devemos perder de vista o fato,
desenvolveram, que culminou com a entretanto, que, sendo uma ilha, Marajó
emergência de cacicados, teve como um era mais circunscrita geograficamente do
de seus elos intermediários a concen- que muitas áreas da Amazônia. Conse-
tração de recursos. E esse fator, que teve qüentemente, não é surpresa – de fato,
um papel na formação de cacicados ao é teoricamente esperado – que o mais
longo do rio Amazonas, muito provavel- antigo cacicado até agora identificado na
mente jogou papel similar no Marajó. Amazônia deveria ter emergido na ilha
Meggers e Roosevelt dizem pouco sobre antes do que em áreas adjacentes.
esse ponto, mas se olharmos para um
mapa dos sítios Marajoara (por exem-
plo, Meggers & Evans, 1957:296;
O papel da guerra
Roosevelt, 1991:9), esses sítios parecem Dos diversos fatores contribuindo
agrupar-se mais densamente a leste do para a formação dos cacicados, o meca-
lago Arari, o maior lago na ilha. Seja qual nismo mais diretamente envolvido na
for a concentração de peixe hoje, pare- sobreposição da autonomia da aldeia, e

144 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

a criação de cacicados compostos por Mas ela não está certa sobre exata-
várias aldeias, foi a guerra. De fato, mente como a guerra funcionava nesse
Meggers tem consistentemente negado contexto. Então ela escreve: ... a histó-
à guerra um papel nesse processo evo- ria da guerra na Amazônia etnográfica e
lucionário. Ela falha em perceber a guer- pré-histórica e sua relação com padrões
ra, causada em grande parte pela pres- culturais e organizacionais é ainda obs-
são populacional, como a única maneira cura (Roosevelt, 1991:414).
pela qual a autonomia da aldeia poderia Referindo-se à ilha de Marajó espe-
ser transcendida. cificamente, Roosevelt diz que
Aqui e acolá, Meggers toca a bainha
um melhor entendimento da evidência para
da pressão populacional e seus efeitos, a guerra e sua história durante a pré-histó-
mas ela nunca veste a camiseta. Ainda ria Marajoara é necessária para elucidar seu
que algumas vezes reconheça a existên- possível papel na emergência, manutenção
cia de pressão populacional, ela falha em e declínio da cultura (Roosevelt, 1991:407).
perceber suas várias nuances. Então ela
De fato, parte desse “melhor enten-
escreve que
dimento” tem começado a emergir atra-
o deslocamento [de povos] exibidos nas vés de seu próprio trabalho na ilha. En-
seqüências em Marajó, no médio Orenoco, tre as feições arqueológicas que ela des-
e no baixo Orenoco implica em ‘pressão
cobriu em Teso dos Bichos estavam es-
populacional’, mas a pressão deriva antes
de uma diminuição nos recursos do que um truturas de terra que pareciam circun-
aumento em população (Meggers, dar o topo do teso (Roosevelt, 1991: 185,
1988a:291). 423). Essas estruturas monumentais, ela
diz, são estruturas de um tipo que nun-
Isso pode ser verdade, mas, de ma- ca foram reconhecidos, mapeados ou es-
neira geral, não importa. Pressão popu- cavados em sítios Marajoaras até agora
lacional é pressão populacional. Se cau-
(Roosevelt, 1991:422).
sado por um aumento de pessoas ou uma
diminuição de terras, uma vez que a ofer- Como são essas estruturas interpre-
ta de terra arável cai abaixo da deman- tadas? Das diversas funções que podem
da, o palco está armado para uma aqui- ter servido, Roosevelt (1991:401) diz,
sição forçada, pela expropriação de seus uma possibilidade é que as estruturas
vizinhos. eram fortificações construídas sobre as-
Roosevelt, por outro lado, aprecia sentamentos contemporâneos para aju-
grandemente o papel da guerra na evo- dar a repelir ataques militares. Mas fa-
lução política da Amazônia. Ela está ci- lando da possível importância da guerra
ente de que, durante o período do con- nas origens e crescimento de cacicados
tato inicial, os cacicados do baixo Ama- (Roosevelt, 1991:422) em Marajó, ela
zonas são claramente descritos como acredita que mais escavações são ne-
tendo paz interna e guerras ativas con- cessárias... para acessar a probabilida-
tra seus vizinhos por todos os lados... de de funções ... defensivas (Roosevelt,
(Roosevelt, 1991:441). E ela não se en- 1991:402).
vergonha de projetar esse estado de
Supondo que essas estruturas de ter-
coisas para tempos recuados:
ra eram muros defensivos – e é difícil
...sociedades complexas somente aparecem imaginar o que mais poderiam ter sido
na Amazônia em torno da era Cristã, quan- – sua evidência oferece algumas pistas
do o crescimento populacional tinha final-
importantes sobre a pré-história Mara-
mente enchido as vastas planícies inundá-
veis e criado o contexto para inevitável joara. Elas apontam claramente para a
conflito social (Roosevelt, 1991:436, ver presença de guerras recorrentes e inten-
também 114). sas na ilha. Nada menos do que isso le-

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 145


Carneiro, R. L.

varia as pessoas a investir tanto traba-


lho em tal projeto. Mas quando essa
O florescimento e a morte
guerra teve lugar? Roosevelt (1991:333) dos cacicados
data as estruturas em Teso dos Bichos à Ainda que não reconhecendo total-
subfase Pacoval, que iriam colocá-las em mente as causas dos processos que le-
torno de AD 800-1000. Entretanto, a varam à emergência dos cacicados ama-
guerra pode bem ter precedido e segui- zônicos, Meggers (1984:629) está cer-
do esse período. A questão prontamen- tamente ciente de suas conseqüências.
te surge, quantos tesos na ilha eram Portanto, ela escreve:
defendidos dessa forma? Roosevelt não Após o começo da era Cristã, o registro ar-
sabe, mas sugere que, ...a distribuição queológico torna-se mais completo e uma
de estruturas defensivas no território diferença em complexidade cultural entre
Marajoara poderia indicar se era guerra grupos residindo ao longo da várzea e aque-
interna ou externa (Roosevelt, 1991: les habitando a terra firme torna-se cada
vez mais aparente. Na época da conquista
407). européia, a primeira caracterizava-se por
Se muitos tesos eram defendidos por grandes assentamentos permanentes, es-
estruturas, como parece provável, isso tratificação social incipiente, divisão social
do trabalho, e chefes que detinham poder
claramente apontaria para guerra inter-
absoluto sobre seus súditos.
na, isso é guerra dentro da ilha. Isso,
por sua vez, fortemente sugere que pelo E sua descrição dos cacicados conti-
menos durante as fases Marajoaras mais nua como se segue:
antigas – a ilha era dividida em um nú- Estimativas da população dos assentamen-
mero de aldeias autônomas de tamanho tos ao longo da várzea varia de cerca de
médio a grande, ou talvez pequenos ca- 200 a muitos milhares. Apesar de paren-
cicados, que freqüentemente guerrea- tesco continuar a ser importante para re-
vam uns com os outros. Tal guerra po- gular muitos aspectos da vida social, era
suplementado pela estratificação e divisão
deria ser um resultado esperado do cres- do trabalho. Governantes e comuns eram
cimento populacional na ilha uma vez diferenciados; especialistas produziam ce-
que esse crescimento tenha produzido râmica e outros tipos de objetos, que era
uma carência de terra arável. trocados por alimentos. Prisioneiros toma-
dos na guerra não eram adotados, como
Durante sua história inicial, então, entre os grupos de terra firme, mas torna-
Marajoara poderia ser vista como abar- vam-se escravos. Religião era elaborada e
cando muitas aldeias independentes ou formalizada; ídolos mantidos em templos
cacicados guerreando entre eles por van- especiais e freqüentados por sacerdotes e
tratados com preces e oferendas (Meggers,
tagens ecológicas e ascendência políti- 1984:643).
ca. Se o processo algum dia culminou
na unificação política da ilha é, clara- Essas passagens, no entanto, repre-
mente, uma questão maior. E, como vi- sentam o nível máximo do reconheci-
mos, Roosevelt tem evitado bastante mento da existência de cacicados na
esse assunto. Teria que ter havido uma Amazônia por parte de Meggers. A par-
unificação política na ilha, então, para tir de então, uma reversão contínua des-
que Marajoara atingisse a escala de de- sa visão tem marcado seu pensamento,
senvolvimento que Roosevelt gostaria de uma reversão que tem levado, passo a
passo, de volta a algo aproximando suas
atribuir a ela. Somente então podería-
opiniões dos anos 1950. Enquanto
mos razoavelmente começar a pensar
Meggers aceitava, como tal, os relatos
sobre guerras externas, em que a socie- dos primeiros viajantes do Amazonas
dade Marajoara, agindo como uma uni- (Carvajal, Úrsua, Acuña, etc), que re-
dade, se lançaria contra algum outro portavam a existência de grandes e po-
cacicado no baixo Amazonas. derosos chefaturas ao longo de grandes

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A base ecológica dos cacicados amazônicos

extensões do rio, ela agora abertamen- Entretanto, se o lado aposto da Ama-


te as questiona (Meggers, 1992a: 203). zônia provou ser incapaz de sustentar
Dois fatores parecem estar por trás os cacicados, isso ainda deixa o Amazo-
desse desafio. Primeiro, no que tange a nas Central como um lar viável para sua
Marajoara, existe a evidência acumula- emergência e florescimento. E Meggers
da, já citada, de que o leste do Marajó (1971:121-149) havia descrito com al-
era terra firme e não várzea. E, em face gum detalhe considerável os cacicados
da baixa consideração que Meggers tem Omágua e Tapajós, que foram encontra-
pela capacidade de carga da terra firme, dos lá em tempo históricos. Recentemen-
ela está pronta para afirmar uma vez te, no entanto, Meggers mudou de rumo
mais que a cultura Marajoara deve ter e veio a questionar a existência de caci-
sido intrusiva em Marajó, e uma vez es- cados aqui também. Suas dúvidas são
tabelecida lá, procedeu a declinar por- baseadas em grande parte nos resulta-
dos das prospecções arqueológicas men-
que o habitat adotado não poderia su-
cionadas anteriormente, que, como te-
portá-la adequadamente. Então, falan-
mos visto, não encontraram nenhum sí-
do da tradição cerâmica policrômica, cuja
tio de assentamento grande que Meggers
presença é geralmente considerada di-
não interpretaria como caso de múlti-
agnóstica de culturas de nível cacicado,
plas ocupações sucessivas no mesmo
Meggers diz:
local antes que os remanescentes de um
Uma origem [para ela] fora da Amazônia único assentamento. Em função disso,
no noroeste da América do Sul, apoiada por ela é agora levada a escrever:
datações radiocarbônicas existentes, está
de acordo com a evidência para a ocorrên- Os dados ecológicos, etnográficos e arque-
cia generalizada de um nível de desenvol- ológicos estão em conflito com os relatos
vimento sociopolítico similar (por exemplo, etnohistóricos que têm sido a fonte primá-
cacicados), na área dos Andes e Circum- ria para a estimativa do tamanho da popu-
Caribenha. A dispersão parece ter sido rá- lação pré-colombiana. Esses descrevem
pida ao longo do baixo Amazonas e subin- assentamentos estendendo-se por léguas
do o rio Madeira, onde solos férteis de vár- ao longo das margens do Amazonas, orga-
zea e uma rica fauna aquática proporcio- nizados e províncias governadas por pode-
naram uma fonte de alimentos segura. Em rosos chefes. Tais descrições são também
Marajó, a fase Marajoara declina de uma difíceis de reconciliar com a topografia. Com
sociedade inicialmente estratificada para algumas notáveis exceções, os canais dos
uma não estratificada, como seria de se rios passam através da planície inundável,
esperar se fossem deslocados de uma re- fora da vista dos terraços ocupados hoje e
gião apta para cultivo intensivo para uma no passado ... [e] a localização favorecida
com potencial agrícola limitado... (Meggers, para assentamento permanece ao longo das
1987:158) margens não inundáveis de lagos, invisí-
veis do canal (Meggers, 1992a:203).
Mas Marajó não era a única área da
Amazônia onde cacicados introduzidos A última frase de Meggers significa
provaram serem efêmeros. Meggers con- que Orellana e outros antigos viajantes
tinua: navegando ao longo do canal principal
do Amazonas, não teriam visto grandes
A curta duração característica de grandes
assentamentos representando a tradição
assentamentos que devem ter existido
policrômica ao longo do Napo no oeste do nas vizinhanças, e que quaisquer rela-
Equador implica que, aqui também, o nível tos de tais assentamentos devem, por-
de complexidade cultural dos invasores ex- tanto, serem suspeitos. Meggers então
cedeu o que poderia ser sustentado pelos continua:
recursos de subsistência locais. Em ambas
as instâncias, a simplificação cultural pare- Apesar de grandes áreas das terras baixas
ce atribuível a inadequações inerentes no serem desconhecidas arqueologicamente,
ambiente local antes do que deterioração existe pouca razão para esperar que traba-
temporária (Meggers, 1987:158). lhos futuros irão alterar o quadro existente

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 147


Carneiro, R. L.

significativamente. A conclusão de que os ção por erosão ou deposição de lama; (3)


primeiros relatos visuais exageraram a den- sítios sobreviventes mais provavelmente
sidade populacional indígena parece inegá- estão em canais antigos e não ativos, tor-
vel (Meggers, 1992a:203). nando-os mais difíceis de serem encontra-
dos... (Meggers, 1984:628-629).
Mesmo mais recentemente, Meggers
(1992c:38) escreveu, de forma meio Dito o suficiente.
ambígua, que complexidade cultural Em seguida, vamos considerar as dú-
pode existir na ausência de organização vidas de Meggers sobre a precisão dos
hierárquica ..., como sugerindo que a relatos dos cronistas. Como Meggers
ornamentada cerâmica policrômica pre- (1991:198-199) escreveu, os primeiros
viamente tomada como indicativa de um europeus a explorarem a Amazônia re-
nível cultural do tipo cacicado pode não lataram grandes assentamentos ao lon-
necessariamente ser tal. O avanço téc- go da várzea e formas de organização
nico representado por essa cerâmica (ela social característica de cacicados. Logo,
agora pode estar expressando) poderia se os relatos desses exploradores são
ter sido obtida e mantida por uma soci- verdadeiros, não se questiona que o ní-
edade que não tivesse nem chefes su- vel cultural existente ao longo do Ama-
premos nem estratificação social. zonas no século XVI era muito maior do
Ainda que as passagens recém cita- que o nível geral da floresta tropical que
das podem não representar uma com- prevalece na Amazônia de hoje. Enquan-
pleta reversão por parte de Meggers das to os relatos dos cronistas se estendem
opiniões que ela expressou em seu arti- por centenas de anos, eles são consis-
go clássico de 1954, elas certamente tentes uns com os outros em reportadas
marcam um afastamento significativo do sociedades prontamente reconhecíveis
que ela estava dizendo de 1971 à meta- como cacicados.
de dos anos 1980. O que podemos dizer Para ser exato, aqui e ali, naquilo que
sobre essa manobra? os cronistas escreveram, existem pas-
Primeiramente, com relação à falta sagens que parecem ser exageros, ou
aparente de evidência arqueológica en- mesmo fabricações, como quando
contrada até agora para as grandes al- Carvajal relata que os espanhóis encon-
deias reportadas pelos primeiros cronis- traram mulheres guerreiras, as famosas
tas, me parece que tal evidência negati- “Amazonas”, que deram ao grande rio
va deve ser interpretada com cautela. seu nome. Mas em sua maior parte, es-
Nós podemos fazer melhor, de fato, do ses primeiros relatos surpreendem por
que prestar atenção aos próprios conse- terem um quê de verdade, e tendem a
lhos de Meggers, expressados anterior- corroborar uns com os outros. Além dis-
mente, sobre por que os sítios arqueo- so, ninguém até agora questionou sua
lógicos na Amazônia são tão difíceis de veracidade essencial. Na verdade, Me-
localizar: ggers não negou peremptoriamente a
Sítios cerâmicos são freqüentemente obs- veracidade desses relatos, e é necessá-
curecidos por vegetação, sedimentação, e rio a ela, eu penso, colocar-se precisa-
erosão. Dificuldades de acesso e a imensi- mente nessa posição. Deixando de lado
dade da região são fatores adicionais difi- o Marajó, que ela considera terra firme,
cultando a descoberta (Meggers,
deixemo-la falar somente do Amazonas
1991:195).
Central onde a várzea era indiscutivel-
Diversos fatores podem ser responsáveis mente presente. E então vamos deixá-
[para a ausência aparente de sítios]: (1) la escolher entre essas duas alternati-
grandes áreas da região permanecem des- vas: (1) cacicados poderiam e de fato
conhecidas arqueologicamente; (2) sítios ao emergiram de forma autóctone na Ama-
longo da várzea estão sujeitos a oblitera-
zônia central ou (b) cacicados não po-

148 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

deriam ter emergidos e sustentados ali, sem, cada um devia passar por severos
e relatos ao contrário são falsos. Vamos testes antes de assumirem seus respec-
esperar sua decisão. tivos postos (Whitehead, 1988:60-63).
Entre os caribes dos Llanos Venezue-
lanos, Whitehead (1988:61) nos conta
A emergência de cacicados que cada aldeia tinha um cacique e ... a
em uma perspectiva etno- honra poderia ... ser dada a um homem
histórica que era bravo na batalha ou que tinha
matada um animal temido ... Entretan-
Em alguns momentos nas páginas to, uma reputação por bravura não era
precedentes eu apontei os fatores que suficiente para obter o posto:
eu penso operaram na Amazônia para
o aspirante teria que suportar o teste de
dar origem aos cacicados. E, até certo
viver de mandioca e água por um mês, e
ponto, eu procurei indicar como eles inte- beber periodicamente grandes quantidades
ragiram para atingir seu feito. No en- de suco de tabaco. Se o candidato sobrevi-
tanto, quanto mais precisamente apon- via a esse processo, era nomeado ‘capitão’
tarmos a seqüência de passos pelos quais ... Entretanto, a severidade dessa iniciação
esse processo ocorreu, mais convincen- poderia ser diminuída se não se esperasse
que o capitão fosse também o chefe da
te nossa narrativa desse processo irá ser. guerra (Whitehead, 1988:61-62).
Ou, se isso é muito otimista, pelo me-
nos mais facilmente a teoria pode ser Quando uma expedição de guerra es-
desafiada e corrigida. De acordo com tava para ser realizada, diversas aldeias
isso, eu gostaria de considerar agora al- juntavam forças.
guma evidência etnohistórica que indi- Cordas com nós ou um arco era mandados
ca como esses fatídicos primeiros pas- a aldeias vizinhas e os guerreiros reunidos.
sos, que levaram das aldeias autônomas Entre esses parece que havia um grupo
aos cacicados, devem ter acontecido. definido de chefes de guerra, dentre os
quais o líder da expedição seria escolhido
Voltando a alguns dos trabalhos etno- (Whitehead, 1988:60-61).
históricos realizados recentemente na
Amazônia, nós podemos dizer que sus- Nesses grupos de guerreiros,
tentam algumas pistas sobre como a au- a liderança das... expedições de guerra pa-
tonomia das aldeias foi na verdade so- rece ser decidida seja pela concordância
brepujada e cacicados estabelecidos. com daqueles reunidos para aquele propó-
Estudos sobre os Caribes e Tupinambás sito ou pelo deferimento ao indivíduo que
tinha iniciado a empreitada, logo, claramen-
do século XVI são particularmente su- te, qualquer um dos indivíduos teria tido
gestivos a esse respeito. Eles nos mos- que demonstrar orgulho na guerra e a to-
tram sociedades que estavam, seja no mada de cativos para ser considerado para
limiar de tornarem-se cacicados, ou ti- tal papel (Whitehead, 1988:60).
nham na verdade cruzado esse limite.
Qual era o tamanho dessas expedi-
Olhando primeiramente para os Cari- ções de guerra? Os relatos antigos indi-
bes da costa e do interior da Guiana, o cam uma média em torno de 300 a 400
trabalho de Neil Whitehead (1988, 1990) guerreiros por expedição, sugerindo a
tem lançado nova luz na organização
Whitehead (1990:153) que alianças mi-
política entre essas sociedades bastante
litares temporárias abarcavam quatro ou
guerreiras. Algumas aldeias Caribe ti-
cinco aldeias. Ocasionalmente, então
nham dois chefes, um chefe da guerra e
uma força de 1.000 ou mais homens era
um chefe de paz, mas em outros os dois
liderada (Whitehead, 1988:61).
estavam diluídos no mesmo indivíduo.
Uma vez que em tempos de guerra es- Entretanto, a suprema autoridade
perava-se que ambos os chefes lutas- conferida para os comandantes milita-

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 149


Carneiro, R. L.

res de uma expedição de guerra não con- respeitado em todas as ilhas (apud Roth,
tinuava além do final das hostilidades, 1924:573).
apesar do chefe de guerra manter con- Em suma, então, cacicados tinham
siderável influência entre um número de já emergido pelo mesmo em algumas
aldeias relacionadas (Whitehead, 1988: ilhas das pequenas Antilhas, e esses ca-
63). Então era somente em tempos de cicados eram o resultado direto de um
conflito que os chefes de guerra tinham líder de guerra tendo obtido dominância
posição e especial precedência na piro- política sobre todas as aldeias da ilha.
ga [canoa] (Whitehead, 1988:62). Voltando agora aos Tupinambás da
Os Caribes do continente então nos costa brasileira, nós novamente encon-
mostram não mais do que primeiros pas- tramos o confuso quadro do desenvolvi-
sos em direção à formação dos cacica- mento político. Algumas aldeias eram li-
dos. Somente em tempos de guerra, e vres de subordinação, exceto durante
então somente temporariamente, era um tempos de guerra. Em certas áreas, no
homem capaz de exercer autoridade so- entanto, verdadeiros cacicados multi-al-
bre mais do que sua própria aldeia. No deias surgiram. Esse fato foi observado
entanto, nas pequenas Antilhas, a evo- tão cedo quanto 1948 por Alfred Métraux
lução política tinha ido além. Ajudado em seu artigo sobre os Tupinambás no
sem dúvida pela aguda circunscrição ge- Handbook of South American Indians. Lá,
ográfica que pequenas ilhas conferem, Métraux (1948:113) escreve: alguns
os Kalinago ou Caribes ilhéus tinham chefes estendem seu poder sobre um
avançado ao passo seguinte. Aqui, po- grande distrito e comandam de fato
derosos chefes de guerra tinham suce- muitas aldeias. Muitos amazonistas, en-
dido em estabelecer hegemonia sobre tão (incluindo esse), tendem a conside-
todas as aldeias da ilha. E essa autori- rar os Tupinambás como estando ao ní-
dade era evidentemente substancial. vel de aldeia autônoma (floresta tropi-
Então, de acordo com Padre Roquefort, cal).
na presença do cacique da ilha nenhum O fato é que existe evidência para
homem fala se ele não pergunta ou man- citar em ambos os lados. Pelo lado do
do-o fazê-lo (apud Roth, 1924:568). argumento de aldeia autônoma, pode-
Mas o processo de evolução política ríamos citar Gabriel Soares de Souza
tinha ido ainda mais longe do que isso. que, depois de descrever os poderes de
Durante expedições de larga escala, di- um chefe Tupinambá durante tempos de
versas ilhas poderiam unir suas forças e guerra, observou por contraste que, em
mandar uma imensa frota de canoas de tempos de paz cada pessoa faz o que
guerra para atacar seus inimigos. E para tem vontade (citado por Fernandes,
tal expedição militar, um dos vários che- 1963:329).
fes de guerra era escolhido como supre- Alguma evidência do outro lado do
mo comandante de toda a esquadra. caso tem sido recentemente citada por
Mesmo assim, o poder assim assumido, William Balée como parte de sua rein-
diferentemente do chefe da ilha, durava terpretação das causas da guerra Tupi-
somente pala duração da expedição. De nambá. Então Balée (1984:254-255) es-
qualquer maneira, enquanto observan- creve:
do que depois a guerra um Kallinago ou-
Os Tupis da costa ... tinham evoluído em
boutou, ou cacique principal, tinha ne-
cacicados em torno de 1500. Entre os fa-
nhuma autoridade, mas somente sobre lantes tupi Tamoios do Rio de Janeiro, o
sua própria ilha, Padre Roquefort adicio- cronista capuchinho Ives d’Evreux decla-
nou, verdade é que se ele tivesse se rou que ‘cada habitação (isto é, casa) tem
comportado de forma galante em sua seu chefe. Esses quatro chefes estão sob
empreitada ele seria sempre altamente as ordens do chefe da aldeia, que junta-

150 Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007


A base ecológica dos cacicados amazônicos

mente com aqueles e muitas vilas obede- sucessivamente vencido e incorporado


cem o grande chefe da província’. um número de aldeias vizinhas. Entre-
Essas diferenças em nível de organi- tanto, os dados sobre os Caribes e Tupi-
zação política eram aparentemente re- nambás que citei acima sugerem uma
gionais. No final, os Tupinambás esta- possibilidade diferente.
vam distribuídos ao longo de mais de Como temos visto, era a regra entre
2000 milhas de linha de costa, logo se os Caribes e os Tupinambás que diver-
esperava que variassem em sua estru- sas aldeias juntavam forças em tempos
tura política. Mas mesmo se nem todos de guerra. E então, para que seus esfor-
os Tupinambás tinham desenvolvido ca- ços militares fossem mais efetivos, era
cicados, é bastante evidente que alguns normal para eles selecionarem o guer-
tinham. E uma vez mais parece claro reiro mais capaz entre aqueles e colocá-
como água que a causa básica da agre- lo no comando de seu ataque. Esse líder
gação política supra-aldeia era militar. temporário era agraciado com poderes
Como os Caribes, os Tupinambás eram extraordinários, que terminavam quan-
bastante guerreiros. E, como na maioria do as hostilidades cessavam. Nesse pon-
das áreas onde guerra era freqüente e to, cada aldeia retornava à sua condição
intensa, alianças militares entre aldeias normal de autonomia política. Com so-
eram formadas, e guerreiros temidos mente um chefe de aldeia como líder.
eram selecionados para liderar suas for- Mas agora consideremos o seguinte
ças combinadas.
cenário. Suponhamos que um chefe es-
As guerras Tupinambás eram às ve- pecialmente poderoso e ambicioso, que
zes operações de larga escala, e chefes teria feito crescer seus poderes ainda
de guerra poderiam contar com muitos mais relutantemente depois de cada con-
guerreiros para liderar. Das estimativas flito, decidisse, depois de repetidos su-
dadas pelas fontes do século XVI como cessos, ter seu poder aumentado e en-
Lopes de Sousa, Léry, e Thevet, Balée corajado sua ambição a não ceder mais
(1984:254) calcula que as maiores ex- em seu poder. O que poderia ter aconte-
pedições militares poderiam comandar cido? Se ele pudesse fazer com que suas
entre 4000 e 12000 homens. E os che-
intenções vingassem – e teria sido um
fes de guerra que lideravam essas vas-
sério risco para qualquer um se opor a
tas expedições, homens cujos nomes
ele – ele poderia a partir de então se
tem chegado a nós, como Cunhambebe,
tornar o primeiro chefe supremo da re-
Japí-Açú e Abat-Pocanga, ganharam um
gião, e as aldeias sob suas ordens o pri-
reconhecimento permanente que esten-
meiro cacicado.
deu-se muitas milhas além das frontei-
ras de suas próprias aldeias (Fernandes, A evidência é ainda insuficiente para
1963:329). Logo, se algum desses líde- permitir uma clara escolha entre esses
res não se tornou de fato o chefe supre- dois caminhos alternativos. E nós pare-
mo permanente de muitas aldeias adja- cemos não ter nenhum registro de que
centes, ele certamente estaria no limiar alguém em alguma instância verdadei-
de tornar-se. ramente observou o “ponto crítico” em
A questão ainda permanece, no en- que as aldeias autônomas foram abrup-
tanto, sobre como a subordinação de um tamente transformadas em cacicado.
número de aldeias previamente autôno- Mas a evidência que eu tenho me inclina
mas a um homem – a assinatura do ca- mais e mais em direção a aceitar o últi-
cicado – em verdade acontece. Até re- mo caminho em direção aos cacicados
centemente, minha suposição tinha sido como o mais provável. Independente dos
de que tal subordinação tinha resultado resultados dessa questão, então nossa
de que o chefe mais forte na região teria pesquisa sobre os dados etnohistóricos

Revista de Arqueologia, 20: 117-154, 2007 151


Carneiro, R. L.

da Amazônia tem ao menos nos levado cia de opiniões sobre a questão dos ca-
a dirigir nossa atenção a uma questão cicados amazônicos. Para falar a verda-
maior que tinha, previamente, dificil- de, todas as linhas ainda não se encon-
mente sido colocada. traram, mas os dados da arqueologia,
Em resumo, eu tentei nesse artigo etnografia e etnohistória acumulam, e
traçar a história e teorias propostas para enquanto os teóricos continuam a apa-
dar conta da presença de cacicados na rar a arestas das explanações uns dos
Amazônia. Além disso, eu apresentei, outros, talvez um consenso final irá
defendi e melhorei minha própria teo- eventualmente surgir. Isso, ao menos, é
ria. Eu acredito que nos últimos anos o objetivo que nós todos deveríamos
pode-se discernir uma certa convergên- estar perseguindo.

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