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MALDITA COMIDA!
Um estudo sobre comunidades virtuais de anoréxicas e
bulímicas
Jane Lemos ∗
RESUMO:
Trata-se de um estudo psicanalítico sobre a momentosa questão da anorexia desenvolvida
ideologicamente entre os jovens, com o uso da internet. Baseado em exemplificações clínicas, mostra
a questão do gozo e do virtual como real, para tratar do vazio que está no virtual. Termina com
observações sobre a comunidade de 1638 membros que deu o título ao texto.
Anas e Mias compartilham, em seus diários, dietas para emagrecer conhecidas como no food e truques
para “miar”, isto é, vomitar, sem que a família perceba. Nas mensagens postadas no fórum da
comunidade Eu tenho bulimia, por exemplo, encontramos “dicas para miar melhor”, do tipo:
Use marcadores, como Doritos, antes das refeições, quando você ver o laranjado já sabe que
tudo saiu; [...] Depois de vomitar, não escove seus dentes, alem dos acidos, a pasta de dente
pode danificar ainda mais o esmalte dos seus dentes, enxague apenas com água sua boca; [...]
qd for miar...ligue o chuveiro para abaixar o som das miadas e tome banho em seguida, e leve
o rádio para o banheiro...
Elas também evidenciam sua demanda de amor em torno do que dizem das relações familiares – a
mãe que não dá atenção ou prefere outro filho, a mãe que vigia, pega no pé, sempre a mãe. O pai é
ausente nesses relatos. Tendo em celebridades do mundo da moda os seus símbolos e o
sustentáculo ao discurso do corpo perfeito, são eleitos parâmetros de peso que conduzem
progressivamente à morte, ao ansiado limite pele e osso. O limite da recusa à demanda do Outro.
Assim, desafiam a morte arriscando o corpo para barrar o gozo. Em outra comunidade, Minha
obsessão [anna/mia], há no fórum o seguinte texto: “Angélica tem ana? (...) o q será que ela fez para
secar tão rápido depois da gravidez? Adriane Galisteu perdeu 11 kg em 1 semana! Se elas podem tb
podemos!!!”. Nessa busca do corpo perfeito, fazem circular pelos blogs e comunidades fotos de
editoriais de moda com modelos anoréxicas, normalmente acompanhando as fotos por frases como
“perfeição”, “chegarei lá”, etc.
Várias tentativas foram e estão sendo empreendidas para censurar a criação de sites com esse perfil
e alguns tiveram mesmo que sair do ar, sob o argumento de que incitavam à anorexia e à bulimia
entre adolescentes. Fabián Schejtman chama a atenção para a ingenuidade de se pretender, pela
força da lei, controlar esse modo de gozo, e exemplifica com a lei que obriga as confecções femininas
a dispor de todos os tamanhos de roupa. A estratégia de marketing dessas marcas consiste em “não
ter tamanhos grandes, isto é, se propõe uma roupa para as que têm um corpo fálico delgado”, diz
Fabián. 1 E acrescenta:
O virtual é real
Tomando-se o real enquanto presença dentro de um espaço e tempo, temos que o virtual desliza
numa espécie de co-presença desterritorializada ou no campo das representações. Freqüentemente
o virtual é associado à irrealidade ou ao imaginário, enquanto a realidade seria a presença tangível.
Ou se é real ou virtual. O filósofo Pierre Lévy, 3 no entanto, em seu livro Cibercultura, insiste na não-
oposição dos conceitos. A virtualidade seria um modo da realidade, existindo em potência, sem estar
presente. O outro modo seria a atualidade, compreendendo o atual como um campo nunca
completamente predeterminado e que possibilita algo da invenção. Uma entidade virtual, um
significante, do ponto de vista acústico e semântico, passa por atualizações diversas e particulares
abertas ao imprevisto. O virtual multiplica as oportunidades de atualização do real, diz Lévy. 4
A essência do que veio a ser chamado cibercultura é, a partir dessas reflexões sobre o virtual, a não-
totalização. Uma universalidade de interconexões que se amplia e, ao fazer isso, menos se torna
totalizável. Ao não possuir centro ou linha diretriz, constitui-se um “vazio, sem conteúdo particular. Ou
antes, ele os aceita todos”. 5 Estrutura labiríntica digna de Jorge Luis Borges, que em Ficções já
preconizava a livre circulação de textos, sem autoria, e o jogar com a identidade. Aqui vale contrapor
a modernidade à dita pós-modernidade quanto a um projeto totalizante refletido no discurso das
religiões universalistas, por exemplo. O autor da palavra revelada é a fonte da autoridade, o pai-
norma. O sentido aqui é congelado, descontextualizado. No que seria o projeto pós-moderno, as
grandes narrativas dão lugar ao contexto, ao quintal. Agora, é do quintal para o mundo, é o gozo do
suposto “particular”, gozo do Um. Os diários virtuais ou blogs, assim como as comunidades, pipocam
nos furos desse universal que se pretendia total.
O virtual é vazio
Voltando ao vazio, gostaria de fazer algumas proposições a partir da idéia de que o virtual articula-se
à paixão pelo vazio num gozo sem limite do sintoma. Pierre Lévy aponta que o virtual é vazio e por
isso aceita todos os conteúdos. Heidegger dá o exemplo da jarra: quando enchemos completamente
uma jarra, o líquido flui na jarra vazia. O vazio é o que acolhe. 8 É desse acolhimento que
possivelmente se trata no ciberespaço povoado por essas comunidades. O acolhimento de um gozo
que não se esgota; tanto o gozo não se esgota quanto o vazio é reinventado sem limite. Um vazio
inominável e narcotizado. Massimo Recalcati vai dizer que
a clínica dos novos sintomas é radicalmente uma clínica do vazio [...] Não é o sintoma como
satisfação clandestina do desejo inconsciente, como mensagem cifrada e lugar inconsciente do
gozo, porém a experiência de um vazio que aparece dissociado da falta [...] expressão de uma
dispersão do sujeito, de uma inconsistência radical do mesmo. 9
Com Recalcati, podemos propor que essa dispersão do sujeito é como estar à deriva no virtual. Uma
deriva que é sem-limite do gozo, mas também, e talvez, um modo de “safar-se da demanda asfixiante
do Outro”. 10 Aqui caberia uma articulação entre falta, vazio e nada. Mas por hora pinçaremos apenas
o nada da anorexia, o comer nada como “rechaço à demanda do Outro para defender o desejo”, 11
isso quando não se trata da nadificação do corpo mesmo, da redução do desejo a nada. Comer nada,
deslizar no vazio...
todos que convivem com TAs (no kso ana e mia) e tentam lidar com isso da melhor maneira
possível. rs. Esta comuna é para trocar idéias e interagir, sem julgar. É para você que adora
ossos, toma anfetas, laxantes, chás, faz NF ou LF, acredita que a "comida é inimiga da
perfeição" [...]
Em Maldita Comida, outra comunidade de 1.683 membros, a descrição diz que “Se vc non é magra
vc non é atraente [...]; Vc deve contar suas calorias; O que a mídia diz é o mais importante; Sendo
magra e non comendo, são as coisas q irão lhe trazer poder e sucesso!”. Ainda pensando o desejo
enquanto libido, encontramos relatos de relacionamentos nos quais o sexo é visto como uma forma
de queimar calorias. Isto é, a recusa à comida de alguma maneira associa-se à recusa à parceria
amorosa, o tal “curto-circuito” de que falamos inicialmente. Sobre isso é ilustrativo o que escreve
Vivaanna em seu blog Não Perturbe Tenho Anna:
Perdi meu namorado por causa dos meus ossos...preferi meus ossos ao meu
namorado...sempre me falaram homem não gosta de ossos...tudo bem acho que nem gosto de
homem mesmo!Homens não sabem fazer uma mulher feliz por muito tempo!!
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman faz uma releitura da contemporaneidade em Amor líquido.
Para ele, o homem de hoje é o homem sem vínculos, que, por isso mesmo, precisa conectar-se.
Porém essas conexões estabelecidas por iniciativa própria, esses “relacionamentos de bolso”, não
possuem o estatuto da permanência. A hipótese que este texto levanta é que essa fragilidade de
laços, essa precariedade, é propriamente o que favorece a proliferação de comunidades virtuais de
sintoma social na época do Outro que não existe. A velocidade das conexões e desconexões também
tem seu lugar nesse gozo. “Semear, cultivar e alimentar o desejo leva tempo (um tempo
insuportavelmente prolongado para os padrões de uma cultura que tem pavor em postergar,
preferindo a ‘satisfação instantânea’)”, 12 diz Bauman. Em outra obra sua intitulada Comunidade,
Bauman sustenta que “comunidade é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido”. 13 Mas há um
preço a pagar por esse pertencimento, o de uma certa autonomia e identidade. Aqui é interessante
observar e também contrapor as comunidades do Orkut aos blogs. Enquanto as primeiras revelam-se
predominantemente como ajuntamento de membros dentro de regras definidas, os blogs são mais
interativos. As seções de comentários às mensagens postadas em blogs têm funcionado como
“comunidades” – há os comentários relativos aos textos e os comentários dos comentários. Isso sem
contar que muitos dos visitantes são freqüentadores assíduos.
O ciberespaço modela o vazio, à semelhança da jarra de Heidegger. E cada vez que esse espaço é
percorrido, à deriva ou não, há um remodelamento contingencial desse vazio. O espaço virtual é
fluido, contingente, mutável, proporciona um deslizamento que escapa ao todo. Como o dispositivo
que rege a cibercultura é a interconexão, considerando a não-totalização e a descontinuidade, temos
que esse fluir à deriva conduz a uma quebra do sentido, ao sem-sentido, mas também a um sem-
limite voraz, ao sem-limite do gozo do sintoma, do gozo do Um.
Para concluir, uma mensagem postada por Mickaella Ossos e Canela no seu blog em 22 de agosto
de 2006:
∗
Jane Lemos é jornalista e faz formação em psicanálise no Instituto de Psicanálise da Bahia. O texto é parte da
pesquisa de Especialização em Teoria da Psicanálise de Orientação Lacaniana, pela Escola Bahiana de Medicina
e Saúde Pública.
1
SCHEIJTMAN, Fabián et al. Anorexia y bulimia. Síntomas actuales de lo femenino. Buenos Aires: Producción
Editorial, 2003. (Serie del Bucle). p. 104.
2
Idem, ibidem.
3
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2000. (Coleção Trans).
p. 47-48.
4
Idem, p. 88.
5
Idem, p. 111.
6
LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Trad. de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1996.
7
VIGANÒ, Carlo. Anorexia, bulimia. Conferência proferida em Belo Horizonte, ago. 1999. Transcrição de
Célia Salles. In: Transtornos alimentares: anorexia e bulimia. v. 2. 2005. Brochura não publicada.
8
HEIDEGGER, Martin. La cosa. In: ___. El ser y el tiempo. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1951.
9
RECALCATI, Massimo. Clínica del vacío. Anorexias, dependencias, psicosis. Madrid: Editorial Síntesis,
2003. p. 13.
10
Idem, p. 22-23.
11
Idem, p. 26-27.
12
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. de Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 26.
13
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Trad. de Plínio Dentzien. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p. 9.