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Uma Decisão

DELICADA
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
www.galenoalvarenga.com.br

Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo


Galeno Alvarenga. Disponibilizamos também a versão impressa, que
pode ser adquirida através do site do autor.

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Copyright © by GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA

Supervisão Gráfica
Sofia Lopes

Imagens capa e contracapa


Galeno Procópio M. Alvarenga

Diagramação
Marcos de Oliveira Lara

Capa
Max Guedes

Revisão
Maria Isabel da Silva Lopes

Impressão
Sografe

Contato c/ o Autor
galenoalvarenga@terra.com.br
www.galenoalvarenga.com.br

Alvarenga, Galeno Procópio de Mendonça


A473 Uma decisão delicada / Galeno Procópio
de Mendonça Alvarenga. – Belo Horizonte:
Ed. do autor, 2009.
178p.
ISBN: 978-85-907543-8-1

1.Literatura brasileira – Romance. I.Título.

CDD: B869.35
CDU: 869.0(81)-31

Elaborado por:
Maria Aparecida Costa Duarte
CRB/6-1047

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Amoedo,
Você foi embora e levou consigo
o encantamento da Fazenda do
Pau-D’Alho.

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SUMÁRIO

1º Capítulo
Donana perde a filha: nasce Clara ................................... 9
2º Capítulo
Desenvolvimento de Clara: um susto............................. 27
3º Capítulo
Crescimento de Clara: Mozart e a Academia.................. 53
4º Capítulo
Os diferentes irmãos: Pedro e Gabriel............................ 63
5º Capítulo
O isolamento de Clara e José Alencar............................ 71
6º Capítulo
José Alencar faz uma proposta a Mozart ....................... 75
7º Capítulo
O casamento: José Alencar faz visitas a Clara................. 93
8º Capítulo
Primeiros desencontros do casal..................................... 99
9º Capítulo
Uma Vida Inútil: Dr. Milton....................................... 105
10º Capítulo
Nascimento de Plínio ................................................. 117
11º Capítulo
Aparece Piquira, pai de Clara....................................... 121

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12º Capítulo
A caçada de Piquira..................................................... 135
13º Capítulo
O tempo passa: decifrando o mistério.......................... 145
14º Capítulo
A revelação: suspeita e confirmação............................. 151
15º Capítulo
Encontro do pai e do filho: a confissão........................ 159

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1º Capítulo

Donana perde a filha: nasce Clara

O sonho de Donana, mulher do fazendeiro José de


Alencar e mãe de Gabriel e Pedro, era ter uma filha. Donana,
após procurar diversos tratamentos médicos para engravi-
dar, quando já estava quase desistindo de tentar ter uma fi-
lha, percebeu, com imensa alegria, que estava grávida. José
de Alencar, menos emocionado com a novidade, tinha por
hábito tratar os filhos e a mulher com os mesmos cuidados e
dedicação com que tratava seus animais de estimação.
Lamentavelmente, contrariando os sonhos e planos
de Donana, durante o sexto mês de gravidez, após ter sido
acometida por uma grave infecção urinária causadora de
repercussões em todo o organismo, ela perdeu a futura
criança que estava sendo gerada, apesar dos cuidados to-
mados: repouso e superalimentação, visando proteger sua
saúde e a do futuro bebê. Donana abortou aquela que seria
sua primeira filha e perdeu também seu útero.

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Foi um período difícil para toda a família. Donana,
frustrada, passava a maior parte do tempo chorando em
seu quarto. Ela, após a esperada e sofrida gravidez, não foi
mais a mesma: tornou-se irritadiça, lenta para falar e agir
e também cada vez mais indiferente aos acontecimentos
existentes à sua volta.
Para amenizar o sofrimento que não tinha fim, seu
obstetra, um grande conhecedor do comportamento de
suas clientes, após fazer um parto normal do qual nascera
uma bela e saudável menina, ofereceu ao casal a adoção da
criança recém-nascida.
A mãe biológica da menina nem a desejava e nem ti-
nha condições de criá-la. Esta mãe não queria ter mais um
filho homem, e também, receava ter que criar uma menina,
pois estas, segundo seus conhecimentos, dão muito mais
trabalho que os homens.
Dominada pelas pressões do marido, Donana, ainda
muito abatida com a perda da filha, contrariada acabou por
aceitar a oferta do médico. Foi assim que a menina Clara,
cinco dias após nascer, foi morar com a família do pode-
roso fazendeiro da cidade de Cachoeira do Assento. Cla-
ra tornou-se a primeira menina do casal, a nova irmã de
Pedro e Gabriel. Clara encontrou o que sua mãe biológica
desejava: morar com uma família que pudesse dar-lhe uma
boa assistência e educação.
O médico que ofereceu a adoção não teve mais notícias
da mãe e do pai da menina e também evitou falar acerca de sua
história. Clara, por sua vez, foi informada ainda muito cedo
que era uma filha criada pelo casal, que não nasceu deles.

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Ela também não ficou sabendo e nem se interessou
em conhecer como e os motivos da adoção.
A origem verdadeira da menina Clara era incerta.
Constava na cidade que o pai da criança recém-nascida de-
saparecera e fugira com outra mulher, logo após sua esposa
ter ficado grávida. A mãe verdadeira, ou biológica, que não
residia na cidade, somente era conhecida do médico que
fez o parto e que tornou possível a adoção. Por tudo isso
ninguém soube, e nem mesmo se interessou em descobrir,
quem era o pai e a mãe da criança.
Apesar de todos os fatos mostrarem claramente que a
Clara era uma filha adotiva, para não fugirem dos hábitos
existentes na cidade, de desconfiarem dos relatos, e da ne-
cessidade de darem outras interpretações aos acontecimen-
tos, alguns dos residentes de Cachoeira do Assento fizeram
seus comentários e interpretações singulares e maliciosas.
O boato mais divulgado entre os moradores foi o de que
a menina seria fruto das relações extraconjugais de José
Alencar com uma moça muito nova, bonita mas abobada,
que morava nas proximidades de sua fazenda. Acontece
que essa moça que ficou grávida vivia com os pais num
casebre, nas terras da fazenda de um vizinho de José Alen-
car. Além disso, ela, após o nascimento de sua filha, doou
a criança para ser criada por um casal sem filhos residente
em outra cidade. Na realidade José Alencar mal conhecia
os pais e muito menos a moça, de modo que quando os
maledicentes insinuavam ser ele o pai de Clara, ria debo-
chada e tranquilamente, não gastando tempo para fazer
sua defesa.

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Como seu irmão Domingos, José Alencar sempre ti-
vera fama de ser um contumaz conquistador. Contavam-se
muitos casos acerca de suas conquistas em Cachoeira do
Assento. Na cidade, frequentemente, quando uma mulher
se separava do marido, o nome de José Alencar sempre
era imaginado como sendo um dos possíveis provocado-
res da separação. Verdade ou não, com o passar dos anos
as histórias a seu respeito relacionadas a conquistas foram
diminuindo. Seria devido à idade? Ou haveria outros mo-
tivos?
O certo é que José Alencar, mesmo envelhecendo,
trabalhava cada vez mais e suportava bem sua solidão. Ele
era visto na cidade quando necessitava ir a um banco ou a
alguma loja fazer compras e nessas ocasiões raramente pa-
rava, por poucos instantes, com um ou outro. Desse modo
seu fama de conquistador foi declinando, praticamente
desaparecendo das conversas próprias dos mexericos.

Clara e seu pai

Logo que foi adotada pela família, José de Alencar


não demonstrou maior entusiasmo pela menina, pois esta
passava grande parte do tempo dormindo, chorando e
quando estava acordada, era carregada para um lado ou
outro pela mãe, pelos irmãos ou pelos amigos destes.
Só muito lentamente o pai foi se aproximando e acos-
tumando com a nova habitante da fazenda. Quando ele
entrava no quarto onde a menina estava num berço antigo,
instintivamente eles se olhavam e sorriam.

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Tendo já criado dois filhos e principalmente treinado
a lidar com animais, não foi difícil para o fazendeiro tro-
car mensagens amistosas através de gestos com a pequena
Clara.
Ora era um movimento de olhos, ora um som que fa-
zia com as mãos ou boca, às vezes o balançar de um brin-
quedo, a mudança de expressão facial, tudo isso provocava
a atenção da menina e ao mesmo tempo a alegria do pai
pelo seu êxito com sua estratégia.
Desse modo José Alencar foi observando o desenvol-
vimento da filha, passo a passo, acostumado que era a ob-
servar o crescimento de uma ave, boi, cavalo ou de um pé
de café ou de cana. Treinado desde criança a perceber as
minúcias do desenvolvimento dos animais ou das plantas,
após a chegada de Clara sua curiosidade foi se concentran-
do, cada dia mais, no crescimento da filha.
Devido a essa sua peculiaridade, aumentava seu de-
sejo de ver a filha brincar, andar, falar, comer e outras coisas
mais. Assim o pai passou a passear com a menina em seus
braços, procurando constantemente estimulá-la, enquanto
observava suas mudanças em relação a ele e aos aconte-
cimentos existentes em seu redor. Calmamente, mostrava
para a filha os animais que transitavam em volta da casa
da fazenda.
Clara, curiosa, fitava ora um ora outro bezerro cor-
rendo de um lado, alguns mamando no peito da vaca, as
galinhas ciscando e procurando algum alimento, o galo
cantando, os cachorros dormindo ou latindo para algum
estranho que chegava.

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O pai, carinhosamente, mostrava e chamava a atenção
de Clara para cada fato existente: o berro de algum animal, o
canto do pássaro, o vôo dos pombos, a chuva que caía e a be-
leza da tempestade com seus raios, relâmpagos e trovoadas.
José de Alencar ia descrevendo a tempestade com raios
e trovões com uma voz doce e calma. Ele focalizava a beleza
da chuva, o movimento da água e não os perigos possíveis
de existirem. José de Alencar, aos poucos, foi incentivando-
a a deixar que alguns pingos de chuva caíssem em suas pe-
quenas mãos e se deliciasse com isto. Às vezes caminhava
com Clara até ao fogão de lenha, onde se viam labaredas
vermelhas no fundo das panelas de ferro. Deixava que ela
sentisse o calor provocado pelo fogo, visse as batatas fritas
na panela de gordura fervendo e, depois de mornas, fossem
provadas por ela. Ao passar no terreiro diante da galinha
seguida por inúmeros pintinhos, ou da cadela com seus fi-
lhotes, ainda muito pequenos, José Alencar pegava um ou
outro desses animais ainda muito fracos e incentivava a fi-
lha para que ela sentisse o prazer do contato com suas penas
ou pelos e não que fugisse deles com medo.
O fazendeiro, sendo um homem que vivia naquele
meio e que amava o que fazia, ia progressivamente passan-
do para a filha seus conhecimentos, seus valores, alegrias e
prazeres. Ele procurava entusiasmá-la a gostar dos animais
e dos vegetais e, ao mesmo tempo, gostar dela mesma, ao
estar carregada de prazeres diante do mostrado. Junto ao
pai, Clara sentia prazer vendo o fogo, a água, a terra cul-
tivada, os animais que nela viviam e que dela dependiam:
tudo isso estimulava a mente da filha.

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O contato do pai com Clara tinha, talvez sem sua
consciência, o objetivo de agradá-la, fazê-la feliz diante da
vida na fazenda.

Clara e sua mãe

Diante de Clara, Donana exibia uma conduta carre-


gada de uma mistura de afetos positivos - muita alegria e
carinho - mas ao mesmo tempo demonstrava, de quando
em quando, tristeza e mesmo raiva. Essa dupla emoção,
positiva e negativa, talvez possa ser compreendida pelas
recordações dolorosas que a presença de Clara lhe trazia
constantemente ao compará-la com a filha que não teve. Os
sentimentos contraditórios de Donana emergiam quando
olhava, ouvia ou carregava o corpo da filha adotiva. Assim
as duas se relacionavam: a presença bela e alegre da criança
de um lado, e a raiva e tristeza misturadas à satisfação do
contato, de outro.
Os encontros entre mãe e filha provocavam em Donana
crises, às vezes passageiras, às vezes demoradas, de mal-es-
tar, desânimo, inquietação, bem como o de afastá-la de seus
olhos. Donana, às vezes, parecia não enxergar Clara diante
dela, via a filha morta após seis meses de vida intra-uterina.
Era frequente observar Clara, com seus pequenos
olhos claros e vivos, sorrir para a mãe. Demonstrando uma
grande necessidade de carinho e amor, muitas vezes Clara
caminhava em direção a Donana, tentando se aconchegar no
colo da mãe, entretanto, nesse instante, terríveis recordações
acerca da gravidez e do aborto apareciam intensamente.

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Diante dessas imagens incômodas que atingiam a
consciência da mãe quando era abraçada pela filha, Dona-
na afastava a menina de seu corpo, sentindo-se como se es-
tivesse diante de algo repulsivo. Nesses instantes, frustra-
da sem compreender a conduta da mãe, Clara se afastava
confusa. Em seguida Donana, arrependida do que fizera,
tinha sua mente invadida por uma penetrante culpa. Ten-
tando compensar seu ato irracional, virava-se para Clara,
a agarrava com força e a abraçava exageradamente de um
modo estranho e não-natural, consequência de seu amor
e raiva. Donana não conseguia dar-lhe um abraço calmo
e terno, ao contrário, o contato físico era tenso e nervoso,
como se estivesse cumprindo uma obrigação desagradável.
O corpinho de Clara, capaz de detectar a ambivalência da
mãe, não respondia ao abraço como um carinho calmo, re-
laxante e protetor. A menina notava, intuitiva e corporal-
mente, que diante da mãe ela não estava protegida, pois
aquele não era um colo amigo incondicional. Era assim que
a filha que morrera ainda no útero, portanto, antes de nas-
cer, perseguia e dominava para sempre a mente de Dona-
na, fazendo-a escrava dessa imagem trágica e dolorosa.
Por tudo isso, a filha adotada e escolhida para preen-
cher a vida de Donana e também combater o sofrimento e
a tristeza que abateram a mãe, capaz de dar origem a uma
possível ligação afetuosa, poderosa e duradoura, transfor-
mou-se em símbolo da desgraça e da dor que habitavam
a memória da gravidez, da infecção e da perda da filha. O
que era para ser um remédio, tornou-se um veneno lento e
devastador.

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Com o passar do tempo, a presença da menina des-
pertava cada vez mais na mente da mãe as tristes memórias
da filha que não nasceu. Dezenas, centenas ou milhares de
vezes, essas lembranças automaticamente, indo contra seus
desejos conscientes, invadiam sua cabeça, carregando lem-
branças antes neutras ou até agradáveis, mas que aos poucos
foram contaminadas por recordações e imagens ligadas ao
sofrimento e à tristeza, emoções negativas ligadas à perda.
Desse modo, com o tempo, todos os cômodos da
casa, os móveis, os alimentos, e até a cor da parede foram
adquirindo tonalidades afetivas relacionadas à dor e deses-
perança. Assim é que o quarto onde Clara dormia, as rou-
pas que a menina ou a própria Donana vestiam, tomavam
ou adquiriam novas colorações negativas, passavam a ser
estímulos desagradáveis.
Se por acaso Clara vestisse um vestido azul e Donana
fosse abraçá-la e nesse mesmo instante se sentisse mal por
lembrar-se da morte da filha, o vestido azul de Clara adqui-
ria uma tonalidade emocional negativa ou desagradável,
pois a emoção ruim de Donana surgira associada ao vestido
usado. Se no dia seguinte o vestido fosse colocado para ser
lavado, Donana voltava a se sentir mal, pois a visão da ves-
timenta azul provocava a entrada em sua consciência das
mesmas emoções sentidas durante o abraço ambivalente.
Da mesma forma Donana sofria ao ouvir Clara canta-
rolar e dançar ao som de uma música infantil qualquer.
Ao ouvir Clara cantar uma música, nesse momento
era frequente Donana sentir a tristeza e raiva da perda e
então a música ficaria eternamente ligada a um sentimento

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ruim. Para completar, a música que Donana gostava, mu-
dava a tonalidade afetiva, passando a lhe causar mal-estar:
tristeza, raiva, bem como outras emoções desagradáveis.
Assim a presença de Clara foi contaminando negativamen-
te cada um dos objetos da casa, as músicas, as roupas, di-
versões e tudo o mais. Donana passou a morar no próprio
inferno, pois cada estímulo que antes era neutro ou mesmo
agradável, metamorfoseou-se em percepções de sofrimen-
to e desespero. Como era de se esperar, Clara, sem saber e
sem querer, tornou-se um potente desencadeador dos so-
frimentos de Donana.
Donana percebia, sem entender, por que tinha aversão
e fobia à filha. Algumas vezes colocava a culpa de seus so-
frimentos em Clara, outras vezes se vigiava e tentava, quase
sempre sem sucesso, não demonstrar hostilidade à menina,
quando essa não tinha a menor participação direta na in-
felicidade da mãe. Quando Donana se preparava para dar
um abraço à filha e se nesse instante ela se sentisse irritada
e tensa, lutava entre duas forças antagônicas: ser agradável
e carinhosa ou ao contrário, hostil e desagradável. Disfar-
çadamente, quase sempre evitava aproximar-se da filha,
a responsável, sem o desejar, pelos conflitos da mãe. Mas
algumas vezes, sem controle sobre seus próprios sentimen-
tos, Donana inventava inconscientemente algum motivo ir-
risório para acusar e agredir a filha durante um abraço:
— Ai! Você está me apertando. Tá doendo! Além dis-
so, sua boca tá cheia de cuspe, sujando minha cara toda.
Clara, confusa, sem saber o que fazer, se afastava en-
vergonhada, tentando compreender o que fizera de errado,

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pois a mãe que a criticava, havia aberto os braços para que
ela se aproximasse e desse o abraço e o beijo. Aproximar-se
ou afastar-se, gostar ou não gostar, eis a questão que Clara
enfrentava diante de Donana, que ora a tratava com cari-
nho, ora de forma agressiva.
Aos poucos, a tensão existente dentro do organismo
de Donana ia sendo inoculada e transferida para a mente
ainda mole e plástica de Clara, dominando-a mais forte-
mente quando a mãe estava diante de seus olhos, ou quan-
do a voz dela era ouvida. Aos poucos, Clara foi aprendendo,
através dos contatos com a mãe e também de suas condutas
negativas (nervosismo, tristeza, inferioridade, impotência)
na comparação que fazia de si perante os outros. A meni-
na estava sendo treinada pela mãe não só a se valorizar
negativamente, como também para rejeitar as outras pes-
soas. Enquanto Donana adoecia, iam piorando também as
relações entre ela e a filha que, consequentemente, adoecia
também, pois Clara estava mergulhado até a alma vinte e
quatro horas por dia nas suas relações com a mãe. Portanto,
enquanto com a mãe Clara sentia medo e desprazer, com o
pai ocorria o oposto.

Desenvolvimento de Clara: dois grupos se formam

As ideias transmitidas pela mãe e pelo pai invadi-


ram, habitaram e dominaram a mente de Clara. A mãe
mostrando as desgraças da vida, o sofrimento e desânimo
e o pai, por sua vez, estimulando-a a viver, agir, a relacio-
nar-se com o meio ambiente externo. Esses dois mundos,

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ora agiam de forma cooperativa, ora entravam em atrito,
fornecendo orientações diferentes e mesmo antagônicas,
com respeito à realidade vivida e também aos planos e às
decisões a serem tomadas.
Cada dia mais próximo da filha e mais entusiasmado
com seu desenvolvimento, o pai formulava naturalmente
planos para o futuro da menina. Usando o mesmo modelo
empregado para uma nova vaca de raça comprada com
carinho e esforço, ele imaginava como seria a filha daqui
a dois, cinco ou vinte anos. Aprisionado ao modelo for-
mador de seus planos - o mesmo padrão que lhe permitia
pensar e raciocinar - José Alencar fazia projeções da filha
para a vida adulta: - Uma boa fazendeira, semelhante ao
que sou e vai arrumar um rapaz bonito e rico para casar-
se. Nesses momentos enxergava os netos rodeando-o, um
pouco mais velho, mas sempre ativo e forte.
José de Alencar, ao criar fantasias acerca do futuro
da menina Clara, quanto mais imaginava acontecimentos
futuros distante no tempo - um mês, um ano, dez - mais
fácil e simples se tornava sua projeção e construção fu-
tura idealizada: ser uma fazendeira, formar-se para pro-
fessora, casar-se com um belo e rico fazendeiro, ter filhos
bonitos. Era possível imaginar o que quisesse, pois não
existiam ainda fatos e detalhes chatos que dificultassem
ou impedissem a concretização do sonhado.
Cada vez mais ligado e entusiasmado com a filha,
José Alencar somente construía planos positivos e de lon-
ga duração para a filha, ainda uma criança. Quanto mais
ele imaginava situações muito distantes no tempo, mais

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ele era forçado a inventar eventos pouco ou nada prová-
veis de serem realizados num futuro distante. Ele ideali-
zava situações muito simplificadas, com poucos aspectos
reais ou concretos. Examinava apenas a essência ou su-
perfície dos fatos imaginados.
José Alencar tinha sua mente inundada por sonhos e
planos para a filha. Donana, ao contrário, a via como pro-
dutora de sofrimentos e de lembranças tristes. Ao contrário
de sua mulher, sentia pela filha um grande amor, carinho
e proteção. José Alencar estava cada dia mais preso à filha,
sua companhia inseparável. Por outro lado, Donana estava
cada dia mais distante dos acontecimentos relacionados à
filha, e, consequentemente, mais afastada do marido.
Ao levantar-se, José Alencar esperava aflito a filha
sair do quarto dela e correr em sua direção para receber
o abraço amigo. Em seguida, tomando o café da manhã
juntos, ela fazia perguntas e mais perguntas ao pai, quase
sempre o provocando para uma brincadeira.
O prazer de ter a filha bem perto foi crescendo. Ao
sair para seu trabalho diário na fazenda, José de Alencar
frequentemente levava a filha em sua companhia, sempre
alegre e entusiasmada com os passeios.
Mesmo sendo um homem atarefado e trabalhador,
cujos afazeres com os problemas da fazenda lhe tomavam
muito tempo e o preocupavam, por outro lado, a alegria
e prazer pela presença de Clara compensavam os eventos
negativos, a menor concentração nas decisões no campo.
Ainda que fosse por poucas horas, José de Alencar
sentia a falta de Clara cada vez mais. Se por um motivo

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qualquer saísse da casa da fazenda para ir trabalhar sem
a companhia dela, ou sem ter-se despedido dela, ele sentia
um vazio dentro de si e geralmente chegava mais cedo em
casa para vê-la, ouvi-la e brincar com ela.
Quando saía para trabalhar, José de Alencar sabia
que Clara, ainda muito nova, estava na varanda do casarão
da fazenda, esperando seu retorno. Andando de um lado
para o outro, atenta a qualquer movimento, Clara esperava
impaciente o retorno do pai a casa, olhando fixamente atra-
vés das peças de madeira azul que cercava toda a extensão
da grande varanda.
Algumas vezes durante sua vigília, ficava horas e ho-
ras brincando na varanda, sempre procurando a chegada
de alguém. De vez em quando descia as escadas e se mis-
turava aos bezerros, galos, galinhas e lagartixas, recebendo
cotas diárias de sol. Mais afastados nas árvores que rode-
avam o terreiro da entrada da casa, podia-se ouvir e ver
canários, curiós, papa-arrozes, gaudérios, pombas, bem-te-
vis e outros pássaros que ficavam à procura de um resto de
canjiquinha deixada pelas galinhas.
Clara, que esperava ansiosa a chegada do pai, sorria
alegre e feliz quando, de longe, ouvia o barulho do jipe que
se aproximava. Quase sempre José Alencar, após abraçá-la
demoradamente, procurava dentro do auto algo trazido de
alguma parte da fazenda para presenteá-la.
Os presentes, que ela amava e ficava curiosa de ver,
eram simples, escolhidos no mato com muito amor: flores,
frutas ou animais da própria fazenda. Ora era uma bela e

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diferente orquídea, ora uma lima enorme, às vezes jabuti-
cabas doces e apanhadas naquela hora. Outras vezes José
de Alencar trazia um coelhinho, um filhote de papagaio e
mesmo um macaquinho perdido e sem a mãe, encontra-
do durante suas andanças pela fazenda. Acontece que os
lavradores, seus subordinados, percebendo o amor que o
patrão nutria pela menina, passaram, eles mesmos, a des-
cobrir os presentes para serem dados para Clara. Desse
modo não era raro ver um ou outro trabalhador aparecer
diante do patrão tendo nas mãos uma flor diferente, um
bicho mais raro ou uma fruta difícil de ser encontrada nas
quitandas da cidade.
A presença de Clara, cada dia mais ligada ao pai
adotivo, não só afastava Donana do marido mas também
dos dois filhos. Enciumados com a ligação do pai com a
filha adotiva, estes foram progressivamente diminuindo os
contatos com o pai. Todos na família perceberam que o pai
mudara totalmente seus hábitos. José de Alencar passou a
reservar, sem achar ruim, muito do seu tempo para brin-
car e sair com Clara. Consequentemente diminuiu o tem-
po gasto com os filhos e com a esposa. Clara foi ocupando
pouco a pouco o centro da vida de Alencar.
Assim, se por um lado aumentavam os elos entre
Clara e José de Alencar, por outro diminuía aos poucos o
contato dele com os filhos e sua mulher. Um clima de com-
petição de duas frentes inimigas foi se formando.
Muitas e muitas vezes, a alegria e entusiasmo de José
Alencar provocavam aborrecimentos e ciúmes em Donana
e nos outros filhos.

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Algumas vezes Clara chorava, alegando medo de
ficar sozinha em seu quarto. De fato, ela procurava estar
mais perto do pai e, de certo modo, afastá-lo mais da mãe.
Quando José Alencar permitia a ida de Clara para o quarto
do casal, Donana ficava contrariada e emburrada por horas
ou dias e muitas vezes, mais irritada com a invasão da in-
desejada, ela abandonava o quarto e ia dormir em outro, tal
era o ódio surgido com o que presenciava.

Aumenta a separação entre os grupos familiares

Numa manhã de abril nasceu um belo potro na fazen-


da, um filho da égua preferida de José de Alencar. Mesmo
antes de nascer, José Alencar mostrava e comentava com
Clara que ia nascer um cavalinho na fazenda. A menina,
como era de se esperar, ficou encantada e apaixonada pelo
cavalinho recém-nascido e com imensa satisfação o pai, não
resistindo ao pedido e ao desejo de agradá-la, imediatamen-
te lhe falou que o potro seria dela: um presente cobiçado pe-
los outros filhos. Uma bezerrinha malhada e mansa nascida
logo depois, também passou a ser de propriedade de Clara,
causando inveja e mais raiva ainda nos outros filhos.
À medida que Clara crescia, ao fazer três, quatro e
cinco anos, seu pai passou a levá-la quase todos os dias
para os diversos locais da fazenda, onde ele ia fiscalizar e
coordenar os serviços.
Enquanto alguns passeios eram realizados a cavalo,
outros, entretanto, eram feitos no jipe dirigido pelo pai. Du-
rante essas andanças pela fazenda, a cada viagem que fazia

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junto à filha, José de Alencar mostrava à filha cada detalhe
interessante cada novidade, cada lugar atraente, exibindo
no olhar e no tom de voz o entusiasmo que sentia por estar
criando um tipo de mente diferente, modelando um modo
de pensar específico quanto à fazenda, ao trabalho e disci-
plina. Muitas vezes comparava seus sentimentos atuais e
sua relação com Clara com o acontecido com ele mesmo e
os outros filhos. Não se sabe por que jamais teve com eles
esse imenso prazer de cuidar e de ensinar alguém. Sentia-
se um pouco culpado de não ter sido assim com os outros
filhos e mesmo com sua mulher. Mas como sua euforia era
grande, esta ofuscava as críticas que fazia a si mesmo e cada
vez mais com mais entusiasmo continuava a trabalhar e a
educar sua filha preferida. Muito ligado a Clara, sabia que
deixava muitas vezes coisas importantes de lado, mas isso
não lhe importava, pois achava que tinha o direito de viver
conforme seus objetivos mais agradáveis. Ele ensinava-lhe,
com toda a calma possível, tudo que amava e isso compen-
sava o atraso ou prejuízo por não ter tempo suficiente para
administrar tudo o que se esperava dele. Era mais impor-
tante o prazer intenso sentido no contato com a filha que as
outras obrigações antes realizadas. Agora estes afazeres co-
meçaram a ter menos importância para ele. José de Alencar
estava radiante e feliz ao exercer seu papel de pai, mesmo
diminuindo seu papel de fazendeiro. .
Donana, irritada, mas também temerosa das repreen-
sões do marido, esforçava-se por tratar bem a filha, embora
não conseguisse esconder sua aversão por tudo que dizia
respeito à menina. Na verdade, ela sentia-se cada vez mais
arrependida de ter aceitado receber Clara como sua filha.

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2º Capítulo

Desenvolvimento de Clara: um susto

O amor de José Alencar por Clara aumentava. Ela se


tornava cada vez mais, para tudo e em tudo, sua compa-
nhia constante. O tempo passava.
Num fim de tarde de dezembro, José Alencar brin-
cava com a filha na varanda da sede da fazenda, quando
ouviu o chamado de um vaqueiro, informando-o que uma
vaca havia parido e o bezerro havia caído numa vala e
não conseguia sair do lugar onde estava, apesar dele ter
tentado retirá-lo. José Alencar, com calma, decidiu ir ver
o que poderia fazer. Acostumado a solucionar problemas
frequentes na fazenda, sabia que isso não seria difícil, pois
fatos como o narrado aconteciam a todo o momento e ele
conhecia-os bem. Decidiu ir ver o ocorrido na companhia
do vaqueiro que veio avisá-lo, para verificar o modo de
salvar o bezerro.

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Antes de entrar no jipe ordenou ao vaqueiro que
separasse duas enxadas e algumas cordas e, em seguida,
tomasse lugar no jipe para que os dois fossem ao ponto
indicado.
Clara observava tudo com o máximo de atenção. Fez
uma e outra pergunta, até que decidiu falar:
— Paizinho... posso ir com o senhor?
— Não. É muito distante, como ele disse. É um lu-
gar ruim de ir. Vamos de jipe, mas temos que caminhar
morro acima. O lugar é difícil de andar. Deixe para outra
vez. Além disso o céu está escuro. Vai chover a qualquer
momento.
— Ah... mas eu quero ver. Eu gosto de chuva.
— Mas a chuva vai lhe molhar e você pode ficar do-
ente.
— Eu vou buscar a capa que me deu. Volto logo. Não
vai embora, não.
O coração de José Alencar bateu mais forte. O desejo
da menina, o prazer dele pela sua companhia fez com que
sua razão fosse dominada pela emoção. O prazer determi-
nou sua conduta, por mais que tentasse ir contra a lógica.
Nem ele mesmo acreditou em si quando tentou demover a
intenção da filha.
— Deixe para outro dia. Eu te levo para ver uma ou-
tra vaca parida, num lugar mais fácil de se chegar.
— Deixa, pai. Eu gosto tanto de ir com o senhor.
José Alencar não resistiu aos encantos daquela crian-
ça simples e permitiu que ela entrasse no jipe, bem ao seu
lado, enquanto o vaqueiro se sentou na parte de trás.

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Orientado pelo vaqueiro, José Alencar foi dirigindo o
jipe pela estrada barrenta e escorregadia. Chegando a um
ponto, o vaqueiro falou:
— É lá em cima. Temos que ir caminhando. O bezerro
está bem para trás daquela grota. Nesse momento ele apon-
tou para um ponto não muito distante de onde estavam, mas
de difícil acesso devido à subida íngreme e do mato e terra
molhada.
— Quer ficar aqui no jipe, Clara? É melhor para você. É
muito difícil ir lá em cima. Além do mais parece que vai cho-
ver e aqui, pelo menos, tem uma coberta. Não tampa muito,
mas é alguma coisa.
— Ah não. Eu aguento andar e quero ver o bezerrinho.
Coitado!
Não houve meios de José Alencar mudar seu objetivo e,
além disso, ele preferia levá-la, pois assim estaria mais prote-
gida do que se a deixasse sozinha no jipe. Após fecharem as
cortinas do carro, retiradas as cordas e enxadas, começaram
a caminhada morro acima. Clara estava feliz, pois nunca ti-
nha ido àquele lugar e tudo era novidade. Ora escorregava
e caía, mas ria de tudo junto ao seu pai, que se alegrava com
sua companhia. Durante a caminhada, Clara, por estar cansa-
da, ou fingido estar, foi carregada morro acima por ele até se
aproximar da vaca que protegia o bezerro no buraco. Final-
mente alcançaram o lugar indicado.
Felizmente não estavam diante de uma vaca brava, as-
sim foi relativamente fácil, com a ajuda das enxadas, abrir
um pequeno trilho até o fundo do buraco, e depois, uma vez
o bezerro amarrado, ser puxado pelo vaqueiro para o alto, en-
quanto José Alencar ia empurrando como podia o bezerro.

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O salvamento não durou mais que uma hora e, para
alegria da vaca, o bezerro, ao chegar à parte alta do bura-
co, foi bem recebido pela sua mãe e em seguida faminto,
começou a sugar o leite de suas tetas.
Entretanto, quando já estava quase tudo resolvido, o
tempo, que ameaçava tempestade, ficou mais escuro. Logo
caiu uma pesada chuva que molhou a todos, inclusive Cla-
ra, que usava uma capa de chuva. O grupo desceu escor-
regando e caindo morro abaixo, enquanto durante todo o
trajeto a chuva continuava forte.
Chegaram à estrada onde estava o jipe uns quinze
minutos após terem salvo o bezerro, molhados como pin-
tos na chuva e enlameados, pois os três levaram diversos
tombos durante a descida, embora esta não fosse cansativa
como a subida.
Entraram no jipe e partiram em direção à fazenda.
Todos estavam alegres com o dever cumprido. A estrada
completamente barrenta, tendo em vários lugares poças
grandes cheios de água, fazia o jipe dançar indo de um
lado a outro e, às vezes, ficava por momentos preso numa
vala. Prontamente José Alencar punha uma outra marcha
reduzida e o velho jipe escapava daquele atoleiro e caía em
outro.
O dia tinha acabado e já era noite quando eles se
aproximaram da casa da fazenda. Clara tremia de frio e, de
quando em quando, espirrava. Diante do balanço do jipe
ela se agarrava ao pai o quanto podia, muito mais para se
proteger contra o medo, que das sacudidelas e constante-
mente perguntava ao pai:

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— Ainda falta muito para chegar? Estou com sauda-
de da mamãe.
— Sim, falta um pouco. Daqui a pouco chegaremos e
você vai, em primeiro lugar, tomar um banho bem quente
e tirar toda essa roupa molhada.
A conversa não ia além disso, pois José Alencar tam-
bém já estava preocupado com a menina, que durante um
longo período ficou molhada e com frio. Para alegria de
Clara e do pai, de longe avistaram a luz da fazenda acesa,
indicando estarem chegando. Clara e o pai, logo que desce-
ram e entraram em casa, receberam os xingamentos de Do-
nana aproveitando sua raiva crônica da ligação dos dois:
— Quer matar sua filha?
— Como?
— Sair com ela pelo mato com um tempo destes.
— Deu azar e choveu. Mas ela gostou...
— Veja como está! Molhada e suja. Além disso, está
espirrando e tremendo de frio. Olhando para Clara com
raiva continuou:
— Anda. Tire sua roupa já. Vai para o banheiro. A
água está quente. Estava te esperando e preocupada com o
que tinha acontecido. Além disso, eu nem fui avisada que
vocês iriam sair. Ande, ande! Desse jeito vai adoecer, já está
espirrando, pode ter uma gripe forte.
Rapidamente Clara tirou as roupas e entrou no ba-
nheiro, acompanhada pela mãe sob os olhares preocupa-
dos do pai quanto a possível gripe dela. José Alencar, re-
fletindo, mostrava-se arrependido do que fez e imaginava
que devia ter mantido sua proibição inicial.

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Depois do banho, após vestir uma roupa limpa e
quente, Clara, cansada e abatida, ainda jantou demons-
trando bastante apetite. Os espirros continuaram por toda
a noite, apesar dos cuidados da mãe e do pai que estavam
apreensivos.
No dia seguinte ela levantou-se um pouco quente e
pouco se alimentou, mas mesmo assim queria sair com o
pai para as terras da fazenda. Imediatamente, tanto Dona-
na como o próprio Jose Alencar não atenderam seu pedido.
Abatida e triste ela foi até a escada da varanda para abraçar
e se despedir dele. Mas nesse mesmo dia após seus trabalhos
normais, ao voltar para o almoço José Alencar percebeu que
Clara não estava na varanda, esperando-o como acontecia
sempre. Emoldurando a varanda, entre a madeira pintada
de azul, faltava, naquele dia, a carinha bonita e simpática da
menina, observando o pai colocar o jipe na garagem embai-
xo da casa e, em seguida, subir as escadas em sua direção
para abraçá-la e carregá-la nos braços pela casa adentro.
Era assim que Clara fazia: bastava ouvir o barulho dis-
tante do jipe para largar o que estava fazendo e correr em
direção à varanda e como era ainda pequena só podia vê-lo
através dos espaços entre uma peça de madeira e outra. Na-
quela manhã Clara não estava lá como sempre. O que terá
acontecido, perguntou José Alencar a si mesmo? Terá piora-
do? Subiu quase correndo as escadas em busca de noticias.
Estava angustiado.
Rapidamente, nervoso, ele entrou em casa, tendo ido
direto ao quarto de Clara. Abatida, deitada em sua cama, ela
sorriu com dificuldade para o pai.

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Estava vermelha e suando. Sua mulher, muito séria e
preocupada, num tom de voz bem baixa disse-lhe:
— Ela não está bem! À noite, você viu, espirrou e tos-
siu um pouco. Agora a tosse aumentou. Estou preocupada.
Também, com aquela chuva que ela tomou. A culpa é sua!
— Não é hora de culpar ninguém. Vamos pensar no
que fazer.
— Ela não quis comer nada. Levantou-se, mas ficou
tonta. Achei melhor voltar com ela para a cama. Dei-lhe
um pouco de limonada Foi a única coisa que quis. Estava
esperando você chegar para decidir o que fazer.
—Vou levá-la ao médico. Agora mesmo! comentou
José de Alencar, bastante preocupado.
— Não sei se será preciso. Ela estava pior. Há pouco
dei para ela um chá com aspirina. Ela tomou quase tudo,
melhorou um pouco. Agora a febre diminuiu, mas ainda
está quente, comentou Donana.
Sem trocar de roupa, José de Alencar abraçou Clara e
pediu a Zaia, babá de Clara, para ajudá-lo a levá-la ao mé-
dico. Sentindo-se culpado, queria fazer o possível para vê-
la saudável novamente. Talvez ela não estivesse tão doente
como imaginava, mas o melhor era tomar as providências
antes que piorasse.
O corpinho inerte de Clara, enrolado no cobertor da
própria cama onde estava, foi colocado pelo pai e Zaia na
parte traseira do jipe sem banco, onde foram colocados co-
bertores e travesseiros para que ela pudesse ficar deitada.
Seus olhos estavam espantados e abatidos. Zaia, sentada
nas laterais do jipe, foi segurando o corpo inerte de Clara,
ao mesmo tempo que a distraía.

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Bastante nervoso, José Alencar ligou o jipe. Antes
de dar a partida, olhou desolado para ela, relembrando a
Clara alegre, animada e falante que era, a menina que ele
conhecia e com quem se relacionava.
Agora ela era outra, estendida no fundo do jipe Cla-
ra permanecia imóvel, seu olhar indiferente e sem vida.
José Alencar sentiu o calor intenso que saía do corpo da
menina, colocou mais uma vez a palma da mão na testa de
Carla, mas ela continuou na mesma posição em que esta-
va, nem os olhos mexeu.
— Quer um pouco de água? Perguntou José Alencar pre-
ocupado. Com muita dificuldade e demonstrando um grande
cansaço, ela respondeu com uma voz difícil de ser ouvida:
— Não. Não estou com vontade, depois eu tomo.
José de Alencar apesar de ser um homem forte e ex-
perimentado, era uma pessoa muito preocupada com as
situações de risco. Por isso mesmo, nas conversas consigo
mesmo, como naquele instante, imaginou:
— “Eu sei que eu exagero os perigos. Só fico imagi-
nando Clara morrer. Se isso acontecer, não sei como irei
viver, pois minha vida tem sido em torno dela. Mas deve
ser o medo que tenho de doenças que me faz aumentar a
doença dela”.
Deu partida no jipe e em poucos minutos estava che-
gando ao hospital da cidade. Por sorte o pediatra ainda
não tinha ido almoçar e trabalhava normalmente. Poucos
minutos depois Clara era atendida.
Dr. Francisco brincou ligeiramente com Clara. En-
quanto isso, sua auxiliar foi tirando parte da roupa da me-

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nina. Em seguida, cuidadosamente, deitou Clara na maca
para que o exame pudesse ser realizado. O médico inicial-
mente deu uma olhada breve por todo o corpo de Clara,
começando pelo rosto e toda a cabeça, inclusive pela parte
de trás do pescoço. Em seguida apalpou diversas regiões
do seu frágil organismo, auxiliado por alguns instrumen-
tos que batiam levemente em seus músculos ou riscavam a
pele. Clara não chorava e não se mexia. Ela estava sonolen-
ta, indiferente ao exame. Naquele instante era uma outra
pessoa. O médico, sempre sério e em silêncio, observava e
prestava atenção a cada fato de importância.
É... está quente. Muito quieta. Desde quando está as-
sim? - A voz do médico demonstrava preocupação.
— Até ontem ela estava bem. Tudo aconteceu após a
chuva de ontem à tarde.
Nesse instante José Alencar começou a contar a ida ao
pasto. Entretanto Dr. Francisco, sem ligar para a história, pe-
diu a enfermeira que colocasse Clara sentada, segurando-a
por trás. Nessa posição ele iniciou parte do exame clínico.
Em seguida, após deitá-la, começou a auscultá-la, concen-
trando sua atenção na parte da frente do tórax e nas costas.
Depois pediu a Clara que movimentasse os braços e as pernas
e, logo em seguida, que abrisse a boca e mostrasse a língua.
Levantando um pouco as pálpebras da menina, que nesse
momento tinha os olhos quase fechados, o médico examinou
a parte branca dos olhos e também a dilatação da pupila.
Feito isso, sem nada falar ou perguntar, utilizando-se
de um pequeno aparelho que abre as narinas clareando seu
interior, ele examinou a parte interna do nariz. Finalmente,

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após deitá-la de lado, observou, também usando a luz do
aparelho, o canal do ouvido e tornou a colocá-la deitada
de costas como antes. Sério, Dr. Francisco ia examinando
parte por parte do organismo da menina.
Dentro do consultório imperava um terrível silêncio,
interrompido, de quando em quando, por uma tosse fraca
de Clara e, bem longe dali, pelo canto rouco de um galo e
pelos latidos de um cachorro. José Alencar, enquanto es-
perava o resultado das observações do médico, o terrível
veredicto, sentia as pernas fracas e, por mais que se esfor-
çasse, sentiu-se obrigado a abandonar por minutos o con-
sultório abafado para respirar e enxugar as lágrimas que
desciam pelos seus olhos. No jardim abandonado na frente
do hospital, respirou o mais que pôde e passou suas mãos
em torno dos olhos, enquanto olhava para longe, imagi-
nando poder sair daquele lugar o mais depressa possível.
Zaia, mais calma dentro do consultório, tentava brin-
car, sem resultado, com Clara. A enfermeira, treinada para
lidar com os sofrimentos alheios, permanecia estática, obe-
diente e atenta a cada gesto do médico e da paciente. De-
monstrando calma, segurando delicadamente as mãos de
Clara, esperava as ordens do médico para tomar as provi-
dências necessárias.
Apesar de o médico nada falar até aquele momento,
não era difícil deduzir, com boa margem de acerto, que ele
detectou alguma coisa de gravidade e de preocupação.
A vida de Clara, sem dúvida, estava em perigo. Após
alguns minutos onde se ouvia apenas o barulho de duas
moscas que pousavam, ora na face de um, ora na face de ou-

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tro, o Dr. Francisco interrompeu seu silêncio. Antes de come-
çar a falar, impostou naturalmente sua voz para adequá-la à
gravidade que queria dar ao resultado do exame minucioso
que fizera. Ele começou sua fala muito lentamente:
— A febre está alta, o pulmão cheio, sua respiração
está difícil. Depois de algum tempo sem nada dizer, como
se estivesse pensando o que falar, e olhando fixamente para
José Alencar quebrou o prolongado silêncio e completou
seu pensamento:
— Parece ser uma pneumonia. Vou lhe dar as instru-
ções acerca do que fazer e também dos medicamentos que
deverá tomar.
— É grave, doutor? Perguntou apressadamente José
Alencar sem coisa melhor para dizer.
— Não sei. Pode ser uma coisa simples... pode ser
grave. Em Medicina a gente nunca sabe. Às vezes ficamos
preocupados com o nada, outras vezes somos pegos de
surpresa. Uma coisa que parece à-toa, transforma-se numa
grave doença, mesmo em óbito.
José de Alencar tremeu ao ouvir a palavra ”óbito”.
Após limpar a garganta para conseguir falar, tentando dis-
farçar o desespero que o dominava, perguntou engasgado:
— Mas tem tratamento... não tem?
— Claro! Sempre tem! Ou melhor, nem sempre.
Dr. Francisco consertou sua frase ao se lembrar de al-
guns pacientes cuidados por ele que faleceram, apesar de
todo esforço para salvá-los. Nesses casos cabe ao médico
ajudar o paciente a morrer de modo digno e com o menor
sofrimento possível.

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Zaia, que assistia a tudo postada mais afastada da
maca, automaticamente se aproximou da para vestir Cla-
ra. O médico, após se sentar na cadeira de ferro colocada
diante da mesinha, tirou uma caneta do bolso e segurou a
ficha médica para anotar alguns dados acerca da paciente.
Em seguida, pegando o bloco-receituário, escreveu o nome
da paciente e os nomes dos medicamentos indicados bem
como a forma de tomá-los. Ao mesmo tempo ia passando
para a ficha médica os nomes dos medicamentos receita-
dos, os exames a serem pedidos e alguns fatos observados
e ainda não anotados. No pé da ficha o médico anotou suas
conjeturas acerca do estado físico de Clara.
O silêncio, naquela sala abafada, continuava pertur-
bador. Ouvia-se, às vezes, o som provocado pela ponta da
caneta do Dr. Francisco ao receitar ou anotar dados na ficha
médica, bem como o barulho das folhas do bloco receitu-
ário quando destacadas. José de Alencar olhava para Cla-
ra quase chorando. Ela, por sua vez, indefesa e impotente,
mostrava-se desolada e confusa. Não entendia aquele tea-
tro jamais presenciado.
José Alencar, uma vez dominado pela realidade per-
versa, sem forças e habilidade para ir contra o que ele não
conhecia e não tinha a menor experiência, sentia que estava
sendo derrotado por aquele evento indesejável.
Tudo indicava que ele, e talvez o médico, não pudesse
fazer nada para mudar o rumo da situação. Ele era incapaz
de proteger e ajudar o que ele atualmente mais queria: fa-
zer sua filha voltar ao que era, uma menina viva, sorridente
e feliz. O médico, ao levantar-se, prendeu por segundos a
respiração e a fala e depois voltou a dizer pausadamente:

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— Tem!...
Parou bruscamente sua frase e continuou construin-
do um novo raciocínio:
— Precisamos ser cautelosos. Dê esses remédios,
como escrevi. Ela precisa tomar o máximo de líquidos:
água, limonada, laranjadas etc. Essas gotas de 4/4 horas e
uma injeção dessas duas vezes ao dia. Vai doer um pou-
co. Deverá tomá-la por dez dias. É um antibiótico mais
potente para esses casos. Não sabemos que tipo de infec-
ção ela tem. É melhor tomar um que tenha um efeito mais
amplo.
— Precisa tomar injeção? - perguntou aterrorizado
José de Alencar.
— Sim! É fundamental para ela. - E sem discutir con-
tinuou:
— Antes passe pelo laboratório clínico, aqui mesmo.
A enfermeira vai levá-lo lá. Será feito um exame de escar-
ro para saber que tipo de bactéria está sendo responsável
pelo quadro clínico e também um antibiograma. É através
dele que saberemos se a bactéria é ou não sensível ao me-
dicamento que está tomando.
— O quê? - Perguntou espantado José Alencar. - E se
o remédio tomado de nada valer?
Quase implorando, imaginando o sofrimento da fi-
lha e dele mesmo, resmungou com pouca fé:
— Não pode usar algum outro remédio, por exem-
plo, um dado pela boca...
— Não! A não ser que você não se importa com o
estado grave dela. Receitei um antibiótico a que suponho

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não haver resistência, ou seja, que o gérmen seja sensível
a ele, por ser mais moderno e, logicamente, menos usado
e consequentemente mais capaz de atuar com eficiência.
Entendeu? Se não...
Após esperar algum sinal de José Alencar, o médico
terminou sua frase:
— Irei lhe explicar novamente.
José Alencar permaneceu calado. Percebia que estava
nas mãos do médico e, portanto, decidiu cumprir o pres-
crito pelo Dr. Francisco. A conduta do médico, segundo
suas observações, lhe deu confiança e esperança. Seu nome
era respeitado e além disso sabia que não tinha outra coisa
a fazer naquela situação, a não ser acreditar em alguém
de quem precisava como nunca. De qualquer forma José
Alencar saiu dali seguro de que o médico sabia o que fala-
ra. Acompanhado pela enfermeira foi imediatamente até
ao laboratório onde foi colhida, com bastante facilidade,
uma quantidade de escarro para o exame e, em seguida,
caminhou até à farmácia para comprar os medicamentos
receitados, pedindo ao farmacêutico para dar a primeira
injeção em Clara. Aproveitou o encontro para combinar a
ida dele até a fazenda para fazer as outras aplicações.
Entretanto, José Alencar, apesar de desejar ficar per-
to de Clara dando-lhe segurança, não suportou assistir à
aplicação da injeção. Pediu a Zaia que acompanhasse sua
filha, após sair de dentro do local onde seria dada a injeção.
Aproveitou a ocasião para orientar a babá para segurá-la
firmemente e com carinho, para que Clara ficasse quieta e
sofresse o mínimo possível.

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Tendo sua consciência dominada pelos continuados
sentimentos de culpa por tê-la levado ao pasto naquela tar-
de, preferiu se afastar da cena da injeção. Caminhou até a
porta de entrada da farmácia e lá permaneceu até que se
fez silêncio dentro da farmácia, pois durante a aplicação
do antibiótico Clara berrou, como era esperado, com sua
voz fraca e triste, enquanto era segurada por Zaia e uma
ajudante que varria a farmácia. Felizmente as duas se man-
tiveram calmas durante todo o tempo.
Disfarçando os movimentos das mãos para limpar
os olhos cheios de lágrimas, pigarreando e tossindo, José
Alencar ia engolindo as secreções que desciam pela sua
garganta e dificultava sua respiração e fala. Após pagar
os medicamentos, saiu rápido daquele lugar tétrico, louco
para voltar à fazenda. Trêmulo, carregou sua filha doente e
fraca até o jipe estacionado do outro lado da rua.
Chegando em casa, antes de tudo mandou dar um
banho em Clara e trocar as roupas, tentando evitar desse
modo alguma possível infecção hospitalar e do ambiente
da cidade. Após o banho, já na cama, Donana ofereceu, sem
resultado, uma sopa a Clara. Esta, talvez cansada de tudo,
preferiu dormir.
José Alencar não arredou os pés do seu leito adiando
todos seus compromissos. Naquele dia e nos seguintes, não
mais saiu para trabalhar, não era capaz de pensar em outra
coisa. Passava grande parte do tempo caminhando de um
lado ao outro do leito de Clara, porém evitando olhar para
a menina doente. Quando assim o fazia, ao observar o cor-
po dela cada dia mais magro, chorava sozinho junto a ela
sem que ela percebesse.

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A febre, apesar dos remédios, continuou oscilando:
ora subia, o que desesperava a todos, ora descia quando
menos se esperava, retornando à quase normalidade. Nes-
ses momentos crescia a esperança do retorno dela à vida
normal, despontando uma imensa alegria nos olhos de
José de Alencar, de Donana e de todos os outros filhos e
empregados da casa. Donana, diante da gravidade do es-
tado de Clara, tomou por ela um grande amor e, naquele
momento, estava apreensiva quando imaginava perdê-la.
Infelizmente não houve melhoras significativas
durante os três primeiros dias de tratamento: a doença
de Clara piorava. José Alencar, desolado, lembrava com
imensa saudade a ausência dos passeios, seu sorriso ter-
no entre as tábuas da varanda esperando sua chegada, os
abraços de Clara, a sua presença junto aos pais durante o
jantar, fazendo perguntas acerca do cavalinho. Tudo isso
lhe provocava uma sensação de estar sozinho, perdido,
sem lugar.
Durante esses dias de grande sofrimento aconteceu
uma grande mudança nas relações entre José Alencar e
Donana: os dois ficaram mais próximos. Os pais de Clara,
tendo um objetivo comum - cuidar de Clara, impedir sua
morte, comungando um mesmo sentimento - se uniram
na dor, tornaram-se amigos. Toda a família, José de Alen-
car, Donana e os dois filhos do casal enfrentavam um mes-
mo problema indesejável: a doença da menina e o medo
de sua morte.
Durante a doença, enquanto Clara dormia ou descan-
sava em sua cama acompanhada por Zaia, os pais muitas

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vezes se assentavam na varanda da fazenda e conversa-
vam entre si, uma relação que havia se acabado há muitos
anos e piorou após a adoção da menina. Suas conversas
eram principalmente acerca da possibilidade ou não dela
se recuperar. Só muito raramente eles conversavam sobre
o período anterior à enfermidade, aos fatos ocorridos an-
tes de Clara ser adotada.
Quando José de Alencar se lembrava do período em
que Clara estava bem, durante o relato ficava alegre e fa-
lante e esquecia por instantes a gravidade agora existente.
Animado, contava para Donana os passeios que fazia com
ela pelas terras da fazenda, sua curiosidade a respeito dos
trabalhadores, dos animais, do cultivo do café e cana. Re-
latava, minuciosamente e animado, as perguntas e medos
dela. Tudo acerca da menina foi revelado entre os dois,
assuntos que eles nunca tinham discutido. Tudo parecia
muito calmo. Crescia a união do casal, pois José Alencar
contava sorridente seus passeios com a filha.
Enquanto o casal conversava sobre a simpatia e bele-
za de Clara, Zaia permanecia vigilante no quarto ao lado da
menina, observando cada mudança que pudesse aparecer.
De repente ouviu-se um grito estridente de Zaia chamando
Donana e José Alencar.
Clara começou a passar muito mal.
Assustados, os dois correram em direção ao quarto
e presenciaram uma cena terrível e difícil de suportar: o
corpo de Clara estava se contorcendo. Seus olhos abertos
não fitavam ninguém. Todos os músculos da menina, du-
rante segundos que pareceram horas, se contraíram, ora

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flexionando-se, ora distendendo-se. Clara, contorcendo-se,
não respondia aos apelos e gritos desesperados dos presen-
tes. Os três, impotentes e sem saber o que fazer, assistiam
imobilizados a uma cena pavorosa: os músculos de Clara
se contorciam, seus braços e pernas davam arrancos invo-
luntários e sem controle.
— Clara! Clara!
Desesperados, ora um ora outro gritava seu nome,
paralisados e impotentes diante do fato inexplicável que
presenciavam. Ninguém conseguia nem mesmo esboçar
alguma ação efetiva. Imaginavam, através do grito, inter-
romper o ataque convulsivo que nela se instalou.
Como era de se esperar, Clara, dominada pela do-
ença, nada respondeu. O corpo de Clara se transformou
em contrações violentas por uns dois minutos e, após esse
tempo, as convulsões corporais se tornaram mais brandas
e lentas e por fim terminaram.
O quadro observado pelos pais e por Zaia foi aterrador.
A respiração de Clara havia parado desde o início das contra-
ções musculares. A cor de sua pele tornou-se muito branca
e pálida, de um branco quase leitoso, mostrando uma pele
sem sangue Seus olhos fixados num mesmo ponto, pareciam
olhar para o teto.
Seu corpo, após as convulsões, estava completamen-
te flácido, totalmente relaxado. Os três, no quarto, em de-
sespero diante do que viram, imaginaram o desesperador:
- que Clara havia morrido. Um grito lancinante saíu dos
lábios de Zaia. Donana e José de Alencar se abraçaram, por
instantes, quietos, sem nada fazer.

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Confusos, em pânico diante daquele quadro nunca
imaginado, eles seguraram e levantaram o corpo inerte de
Clara, tentando lhe dar vida através dos abraços e do amor.
Ora por um, ora por outro, o corpo de Clara era estimulado
como podiam. Procuravam impedir que sua vida, uma vida
que parecia estar sumindo, se fosse definitivamente. Quando
as esperanças de sobrevivência estavam se esgotando, pois
sua pele começava a ficar arroxeada, de repente, Clara vol-
tou a respirar, ainda que sem estar consciente, pois ela não
respondia a nenhum chamado ou qualquer outro estímulo.
Seu corpinho, que agora parecia menor ainda, ardia
em febre, seu pescoço estava ainda um pouco endurecido,
puxando a cabeça um pouco para trás. Nos braços de Do-
nana ela vomitou uma água rala amarelada: não havia mais
nada no seu estômago.
Desesperados, tendo Clara desmaiado com os olhos fi-
xos voltados para o lado esquerdo e para cima, ela foi levada
às pressas ao hospital. O Dr. Francisco não foi encontrado no
momento, pois estava atendendo uma criança na residência
desta, devendo demorar um pouco. José Alencar, após des-
cobrir no próprio hospital um médico de adultos para dar
uma assistência emergencial a Clara, saiu à procura do Dr.
Francisco e com alguma dificuldade, dada a sua confusão,
conseguiu descobrir a casa onde o pediatra estava. Depois
de lhe contar rapidamente o acontecido levou-o até o hospi-
tal. José Alencar respirou aliviado quando ele e o Dr. Fran-
cisco chegaram, percebendo que Clara ainda estava viva.
Quando Dr. Francisco chegou perto do leito, a meni-
na respirava melhor e mais compassadamente. Sua consci-

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ência parecia estar, aos poucos, voltando, pois já era capaz
de virar os olhos para um e outro lado. Entretanto, apesar
da melhora aparente, parece que não reconhecia ninguém,
por mais que seu pai, enlouquecido pela possibilidade da
perda, a chamasse sem parar, dizendo que ele, Donana e
Zaia estavam ali juntos dela.
O médico pediu a todos que se retirassem, pois o de-
sespero deles atrapalhava o exame que exigia um ambiente
tranquilo. Chamou uma enfermeira para ajudá-lo e esta, após
despi-la completamente, colocou-a inicialmente deitada de
costas e em seguida ao contrário, deitada de barriga para bai-
xo, enquanto o médico a ia examinando detalhadamente.
O médico pôde notar a temperatura alta da meni-
na, apesar dos medicamentos que estava tomando e, além
disso, certa rigidez no corpo, mais localizado no pescoço.
Diante do que observou na paciente durante o exame e
também baseado na sua experiência anterior e nos casos
que não eram raros na cidade, levantou a hipótese de se
tratar, talvez, de uma pneumonia seguida de meningite.
Encerrados os exames, chamou os pais ao seu con-
sultório, dando-lhes a notícia de que Clara estava viva e
relativamente bem.
Entretanto, propôs-lhes a eles a internação de Clara
no hospital, pois seu estado apresentava gravidade e exi-
gia cuidados continuados e muitas vezes rápidos. Além
disso, pediu mais um exame: era preciso que naquele mo-
mento fosse retirado líquor de sua espinha para confirmar
ou não o imaginado, isto é, alguma infecção no cérebro ou
nas meninges.

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Paralelamente, o laboratório iria detectar qual o tipo de
bactéria causadora da infecção e se ela existia também no
cérebro além dos pulmões, brônquios, laringe, etc. Os dois,
assustados, tentaram desanimados e timidamente adiar as
orientações do médico, mas diante da gravidade do caso,
decidiram concordar com o prescrito pelo Dr. Francisco.
O próprio Dr. Francisco retirou com perícia o líqu-
or da espinha de Clara, que imediatamente foi enviado ao
laboratório para análise. Além disso, Dr. Francisco recei-
tou um medicamento para impedir outra convulsão e uma
maior quantidade de antitérmico para debelar a febre ou
mesmo outra convulsão. O resultado sairia somente no dia
seguinte.
No hospital, Clara foi colocada no soro para ser hi-
dratada, pois havia vomitado muito e não comeu, nem be-
beu quase nada nos três últimos dias. Além disso, através
do soro, diversos outros medicamentos necessários e às ve-
zes urgentes eram introduzidos no organismo da paciente.
Apesar de todos esses cuidados tomados ainda no primei-
ro dia de internação, quando já era noite a febre de Clara
aumentou.
José Alencar, alertado pelos movimentos incessantes
para um lado e outro do seu corpo, além de quase não res-
ponder ao perguntado e estar com o pescoço mais rígido,
decidiu chamar a enfermeira. Quando ela entrou no quarto,
um pouco aborrecida por imaginar estar sendo chamada
devido ao nervosismo dos pais, Clara apresentou o mesmo
quadro ocorrido na fazenda: começou a ter uma nova con-
vulsão. Todos entraram em pânico.

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Clara, a princípio, endureceu por uns trinta segundos
todo o corpo. Seus músculos ficaram tesos, sua respiração foi
interrompida temporariamente. Em seguida ao período ini-
cial de endurecimento muscular, apareceram fortes contra-
ções provocando flexões nos antebraços, sobre seus braços, as
coxas e sobre o tronco. José de Alencar e a enfermeira segura-
ram levemente as pernas e os braços da menina, para que eles
não quebrassem impelidos pelas violentas contrações.
Durante mais de trinta segundos, ainda sem respirar,
totalmente molhada pelo suor e com o rosto avermelhado
pelos movimentos violentos e pela febre, Clara era só con-
trações musculares que foram, pouco a pouco, diminuin-
do até terminar. A menina, que suava mais ainda com as
contrações, após o término delas ficava branca como cera,
desmaiada, parecia morta.
José de Alencar e mesmo a enfermeira que estava a
seu lado, esperavam angustiados o que iria acontecer: Cla-
ra voltaria a respirar ou sua respiração acabaria definitiva-
mente. Uma massagem sem técnica foi feita pela enfermei-
ra no seu tronco.
Felizmente, para tranquilidade de todos, após mais
alguns segundos, a respiração voltou. Inspirações profun-
das e lentas começaram a aparecer. Também aos poucos a
cor avermelhada e ligeiramente morena de sua pele retor-
nou ao que era antes do aparecimento da convulsão. José
Alencar e a enfermeira olharam um para o outro, aliviados
com o desfecho feliz.
O suor que escorria da face de Clara foi enxugado
pela enfermeira com uma toalha úmida. Respirando agora

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normalmente, seu coração retornou a bater fortemente. O
clima tétrico existente no quarto onde ela estava internada,
ficou tranquilo. O médico foi avisado do ocorrido e pou-
cos minutos depois estava examinando-a e revendo o que
havia determinado. Sempre aparentando calma e serieda-
de, Dr. Francisco deu instruções à enfermeira para o uso
de novas medicações. Estando tudo em ordem, o médico
despediu-se, mas antes avisou José Alencar que passaria
no hospital no início da noite para fazer um novo exame e
também que estaria à disposição para qualquer emergên-
cia, ou seja, deveria ser chamado a qualquer hora, caso ela
passasse mal outra vez.
José Alencar, sozinho agora no quarto com Clara, es-
tava aflito pela chegada de sua mulher que lhe faria com-
panhia no hospital naquela noite. Logo chegou Donana
e imediatamente José Alencar lhe contou, emocionado, a
outra convulsão de Clara.
Ao contar para a esposa a nova convulsão sofrida
pela filha, José Alencar não conseguiu terminar o relato,
pois sua fala foi interrompida pela voz embargada pela
emoção e o choro convulsivo.
Donana, por sua vez, diante do relato e da emoção
do marido não resistiu e chorou, como há muito não fazia,
no ombro protetor e forte de José Alencar, que a abraçou
carinhosamente.
O novo diagnóstico, realizado com a ajuda do exame
de líquor, levantou a suspeita de infecção cerebral, além da
pulmonar. Apesar da gravidade da doença, os familiares e
corpo clínico do hospital, aos poucos ficaram mais esperan-

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çosos. Clara começou a melhorar: e não mais teve as terrí-
veis convulsões. Ao mesmo tempo em que a febre elevada
do início foi desaparecendo, Clara começou a pedir alimen-
tos e líquidos. Por fim passou a sair de seu leito e andar am-
parada. Dias depois já era capaz de perambular sem auxílio
pelo quarto do hospital. Finalmente sua febre foi debelada,
seu peso aumentou ligeiramente. Por tudo isso, retornou a
alegria e tranquilidade dos pais, irmãos e médico.
Muito magra, pois emagrecera cinco quilos em pou-
quíssimo tempo, Clara recebeu alta e voltou à fazenda.
Nesta, ela foi recebida com uma pequena festa onde se reu-
niram os pais, os irmãos e um pequeno grupo de amigos e
parentes.
No período da doença, José de Alencar e Donana vol-
taram a viver como um casal bem adaptado. As conversas
entre eles, que quase haviam terminado, reacenderam-se.
Os dois se tornaram amigos e companheiros, confidencian-
do as alegrias e tristezas da vida.
Lamentavelmente a religação entre os dois não durou
muito tempo: à medida que Clara foi melhorando, voltando
a viver como antes, Donana e José Alencar foram se afas-
tando um do outro, sem que eles mesmos percebessem.
Aconteceu que José Alencar, ao retornar à sua antiga
rotina, passou a trabalhar mais e ainda preocupado com a
filha, usava grande parte de seu tempo dedicado a Clara.
Por sua vez, Donana, também retornando às suas ativida-
des de “dona de casa” e dedicando seu tempo aos outros
filhos e aos deveres de mãe e patroa, deixou de lado os en-
contros com o marido. Além do mais, o assunto fundamen-

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tal e que emocionava a ambos acabou, pois Clara não mais
precisava de ajuda: sua saúde voltara e junto as preocupa-
ções dos pais, a razão da conversas e emoções interligadas
entre o casal acabaram.
Agora, estando tudo resolvido, os dois não encon-
travam motivos ou desejos para estarem juntos. Eles não
tinham mais temas comuns para discutir e assim cada um
retornou ao seu canto, à sua solidão a dois, onde José Alen-
car trabalhava e cuidava de Clara e Donana trabalhava em
casa e cuidava dos outros filhos.
Desse modo, o aumento da união de Alencar com
Clara produziu uma diminuição da ligação de José Alencar
com a esposa. Nos piores dias, os dois chegavam a pas-
sar um pelo outro, nos corredores ou varanda da fazenda,
sem mesmo se cumprimentarem. Nas conversas durante o
lanche ou as refeições principais, raramente um comentava
ou acrescentava qualquer ponto de vista desenvolvido pelo
outro. Como consequência de tudo isso, as ligações de Cla-
ra com Donana também foram diminuindo. Uma união e
desunião que para os outros filhos, talvez para os próprios
pais, não era percebida.

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3º Capítulo

Crescimento de Clara:
Mozart e a Academia

Clara crescia cada vez mais presa ao pai adotivo. Era


com José Alencar que ela discutia os assuntos mais íntimos,
com o pai também ela saía para fazer as compras de arma-
zém na cidade de Cachoeira do Assento. Também iam jun-
tos ao médico ou ao dentista e era ele que conversava com
ela acerca dos estudos, notas escolares e futura profissão.
Clara tentava se ligar a Donana com grande dificul-
dade: ajudava-a nas arrumações da casa, na cozinha e só
raramente discutia problemas simples e superficiais com
ela, pois os assuntos mais sérios e íntimos não eram venti-
lados entre as duas.
Devido ao estreitamento da relação entre filha e pai,
maior ficou a distância entre Clara e Donana. Além disso,
ela foi se afastando cada vez mais dos irmãos.

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Em casa havia dois grupos: um formado por José
Alencar e Clara, o outro por Donana, Gabriel e Pedro.
Quando chegou o momento de Clara começar a fre-
quentar a escola, era José Alencar que a levava e buscava
todos os dias, apesar da fazenda ficar apenas a um quilôme-
tro do centro da cidade, onde se localizava a escola. Depois
de alguns meses de aulas, ela própria lhe pediu que não
mais a levasse, nem a buscasse. Clara estava sendo criticada
pelos colegas por precisar de alguém para levá-la e buscá-la
antes e após as aulas. Ele, lamentando a perda do convívio
amistoso e carinhoso que tinha com ela naqueles momen-
tos, como era seu costume aceitou o pedido e a partir desse
instante Clara passou não só a ir à escola sem a companhia
do pai, como também começou a ir algumas vezes à cidade
para fazer uma coisa ou outra, desacompanhada do pai.
Com o passar do tempo, Clara, mais crescida e inde-
pendente, informou ao pai que desejava, além de ir sozi-
nha à escola, ficar mais tempo na cidade junto aos colegas
e amigos, participando de jogos, festas e brincadeiras. Ela
percebia que só assim não ficaria tão desatualizada como
estava dos acontecimentos e sentimentos dos jovens e de
outras pessoas da cidade.
Dessa maneira, quando Clara completou quatorze
anos, José Alencar conseguiu, a pedido da filha, um lugar
para ela trabalhar meio horário como vendedora de uma
loja de material escolar, cujo proprietário, além de ser seu
amigo, era também seu primo.
O serviço ali era fácil, com pouco movimento, a loja
permanecia a maior parte do tempo sem fregueses.

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Esse trabalho, que exigia pouco dela, permitia a Clara
não só ter algum tempo para estudar e fazer seus deveres
escolares, como também conversar com os amigos jovens
como ela, o que cada vez mais a entusiasmava. Durante
essas conversas, Clara conheceu um rapaz bonito de nome
Mozart, que morava com a mãe viúva em frente à loja em
que trabalhava.
A mãe de Mozart, D. Marta, que vivia da pensão
do marido, para aumentar um pouco sua miserável ren-
da fazia biscoitos de polvilho, de araruta, pão de queijo e
ela mesma os vendia para os passageiros dos ônibus que
estacionavam alguns minutos na acanhada rodoviária da
cidade, para que seus condutores e passageiros pudessem
descansar as pernas, fazer um lanche rápido, tomar algum
líquido e, caso necessitassem, ir ao banheiro. Os fregueses
eram poucos, por vezes ela não conseguia vender nem um
pacote de biscoitos.
Mozart, 5 anos mais velho que Clara, apaixonou-se
por ela logo que a viu trabalhar na loja. D. Marta teve seu
marido assassinado barbaramente em frente à sua casa,
devido a pequenas brigas por causa de limites de terras.
Nessa época, Mozart, que tinha apenas oito anos, presen-
ciou a discussão inicial do pai com o criminoso e, em se-
guida, o assassinato.
D. Marta afirmou que a partir desse fato funesto,
Mozart se tornou um menino introvertido, mais ainda do
que sempre fora.
Filho único, após a morte do pai tornou-se mais pre-
so e dependente da mãe, o que parecia agradar ao egoísmo

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maternal. Ela era uma mulher que parecia passar a maior
parte do tempo mal-humorada.
Ainda adolescente, quando cursava a sétima série,
Mozart começou a se interessar pelas artes, principalmen-
te pela poesia e pintura. Nessa ocasião ele foi incentivado
pela mãe orgulhosa das prendas do filho e pelo professor
de português. Foi nessa época que Mozart escreveu suas
primeiras poesias. Estas, uma vez prontas, foram repeti-
das para si mesmo e para mãe dezenas de vezes.
Ainda jovem, Mozart foi levado pelo professor de
português à Academia de Letras de Cachoeira do Assen-
to, para conhecê-la. Mozart ficou encantado com o am-
biente chique e frequentado pelos grandes intelectuais da
cidade e, durante a visita, decidiu que um dia ele iria fazer
parte da Academia, frequentar aquele grupo seleto, criar
poesias e quadros, ser conhecido não só em Cachoeira do
Assento, mas também em todo o Brasil, quiçá em todo o
mundo.
Com quatorze anos, Clara já era uma mocinha alta
e atraente e por onde passava chamava a atenção dos jo-
vens pela sua beleza, simpatia, educação e alegria.
José Alencar, ao contrário de sua mulher, Donana,
continuava extremamente dedicado e cuidadoso com Clara,
visitando-a na loja onde estava trabalhando sob qualquer
pretexto, quando era obrigado a ir até a cidade para resol-
ver seus problemas. Nessas ocasiões sempre procurava seu
amigo Dedé, dono da papelaria, procurando se informar
do trabalho de Clara. Ficava orgulhoso da filha, comentan-
do depois com ela quanto era elogiada pelo patrão.

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Durante o tempo em que Clara estudou e trabalhou
na cidade, Mozart foi-se aproximando de Clara apesar de
sua timidez.
Os dois, por diversas ocasiões, saíam juntos para as-
sistirem às Cavalgadas, Congados, Folia de Reis, procis-
sões da Semana Santa, o carnaval de rua e também festas
de aniversário e casamentos. Apesar de não serem na-
morados, os dois, quando se encontravam num e noutro
lugar, quase sempre ficavam juntos durante o desenrolar
da festividade ou cerimônia. Essa amizade, inclusive, fez
com que Clara fosse a casa de Mozart, quando recebia dele
lições de português, a matéria em que ela tinha mais difi-
culdade. Ele tendo um bom conhecimento de português,
preparou-a com sucesso para as provas.
Não foi difícil para José Alencar perceber a ligação
entre os dois, pois muitas das vezes em que ele foi visitá-la
na loja, lá estava Mozart conversando com Clara, algumas
vezes recitando suas poesias feitas somente para ela.
A princípio ele não deu maior importância ao que via,
imaginou que seria uma amizade passageira, sem consequên-
cias futuras, pois não via nele um bom partido para a filha.
José Alencar tinha por ele mais dó que admiração,
não o percebia como um homem segundo o seu modelo,
ou seja, Mozart não era valente, trabalhador, corajoso e
forte, era, na verdade, fraco, tímido demais, medroso, in-
dolente, sem objetivos práticos: - era um homem que não
abandonava seus sonhos, vivendo mais deles que da reali-
dade. Mozart, na ótica de José Alencar, era o oposto do que
ele desejava para sua filha.
À medida que notou que a cada dia eles estavam mais
próximos e que daqueles encontros juvenis e ingênuos po-

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deria nascer uma relação mais séria, José Alencar elaborou
um plano para dificultar esses encontros, que podiam levar
Clara para um caminho que não era o desejado.
Algumas vezes, em rodeios, conversava com Clara
diretamente sobre o relacionamento dela com o poeta. Ela
parecia não demonstrar nenhum grande envolvimento
por ele, dava a impressão, nessas conversas, que via nele
um amigo, somente isso e nada mais que isso. Decidiu,
após pensar muito, esperar um pouco mais na esperança
de que aquela amizade se desfizesse por si mesma, sem
ação sua. Possivelmente, após certo tempo, um estaria en-
joado do outro. Além disso, como ele pretendia estudar
fora de Cachoeira do Assento, o contato diário entre eles
acabaria.
Ainda nessa época, Mozart, atraído pelos poetas e
escritores de Cachoeira do Assento, passou a frequentar a
“Academia de Letras” da cidade, uma agremiação artísti-
ca dedicada à poesia, música e letras de música, fotogra-
fia, crônicas, romances e outras formas de arte. Durante as
reuniões, Mozart e outros amigos discutiam seus projetos
e criações artísticas, declamavam as últimas poesias por
eles produzidas e no final das apresentações aplaudiam o
apresentador da produção. Alguns dos participantes desse
grupo levavam violões, outros flautas, gaitas, bem como
diversos outros instrumentos para exibir suas novas melo-
dias. Outros ainda, orgulhosos, mostravam as fotografias
recém-tiradas ou quando faltavam essas, as antigas eram
apresentadas, comentadas e selecionadas para concorrer a
concursos.

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Também eram lidos contos e crônicas, expostos os úl-
timos quadros pintados, às vezes vendidos para os assis-
tentes amigos e parentes do artista plástico.
Hermeticamente fechado, o grupo de intelectuais, or-
gulhoso de seu status, vivia dos elogios que cada um dos
componentes fazia ao outro ou a eles mesmos.
Envaideciam-se com as apresentações e palmas que
ecoavam após a leitura de um conto, da mostra de um qua-
dro recém-pintado ou da última fotografia tirada. Entretan-
to, para tristeza dos elementos do grupo, jamais um deles
conquistara um lugar de destaque em qualquer área artís-
tica concorrida e de renome. O sucesso dos artistas perma-
necia ali mesmo em Cachoeira do Assento, não alcançava a
cidade mais próxima.
Os elogios feitos acerca das obras produzidas fica-
vam encerradas na cidade, entre os representantes da “in-
teligência” local, de uns para os outros.
A população não-artística, incapaz de avaliar a capa-
cidade criadora de seus conterrâneos e também indiferen-
te às suas produções, repetia entre si as frases escutadas e
criadas pelos elementos do próprio grupo dos intelectuais:
— Mozart é muito inteligente: escreve poesias lindís-
simas.
— Gosto mais das crônicas de Mauro.
— Nunca tive o prazer de lê-las. Há pouco tempo, no
bar do Nhonhô, ouvi uma poesia de Herbert, declamada
por ele mesmo... Uma beleza de peça literária.
— Sobre o que versava a poesia?
— Ah... isso eu não lembro. Acho que sobre o amor.
Não sei!

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Mozart era um dos sócios mais atuantes da “Acade-
mia de Letras”, apesar de sua terrível timidez, chegando
a tremer e suar profusamente quanto tinha que falar em
público. O grupo, entre eles mesmos, chamava a academia
onde se reunia de “Arcádia”.
Mozart sempre apresentava uma ou outra poesia,
recitada com invulgar orgulho, num tom de voz rouco e
quase inaudível, sempre com uma contração facial de sa-
tisfação orgulhosa devido à sua brilhante criação. Ao ter-
minar sua declamação, Mozart sempre dava um sorriso de
vitorioso para a plateia e, em seguida, ficava esperando
as palmas efusivas por um longo tempo. Ficava furioso
quando elas duravam pouco tempo.
Durante os intervalos entre uma e outra apresenta-
ção, os intelectuais e artistas da cidade reuniam-se em pe-
quenos grupos para saborear o chá ou suco de maracujá
acompanhado das quitandas fabricadas por D. Marta: bis-
coitos de polvilho, bolo de fubá, quebra-quebra e rosca.
Nesses momentos usavam solenemente palavras
apropriadas, de preferência quase nunca usadas entre o
povo e até mesmo entre eles, que simbolizavam muito abs-
tratamente temas ou eventos poéticos. Entretanto, para um
neófito, a conversa entre eles era inteiramente incompreen-
sível, pois as palavras usadas não possuíam uma relação
com a realidade sensorial – olhos, ouvidos, gosto, tato ou
olfato – desse modo, o ouvinte jamais conseguia formar al-
guma ideia ou representação do que estava sendo falado.
As palavras pronunciadas pelos intelectuais eruditos
voavam livres pelo espaço, sem se ligar a nada, a não ser nelas
mesma, produzindo um vazio total da realidade descrita.

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Mas todos, sem exceção, comentavam com um en-
tusiasmo poético seus novos feitos, seus planos atuais e
futuros.
Mozart, há muitos meses, talvez anos, tinha idealiza-
do um projeto, ainda não concretizado: o lançamento de
um livro de poesias de grande porte, enfeitado com repro-
duções de suas pinturas. Ele acreditava que seu livro seria
um sucesso nacional, não só pela qualidade excepcional
das poesias, mas também pela beleza das pinturas que se-
lecionou para serem mostradas.
Clara, algumas vezes convidada, ou melhor, forçada
por Mozart, comparecia às reuniões da “Academia de Le-
tras”. De fato ela jamais se interessou pela arte ali mostrada.
Ela pôde confirmar o que já observara: cada um dos com-
ponentes do grupo se esmerava como podia para expressar
os pensamentos da maneira mais complexa possível. Clara,
muito simples, talvez ingênua, não compreendia a razão
de agir daquela forma, usar frases complicadas quando as
simples poderiam ser mais bem compreendidas e podiam
atingir a mais pessoas. Quando ela assistiu às reuniões so-
lenes, como a posse de novos intelectuais da “Academia”,
quase sempre, por mais que prestasse atenção e se esforças-
se, não entendia o que a maioria deles dizia.
Às vezes pensava: - “Será que para ser membro desse
grupo, todos são obrigados pelo estatuto a usar esse tipo
de linguagem? Mas, nesse caso, por que será?”

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4º Capítulo

Os diferentes irmãos: Pedro e Gabriel

Nas pequenas cidades do interior, geralmente os mo-


radores eram conhecidos uns pelos outros. Assim, um dos
amigos fraternos de Mozart era Pedro, filho de José Alencar.
Pedro, desde cedo, ao contrário do amigo, era muito simples
e humilde, tanto na maneira de falar quanto aos seus planos.
Gostava da vida da fazenda, detestava ler livros e mesmos
jornais. Ele se alegrava com o contato com a natureza, com
o estímulo dos órgãos sensoriais e não do intelecto.
Excitava-se com o que via, ouvia e sentia de maneira
geral. Sentia-se feliz e realizado ao cuidar do gado da fa-
zenda, em ver um bezerro nascer e crescer, curar uma vaca
estropiada, fazer o queijo com o leite que ele mesmo tirou.
Ficava feliz vendo o corte das canas de açúcar do ca-
navial, da sua moedura no velho e cansado engenho pu-
xado por um burro, horas e horas a fio, levando o caldo de
cana diretamente a um enorme tacho de cobre, colocado
em cima de um fogão a lenha, onde seria fervido por ho-

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ras, até engrossar e queimar um pouco, quando então era
transferido ainda líquido para as formas de madeira apro-
priadas para fabricação artesanal de rapaduras.
Todos esses processos, desde a colocação do gado no
curral para começar a tirar o leite, até a feitura do queijo,
e desde o corte pela manhã da cana, até a fabricação final
da rapadura, alegravam e animavam muito mais Pedro
do que as reuniões aborrecidas da Academia. Pedro, al-
gumas vezes presente nas reuniões de Mozart pressiona-
do pelos convites do amigo poeta, com pesar lembrava-se
que, numa hora daquelas, poderia estar tirando leite de
Formosa, para depois soltar seu bezerro que alegremente,
balançando o rabo para um lado e outro, corria rápido
para o peito de sua mãe para sugar o restante do leite que
foi deixado para ele se alimentar.
Tudo aquilo que Pedro vivia era considerado por ele
como mais atraente e mais belo do que os discursos vazios
de conteúdos dos membros da “Academia”. A vida para
Pedro era, além de presenciar e sentir o espetáculo da tira-
da do leite e da fabricação da rapadura, também se diluir
no barulho continuado da moenda triturando o milho jo-
gado na enorme peça de madeira afunilada que, tempos
em tempos, deixava cair, na sua parte mais fina, alguns
poucos grãos de milho. Estes, uma vez triturados, trans-
formavam-se num fino pó de fubá, de pequenos pedaços
do milho quebrado e de farelos que esvoaçavam diante do
vento, olhados por uma fresta do sol.
Lá dentro do cubículo podia-se se sentir o balanço da
tosca construção, um movimento provocado pela força da

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água que girava a engrenagem provocando o movimento
da pedra moedora dos grãos de milho.
Enquanto ouvia as poesias recitadas com invulgar
entusiasmo, Pedro lembrava-se da fazenda, dos cafezais
floridos, do amadurecimento e da beleza dos frutos aver-
melhados e adocicados antes de amadurecerem totalmente
e ser apanhados. As dezenas de “apanhadoras” de café, be-
las, graciosas e sedutoras, seu canto melódico e nostálgico
contando as coisas da vida do campo, das paixões e des-
graças do homem pobre, sem teto e apaixonado, sonhador
e sem amor.
Assentado e preso nas cadeiras do salão solene onde
se realizava a sessão da Academia, Pedro lembrava-se, com
saudade, da secagem no enorme terreiro de café, prepara-
do durante os meses de junho e julho. Era nessa ocasião
que era realizada na fazenda uma grande fogueira de São
Pedro e São Paulo, por coincidência dia de seu aniversário.
Enxergava o toldo colocado no terreiro onde, antes, o café
tinha sido secado. Observava os trabalhadores, agora meta-
morfoseados por algumas horas em dançarinos e cantores,
homens e mulheres jovens e fortes, que dançavam e canta-
vam suas melódicas canções durante toda a madrugada.
Ao lado, uma enorme fogueira queimava durante a noite,
esquentando os prazeres dos assistentes mais desanimados
ou cansados.
Ao ver o orador interromper sua declamação para to-
mar um pouco de água, Pedro lembrou-se da pinga servida,
dos licores de jabuticaba e de uva, do bolo de fubá com queijo
assado na hora no forno dentro da fazenda, dos cobus e de-

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pois de tudo isso, do doce de cidra, de laranja e de leite e de
um continuado café cheiroso que era servido sem parar.
A festa só acabava quando o Sol nascia no horizonte e
fazia desaparecer vagarosamente a neblina que encobria to-
das as coisas.
Perplexo com o que assistia, vendo o amigo dileto en-
tusiasmado, Pedro se perguntava: “O que leva uma pessoa
a abandonar uma realidade experimentada e sentida dire-
tamente, bela por si mesma e larga tudo isso, passando a
procurar viver de ideias inventadas, a maioria delas que
não se referem à realidade percebida com nossos órgãos
dos sentidos? Seria algum defeito no seu cérebro? Um cére-
bro que não capta os belos estímulos fornecidos pela cana
de açúcar, pelos cafezais, pela vaca com o bezerro e o moi-
nho e fabricação da rapadura.
— Ou, quem sabe, eu sou um bobo que não é capaz
de apreciar a imensa “beleza” dos versos e das pinturas
que olho e nada vejo?”
Pedro retornou ao mundo de Mozart quando este se
aproximou e lhe disse entusiasmado:
— Pedro, um homem precisa ler, conhecer a si e aos
outros. A partir daí ele deve criar, para deixar para seus
descendentes e para a sociedade, a sabedoria que conse-
guir acumular. Nós, intelectuais, temos uma dívida para
com os não-intelectuais. Precisamos ajudá-los a ter acesso
às letras, transmitir-lhes um pouco, pelo menos um pouco,
da sabedoria que acumulamos com o passar dos anos.
Pedro achava tudo aquilo muito esquisito. Ele vivia ou-
tra vida. Desse modo, sem compreender o amigo, o perdoava.

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Não se importava com as exortações de Mozart, ele tinha
outros planos, menos elevados, muito mais simples, con-
tinuaria com eles. Ele duvidava de tudo aquilo que ouvia
do amigo e que também não desejava, não acreditando
possuir o potencial dos seus companheiros e amigos fre-
quentadores da “Academia” da cidade. Após ir a umas
poucas reuniões e sem falar com ninguém, por achar tudo
aquilo uma chatice, Pedro decidiu parar de frequentar as
reuniões patrocinadas pelo grupo do amigo.
Gabriel, diferente do irmão de Pedro, jamais foi um
apreciador da vida no campo. Ele falava sempre com seu
pai que gostaria de procurar um outro tipo de vida, num
lugar grande, com muitas pessoas, casas, carros e movi-
mento, isto é, longe de onde morava. Foi pensando assim
que, logo que completou seus dezoito anos, José Alencar
concordou que o melhor para ele seria se preparar para
a vida adulta e, para isso, estava na hora de arrumar um
trabalho numa outra cidade, de preferência bem longe da
proteção dos pais. De forma mais simples e direta, José
Alencar lhe disse que era chegado o momento dele partir
e viver por conta própria, depois arrumar uma compa-
nheira para constituir sua família, já que não dava para
morar em fazenda. Prontamente Gabriel concordou, fi-
cando animado com a perspectiva de sair de Cachoeira
do Assento.
Pensando de modo diverso do irmão, que era um
apaixonado pelo cultivo da terra, pela criação dos ani-
mais, pela poesia e lirismo da natureza onde vivia, Ga-
briel gostava de gente, conversa, movimento.

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José Alencar lembrou-se de que, há alguns meses,
um primo de Cachoeira do Assento havia lhe perguntado
se algum dos filhos ou alguma outra pessoa do lugar, não
estaria interessado em trabalhar na sua farmácia, na capi-
tal do país, Brasília, pois ele estava precisando de um bal-
conista de confiança. Desse modo, José Alencar decidiu
telefonar para o primo, perguntando-lhe se ainda tinha o
emprego. Prontamente o primo confirmou sua necessida-
de, o que apressou a ida de Gabriel para trabalhar fora do
que ele sempre havia feito, o trabalho do campo. Foi as-
sim que Gabriel partiu para o Distrito Federal onde, atra-
vés de um primo, dono de uma farmácia, passou a morar
e acabou, inclusive, se casando por lá mesmo.
O primeiro emprego de Gabriel foi o de simples bal-
conista de farmácia. Sem lugar para residir, aceitou, atra-
vés do convite do patrão e primo, dormir num cômodo
existente nos fundos da farmácia. Além de vigiar a far-
mácia à noite, durante a madrugada muitas vezes atendia
algum cliente mais necessitado de um remédio. Mas es-
ses fregueses da noite geralmente eram pessoas que bus-
cavam medicamentos simples, como para dor de cabeça
ou de dente, um xarope para tosse, fazer um curativo de
emergência devido a pequenos acidentes, brigas de rua.
Outros ainda batiam em sua porta à procura de um pre-
servativo, ou ainda algum medicamento para vômitos,
cólicas ou qualquer desarranjo inesperado do intestino.
Os atendimentos, na maioria das vezes, eram feitos atra-
vés de uma portinhola de grade inserida na própria porta
de aço que cobria toda a frente da farmácia.

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Uma vez aberta a portinhola, Pedro via apenas uma
parte do rosto do freguês que lhe pedia o medicamento.
Este era buscado e antes de ser entregue, o preço era es-
tipulado anteriormente e o dinheiro recebido, de prefe-
rência já trocado. No caso de curativos, Pedro não os fa-
zia, mas através da portinha e após receber o dinheiro, ia
orientando o indivíduo machucado sobre a maneira dele
mesmo fazer o curativo. Assim acontecia, à medida que
ele ia entregando o pedaço de algodão molhado na água
oxigenada para limpar a ferida, o mercúrio cromo ou po-
mada para colocar em cima da ferida, a gaze e finalmente
o esparadrapo para tampar o lugar.
Ordeiro, disciplinado e ainda sem grandes sonhos
naquela atividade que cumpria devido a não conseguir
outra melhor, Gabriel foi ganhando a confiança do pri-
mo. Após algum tempo, conseguiu entrar como sócio da
farmácia, com as economias que fez e com ajuda do pai.
José Alencar estava contente com a independência e ma-
turidade do filho.
Adaptando-se a Brasília, Gabriel voltava pouco a Ca-
choeira do Assento. Os contatos raros eram feitos através
telefonemas ocasionais devido a aniversários ou notícias
diversas. No fim do ano, geralmente Gabriel ia até Cacho-
eira do Assento ou, caso não conseguisse, não só telefona-
va, como também mandava algum presente – um tipo de
pintos raros comprados numa feira de galinhas, cães de
raça desconhecida pelos seus pais e outros animais.
Quando Gabriel vinha à sua cidade natal visitar seus
familiares, poucas vezes procurava outras pessoas na ci-

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dade e assim afastava-se cada vez mais da vida da peque-
na cidade. Pouco a pouco, o contato de Gabriel com ou-
tras pessoas na cidade foi diminuindo, criando uma vida
diferente da vivida em Cachoeira do Assento não só por
seus ex-amigos, como também por seus pais.

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5º Capítulo

O isolamento de Clara e José Alencar

Cada vez mais poeta, Mozart não conseguiu, por


mais que tentasse, arrumar nenhuma profissão que pudes-
se lhe dar alguma renda para se sustentar. Como sempre,
continuava vivendo com parte do dinheiro que sua mãe
recebia da pensão do pai e do pouco que ela ganhava com
a venda de biscoitos para passageiros de ônibus. Apesar
da falta de dinheiro, Mozart continuou seus estudos, sem-
pre imaginando ter um futuro brilhante.
Desejoso de se tornar um grande poeta, entrou para
um curso de Letras à noite, na cidade vizinha. Um cur-
so que pouco exigia do aluno quanto ao estudo e também
quanto à disciplina. Para ser aprovado nesse curso não era
preciso estudar muito, nem mesmo comparecer assidu-
amente às aulas. Desse modo não foi difícil Mozart ter-
minar seu curso com notas razoáveis para grande alegria,
principalmente, de sua mãe, que não mais precisou pagar
a faculdade para o filho.

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Terminado o curso, Mozart continuou agindo do
mesmo modo que sempre viveu: pintando quadros sem
expressão e fazendo e declamando suas poesias insossas.
Mas ele continuava a se auto-elogiar como sendo um gran-
de pintor e poeta. Para ele suas obras ainda seriam reco-
nhecidas pelos grandes artistas do Brasil.
Não conseguia quase nenhuma renda com a venda,
raríssima por sinal, de algum quadro, sendo que seus livros,
editados no computador, não lhe rendiam nada. Portanto ele
não produziu nada de valor pecuniário ou artístico e quase
passando fome, morava e vivia à custa de sua mãe viúva.
Mozart continuava indiferente à realidade que enfrentava,
pois para ele tudo corria bem, nada precisava ser mudado.
Clara, tendo completado 21 anos, estava cada vez mais
atraente e bonita. Após terminar seus estudos no Colégio
Tiago Patrocínio e largar o emprego que tinha na cidade,
retornou ao trabalho da fazenda. Como sempre, acompa-
nhando o pai em suas andanças pelos pastos e plantações de
cana e café da fazenda, passava grande parte do tempo ou
cavalgando, ou dirigindo o jipe para José Alencar. Enquanto
Donana ficava cada dia mais isolada, José de Alencar traba-
lhava ou passava o dia com Clara, cuidando da fazenda.
Para fugir do vazio, Donana aproveitava todas as
ocasiões possíveis para afastar-se da fazenda. Alguns dias
ela passava com Gabriel em Brasília. Outras vezes ela viaja-
va para visitar sua mãe que estava muito doente. Sua mãe,
D. Ernestina, muito velha, tinha há anos pressão alta. Além
disso ela foi durante toda a vida uma fumante inveterada.
Recentemente havia sofrido um derrame cerebral.

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Acamada, piorava a cada dia. A doença da mãe era
sempre um bom motivo para que Donana se afastasse da
fazenda sem ter que dar maiores explicações, geralmente
por diversas semanas ou meses. Nessas ocasiões, poucas
vezes ela dava ou recebia um telefonema do marido.
Pedro, pouco mais velho que Clara, apesar de traba-
lhar na fazenda executava atividades diferentes da irmã,
assim eles pouco se encontravam, a não ser num raro mo-
mento ou outro, por exemplo num almoço especial quan-
do se reuniam Donana, José Alencar, Pedro, Clara e algum
outro convidado.
Pedro passava mais tempo no campo que em casa.
Vivendo uma vida muito diferente da vivida pela mãe, ele
quase não tinha nada para conversar com ela. Apesar de
trabalhar na fazenda, muitas vezes dormia fora da sede,
numa casa simples, aconchegante e agradável, que ficava si-
tuada junto a um curral de bois e de um paiol de milho. Essa
pequena casa, construída numa grota, distanciava-se seis
quilômetros da sede da fazenda. Ali Pedro tinha sua cama,
banheiro, luz elétrica, rádio e som, fogão e uma geladeira
velha. Era nessa casa que Pedro preparava suas refeições,
sem precisar de ajuda de ninguém, como era sua vontade.
Devido a todos esses fatos, Clara e José Alencar pas-
saram a ser, grande parte do tempo, os únicos moradores
e administradores da fazenda. Ela, sempre ligada ao pai
adotivo, aprendera com ele a detectar com agudeza todos
os problemas e também as soluções para o dia-a-dia da fa-
zenda: contratava e dispensava lavradores, vaqueiros e ou-
tros empregados que ali iam trabalhar.

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Tomava decisões, mesmo na ausência de José de
Alencar, e raramente era criticada por ele por suas ações.
Levantando-se cedo, antes de José Alencar, preparava o
café da manhã para os dois: um desjejum suculento e atra-
ente, que era saboreado com prazer e alegria pelos dois
moradores da fazenda durante as longas ausências do res-
to da família.
Durante esses dias, ainda bem cedo, Clara e José Alen-
car trocavam ideias e faziam planos com respeito às ações
distribuídas para a administração dos negócios deles. Es-
tando quase sempre ocupada na fazenda, Clara a cada dia
se afastava mais também da cidade, indo ali apenas para
executar rápidas tarefas: ir a um banco, comprar uma ra-
ção ou vacina, consultar o veterinário etc. Durante as idas à
cidade, os dois, frequentemente, eram vistos juntos no jipe
dirigido por um deles.
Foi assim que os contatos entre Mozart e Clara, inicia-
dos quando ela trabalhara na loja, apesar de continuarem,
foram enfraquecendo. Portanto, durante os três últimos
anos que ela passou a ficar quase que exclusivamente na
fazenda, eles quase não se encontraram. Uma vez ou outra,
na missa domingueira, a que nem sempre ela ia, os dois se
viam, trocavam cumprimentos e, algumas vezes, conversa-
vam mais tempo quando Clara aproveitava um momento
no qual José Alencar a deixava para conversar com um ou
outro amigo ou parente que por ali passava.

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6º Capítulo

José Alencar faz uma proposta a Mozart

Numa manhã de fevereiro, quando o sol mal despon-


tava, D. Marta, mãe de Mozart, lavava as louças antes de
coar o café. Neste instante ela voltou sua atenção para uma
voz de homem gritando o nome de Mozart no alpendre da
residência. O filho dela, àquela hora, como sempre, ainda
dormia, provavelmente sonhava com suas poesias. Calma-
mente, após enxugar a xícara e o bule no pano de prato, D.
Marta caminhou até a porta para avisar ao visitante ma-
drugador que seu filho dormia.
Demonstrando inquietação e nervosismo, o fazen-
deiro José Alencar, após cumprimentar delicadamente D.
Marta, perguntou:
— Bom dia. Não sei se vim muito cedo. Como me levan-
to cedo, antes das seis, esqueço que nem todos são assim.
— A senhora me desculpe. Estou procurando o Mo-
zart. Ele está?

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— Ah... ele levanta-se tarde. Depois das nove ou dez
horas.
— Mas preciso muito falar com ele. Tenho certa ur-
gência. Poderia, por favor, chamá-lo?
— Ele não gosta. Vai me xingar.
— É um recado e proposta para ele. Acho que ele vai
gostar.
— Está bem. Vou tentar.
José Alencar estava, nesse instante, aflito, receoso de
ter perdido seu tempo e todo seu plano ir por água abaixo.
Dada a insistência do fazendeiro, que parecia muito preo-
cupado e desejoso de encontrar Mozart de qualquer modo,
pois parecia precisar muito de conversar com ele, D. Marta
foi até o quarto e após ter batido várias vezes sem obter
resposta, resolveu entrar no quarto para acordá-lo.
— Mozart! Mozart! Tem visita aí querendo falar com
você.
Mozart acordou assustado e com raiva de estar sendo
acordado a uma hora daquelas.
— Quem é? O que ela quer? Já falei que não gosto de
ser acordado de madrugada!
— Já são sete horas. Não queria te chamar. Mas como
ele insistiu, vim te acordar.
— Quem?
— Pai de Clara. José Alencar.
— José Alencar? O que ele está querendo? Ainda mais
a uma hora destas.
— Não sei, não. Também não perguntei e se pergun-
tasse não sei se ele ia falar. Vai lá ver o que ele quer.

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— Mande entrar. Vou me levantar. O que será?
Mozart levantou-se assustado. Preocupado com a
visita de José Alencar àquela hora, ele imaginou que só
podia ser alguma coisa séria, pois isso jamais acontecera.
Após molhar a cara na água fria para espantar o sono, Mo-
zart se vestiu rapidamente e em seguida bebeu um pouco
de café puro e foi atender o visitante sempre questionan-
do: “O que ele está querendo de mim?” Não encontrou
nenhuma resposta para sua pergunta.
Intrigado com a visita fora de hora e sem aviso, Mo-
zart caminhou sério e tenso até a sala onde José Alencar,
andando de um lado a outro da sala, o esperava. Com difi-
culdade, o fazendeiro, esforçando-se em se mostrar calmo
e natural após dar um aperto de mão a Mozart e um sorri-
so sem expressão, sentou-se e manteve-se preso à cadeira
após ser convidado para isso.
Começou a conversa com dificuldade e aos borbo-
tões e sem se dirigir prontamente ao assunto desejado.
Desviando o olhar da face de Mozart, José Alencar inicial-
mente procurou agradar ao rapaz fazendo uso, proposital-
mente, do que ele mais gostava:
— E as poesias? Tem produzido muito? Eu não tenho
jeito para isso. Nunca fiz um verso, mas admiro os poetas:
são homens muito inteligentes, não um atrasado como eu.
Se estivesse em seu lugar, fazendo poesias, seria um ho-
mem feliz. Ao contrário de você, sou um homem bruto, um
grosseiro do campo. Nunca fui capaz de fazer essas coisas
delicadas e bonitas. Acho que deve ser muito bom criar be-
los versos, principalmente os relacionados ao amor.

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— Que nada, Sô José Alencar. Faço uns versinhos
de nada. Mas Deus é grande, acredito que ainda serei um
grande poeta e pintor, gosto muito de pintura também.
— Não sabia! Deve ser muito agradável poder pintar
uma paisagem. Quando você quiser, vá nos visitar, dê uma
volta na fazenda e pinte um quadro lá. Será um prazer para
nós. Na fazenda há muitos lugares bonitos. Você já esteve
lá algumas vezes, eu sei disso, entretanto os lugares para
serem pintados ficam mais escondidos.
— Uma hora irei, se o senhor me convidar.
— Está convidado desde já. Não deixe de levar os
pincéis, tintas e a tela. Vai dar um quadro bonito. Já estou
vendo ele aqui.
Após dar uma parada, apontando para a testa, conti-
nuou: — Aqui dentro na minha cabeça.
A conversa continuou por algum tempo nesse pé, com
rodeios e mais rodeios, agrados e mais agrados do visitante
José Alencar para o visitado Mozart. Este continuava sem
saber os motivos da visita, imaginava uma e outra coisa,
mas prontamente criticava sua própria imaginação.
Depois de alegrar bastante Mozart com seus elogios,
José Alencar imaginou que o momento havia chegado. Es-
tava na hora de entrar no assunto sério e complicado que o
levou até ali.
— Você é um rapaz bonito, elegante e, além disso,
intelectual, admirado por todos na cidade.
— Que isso, Sô José... faço uns versinhos, apenas isso.
— Ora, que modéstia. Grandes versos, todos falam
isso a seu respeito.

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Eu não entendo, já disse. Mas, voltando ao assunto:
acho que se seu pai estivesse vivo – que Deus o guarde
em bom lugar – ele teria um grande orgulho de você, por
seu grande talento. Sua mãe, eu sei, te elogia muito, gosta
muito de você.
José Alencar não falava conforme pensava. De fato,
ele não concordava com a vida de boêmio que Mozart le-
vava. Para ele o poeta era a antítese do homem que ele
valorizava. Entretanto, naquele momento, era importante
conquistá-lo conforme o plano elaborado que ele começa-
va a tentar pôr para funcionar. Sabendo com clareza o que
desejava, José Alencar continuou seu discurso:
— Mozart, temos poucas pessoas em Cachoeira do
Assento tão cultas e sábias como você.
Mozart, após encher os pulmões de um ar orgulhoso,
sorriu sem jeito e timidamente e conforme seu estilo, abai-
xou o rosto carregado de vergonha. Ele sentia estar num
ambiente estranho: recebia um excesso de elogios de um
fazendeiro, até agora julgado por ele como uma pessoa que
jamais apreciou sua maneira de viver, de suas poesias e de
sua vida bastante despreocupada. Mas para manter a con-
versa no nível em que estava, continuou no mesmo tom:
— Sou apenas um aprendiz, faço o que posso. Es-
forço-me. O que sei transmito para os companheiros da
“Academia”. Como fui convidado pelo senhor para visitar
a fazenda e lá pintar um quadro, também humildemente
retribuo o convite: convido-o para dar um pulo, quando
tiver um tempinho, e ir à minha “fazenda”, ou seja, ir as-
sistir a uma reunião da “Arcádia”.

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— Lá não tem boiada, nem cafezal e canavial, tem
apenas leituras, declamações e mostras de pinturas. Mas
isso também tem seus encantos, como a natureza viva e
sensível.
— Sim, preciso aprender alguma coisa. Só sei me-
xer com bichos e plantas. Sou inexperiente com gente. Irei
aprender muito.
— Na próxima semana teremos nossa reunião e nesta
irei declamar a última poesia que fiz, “Nuvens e Ventos”;
será terça-feira, às 8 horas da noite.
— Pode me esperar. Irei com muito prazer, disse rá-
pido José Alencar, imaginando a perda de tempo que seria
ouvir a declamação de “Nuvens e Ventos”. Para ele, olhar
e sentir as nuvens e os ventos era mais agradável que ouvir
versos sobre o que ele sentiu durante toda sua vida. Perce-
bia que era necessário que ele saísse daquele caminho pelo
qual a conversa, contrário aos seus desejos, enveredou.
Enquanto imaginava com repugnância a sessão de poesia,
preparava-se mentalmente para expor o mais importante,
o que ele foi, na verdade, fazer ali. Foi assim que retoman-
do o assunto-guia, José Alencar continuou agora num tom
mais solene e tenso:
— Por falar em convite, tenho uma proposta interes-
sante para você.
Chegara o momento: agora ele iria falar o motivo
desejado e temido. Nesse instante José Alencar pigarreou,
limpou a garganta, tirou um lenço branco do bolso de trás
da calça de brim para enxugar o suor que, apesar do frio da
manhã, escorria na sua testa.

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Parou de falar por um instante. Mozart, quieto e em
silncio, olhava-o, esperando o resto de seu pensamento que
não saía. Depois de uma pausa terrível para José Alencar,
decidido e firmando o tom da voz o máximo possível, sol-
tou pouco a pouco a ideia que escondia. Não podia assus-
tar o seu interlocutor com tudo de uma só vez.
— Você ainda não quis se casar, não é?
— Sim... é... ainda não. - Respondeu Mozart encabu-
lado e sem entender a razão da pergunta.
— Já arrumou algum emprego? Sei que se formou,
terminou o curso de Letras. Não entendo, como lhe falei,
nada de sua área. Mas, dando meu palpite: talvez o salário
de professor não lhe dê oportunidade de constituir uma
família com algum conforto. Acredito, repito, e peço des-
culpas, nesse assunto não sou bom: não se ganha muito di-
nheiro com poesias e pinturas.
— Quase nada! Só quando se é muito famoso, espero
chegar a isso. Ainda não consegui um emprego no Colégio,
mas de qualquer forma o salário é pequeno e, além disso,
toma muito tempo da pessoa. Se conseguisse e aceitasse o
emprego de professor no colégio, eu teria que diminuir mi-
nha produção literária. Isso seria uma lástima!
— É claro! Compreendo. Isso não pode ocorrer! Você
deixar de pintar seus quadros e de produzir suas poesias.
José Alencar sentiu que estava na hora de falar a essência
do desejado. Aproveitou a ocasião, ao sentir-se mais segu-
ro. Faltava pouco para que seu plano pudesse ser exposto
e já imaginava, antes de expressá-lo, que ele tinha tudo
para dar certo.

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— Não quero um emprego que vai me pagar mal e
me impedir de fazer o que gosto. Na verdade, sinto falta
de dinheiro e o pouco que tenho vem de minha mãe. Ela
recebe pensão de meu pai e vende muito pouco, diga-se de
passagem, biscoitos e outras quitandas para os passageiros
dos ônibus que têm um ponto de parada aqui na cidade.
Vivemos em constante dificuldade financeira.
José Alencar respirou fundo. Mozart, sem querer, ia
preparando o ninho para que ele pousasse com tranquili-
dade: a dificuldade financeira, a exigência de um trabalho
para o qual ele não era qualificado e a sua grande paixão
pela poesia e pela boa vida. Mais seguro, até um pouco
irado com tanta indolência, afirmou, procurando termi-
nar sua estratégia elaborada na véspera de comum acordo
com Clara.
— Tenho um grande apreço por Clara. Quero um fu-
turo muito bom para ela, apesar de ser apenas filha adoti-
va. Com o passar do tempo eu sinto que fiquei muito preso
a ela. Mais ligado a ela do que aos outros filhos, Pedro e
Gabriel. Você sabe! O pai se apega mais a filha mulher, os
homens têm sua própria vida, são mais independentes e
nem ligam para a gente. Não tenho nada contra meus fi-
lhos, gosto muito deles. Entretanto tenho pouco contato
com eles. Com Clara é diferente. Você, por exemplo, sei que
você e Pedro foram e são amigos. Ele fala acerca de você
com muito carinho, entretanto quase não se encontram.
— Sim, gosto muito dele. Ele gosta muito do campo,
dos encantos da fazenda: gado e plantações. Ele gosta de
viver junto à natureza e de discutir os fatos do campo. As-

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sim, vivendo vidas diferentes, fomos perdendo um pouco
de nosso contato. Ele está bem, não está?
— Sim! Eu mesmo passo dias sem vê-lo, dorme mui-
tas semanas enfiado numa casa que tenho no meio de mi-
nhas terras. Ele gosta da solidão...
José Alencar percebeu que novamente ia se perdendo
numa conversa que não lhe interessava. Precisava retomar
sua ideia-chave. Mas antes que voltasse ao assunto princi-
pal, Mozart, lembrando-se de Gabriel, voltou a falar:
— Eu e Gabriel também somos bons amigos.
— Sei disso.
José Alencar imaginava: “Preciso terminar e falar ra-
pidamente o que vim fazer aqui”.
Retomando a direção da conversa continuou decidi-
do a resolver logo tudo o que precisava. Não aguentava
mais continuar aquela complicada e difícil proposta:
— Mas... você e Clara também são bons amigos, quan-
do ela trabalhou na loja, vocês se encontravam muito.
— Sim, ela é uma moça inteligente, fomos bons amigos.
Agora ela está sumida. Tenho tido poucas notícias dela.
— É... ela tem por você uma grande amizade. Penso
até que vocês já andaram namorando, um namorico escon-
dido, quando ela trabalhou ali em frente...
— Não, não chegou a isso. Conversava muito com ela
quando ela era minha vizinha. Convidava-a e ela foi co-
migo a algumas reuniões da “Academia”. Mas não passou
disso. Nunca houve namoro.
José de Alencar estava prestes a falar tudo de uma
só vez. Entretanto segurava sua ansiedade para dar o bote

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com cautela, como a onça para pegar sua presa, que pode-
ria fugir e escapar caso ela demonstrasse que ia atacá-la.
Parece que sua caça estava começando a ficar distraída. Es-
taria ou não na hora do ataque fatal? - Perguntava para si
mesmo José Alencar, ao decidir investir mais a fundo.
— Ora, você está escondendo o jogo.
E continuou:
— Penso que ela tem uma grande paixão por você.
— Nunca notei. Penso que ela gosta de outro, entre-
tanto nunca me falou sobre isso. Bem que tentei. Ela é mui-
to discreta.
— Quem sabe o grande amor dela é você? Como sabe,
ela fala muito sobre você, está constantemente te elogian-
do, não só quanto à parte física, mas principalmente quan-
to à sua inteligência, sabedoria e cultura.
— Clara? Comigo? O senhor está brincando. Nunca
notei isso. - Falou com tristeza, espantado com o que ouvia.
— Sim. Fala sobre você. Ela, como você, é tímida. Não
fala diretamente com o interessado o que pensa. Entretan-
to, como ela tem liberdade comigo, nós somos íntimos, não
escondemos nada um do outro, conta-me tudo e contou-
me, em segredo, que gosta muito de você.
José Alencar não mais aguentava rodear o assunto.
Chegara a hora de mostrar o que veio fazer naquela ma-
nhã. Em seguida, postando a voz, afirmou, para impedir
que Mozart entrasse novamente na conversa e o interrom-
pesse antes de terminar o que queria:
— Vim aqui para isso: vim lhe oferecer a mão de mi-
nha filha querida. Acho que está na hora de ela arrumar um
marido. Pensei em você por dois motivos: um, porque ela

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gosta de você, o outro, porque penso que você também a
aprecia. Ela é uma moça excelente, bonita e inteligente, tra-
balhadeira. Ela será uma ótima esposa e melhor ainda uma
excelente mãe para seus filhos que, com certeza, nascerão.
Desse jeito José de Alencar terminou de desabafar o
levou até ali. Só agora conseguiu falar o que durante a noi-
te toda, após uma conversa desesperadora com Clara, os
dois decidiram fazer para buscar uma solução nobre para o
grande problema que enfrentavam.
— Está me arrumando um casamento? - Perguntou
Mozart assustado, sem demonstrar repúdio à proposta.
— É e não é. - Apressou-se José Alencar e retomou:
— Estou querendo colocar juntas duas pessoas pelas
quais tenho grande simpatia, e que o destino, temporaria-
mente, separou.
— Você me pegou de surpresa. Não tinha pensado
nisso, nem imaginava me casar, pois minha vida é boa, fal-
ta dinheiro, é certo, mas esse eu irei ganhar com a venda
de minhas obras. Você sabe como é a vida de um artista. A
gente se entusiasma mais com a arte que com a construção
de uma família.
José Alencar estava ficando irritado, notava que preci-
sava se acalmar. Estava se forçando a agradar a uma pessoa
pela qual ele não nutria nenhuma simpatia, entregando sua
filha querida a esse indivíduo indolente, dependente e fraco.
Precisava voltar a ser delicado e terminar de comple-
tar seu plano:
— Mas Clara é muito dedicada, irá te ajudar fazendo
sua comida, lavando suas roupas, arrumando sua casa e, bem

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sabe, mais outras coisinhas que ela poderá aprender a fazer,
coisas que eu sei que te farão muito feliz. Todo homem preci-
sa de uma mulher, de constituir uma família, de ter filhos...
José de Alencar, focalizando e examinando a expressão
facial de Mozart, começou a acreditar que seu plano daria os
resultados esperados. Mozart estava fascinado por suas pa-
lavras. O fraco e indolente Mozart, que tanto acreditava nas
emoções produzidas pelas palavras de sua poesia, não perce-
bia que estava sendo encurralado também por termos carrega-
dos de emoções, frases expressas por um fazendeiro simples.
José Alencar, mais sagaz, levava seu inimigo para onde
desejava. Mozart ia mordendo a isca lançada pelo fazendei-
ro, que o cercava com argumentos impiedosos. José Alencar,
mais bem treinado e maduro, sabiamente usava, para alcan-
çar seus objetivos, suprir as necessidades, o orgulho e as me-
tas imaginárias do sonhador. Como num “conto do vigário”,
o fazendeiro, aparentando estar ajudando o poeta conforme
os princípios organizadores da vida deste, sutilmente condu-
zia Mozart para dar solução aos seus problemas pessoais.
— Como sabe? - Retrucou já enfraquecido o poeta,
que quase cedendo, continuou:
— Clara pode não gostar disso, do meu modo, pode
não simpatizar comigo...
— É, bem...
A voz de José Alencar saiu com dificuldade, seu rosto
ficou avermelhando, respirou fundo e falou depressa, doi-
do para acabar com a difícil conversa.
— Eu conheço minha filha, sei que toda mulher com
a saúde que ela tem, com a alegria e felicidade que ela traz

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dentro do corpo, gostará dessas coisas também. Eu sei que
você gostará da companhia dela.
— É... vou pensar.
José Alencar sentiu que ganhara a batalha. Precisava
agora apressar a execução dos pormenores, pois já tinha
pensado, muito antes de Mozart, em tudo.
— Não precisa pensar. Sei que, como homem inteli-
gente que é, está preocupado, principalmente, com os gas-
tos com as despesas para montar uma casa, os móveis, e
depois, caso venham os filhos, como arcar com todos esses
gastos. O principal eu sei: que você gosta dela e, além disso,
o amor vai crescendo com o contato. Não precisa se preo-
cupar. Você não escolheu sua mãe e no entanto à medida
que vive com ela, gosta dela cada vez mais.
— Claro! Pensei em tudo isso, nos aspectos relativos
aos gastos. Não tenho condições para me casar agora, pre-
ciso de tempo para montar uma casa e depois cuidar de
uma pessoa. Você bem sabe: não tenho dinheiro para isso.
— Não se preocupe com isso, falou prontamente José
Alencar. Ele já esperava essa resposta desde ontem à noite.
Agora já tinha certeza que seu plano iria se concretizar: o
coelho estava preso na armadilha. A raposa apenas espera-
va o momento propício para devorá-lo.
Aproveitou o sucesso para completar:
— Tenho casas aqui na rua, vocês poderão morar
numa delas e, além disso, você sabe como é uma fazenda.
Lá eu tenho leite, verduras, arroz e feijão, carne, tudo enfim
do que vai precisar para morar e comer. Não se preocupe.
Isso fica por minha conta. Além disso, mais tarde, quando

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ficar famoso como artista, ficará encarregado de cuidar fi-
nanceiramente de sua família. Por enquanto eu faço isto.
Quero seu bem e o dela, na vida nós devemos ser solidários
com as pessoas, pois só assim alcançaremos o reino de Je-
sus. Faço tudo que posso para Clara viver feliz.
— Se é assim, penso que aceito vê-la e começar o na-
moro.
— Não! Falou angustiado José Alencar.
— Um gosta do outro. Não precisam mais namorar.
O casamento deverá ser realizado já! O mais rápido possí-
vel! Adiar, nunca!
Ele queria marcar já o casamento e assim apressou-se
a dizer, quase sem respirar:
— Para quê esperar? Vocês se conhecem desde a in-
fância, você gosta dela e ela de você. Além disso, eu irei
ajudar. É minha palavra, não irá faltar nada para vocês dois
e para os filhos que nascerem. Você terá o que precisar. Va-
mos marcar o casamento para o fim do mês.
— No fim do mês? Isso será daqui a quinze dias. É
muito perto. Melhor seria daqui a dois meses. Assim tería-
mos tempo para nos aproximar, examinar se um gosta do
outro e nos preparar.
— Não! Para quê?
O fazendeiro sabia o que queria. O casamento não po-
dia ser adiado, esse aspecto era importantíssimo para José
Alencar. Estava fora do que planejara. O casamento teria
que ser realizado o mais rápido possível. Imaginando que
toda a difícil conversa pudesse dar errado, ele repetiu, qua-
se como uma ordem, seus desejos:

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— Vou começar a providenciar. Eu cuido de tudo: os
papeis, festas, convites. Vamos fazer um casamento com
poucos convidados.
— Mas tão rápido assim... Pode dar o que falar. Você
sabe o povo da cidade.
— Ora, um intelectual como você não pode se impor-
tar com mexericos de idiotas, preocupados com uma moral
antiquada, costumes que já estão enterrados. E, além disso,
de querer dar ordem às decisões das pessoas.
— De fato você tem razão. Não temos nada que ouvir
os outros, devemos ouvir nossa própria consciência, deci-
dir por nós e não pelos outros.
Mozart percebia que sua vida poderia mudar: não
mais precisar pensar em dinheiro, ter sua própria casa, ter
uma mulher e, principalmente, ter sossego e tempo para po-
der pintar seus quadros e criar suas poesias como desejava.
— Lógico!
Nesse instante, e o mais rápido possível, José Alencar
foi se levantando, preparando-se para sair. Não queria dar
tempo a Mozart para refletir sobre a proposta indecente.
Era preciso decidir levado pelas emoções. Ele tinha medo
de Mozart desistir do compromisso assumido como dois
homens livres e inteligentes que eram.
Entretanto, tinha quase certeza que o poeta estava sa-
tisfeito com o oferecido.
— É... não sei bem. Tá certo. Pode ir tomando as me-
didas. O casamento será no fim do mês, não é?
— Sim! No fim desse mês. Aparece hoje à noite na fa-
zenda para jantar comigo e Clara. Estamos sós, Donana está

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viajando. Já conversamos sobre isso. Seremos apenas nós:
eu, você e ela. Seu amigo Pedro está no rancho dele, qua-
se não aparece, somente um dia ou outro. Iremos juntos
comunicar a decisão à Clara. Ela ficará muito alegre. Até
mais tarde.
— Até à noite. Estarei lá conforme o combinado
A cabeça de Mozart estava fervendo de planos: podia
agora criar mais poesias e pinturas, fazer o que ele sempre
quis, sem a intromissão de sua mãe que, constantemente,
reclamava de sua passividade e sonhos. Por outro lado,
José Alencar saiu aliviado: conseguira o que desejava, ar-
rumar um marido adequado para Clara.

O jantar do noivado

À noite, conforme o combinado, reuniram-se os três


na fazenda. Sem demonstrar ansiedade, Clara recebeu a
notícia naturalmente, aceitando o determinado por José
Alencar, não só o casamento, como também a data de sua
realização, além dos padrinhos e os demais convidados.
O jantar, canjiquinha com costelinha de porco com couve,
preparado pela própria Clara, foi degustado com prazer
e rapidamente pelo grupo. Os três participantes do jantar
pouco conversaram.
José Alencar evitou durante todo o jantar conversar
com Mozart sobre o discutido durante a manhã, fugindo
assim de outras explicações que pudessem atrapalhar a es-
tratégia usada e que até aquele momento estava dando cer-
to. Discutiram apenas como seria realizado o casamento,

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pois tudo já estava sacramentado, principalmente a concor-
dância dos interessados, Clara e Mozart. Nesse encontro
íntimo, Donana e os filhos não compareceram e nem foram
avisados do apressado noivado. José Alencar deixou as ex-
plicações para serem dadas num momento mais apropria-
do, de preferência bem próximo do dia do casamento.
Um brinde à felicidade dos nubentes foi levantado
por José Alencar no final da noite, antes da despedida, após
os acertos finais da data do casamento, bem como a casa na
cidade onde os dois iriam morar. Todas as despesas corre-
riam por conta de José Alencar. Mozart não precisava se
responsabilizar por nada. Ele se sentia feliz por encontrar,
nessa altura da vida, o pai que não teve, tão bondoso como
aquele, pois perdera o seu ainda criança.
Mozart saiu alegre do encontro e enquanto caminha-
va pelo estreito caminho que tomou para chegar a casa,
meditava sobre a possibilidade que teria, a partir do ca-
samento, para dedicar-se e criar melhor suas obras. Como
consequência da euforia, começou a fantasiar, durante a
caminhada, o sucesso que poderia ter nas reuniões da Aca-
demia. Previa inclusive, a inveja dos seus companheiros
de arte.
Dominado por esses pensamentos, despreocupado,
Mozart esqueceu, por instantes, o casamento. Chegou a
casa feliz.
Em seguida retirou de uma gaveta algumas folhas
escritas à mão. Aproximou-se de uma lâmpada mais clara
e leu para si mesmo, entusiasmado, alguns versos que ha-
via feito logo após a visita de José Alencar.

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Olhando seu rosto através do espelho rachado do
guarda-roupa do quarto onde dormia, sorriu para sua ima-
gem. Naquela noite Mozart foi dormir orgulhoso do convi-
te que recebera, um verdadeiro prêmio merecido em virtu-
de de suas grandes qualidades de artista.

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7º Capítulo

O casamento:
José Alencar faz visitas a Clara

O casamento foi realizado como imaginado e deter-


minado por José Alencar. Os amigos e conhecidos con-
vidados e que compareceram, como não podia deixar de
ser, acharam estranha a realização rápida daquele casa-
mento, pois Mozart e Clara, apesar de velhos conhecidos,
raramente se encontravam. Surgiram comentários carre-
gados de suposições, como sempre acontece nas cidades
onde todos conhecem todos. Seguiram-se julgamentos fa-
voráveis e desfavoráveis acerca das causas do apressado
casório.
Como tudo na vida, com o passar do tempo tudo é
esquecido e torna-se sem importância. O casamento dos
dois também seguiu essa regra e, aos poucos, após as pri-
meiras semanas ou meses, as conversas acerca do casa-
mento foram desaparecendo.

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Depois de algum tempo, ninguém mais comentava
o ocorrido. O antes comentado e criticado, tornou-se o co-
nhecido, usual e normal.
A vida de casado dos dois amigos começou tranqui-
la. Clara, disciplinada e obediente, manteve na sua vida a
dois com Mozart uma conduta semelhante à que tinha com
José Alencar. Levantava-se muito cedo, como na fazenda.
Logo depois recebia o leite fresco enviado pelo pai adoti-
vo. Geralmente o leite não vinha só, mas sim acompanha-
do de outros alimentos como arroz, feijão, fubá, canjiqui-
nha, ovos, verduras, carne de porco, galinha ainda viva,
e também de frutas: laranjas, mangas, goiabas, pêssegos,
uvas, etc., conforme a estação.
Após receber os presentes, muitas vezes trazidos pes-
soalmente pelo próprio José Alencar, Clara e o pai conver-
savam animados e descontraidamente por um longo tem-
po, assentados no alpendre da casa. Quando José Alencar
passava mais cedo, com frequência era convidado, e acei-
tava com prazer o convite para entrar e tomar seu segundo
lanche, não só mais rico, como contando com a alegria de
Clara. Como a cozinha ficava bastante afastada do quarto
onde Mozart dormia, o barulho provocado pelo bater das
vasilhas e da conversa, animado pelo tom de voz alto, não
atrapalhava o sono pesado do poeta. Desse modo os dois
podiam falar e rir à vontade sem perturbar Mozart, que
detestava acordar cedo.
Nessas manhãs tranquilas e alegres, Clara, após cum-
primentar com um sorriso doce José Alencar, dava-lhe um
abraço terno e prolongado.

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Em seguida, sempre acompanhada por ele, dirigia-se
à cozinha. José Alencar e Clara, como acontecia na fazen-
da, assentavam-se nas cadeiras colocadas diante da mesa.
Logo depois ela levantava-se para fazer na frigideira ovos
mexidos com queijo, que era sua iguaria preferida pela
manhã. Enquanto ele saboreava os ovos mexidos, ela pre-
parava o café, cuja água já tinha sido colocada para ferver:
um café colhido na própria fazenda, torrado por Clara e
feito conforme o gosto do fazendeiro, ou seja, com mui-
to pó. Durante esses encontros, os dois contavam casos e
riam descontraídos e alegremente conforme o relatado.
Conhecendo bem seus hábitos, Clara sabia com ante-
cedência quando José Alencar tornaria a vê-la. Além dis-
so, pelo aspecto de seu rosto e também pelas roupas que
vestia, ela adivinhava quando ele demoraria mais tempo
em sua casa.
Muitas vezes, como ele tivesse se ausentado por um
ou dois dias sem visitá-la, ou sem entrar para tomar o café,
ela sabia que provavelmente da próxima vez ele arruma-
ria mais tempo para visitá-la. Nesse caso, ela levantava-se
mais cedo e algum tempo antes dele chegar já tinha pre-
parado alguns biscoitos em seu forno de lenha, os quais
eram servidos ainda quentes, juntos com um saboroso
café e um pouquinho do leite fervido trazido da fazenda
naquele instante. Tudo era feito para relembrar o café com
leite que ela preparava para ele na fazenda durante anos.
Outras vezes, antes dele chegar, Clara saía para
comprar os pães de sal na nova padaria que foi aberta na
cidade.

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Escolhia os mais bonitos e torrados, pois sabia o que
o pai gostava.
Enquanto esperava ansiosa a chegada de José Alen-
car, Clara preparava a mesa, os talheres, colocando-os bem
arrumados. Todos os utensílios usados na cozinha foram
presentes dele no casamento. Tudo era feito para agradar
ao máximo o pai adotivo. Entristecia-se nos dias que, em
lugar de sentir o cheiro de gasolina e o som do jipe de José
Alencar, ouvia o barulho do burro caminhando pela calça-
da de pedras de ferro e a voz estridente de João Grilo, um
vaqueiro antigo, gritando:
— D. Clara! D. Clara! O leite chegou.
Nessas manhãs Clara ficava frustrada, seu dia havia
começado mal. Sempre ela o esperava e imaginava esta-
rem juntos, como antes acontecia, tomando o reforçado
lanche matinal, conversando animados e descontraídos,
contando as novidades do dia anterior e os planos para o
dia que se iniciava.
De certo modo, ela tomava seu café muito cedo e con-
versava com José Alencar enquanto seu marido dormia.
Não que ela não pudesse lhe contar o ocorrido de quase
todos os dias, pois Mozart - ela tinha certeza disso - não se
importava com esse acontecimento e com as boas relações
que ela mantinha com o pai adotivo.
Mas agradava-lhe, e talvez também a José Alencar,
manter esse encontro às escondidas, apesar de ser mos-
trado para quem quisesse ver, pois seu jipe estacionava
na porta da casa, o cheiro forte de gasolina exalava longe,
bem como o barulho peculiar que ele fazia.

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Não tinha como esconder todos esses fatos disponí-
veis para qualquer um. Os vizinhos comentavam o gran-
de amor que o fazendeiro tinha para com filha adotiva e
admiravam a grande e terna amizade dos dois, pois não
toleravam ficar um dia sem se ver.

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8º Capítulo

Primeiros desencontros do casal

Mozart, como era hábito entre os intelectuais da ci-


dade, levantava-se tarde e como bom marido exigia que
sua esposa tomasse seu lanche matinal junto dele. Desse
modo, ela, que se levantara como sempre logo após o sol
nascer e fazia sua primeira refeição entre 6:30 – 7:00 horas,
geralmente com José Alencar, era forçada a fazer uma
segunda refeição matinal com o marido, em torno das 9:00
ou 10:00 horas. Durante esse encontro com o marido, ele
obrigava-a a escutar as ideias criativas que teve durante
seus sonhos e lampejos de inspiração. Com frequência,
Mozart rabiscava alguns versos e em seguida recitava-os
em voz alta e orgulhosa para Clara ouvir e julgar.
Em seguida lia, detalhada e demoradamente, o jor-
nal que chegara à cidade através do ônibus. Cada notícia
era focalizada por ele como interessante. Depois de todo
esse ritual, comentava as notícias com Clara.

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Nesses momentos, entusiasmado pela ouvinte dispo-
nível, Mozart dava verdadeiras aulas à sua mulher, princi-
palmente acerca dos assuntos literários quando estes eram
os escolhidos por ele. Clara escutava-o com respeito e tal-
vez até admiração. Só muito raramente ousava fazer um
ou outro comentário e estes geralmente eram prontamente
criticados pelo marido como inadequados ou esdrúxulos.
Clara, diante das críticas, abaixava a cabeça envergonha-
da dos palpites que dera. Reconhecia sua inferioridade e
ignorância perante o conhecimento e sabedoria do marido
intelectual.
Em seguida, enquanto esperava o almoço preparado
por Clara, Mozart saía de casa para dar sua tradicional
caminhada pelas ruas de Cachoeira do Assento. Cumpri-
mentava um e outro passante, parava aqui e ali, geral-
mente apenas com os indivíduos tidos como mais letra-
dos e inteligentes, de preferência os que faziam parte da
“Academia”.
Geralmente os amigos intelectuais, quando se reu-
niam, conversavam entre eles. Os pontos de interesse nor-
malmente eram as notícias acerca de literatura publicadas
nos jornais, nos rádios e TVs. Fora isso, os outros assuntos
preferidos eram os livros de crônicas, contos, poesias que
cada um, naqueles dias, estava lendo ou escrevendo. Du-
rante essas conversas, todos exaltavam, com invulgar en-
tusiasmo, a beleza e a arte do texto. Muitas vezes trechos
eram recitados em voz bem alta para os companheiros li-
terários, após terem sido decorados. Os ouvintes, emocio-
nados, ouviam atentamente o exposto.

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Durante o almoço, Mozart, num tom de voz irônico
e azedo, reclamava do gosto insípido das iguarias feitas
por Clara, comparando-as com as preparadas com arte e
amor por sua querida mãe. Nesses momentos ele relem-
brava, com saudade, o bom tempo vivido na casa mater-
na, comentava o carinho e os conselhos sábios dados por
ela. Clara ouvia, calada e envergonhada, a reclamação do
marido e, humildemente aceitava sua incompetência. Ao
mesmo tempo em que demonstrava tristeza, pedia descul-
pas a Mozart por não cozinhar como a mãe dele e prometia
melhorar o sabor das comidas preparadas por ela.
Clara, diante das promessas do marido de mudar de
vida e arrumar emprego, percebia que ele continuava o mes-
mo: em nada mudara. Por outro lado ela, apesar das promes-
sas, continuava a ser a mesma. Não discutia e não elevava a
voz, mas, por outro lado, continuava a fazer as mesmas igua-
rias, usava os mesmos temperos, fazendo as refeições para
agradar à imagem que tinha do pai adotivo e não do marido.
Pouco a pouco, Mozart, após perceber que era inútil
tentar mudar a maneira de Clara agir e de responder às
suas reprimendas, achou melhor, em lugar de continuar
criticando-a inutilmente, passar a visitar mais a mãe, prin-
cipalmente nos horários do almoço, logo após seu passeio
matinal. Através dessa estratégia, além de evitar as recla-
mações, mantinha mais contato com o antigo ninho mater-
no, podendo, além disso, saborear as deliciosas comidas
feitas por ela: a omelete, a macarronada, o frango ao molho
pardo, o pastel de angu, arroz de forno apimentado e feijão
batido e grosso, uma comida que só ela sabia fazer.

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Na casa da mãe, após comer até se empanturrar, Mo-
zart devorava também os saborosos fios de ovos, manjar
de anjos ou o doce de abacaxi que só ela fazia. Mozart e
sua mãe, durante o almoço, comentavam, num tom gra-
ve e solene, a incompetência de Clara como cozinheira e
esposa.
D. Marta manteve o quarto do filho intacto, como era
quando solteiro. Sendo assim, frequentemente após o farto
almoço, Mozart tirava uma longa soneca na mesma cama
onde dormira quando solteiro.
A soneca pós-almoço seguia um mesmo ritual: pri-
meiramente sua mãe fechava todas as janelas do quarto
para diminuir a claridade que o incomodava e, em se-
guida, Mozart tirava todas as roupas e vestia um pijama
antigo que era guardado e lavado na casa da mãe para
emergências. Após vesti-lo com um ritual sempre repeti-
do, escovava os dentes e, por fim, deitava-se e dormia, por
duas a três longas horas, profundamente.
Após levantar-se, lavava o rosto com água bem fria.
Em seguida sua mãe servia-lhe biscoitos de polvilho e de
araruta, juntamente com um café coado na hora e bastante
forte, apropriado para espantar o sono e a preguiça. Ela,
sempre ao seu lado, oferecia-lhe, ora uma, ora outra gu-
loseima. Ao se despedir de sua mãe, Mozart claramente
mostrava seu pesar por ter que largá-la e retornar à casa da
esposa. Antes de se dirigir para sua residência, fazia nova
incursão pela cidade à procura de amigos para ouvi-lo.
Enquanto isso Clara, em casa e sozinha, almoçava
pensando na vida que tinha na fazenda.

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Mozart jamais conseguiu vender os quadros pintados
por ele: alguns foram doados para amigos que os punham
por alguns dias pendurados na parede da sala de visita,
para tirá-los, poucas semanas depois, inventando motivos
diversos. Posteriormente, aliviados com a retirada do qua-
dro, esse era guardado definitivamente nas prateleiras de
armários, onde ninguém mais o via.
Dois de seus livros de poesias, escritos cheios de es-
paços em branco, foram editados no computador com eco-
nomias doadas por sua mãe. Esse pequeno livro, pouco
maior que um lenço, era sempre carregado no bolso de trás
da calça pelo poeta e orgulhosamente retirado quando apa-
recia um possível interessado em poesias. Diante do ami-
go, Mozart, entusiasmado, declamava de cor. Às vezes lia
a última poesia elaborada. No final da declamação, imagi-
nando que o ouvinte estivesse interessado, ele comentava
como e po rque criou uma e outra poesia recitada.
Poucos livros de Mozart foram vendidos: apenas
quando os amigos foram obrigados a comprá-los. Somente
assim, após insistir com um conhecido, amigo ou parente,
Mozart conseguiu vender pouquíssimos livros. Então che-
gava em casa orgulhoso do seu grande feito.

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9º Capítulo

Uma Vida Inútil: Dr. Milton

Entre os frequentadores do grupo dos poetas, con-


tistas e pintores, encontrava-se o Dr. Milton, também cha-
mado de Mineirinho. Devido ao seu comportamento na
cidade, esse escritor não era bem recebido por muitos dos
frequentadores da Academia. Andando de porta em porta
dos bares, Mineirinho bebia uma pinga da pior qualidade e
mesmo essa quase sempre era paga pelas pequenas esmo-
las dadas pelos amigos.
Dr. Milton, considerado bastante inteligente, respei-
tado e temido por ter um espírito crítico apurado e agudo,
começou seus estudos superiores no seminário, quando
quase se tornou padre.
Procurado por uma mulher da zona boêmia da cida-
de, que buscava conselhos religiosos, ele se apaixonou por
ela. Logo depois dos primeiros encontros desistiu de ser
padre, abandonado o seminário.

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Sendo um curioso e interessado no comportamento
humano e em ética, mais tarde ele decidiu fazer o curso de
Direito numa cidade próxima. Uma vez terminada a Fa-
culdade, montou um “escritório” de advocacia nos fundos
de uma velha casa onde morava sozinho, um esconderijo
onde só raramente aparecia alguém buscando sua ajuda.
Ele chamava a atenção por ser, ao mesmo tempo, bastante
reservado e um crítico impiedoso: acreditava que só assim
poderia sobreviver naquela cidade.
Dr. Milton, que fora religioso durante sua infância e
adolescência, tornou-se mais tarde comunista. Depois, tor-
nou-se anticomunista e anti-religioso. Presentemente não
era nem uma coisa nem outra: não se sentia capaz de ir a fa-
vor ou contra essas ideias, pois não acreditava e nem lutava
em defesa de nenhuma delas. Sabia que se defendesse uma
ideia, posteriormente ele próprio a criticaria com o mesmo
vigor com que a havia defendido.
Mesmo quando tudo parecia certo ou verdadeiro,
quando tudo parecia muito bem explicado e deduzido lo-
gicamente, Dr. Milton sabia, devido ao seu faro e saber
e também por ter tido diversas experiências em sua vida,
que alguém, até ele próprio, poderia pensar e argumentar
de modo diferente ao anteriormente defendido. Para Mi-
neirinho, as belas e sedutoras descrições do mundo não
passavam de um sonho: não estão corretas e jamais serão
verdades eternas.
Ele próprio já fora enganado milhares de vezes acei-
tando, sem críticas, um tipo explicação, apenas um. Para ele
a pergunta: “Quem é o homem?” ainda não foi respondida.

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Respondemos a essa e outras questões conforme a
época. Todas as descrições e explicações acerca da nature-
za, incluindo o homem, são provisórias: para os ingênuos
elas são tidas como eternas.
Andando embriagado pelas ruas de Cachoeira do As-
sento, ele refletia e falava alto para quem quisesse ouvir:
“Já caí demais nisso, espero não mais ser enganado. Quem
sabe estou enganado agora? O único mundo que me é dado
é o meu próprio. O único universo que posso entender, a
cada momento, é o meu. Jamais penetrarei no mundo do
amigo ou inimigo, do cliente, de ninguém.
Todas as pessoas, com frequência - ou seria sempre?
- abandonam, num certo momento, os fatos observados e
sensíveis, para cair nas explicações teóricas de verborreias
incompreensíveis, simples invenções ou construções hu-
manas. Hoje, sei que também os fatos vistos e ouvidos por
nossos órgãos dos sentidos são percebidos de outro modo,
não só pelos órgãos dos sentidos de outros animais como
de outros homens.
Enxergamos o que somos, o que nosso organismo or-
dena, conforme nossos desejos e emoções. Pergunto-me:
qual é o mundo verdadeiro, o meu, o da pulga ou o da
bactéria?
Dr. Milton muitas vezes imaginava parar: parar com
tudo, ficar o dia inteiro numa cama, ouvindo, sozinho, mú-
sicas. “Quem sabe os sons melodiosos poderiam me trans-
formar, animar-me, dando-me a tranquilidade necessária
para tolerar o mundo esquisito, perceber as injustiças de
todo o dia e as rejeições.

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A música talvez pudesse fazer por mim o que a reli-
gião, a família ou a ideologia política faz para a maioria das
pessoas. Talvez, através da música, pudesse achar natural
a ignorância, não me espantar assistindo à exploração do
povo menos favorecido pelos poderosos, diante da indife-
rença de todos. Talvez pudesse conviver harmoniosamen-
te, uma vez hipnotizado pela melodia, subjugado pelas hu-
milhações sofridas por não possuir um sobrenome familiar
importante, dinheiro sobrando ou poder político”.
Dois dias após a morte da ex-prostituta que morava
com o Dr. Milton, ele retomou, com grande esforço, seu há-
bito de caminhar pelas ruas da cidade. Suas caminhadas
eram geralmente no meio da gente pobre da cidade. O ad-
vogado boêmio andava horas, pois assim voltava exausto
para casa e não conseguia pensar mais. Sempre lamentava
os rostos cansados e tristes das pessoas que encontrava du-
rante suas caminhadas. Talvez todos os indivíduos encon-
trados trabalhassem o dia todo numa atividade que detes-
tavam. Imaginava que, uma vez em casa, cada um daqueles
coitados, isolados e presos dentro da família, tomaria uma
sopa morna e rala. Depois, mais tarde, seria atraído e con-
taminado pela sedutora beleza alienante da novela das noi-
tes. Dormiria como saco pesado na cama suja e amassada.
Durante suas caminhadas pelas ruas, Dr. Milton con-
versava consigo mesmo: “Na rua posso andar sem a pre-
sença de ninguém ao meu lado, livre para escolher qual-
quer caminho desejado e também não preciso explicar os
motivos da minha escolha, uma escolha que muitas vezes
nem mesmo eu sei. Gosto dessa liberdade.

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Durante minhas caminhadas olho, invariavelmente,
a face de um e de outro. As expressões faciais revelam o
que está acontecendo com os homens. Nos fins de tarde
tenho uma imensa amostragem para estudar o sofrimento
humano e assim comparar meu sofrimento com o deles.
Excito-me vendo pessoas apressadas, rostos aflitos, tristes,
alegrias miúdas, olhos em busca de porto seguro que não
surge nunca. Na praça, diante de todos, alguns se abraçam:
imaginam estar amando“.
Para cada olhar que fixava, Dr. Milton imaginava um
drama diferente em andamento. Sofria com o sofrimento
estampado na face de cada um, com as pequenas alegrias
que durariam pouco. Lamentava a ingenuidade popular,
uma vida sonhada e não vivida das pessoas que passavam.
Todos perseguiam algo. Ninguém sabia nem onde e nem o
quê estavam procurando.
Mineirinho lamentava a vida vivida por cada um,
inclusive a dele próprio. Ele tinha pena de todos: dos tris-
tes por estarem sofrendo devido a algo desagradável, dos
alegres por eles não saberem que a alegria duraria pouco
tempo e também por estarem sorridentes por falta de cons-
ciência da vida. Observava, durante o término do trabalho
de cada dia, olhares lânguidos, mocinhas pobres correndo
em direção à escola noturna, sonhando aprender ali algu-
ma coisa útil. Estavam enganadas. Elas aprenderiam, se
aprendessem, com as decepções do dia-a-dia.
Andando e refletindo, adiante ele disse para si
mesmo:“Senti vontade de conversar com um desconhecido
qualquer.

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— Tive receio de chegar perto de um jovem, pois mi-
nha presença poderia impedi-lo de realizar o padrão diário
de sua vida, a correria em busca do nada. Aproximei-me,
então, de um velho. Mais tarde fiquei sabendo que se cha-
mava Alcides. Ele ficou emocionado com a oportunidade
rara de falar de si para alguém:
— Já viajei por este Brasil afora. Conheço até o Ama-
zonas. Comecei a trabalhar aos oito anos, como ajudante de
caminhão. Meu sonho era, um dia, possuir um só meu. Só
consegui comprar um caminhão aos quarenta anos, ou seja,
quando já era velho. Fui assaltado na estrada, roubaram
meu caminhão e só não me mataram porque eu me ajoelhei
no chão, como se estivesse diante de Deus. Chorei, implo-
rei a eles por minha vida. Uma vida que depois percebi que
não valia nada. Largaram-me de dó, por piedade e riram
de mim. Um chegou a urinar no meu rosto. Eu nada fiz.
Chorei. Hoje arrependo-me do que fiz. Pedir pelo amor de
Deus a um bandido, ajoelhar aos seus pés, uma humilhação
que jamais esquecerei. Sofreria menos se tivesse morrido ali
mesmo. Na verdade não me libertaram. Encarceraram-me,
para sempre, na pior das prisões: minha própria cabeça.
Minha mente jamais esqueceu minhas ações, está sempre a
me acusar de covarde e medroso. A desgraçada de minha
cabeça me faz mais mal do que os bandidos.
— Depois disso, não fui mais ninguém e nem podia
ser. Sou um verme, um coitado que não merece viver, mas
que não tem coragem nem para morrer...Você me entende,
não é? Estou aposentado. Espero a morte, minha luz está
fraca, quase apagando.

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— Aqui, nesses bancos de praça, convivo com outros
iguais a mim... os que fingem viver. Desfrutamos desses
joguinhos, das piadas a que nem achamos graça. Aqui ve-
mos passar uma mulher bonita, como aquela que está ali
parada... junto à banca de revistas. Para quê? Todos sabem
que ela jamais olhará para qualquer um de nós, se olhar
será, talvez, com asco... como fizeram os assaltantes.
— Não tenho mais sonhos, projetos, nada. Sem força
para fazer algo, espero o fim. Também, pudera, achar graça
nessa vida. Não tenho mais energia, a não ser para defen-
der pequenas e tolas ideias, brigar por besteiras. Como to-
dos velhos, qualquer discussão serve. No fundo eu sei que
é tolice, mas para não parar totalmente a máquina usada e
já quase sucata para ser jogada ao lixo, fazemos de conta
que o assunto é sério e interessante. Chegamos até a brigar,
apenas de mentira. Compreende?
— As tapeações não param por aí. Nós, para abran-
dar o nome feio – velho - que recebemos do vocabulário
usado, somos denominados de “idosos”, ou pessoas da
terceira idade, para dar a impressão, ou melhor, simular,
para a sociedade, que ainda estamos vivos. Desse modo di-
minuímos o trabalho dos “ativos” e fingimos, como eles,
estar ocupados. Já viu uma dessas festas feitas pelos jovens
para nós? Você deve estar rindo de mim e se perguntando:
será mesmo festa? Não poderíamos chamá-la de velório?
Tocam-se músicas e ao som delas representamos, para os
jovens, uma alegria fingida, melancólica.
— Com nosso corpo duro, carregado de peles soltas,
damos a impressão de que estamos dançando, mas, de fato,
sentimos vergonha do papel representado...

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— Todos sabem que não podia ser diferente, que todo
velho é, na realidade, um triste. Entretanto, espera-se dele,
de fato, fingir ou representar alegria passada, antiga, do
tempo da juventude, um vigor e euforia que já nos abando-
nou há muitos anos. Ninguém desconhece que somos, nes-
sa idade, uns inúteis, sempre à espera de algo: esperamos
a hora do almoço, a hora do jantar, de dormir e esperamos
a hora...você sabe. Você me entende, não é? Tudo nos con-
duz à última espera, à caminhada final, à hora de sumir de
vez, ao vestir o pijama de madeira.
— Nossa conversa é a de sempre, isso que estou fa-
zendo agora: repetir a mesma cantilena, que já falei, para
muitos e agora para um novo espectador, que ainda supor-
ta, ou finge tolerar, ouvir as histórias de “no meu tempo...”,
“quando era um rapaz...”, que todos já ouviram muitas e
muitas vezes. Mas ainda tenho um medo maior, caro ami-
go. Como é mesmo seu nome?
— Milton.
— Pois é, Miltonildo, meu medo maior é a hora de ir
para um asilo, onde todas as ligações estarão terminadas. Aqui
posso olhar para aquela bela jovem, aquela que lhe mostrei,
vendendo livros na banca. Alegro-me, observando-a. Ela nem
deve saber que existo. No asilo não mais poderei vê-la, essa li-
gação estará definitivamente cortada. Já visitei um parente no
asilo. Sinto um calafrio ao me imaginar lá. Será o fim, a entrega
do diploma do formado, a ante-sala para o outro mundo.
— Eu sei que o outro lado está próximo, mas aqui
eu me distraio, não presto tanta atenção à vida que levo,
esqueço do real.

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— Lá no asilo, o fim será acelerado pelo aprisiona-
mento junto a outros companheiros, tão velhos ou mais ve-
que eu. Velho não precisa de iguais, uma fruta estragada
deve ser afastada das sãs, o podre propaga-se, provocando
o apodrecimento de outras. Do asilo à morte será um sal-
to, um caminho sem direito a volta. Aqui ainda posso ficar
mais um pouco ou ir mais cedo, isso eu não sei. Até consi-
go, como último esforço, me aproximar dos que estão ten-
tando viver. Lá haverá horários para tudo: levantar, comer,
deitar, jogar, como nos colégios de crianças. No asilo terei
a companhia dos que desejam a morte rapidamente, dos
que já morreram para seus familiares e para parte do mun-
do dos atarefados. Lá no asilo a separação entre homens,
crianças, jovens e adultos, que aqui existe, quebrando um
pouco a monotonia, não mais existirá. Já foi a um asilo?
Todos lá são iguais, os sem família, sem ninguém, são os
viúvos de todos os vivos, com os mesmos direitos, ou, se
quiser, quase nenhum, com a mesma tristeza e desesperan-
ça e, por fim, todos com os mesmos planos: morrer, melhor
se for o mais depressa possível. Lá todos estão definitiva-
mente excluídos para sempre. Não há mais esperança de
cura, nem através da milagrosa religião.
Silenciosamente, Dr. Milton seguiu seu caminho sem
se despedir do velho Alcides. Este continuou jogando da-
mas, enquanto esperava um outro ouvinte sem pressa, ca-
paz de ouvir sua história, suas ideias, suas desgraças e seu
temor do último destino.
Dr. Milton também gostava de caminhar pela madru-
gada nas ruas sem uma única pessoa.

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Quando saía, numa noite silenciosa, sem o barulho
dos carros, das vozes ou lamentos, tomava consciência me-
lhor da solidão humana, de como estamos sós. No meio
do barulho, imaginamos estarmos ligados - como falou o
Alcides - às pessoas apenas por vê-las, por cumprimentá-
las ou por viverem na mesma casa. Mas basta um afasta-
mento, como andar à noite pelas ruas desertas, ou numa
noite de insônia chegar à janela, fingindo estar olhando a
rua, quando, de fato, estamos olhando dentro de nós mes-
mos. Nesse instante descobrimos que estamos ligados aos
nossos pensamentos e sentimentos, apenas estes, que esta-
mos afastados da natureza que nos rodeia e que nos invade
apenas através de nossos órgãos dos sentidos e ideias. So-
mos ligados ao mundo somente através de nosso intelecto,
o mesmo nos fornece a ideia da separação...
Dr. Milton de certa forma estava ligado a Mozart, pois
era considerado pelos amigos, talvez apenas conhecidos,
como fazendo parte da “Inteligência” da cidade. Apesar de
ter sido convidado diversas vezes a fazer parte da “Aca-
demia”, ele fingia aceitar. Geralmente inventava desculpas
diversas para escapar das reuniões. Frequentava uma ou
outra reunião da “Academia”, não para ouvir poesias ou
contos, mas muito mais por razões econômicas, melhor di-
zendo, para participar dos chás que ali se realizavam após
as sessões literárias. Nessas ocasiões comia o máximo que
podia e, se possível fosse, ainda carregava nos bolsos pe-
daços de bolos, pães, queijo e outros comestíveis que ali
eram servidos com fartura. Ele sabia que era rejeitado pela
maioria dos frequentadores da Academia.

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Quando lá comparecia ia geralmente embriagado,
como fazia em outros lugares, inclusive nos velórios e ca-
samentos.
Dr. Milton gostava de escrever peças de teatro e estas
geralmente eram bem recebidas pelos seus companheiros
intelectuais, mas rejeitadas por ele próprio. Vestia-se des-
cuidadamente, suas roupas mostravam manchas de café e
bebidas. Com uma renda mínima, sem receber e nem pedir
ajuda de ninguém, vivia como um pobre desnutrido. Deca-
dente, como advogado era desprezado e criticado, muitas
vezes grosseiramente, pela elite e a juventude da cidade.
Apesar de tudo isso, Dr. Milton mostrava que tinha
uma boa capacidade para perceber e avaliar o ser humano.
Crítico ferino, abominava o vazio e a presunção da maioria
dos membros da Academia, a necessidade e orgulho que
eles tinham de demonstrar um conhecimento que jamais
possuíram. Vizinho e da mesma idade de Mozart, convivia
quase que diariamente com ele, tendo também um bom
relacionamento com Pedro, amigo de ambos. Devido à
amizade que existia entre Mozart e Mineirinho, este último
tolerava a incompetência e imaturidade do amigo, por isso
evitava, sempre que possível, criticá-lo. Para ele, Mozart
estava sempre tentando escapar da feia realidade que o cer-
cava, protegia-se através de um manto de mentiras. Vivia
num mundo de fantasias que nunca foram realizadas.

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10º Capítulo

Nascimento de Plínio

Dois ou três meses após o casamento, Clara, desani-


mada após adiar ao máximo a informação que guardava
em segredo, comunicou ao marido que estava esperando
um filho. A comunicação, ao contrário do esperado por
ela, não emocionou, nem negativa, nem positivamente seu
marido.
— É... Quer dizer que serei pai. Vou fazer uma poesia
para comemorar o acontecimento. — comentou Mozart.
— Você está alegre? - Perguntou Clara.
— Sim. Respondeu Mozart, num tom de voz desani-
mado, prosseguindo:
— Não tenho atração por crianças, mas sempre é
bom e bonito ser pai. Acho que ficarei mais inspirado para
criar.
Mas muito mais animado com o nascimento do filho
de Clara ficou José Alencar.

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Demonstrando enorme alegria, ele e Clara discuti-
ram a gravidez inúmeras vezes, os cuidados que precisa-
vam ser tomados e ao mesmo tempo tentavam adivinhar
se seria um menino ou menina, bem como tudo o que se
relacionava com os imprevistos frequentes durante e após
a gravidez.
— Você deseja um menino ou menina? Perguntou
Clara, um pouco envergonhada.
— Ah! Quer minha opinião verdadeira? Gostaria
mais de um menino, de um macho.
— Para mim tanto faz. Sempre desejei ter um filho,
um filho meu, que nascesse de mim, criado por mim. Es-
tou muito feliz.
— Que bom, continue assim.
Quando a notícia do nascimento do filho se espa-
lhou, José Alencar fez uma visita formal, à noite, ao casal.
Mozart, demonstrando indiferença, a princípio não fez co-
mentários sobre a nova vida que enfrentaria. Como sem-
pre, discursou sobre os versos que estava criando, mas, em
seguida, se queixou dos gastos que teria:
— Minha preocupação é com os custos de tudo isso:
irei gastar muito dinheiro com o nascimento de um bebê.
Não só agora, mas também depois com as doenças, os mé-
dicos e remédios, roupas e alimentos e mais tarde escola,
livros e cadernos. Serei obrigado a economizar...
— Não se preocupe. Não se preocupe, repetiu José
Alencar, entrando na conversa, tentando acalmar Mozart.
E continuou: — Eu o ajudarei. Faz parte da nossa
conversa do primeiro dia.

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— As coisas andam bem para mim, portanto eu mes-
mo me encarregarei de comprar o que for necessário para o
bem-estar da criança que vai nascer. Ele é de Clara, minha
filha querida, logo, é como se fosse meu filho. Farei tudo
que puder para o bem estar dele e de vocês.
— Fico envergonhado - falou pigarreando Mozart -
mas é bom ouvir isso, pois me faz sentir mais calmo, bas-
tante aliviado.
A conversa, em seguida, mudou de rumo e terminou.
José Alencar, após tomar um café e comer um pedaço de
bolo de fubá, se despediu do casal. Bastante tranquilo, dei-
xou a casa alegre, pois conforme desejara e previra, tudo
estava dando certo. “Ainda bem”, comentou, respirando
aliviado para si mesmo.
A gravidez, devido à excelente saúde, alimentação e
cuidados de Clara, correu sem problemas. Ela procurou o
médico poucas vezes e este sempre lhe afirmou que tudo
estava dentro do esperado e, portanto, não precisava ficar
preocupada. O médico obstetra era o mesmo que havia feito
o parto da mãe de Clara e foi o intermediário da doação dela
para Donana e José Alencar. Sendo amigo dele desde essa
época, era quase sempre o pai adotivo, às vezes acompa-
nhado de Donana, não do Mozart, quem a levava para fazer
os exames de rotina nas poucas vezes que ela o consultou.
Mozart, quando convidado para levá-la ao médico, alegava
falta de tempo e também não ir por não gostar de médicos.
Um menino sadio nasceu um pouco antes do espera-
do, no final de outubro, cerca de oito meses após a conversa
de José Alencar com Mozart.

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Como nasceu normal e sadio, foi logo para casa sem
problemas e para alegria dos familiares, pois a saúde da
mãe e do filho, segundo o médico obstetra e o pediatra,
estava excelente.
Evitando atrapalhar o sossego de Mozart, a partir
desse evento Clara passou a dormir num quarto separado
do marido junto com o filho Plínio, um nome comum na
região e que era como o pai de José Alencar se chamava.
Essa homenagem, que não magoou Mozart, irritou a mãe
dele e também Donana. Esta só decidiu visitar o menino
dias após ele ter saído da maternidade. A visita da avó,
muito formal, quase sem comentários, não durou mais que
meia hora. José Alencar, ao contrário, mais parecia o pai do
garoto, carregava-o, abraçava-o, brincava com ele e estava
radiante com sua saúde e beleza.
A criança cresceu e desenvolveu-se mais ligada a José
Alencar que a Mozart. O poeta, cada dia mais animado com
seus dotes literários, mostrava-se muito mais interessado
em ser um grande artista, vivendo para a criação. Desse
modo ele continuou afastado de outras preocupações que
não fossem seu trabalho artístico. Assim Plínio não só foi
criado sem a presença do pai, como Mozart, após se casar e
se tornar pai, continuou vivendo a mesma vida que levava
quando era solteiro e, de certa forma, ele trocou apenas de
mãe. Agora, na maior parte do tempo, quem cuidava dele
era Clara, que dividia seu tempo nos cuidados entre o filho,
Plínio, e o marido, Mozart. Apesar de cuidar e amamentar
o filho, administrava a casa e os negócios do casal, sendo
que a maioria das despesas era financiada por José Alencar.
O menino cresceu neste meio ambiente.

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11º Capítulo

Aparece Piquira, pai de Clara

Numa manhã calma e silenciosa de uma quarta-feira,


quando não havia nenhum movimento na cidade, Zilah, a
nova babá contratada por Clara há poucos dias atrás para
cuidar de Plínio e ajudar na limpeza da casa, ouviu al-
guém bater palmas e em seguida bater na porta timida-
mente, mas ao mesmo tempo demonstrando certa insis-
tência. Zilah, após ter largado no chão do corredor o pano
úmido com o qual ela limpava a casa, bem como o balde
de água que carregava preguiçosamente, caminhou até a
entrada da residência para atender o visitante.
Deparou-se com um homem franzino de pouca al-
tura, meio torto. Ele segurava uma bengala com a mão di-
reita, dando a impressão de possuir uma perna mais curta
que a outra. O desconhecido vestia um paletó escuro, sujo,
esgarçado e desabotoado, que disfarçava o tórax esquelé-
tico e estufado.

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Suas calças, amarrotadas e manchadas, eram largas
demais para as pernas finas que encobriam. Ele olhou es-
pantado para Zilah, sem saber quem ela era e sem saber
como começaria a conversa, motivo de sua ida até ali. Seu
rosto magro, marcado por rugas, principalmente em torno
da boca e dos olhos, era envolto por uma pele acinzentada
escura coberta por pelos ralos. Olhando sempre para os pés
de Zilah ao cumprimentá-la, notava-se sua boca quase sem
dentes, distinguindo-se apenas um ou dois, grandes e iso-
lados. Carregava na mão esquerda um saco cheio e encar-
dido, deixado no chão do alpendre, por instantes, quando
começou a falar:
— Bom dia, minha dona, desculpe-me. Me informa-
ram que aqui mora uma dona de nome Clara. É a senhora?
— Não! Não sou eu. D. Clara é minha patroa, traba-
lho para ela. O que deseja dela? Perguntou Zilah, imagi-
nando tratar-se de um pedinte e talvez ela mesma pudesse
resolver o problema sem importuná-la.
— Eu queria vê-la. Informaram-me que ela casou e
tem um filho.
— Vê-la? Para quê?
— Queria ver meu neto. Sou o pai dela.
Zilah a princípio não acreditou no que ouvia. Aque-
le homem, parecendo um mendigo, ser pai de sua patroa,
uma mulher chique e rica. Entretanto, o homem maltrapi-
lho que estava à sua frente parecia falar sério e esperava
alguma ação dela.
— O senhor é pai dela? Mas ela não tem pai. Eu sei,
isso é, conheço o pai de criação dela, Sô José Alencar.

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— Ele é um fazendeiro daqui de perto. Trabalho aqui
há poucos meses e nunca vi o senhor aqui.
— Sei disso, minha dona, estou morando ultimamen-
te em Carneirinhos, que não fica longe daqui. Há muitos
anos, nem sei mais há quanto tempo, arrumei uma nova
mulher e saí de casa. Quando deixei minha dona, ela ainda
não tinha ganho Clara. A barriga estava começando a ficar
grande, uns três meses. Sumi e nunca mais voltei. Nem sa-
bia o nome de minha filha, só fiquei sabendo aqui.
— Logo que abandonei minha dona, fui morar no
meio do mato. Para não passar fome e morrer, comecei a
caçar pequenos bichos do mato: rato, gambá, tatu, às vezes
uma seriema, uma galinha perdida, cobra e outros bichos.
Além disso, colhia alimentos do mato, frutas e raízes.
— Por muitos anos morei com Marina. Esse é o nome
da mulher que fugiu comigo. Às vezes, ela saía comigo pe-
los matos, para me ajudar a colher frutos e raízes. Caçar, ela
não caçava, não. Eu matava os bichos com uma espingarda
velha que tinha — até hoje tenho — está aqui comigo, den-
tro desse saco.
— Quer ver? Quando ia à cidade, e isso só acontecia
muito raramente, eu vendia raízes, às vezes alguns filhotes
de papagaio, de macaco, maritaca e na venda eu comprava
pólvora, chumbinho, pinga e toucinho. Tudo isso eu sem-
pre tive em casa. Para economizar a pólvora e o chumbinho,
muitas vezes eu matava os bichos com o facão e o porrete
que carrego até hoje. Tá tudo aqui comigo no saco. Quer
ver? Arma boa. Sem elas eu teria morrido. Gosto muito de
matar os bichos. Tive dois filhos com Marina.

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— Eles morreram de diarreia, magrinhos, poucos dias
após nascerem.
— Há pouco tempo fui castigado! Marina, como eu, fu-
giu com outro. Tudo na surdina, sem me falar nada. Não sei
por que ela fugiu de casa com Ratinho, um rapaz que encon-
trei perdido no mato, passando fome, quase morrendo. Levei-
o para minha casa e dei de tudo para ele, enquanto melhorava
para seguir viagem. Mas lá foi ficando, adiando sempre sua
ida. Agora acho que ele e Marina já estavam tramando algu-
ma coisa. Depois de muito tempo, sumiu e fiquei sozinho.
Zilah escutava a história, simples e direta, espantada.
Imaginava sair de perto daquele homem estranho e esqui-
sito o mais depressa possível. Ele foi contando seus casos,
um após o outro, quase sem respirar. Num certo momento,
ele deu uma pequena parada para respirar melhor e reco-
meçar. Foi nesse instante que Zilah aproveitou para largá-
lo e entrar, prontificando-se a verificar se D. Clara estava e
se podia recebê-lo.
—Vou ver se D. Clara está — disse Zilah rápido e já
entrando dentro de casa. Neste instante continuou a falar:
— Espere um momento, volto já.
Zilah, ao entrar em casa, amedrontada trancou cuida-
dosamente e sem fazer barulho a porta de entrada. Estava
assustada com aquele homem misterioso que apareceu ines-
peradamente. Muito nervosa e sem saber o que fazer, au-
tomaticamente caminhou para dentro de casa em direção a
Clara. Um pouco mais segura ao se afastar mais da porta de
entrada da casa, ela não sabia se falava ou não com Clara o
que ouvira, pois imaginava tratar-se de um louco.

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Ao chegar mais perto do quarto onde Plínio acabara
de acordar, ela pôde ver Clara brincando calmamente com
o filho. Sem muito pensar, decidiu liberar suas emoções,
agora com mais coragem. Após respirar fundo e pedir a
Deus que a ajudasse, Zilah começou a falar:
— D. Clara, tem um homem aí fora procurando pela
senhora...
— Quem é?
— É... é um homem meio esquisito: sujo, carregando
um saco imundo. Traz ainda em uma das mãos um porrete.
Acho que ele manca e não olha para a gente quando fala.
Ele está muito magro, veste um paletó escuro ou sujo, não
sei, velho e rasgado.
— Ora, Zilah. É um pedinte que tá querendo uma co-
mida ou algum dinherinho, como todos os outros. Vê se tem
alguma comida de ontem guardada, se tiver dê a ele e pron-
to. Assim ele vai embora e não vai nos amolar mais. Além
do mais, você ficará calma e vai cuidar de sua limpeza que
está atrasada. Não deve ser gente daqui. Não se vê pesso-
as pedintes em Cachoeira do Assento. Se fosse gente daqui
você o conheceria e também ele saberia quem é você.
— Não, D. Clara. É... eu nunca o vi. De fato conheço
os pobres da cidade, pois faço parte deles e moro no meio
deles. Como disse, em Cachoeira do Assento todos traba-
lham, ninguém pede esmola.
— Então quem é? O que ele quer? Não perguntou a ele?
— Perguntar não perguntei.
— Então pergunte logo. É o que devia ter feito para
acabar com tudo isso.

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— Não perguntei, porque antes de perguntar ele me
disse que queria ver a senhora.
— Eu? - Perguntou espantada e continuou:
— Falou meu nome? E por quê eu?
— Aí é que tá... nem sei como dizer.
— Ora! Fale logo! Desembuche! Por que não sabe
como dizer?
— D. Clara, vou dizer o que ele falou, tá certo? A se-
nhora me desculpe.
— Não entendi. Pode falar, não precisa esconder
nada.
— Ele disse que quer vê-la, pois não a conhece ainda.
— Não entendi nada! Como quer me ver e não me
conhece ainda? É lógico que não me conhece. Como iria
conhecê-lo? Quer me conhecer? Para quê?
— Bem, vou falar, já que a senhora falou que eu devia
falar. Ele disse que é seu pai...
— O quê?
— Seu pai. Achei esquisito, mas ele repetiu isso mes-
mo. Que é seu pai.
— Meu pai? Espantada, Clara quase gritou dirigindo-
se a Zilah: —Não tenho pai. Nunca ninguém me falou acer-
ca de meu pai. Onde ele está?
— Lá fora, na varanda, assentado nos beirais.
— Vou ver quem é! Fica aqui com Plínio!
Amedrontada e confusa, Clara caminhou apoiando-
se nas paredes ao se dirigir à porta que dava para o alpen-
dre. Girou com dificuldade a chave da porta. As pernas es-
tavam bambas e suas mãos tremiam.

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Segurando a maçaneta, abriu a porta e, ao abri-la, pro-
curou com o olhar espantado o homem que dizia ser seu pai.
— Bom dia. - cumprimentou Clara com dificuldade,
enquanto examinava com asco aquele homem que olhava
para baixo, postado bem à sua frente.
— Bom dia, minha dona. Falo assim, pois não tenho
intimidade com a senhora. A senhora é D. Clara?
— Sim. Meu nome é Clara. Quem é o senhor e o que
quer? Falou bruscamente, tentando esclarecer tudo aquilo o
mais rápido possível.
— Pelo que sei, sou seu pai. Não conheci a senhora
quando nasceu, pois quando Maria, sua mãe, ficou esperan-
do você, eu saí de casa e fui morar com Marina. Contei tudo
para essa moça que veio me atender antes. Agora foi Marina
quem me largou e fugiu com Ratinho. Há muitos dias ca-
minho por essas bandas, estou vindo de longe, passei num
lugar e noutro, sempre procurando um lugar para dormir e
comer em troca de algum trabalho. Não consegui. Por acaso
cheguei a Cachoeira do Assento. Aqui, sem querer, descobri
que a senhora é minha filha.
— Não entendi. Como descobriu que eu sou sua fi-
lha?
— Tive com sua mãe outros filhos, uns onze ou doze.
Não me lembro mais, quase todos morreram. Sei que só três
vingaram: dois meninos e uma menina. Essa menina é você,
a filha que não conheci, pois quando larguei sua mãe você
estava na barriga dela. Os meninos eu vi nascer, cheguei a
viver uns anos junto a eles. Tinha muito amor por eles.
— Mas o que me acaba de contar não mostra que você
é meu pai.

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— Eu vou contar, espere um pouco. Aqui nessa cida-
de e também em outras, conversando ora com um, ora com
outro, descobri que a última filha de Maria, logo que nasceu
foi dada a um casal daqui da região, um fazendeiro rico de
nome José Alencar, casado com D. Donana. Segundo me
contaram, D. Donana, pouco antes de você nascer, teve uma
febre brava e durante o parto, que foi fora do tempo, perdeu
a filha que gerou. Ela nasceu morta. Além disso, os médicos
retiraram o útero e assim não podia ter mais filhos.
— Então sou sua filha? E minha mãe? Onde está? Per-
guntou Clara, espantada com o que ouvia e nunca imagina-
ra. Queria saber tudo acerca de seu passado, um passado
que jamais foi contado a ela.
— Sua mãe ficou morando no mesmo lugar. Os dois
filhos, quando viraram homens feitos, sumiram no mun-
do, cada um para um lugar diferente. Maria, segundo ouvi,
sozinha e sem os filhos, passou a morar com um homem.
Tanto ela, como ele passavam grande parte do dia beben-
do em casa ou mesmo nos bares na cidade onde moravam.
Vivendo desse modo, quase sem se alimentar, só sei que
ela teve barriga d’água. Foi internada em um hospital e
melhorou, mas voltou a beber do mesmo modo que antes.
Assim, quando piorava muito, era internada no hospital e
melhorava. Isso aconteceu muitas e muitas vezes. Quando
voltava para casa, retornava à bebida e ao cigarro de fumo
de rolo, um fumo dos mais fortes. Acabou morrendo no dia
do aniversário dela.
Morreu quando ela e o homem dela cantavam “Feliz
Aniversário”, um “feliz aniversário” brindado com pinga.

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Maria foi enterrada no cemitério de Jacutinga do Ser-
tão, o arraial onde morava. Você já foi lá? perguntou o vi-
sitante.
— Não! Nunca!
— Qual é o seu nome? - Perguntou Clara ao visitante
estranho.
— Eles me chamam de Piquira. Todos me conhecem
como Piquira, tornou a responder e prosseguiu— Mas meu
nome mesmo é Plínio.
— Plínio? O mesmo nome do meu filho!
Constrangida, cada vez mais embaraçada, Clara não
sabia o que fazer. Ao mesmo tempo em que desconfiava
daquele estranho, acreditava em parte no que dizia, pois
achava impossível, ou muito difícil, inventar uma história
como a contada por ele. Sem coisa melhor a fazer, convi-
dou-o a entrar. Prontamente Piquira entrou e, uma vez
dentro de casa, Clara pediu a Zilah que preparasse alguma
coisa para ele comer.
Como Mozart havia saído naquele instante, Clara de-
cidiu ir até a fazenda. Desejava esclarecer tudo aquilo com
Donana e José Alencar, pois os dois podiam saber, ou talvez
tivessem algo diferente para contar. Ela saiu disposta a obter
uma história final e verdadeira acerca de sua origem. Jamais
eles lhe tinham contado detalhes de sua adoção: como e por
que ela foi escolhida, quem eram seus pais e onde moravam.
Após aprontar-se rapidamente, ela deixou Piquira as-
sentado desajeitadamente na sala de visitas.
Antes Clara orientou Zilah para não só vigiá-lo, como
também cuidar de Plínio, seu filho, durante a rápida ausência:

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— Não tire o olho dele! Clara gritou, dirigindo-se a
Zilah.
Ofegante e caminhando rapidamente, Clara subiu o
morro que separava a rua principal da cidade da entrada
da porteira da fazenda. Da varanda da fazenda, enquanto
José Alencar amolava seu canivete Rogers predileto, notou
alguém que se dirigia à fazenda. Estranhou quando per-
cebeu que quem estava se aproximando, andando muito
depressa, ao contrário do que sempre fazia, era Clara. Preo-
cupado, largou o canivete aberto perto da pedra de amolar
e desceu as escadas da varanda, esperando para recebê-la.
Ao vê-la, notando a fisionomia tensa de Clara, perce-
beu que alguma coisa mais séria tinha acontecido. Como
sempre fazia, José Alencar tentou amenizar a tensão da fi-
lha e para isso deu-lhe um abraço, que saiu desajeitado,
como se não tivesse percebido nada no seu semblante.
Sem nada perguntar, antevendo que algo havia acon-
tecido, tentando camuflar sua própria preocupação com o
que iria escutar, José de Alencar convidou Clara para entrar
e assentar-se nos bancos de madeira da varanda, a qual se
estendia por toda a frente da grande casa da fazenda. Após
os cumprimentos, uma vez assentados e antes de Clara co-
meçar a falar, José Alencar, perturbado pelo silêncio, per-
guntou:
— Alguma coisa aconteceu? Está tudo bem?
José Alencar perguntou, já sabendo que acontecera
algo preocupante, que algo havia ocorrido e devia ser grave,
não só pela fisionomia de Clara, como pelo horário da visita,
10 horas da manhã, ainda mais numa Sexta-Feira Santa.

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Nesse horário ela nunca ia à fazenda, além disso os
dois já tinham se encontrado mais cedo, pois tomaram o
café da manhã juntos, durante o qual riram e brincaram
mostrando que, até aquele encontro, nada havia aconteci-
do, tudo estava bem.
— Sim! Muito estranho!
— Quer um copo de água? Tem um suco de laranja,
quer um pouco? Vou buscar para você. Voltou rápido com
dois copos e a bilha com água. Antes de assentar-se, prepa-
rou dois copos de água para ambos.
— Conta. Conta tudo. Pediu José Alencar à sua filha,
enquanto descia pela sua garganta a água fria da bilha.
— Não sei como começar... estou tão nervosa. Vou
falar tudo o que quero de uma só vez.
— Pode e deve falar. Não temos segredos entre nós.
— Pois bem... Clara tomou mais um pouco da água
do copo e enchendo o tórax de ar, continuou sua fala, agora
mais firme e forte:
— Quem são meus pais verdadeiros?
— Verdadeiros? Eu e Donana. Uai! Por quê? Que per-
gunta estranha, a uma hora dessas.
— Não, eu sei. Pode falar o que sabe. Falo “verda-
deiros”, você sabe o que quero dizer, os que me geraram.
Vocês não. Vocês me criaram. De onde eu vim?
— É... é uma história antiga, leva tempo para contar,
mas se quiser...
— Quero e preciso ouvir. Aconteceu um fato novo.
— O quê?
— Um homem, que se diz meu pai, apareceu hoje cedo
em minha casa, pouco tempo depois que você saiu.

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Ele está lá. Vim aqui para saber o que fazer. Também
descobrir se é ou não verdade o que ele me contou. Estou
muito nervosa, mas quero saber de tudo.
— Se você me pediu, eu vou contar. Não contei antes
por julgar desnecessário você saber dos pormenores desse
assunto. O que interessa mais, no meu ponto de vista, é o
nosso amor por você. Mas agora, diante do ocorrido, da
presença desse homem, que de fato pode ser seu pai, eu
vou lhe contar.
Clara gelou e ficou branca, tomando mais um pouco
de água. José Alencar, antes de começar a contar a história
de seu aparecimento em sua casa, trouxe-lhe um pouco de
café. Chamou Donana para tomar conhecimento do ocorri-
do e também ajudá-lo na narração da história.
Após Donana cumprimentar Clara e se assentar ao
lado do marido, os dois esperaram que Clara bebesse o
café. Em seguida José Alencar tomou a palavra e foi, passo
a passo, contando a história de como ela, Clara, foi parar
nas mãos do casal e posteriormente criada por ele e Dona-
na. De tempos em tempos, Donana contava alguns fatos
que José Alencar havia omitido, sem que houvesse, em mo-
mento algum, desacordo entre os relatos de um e de outro.
Contou-se, com minúcias, a febre que apareceu. Donana já
estava nas últimas semanas de gravidez, a perda da menina
que nasceu morta após a cesariana e também a retirada do
útero. A história ouvida agora, através dos dois, foi a mes-
ma que Piquira havia contado a Clara, por ouvir dizer.
De tempos em tempos José de Alencar fazia uma pau-
sa, tecia alguns comentários, falava sobre outro assunto ou
era interrompido por algumas palavras da esposa.

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Aos poucos, parecia que Clara foi ficando mais calma,
apesar de sempre estar muito atenta e com os olhos presos
no pai ou na mãe. José Alencar continuou:
— Ao perder a filha, Donana, nós dois, ficamos muito
tristes. Não foi? disse, virando-se para Donana.
— E como sofri. Esperava tanto o nascimento de uma
filha.
— Além de tudo, — José Alencar continuou: —ela
não poderia mais ter outros filhos. Nessa ocasião, o médi-
co dela, Dr. Cegonha, esqueci o nome dele, era assim que
era e é chamado, o mesmo que fez o parto de Plínio, fez
um parto de uma mulher — cujo marido havia fugido com
outra — que já tinha tido vários filhos, a maioria dos quais
havia morrido, mas tinha ainda dois meninos vivos. Ela
não queria mais filhos, muito menos uma menina. Conver-
sando com Dr. Cegonha, ela confirmou que desejava doar a
criança para adoção por alguma família que pudesse criá-la
com carinho. Não foi assim, Donana?
— Sim, isso mesmo.
A história contada por José Alencar e Donana coinci-
diu em tudo com a relatada por Piquira, o homem que afir-
mou ser o pai biológico de Clara. Transtornada, naquele
instante Clara começou a buscar e a descobrir semelhanças
físicas entre o homem que havia aparecido em sua casa e
falava ser seu pai, e ela, bem como entre ele e Plínio.

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12º Capítulo

A caçada de Piquira

Sem ter para onde ir, sem lugar para morar e comer,
Clara, de comum acordo com Mozart, convidou seu pai a
morar com sua família, o que foi prontamente aceito. As-
sim, a partir dessa visita inesperada, Piquira passou a mo-
rar na casa com Mozart e Clara.
Como a casa era pequena, mal cabendo o casal, o filho
e a babá, foi necessário criar um lugar para Piquira morar.
Para isso, ajudado como sempre por José Alencar, operá-
rios contratados por ele construíram em poucos dias, no
espaçoso terreno existente nos fundos da casa, um barra-
cão formado de um quarto e banheiro. Em seguida, para
alívio de Clara, Piquira foi alojado, feliz da vida, na sua
nova residência, levando para dentro da mesma todas as
suas tralhas.
Logo que o barracão foi inaugurado, não se sabe por
que, ele se tornou um habitat de ratos, lagartixas, pombos,
gambás, morcegos, borboletas, bruxas, sapos, rãs, escor-

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piões, baratas e vários outros insetos, répteis, aracnídeos,
aves e mamíferos.
Essa circunstância negativa que se instalou nos fun-
dos da residência da família, por outro lado transformou-
se, para o hóspede do barracão, em continuada alegria e
divertimento.
Piquira, como ele próprio havia dito, viveu um longo
tempo de sua vida no meio do mato, junto a vários animais.
Sua atividade constante era caçar aves, mamíferos, répteis,
batráquios, ovos e mesmo alguns insetos que serviam de
alimento para ele e a mulher. Nas suas andanças, acompa-
nhado de Marina, colhia também frutos e raízes alimentí-
cias e curativas. Os animais mortos, bem como os captu-
rados, além dos vegetais colhidos, eram utilizados como
alimento para o casal ou como curativos para sua saúde. Os
que sobravam, que não eram ingeridos nem usados, eram
vendidos na cidade mais próxima de onde estavam.
Agora, morando no barracão sozinho, e como este
se transformou num criador de pequenos animais, Piqui-
ra, acostumado a caçar e a colher, sem outra coisa melhor
a fazer, retornou às suas antigas atividades. Passava boa
parte do tempo sempre animado, perseguindo e caçando
os bichos que compartilhavam com ele da mesma moradia.
Para realizar suas caçadas, Piquira usava ora sua velha es-
pingarda, ora seu facão enferrujado, ou o porrete construí-
do por ele mesmo de braúna e uma bengala de jacarandá.
A caça aos bichos seguia um ritual próprio, ou seja,
não era realizada em qualquer dia, a qualquer hora ou de
qualquer modo.

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Tudo era preparado com antecedência, como um
acontecimento importante e extraordinário e, para isso,
necessitava ter dia e hora marcados previamente, deven-
do também seguir um roteiro determinado e que precisa-
va ser cumprido como foi prescrito pela cerimônia.
Geralmente o espetáculo da caçada aos bichos era
realizado durante o alvorecer, isto é, minutos antes do sol
aparecer no horizonte. Às vezes no lusco-fusco do anoite-
cer, logo que o sol começava a se pôr atrás dos montes que
ficavam atrás da casa.
Mas como todo espetáculo, a “caçada” de Piquira
exigia também, além do roteiro rígido, vestimentas e ador-
nos especiais para aquela memorável manhã ou anoitecer.
Para isso, algumas horas antes da encenação do teatro do
absurdo, Piquira solenemente tirava do saco encardido,
que fora guardado dentro de uma velha canastra, calças
especiais fabricadas por ele mesmo feitas de couro de ra-
posas caçadas há muito tempo.
Um odor nauseabundo e insuportável exalava das
calças imundas fabricadas por ele com o couro. As calças,
guardadas de qualquer modo e uma vez retiradas do saco
de tralhas, eram esfregadas por Piquira fazendo uso do
pano usado para limpar o chão da casa. Em seguida enfia-
va as calças de couro, perna por perna, em cima das calças
que estava vestindo, amarrando-as com cordões de couro
em volta de sua pequena barriga.
Uma vez vestidas as calças fedorentas, revirava seus
pertences, retirando de dentro do saco um par de botas
também imundas.

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Estas, uma vez limpas com o pano de chão, eram so-
lenemente calçadas com esmero, enfiando a parte distal das
calças de couro dentro do cano das botas.
Mas a fantasia necessária para a caçada não acabava
aí. Para caçar era também necessário o uso de um chapéu:
este nada mais era do que uma longa tira de couro esver-
deada, dando algumas voltas em torno do couro cabelu-
do do caçador. As tiras se afinavam dos dois lados distais,
formando cordões finos que serviam para amarrar as tiras
e assim prendê-las na cabeça de Piquira. No chapéu im-
provisado construído na hora, prendiam-se enormes penas
pretas guardadas também no saco, que foram removidas
de urubus mortos pelo caçador.
Para complementar esses ornamentos ou enfeites in-
dispensáveis usados nos momentos solenes e importantes
da vida, Piquira, como todos nós, esmerava-se com respei-
to à beleza e ao simbolismo da face e do tronco desnudo e,
para isso, se enfeitava de listras: as vermelhas, confeccio-
nadas com urucum, as escuras, fabricadas com tinta preta
usada para tingir roupas e por último as listras brancas,
produzidas com alvaiade.
O conjunto de condutas solenes exigidas precisava
ser seguido conforme regras estritas, adequadas e próprias
para cada fim desejado. Desse modo, uma vez estando o
caçador enfeitado adequadamente, tornava-se necessário
prepará-lo com as armas poderosas, para que o mesmo
pudesse sair vitorioso do grande embate que travaria em
seguida, pois os inimigos já estavam à espreita e prontos
para a luta.

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Piquira retirava do saco a pólvora e o chumbinho,
que eram colocados no local apropriado da velha, cansa-
da e enferrujada espingarda. O facão, uma vez retirado do
saco e após ser lavado, era amolado na pedra de ferro. Fi-
nalmente retirava do saco o porrete escuro de braúna e um
outro menor, também escuro, de jacarandá, que lhe serviria
de bengala.
Uma vez vestido a caráter e bem armado, nosso herói
se sentia preparado e pronto para a luta de vida ou morte.
Era assim que Piquira, de armas nas mãos, dava profundas
respiradas, provocando um barulho estranho e ameaça-
dor que podia ser ouvido muito longe, simbolizando que,
a partir daquele instante, espíritos protetores e poderosos
estavam se alojando e defendendo sua alma contra os ini-
migos que encontraria daqui a pouco.
A cerimônia inicial, exibida como prenúncio da caça-
da, estava chegando ao fim. Sob o olhar desconfiado dos
ratos, sapos, lagartixas e outros animais, Piquira, após be-
ber alguns goles de cachaça, dançava no terreiro da casa
por minutos, às vezes por horas. Nesses momentos ele can-
tava melodias ininteligíveis, acompanhadas por sons pro-
duzidos por ele mesmo através de batidas de palmas ou
de pedaços de madeira uns contra os outros. Através desse
ritual, Piquira recebia mais forças exteriores, poderosas o
bastante para fazê-lo vencer os inimigos ferozes e temíveis
que seriam enfrentados dentro em pouco. Num copo sem
lavar e encardido, mais uma vez uma pequena quantidade
de cachaça era colocada e imediatamente ingerida em qua-
se sua totalidade.

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O restante, deixado no fundo do copo, era jogado no
chão do quarto para os deuses vigilantes e protetores.
Quando tudo já estava preparado, antes de entrar na
arena onde seria realizada a caça, um local que de fato nada
mais era que, nos outros dias, seu quarto de dormir, Piqui-
ra fazia várias flexões do tronco. Nessa ocasião ele chegava
quase a encostar a cabeça no chão, dando as costas para o
Sol que nascia ou se punha no horizonte distante.
Ao entrar no campo de batalha ele dava gritos e berros
e após executar movimentos corporais rítmicos, deixava o
porrete maior encostado atrás da porta. Desse modo, armado
com a espingarda na mão esquerda e o porrete pequeno na
mão direita, Piquira entrava no barracão iniciando a terrível
batalha que durava toda a noite ou todo o dia. Examinando
cuidadosamente cada sinal do inimigo, nem sempre escon-
dido, Piquira sabia que agora estava pronto para atacar ou
fugir do feroz animal que habitava aquela selva perigosa.
De tempos em tempos ele escondia-se atrás da cama
onde dormia e ali ficava, por minutos, quieto, na tocaia, pre-
parando-se para atacar o inimigo de surpresa. A caçada, se
realizada à noite, só terminava quando o dia amanhecia.
Neste caso, sem acender a luz, ele usava uma vela ou
uma lanterna para focalizar o perigoso inimigo. Para atrair
o animal, muitas vezes ele não só imitava os “chamados”
de acasalamento, como também deitava-se no chão, agindo
como se estivesse morto, prendendo a respiração ou res-
pirando muito suavemente, permitindo assim que ratos e
gambás se aproximassem e pudessem ser pegos com suas
próprias mãos.

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Também armava arapucas e outras armadilhas e nes-
tas prendia ratos, mariposas, rãs, pintos e galinhas que ha-
viam entrado no barracão em busca de algum alimento.
O porrete e a espingarda pouco eram usadas. Piquira
tinha preferência por pegar o bicho “às unhas”, fingindo-se
de morto ou preso através das armadilhas. Quando conseguia
pegar algum animal usando apenas suas mãos, seu grande
prazer era esmagá-lo, esganando-o, até perceber que ele estava
completamente dominado e morto. Piquira, nesses momentos,
dava urros, tinha todo o corpo contorcido à medida que perce-
bia que o bicho estava preso e estrebuchando, diante do poder
de sua mente e enviado às suas poderosas e potentes mãos.
Às vezes, durante essas matanças, ele chegava a ter orgasmos
altamente prazerosos. Depois de estrangular o animal com as
mãos, este era jogado ao chão já morto e só nesses momen-
tos Piquira usava o porrete ou a espingarda: as armas serviam
muito mais como rituais simbólicos de sua força e poder.
Uma vez terminada a matança de ratos, sapos, lagar-
tixas, bruxas, morcegos, escorpiões, isto é, de todos os ani-
mais caçados e mortos, estes eram colocados dentro de uma
panela existente no terreiro da casa. A panela ficava depen-
durada no meio de uma barra de ferro comprida, barra essa
que se apoiava, em cada extremidade, em duas forquilhas
que sustentavam a barra e a panela. Em baixo da panela
dependurada, era acesa uma fogueira improvisada.
Os animais mortos, todos eles misturados, eram então
cozidos na panela colocada na fogueira, sempre tempera-
dos com sal e limão capeta, este último colhido no próprio
quintal da casa de Clara.

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A panelada cheia de iguarias indigestas e repugnan-
tes, após preparada era ingerida com inusitado prazer.
Após se fartar da estranha comida, composta de carne, os-
sos, penas, peles, intestinos, asas de insetos, etc., Piquira
improvisava uma cama ao lado da fogueira após beber sua
última dose de cachaça. Permanecendo ali deitado, dormia
feliz e bêbado até quando o sol já estava alto. Nesse mo-
mento, ele penetrava no seu barracão para continuar o seu
sono e sonhos reparadores.
Quando Piquira caçava seus animais com todos os
rituais descritos, todos em casa, bem como os vizinhos, es-
pantavam-se com esse estranho comportamento. Mas aos
poucos, como tudo na vida, ninguém mais se importava
com seus urros, suas roupas de guerra, seu fogão para as-
sar ratos ou gambás.
Ele, que quase não saía à rua, passava parte de seu
tempo deitado no chão em cima de um colchão velho e
sujo, ou caçando animais que eram vistos por ele como
perigosos inimigos, prontos e capazes de matá-lo, caso ele
não fosse bastante esperto e também um excelente caçador
de feras perigosas.
A princípio, Clara espantou-se com a conduta do pai,
mas também se acostumou. Seu filho, ainda muito novo,
inocentemente se aproximou do avô, que o tratava bem
e conversava muito com ele. Entretanto Zilah, que estava
sempre por perto e vigilante, tinha muito medo de Piquira.
Certa vez, quando ela estava no terreiro da casa arru-
mando um varal para colocar as roupas para secar, pediu a
ajuda de Piquira para espichar uma das cordas.

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Num certo momento, as mãos de Zilah, sem que ela
quisesse, ao fazer certa força escorregou e tocou levemen-
te a mão de Piquira. Este, repentinamente, tornou-se um
outro homem: segurou de uma só vez a mão de Zilah que,
sem ela querer, havia esbarrado nele. Sem maiores explica-
ções, ele começou a apertar cada vez mais a mão de Zilah
com suas poderosas mãos, as mesmas com que estrangula-
va os animais. Inicialmente, sem imaginar quais eram suas
intenções, ela apenas lhe pediu que a largasse. Possesso,
transformado em outra pessoa, foi apertando cada vez
mais a mão da moça. Ela fez um enorme esforço para esca-
par e, por sorte, a mão de Zilah estava molhada de sabão e
acabou se soltando das garras de Piquira.
Em seguida ele nada fez, ficou parado como estava
antes dela tocá-lo, como ocorre quando se toma um choque
e de repente ele acaba. Tudo parecia normal, como se nada
tivesse acontecido. Piquira havia retornado à sua norma-
lidade costumeira, uma pessoa inofensiva desde que não
tocassem o seu corpo. A partir dessa experiência desagra-
dável, Zilah procurou manter-se afastada dele, imaginan-
do que ele queria agarrá-la no sentido de conquistá-la, para
aproveitar-se dela sexualmente.
Dias depois o mesmo fato aconteceu, só que dessa vez
a vítima foi o menino Plínio. O menino estava brincando no
terreiro junto com Zilah. Num certo momento, a pequena
bola com que brincava, rolou um pouco mais longe entran-
do no quarto onde Piquira estava deitado. Plínio pegou a
bola que rolara no chão e vendo o avô deitado e olhando
para ele, decidiu mostrar-lhe a bola que tinha entrado ali.

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Para isso, chegou bem perto dele. Ao mostrar a bola,
explicando para o avô como ela tinha ido parar ali no quar-
to, o corpo da criança roçou o corpo do avô. Nesse instante,
como que possuído por alguma força misteriosa, agarrou o
pescoço do menino, apertando-o para estrangulá-lo. Plínio,
apavorado, ainda teve tempo de iniciar um grito de dor
e desespero, à medida que estava sendo enforcado pelas
duas mãos de Piquira. Zilah, que estava perto, ouvindo os
berros imediatamente entrou no quarto e com ódio e força
pegou o porrete de braúna que estava visível e lhe deu uma
violenta porretada na cabeça. Piquira soltou um grito lanci-
nante de dor, largando imediatamente o pescoço do meni-
no que estava sendo esganado. Plínio, quase desmaiando,
correu em direção à sua salvadora. Após dar o terrível gri-
to de dor, Piquira retornou ao seu estado normal e a todo
o momento passava as mãos na cabeça. Pensativo, olhou
para Zilah com indiferença, em seguida virou-se na cama,
dando as costas para a moça, como se fosse dormir.
Zilah correu com o menino nos braços em direção
a Clara. Plínio continuava a gritar de desespero. Só com
muito custo conseguiram acalmá-lo. A partir desse fato os
cuidados com o filho foram aumentados e todos tinham
pavor de encostar-se em Piquira.
Tempos depois, José Alencar, que se inteirou do ocor-
rido, obteve outras informações a respeito da conduta de
Piquira. Os boatos diziam que ele já teria matado, esganan-
do, não apenas animais, mas também pessoas, inclusive a
mulher com quem vivera e que, segundo ele contou, fugira
com Ratinho.

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13º Capítulo

O tempo passa: decifrando o mistério

Os dias, meses e anos foram se passando. Mozart con-


tinuava a viver de sonhos que nunca se realizavam. Clara
dirigia a casa, cuidava do filho e das finanças vendendo
doces feitos por ela mesma: goiabada, doce de leite e de
manga, com as frutas e o leite que vinham da fazenda. Par-
te do dinheiro recebido era dado ao marido, que ainda não
arrumara um emprego. Este, apesar de ser formado em le-
tras, jamais conseguiu dar aulas de português nos colégios
da cidade por mais de dois ou três meses. Não tolerava a
ignorância dos alunos e dos professores.
Piquira, cada vez mais decadente, continuava sua
vida de caçador semanal ou mensal. Pouco incomodando,
cada dia mais sozinho, por sua vez não mais perturbava
ninguém. Plínio, filho de Clara, já tinha completado dezes-
seis anos: era um rapaz estudioso, bem-educado e sensível
aos problemas dos outros, mas que tinha pouca participa-
ção nas brincadeiras e jogos dos colegas e vizinhos.

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Como sua mãe, levado por José Alencar ele preferia
passear na fazenda que frequentar as festas da cidade ou a
casa dos parentes. Mais preso à mãe, ele ficava a cada dia
mais distante de Mozart.
José Alencar continuava visitando constantemente a
filha adotiva, levando para ela os suprimentos da fazenda,
pagando as dívidas do casal e ao mesmo tempo orientan-
do-a quanto à maneira de viver e de educar o filho Plínio.
Como sabia que Donana não gostava dela, Clara evi-
tava ir à fazenda quando ela estava lá. Entretanto bastava
Donana viajar, para que Clara imediatamente para lá se di-
rigisse, sendo que muitas vezes por lá ficava por dois ou
mais dias com o pai adotivo. Mozart não se importava com
suas idas, talvez até achasse bom, pois ficava mais à vonta-
de em casa e na rua.
Para tristeza de Clara, Donana viajava cada vez me-
nos. A mãe dela morrera após permanecer acamada por
um longo tempo em virtude de um derrame. Agora as via-
gens de Donana eram mais raras, apenas quando ia visitar
o filho e os netos que moravam em Brasília.
Pedro era o único filho do casal José Alencar e Dona-
na que vivia com os pais e mesmo assim continuava a mo-
rar na casinha/rancho existente a seis quilômetros da sede
da fazenda. Morando longe e sem o que conversar com os
pais, raramente vinha visitá-los e quando aparecia, perma-
necia pouco tempo na sede. Ele ali ia sempre com algum fim
determinado: comunicar ao pai sobre uma vaca doente, um
barranco caído impedindo a passagem pela estrada, uma su-
gestão para plantar ou deixar de plantar uma coisa ou outra.

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Carinhosamente trazia para a mãe alguma fruta que
apanhara no mato, mais rara e bonita, ou também orquíde-
as que eram vistas, todas lindas, com frequência, através
das capoeiras da fazenda.
Acostumado à vida do campo, deitando-se e levan-
tando-se cedo com atividades continuadas durante todo
o dia, Pedro, satisfeito com sua vida, quase não ia à ci-
dade, a não ser para adquirir o necessário para sua so-
brevivência, como mantimentos, remédios para o gado,
ferramentas, alguma consulta com o veterinário e outras
coisas parecidas.
Pedro ainda não havia casado, mas frequentemente
na sua casa era notada uma presença feminina, pois uma
amiga ou outra iam visitá-lo, ficando horas, ou mesmo
dias, em sua companhia. Mas ele só aceitava moças que
gostassem de trabalhar no serviço duro e interminável da
fazenda. Expulsava todas as preguiçosas ou de mau cará-
ter, como ele categorizava as que não gostavam do serviço
duro e pesado da fazenda.
Nas suas idas à cidade, apesar da grande amizade
que os unia desde criança, com o casamento de Mozart e
Clara, sua irmã de criação, seus encontros foram diminuin-
do com o afastamento físico. Quando encontrava Mozart,
estes eram quase sempre superficiais. Poucas vezes ia até a
casa de Clara e Mozart, apesar do convite de ambos. Essas
visitas eram raras e de curta duração, as conversas versa-
vam geralmente sobre a infância, a juventude que eles pas-
saram juntos, as namoradas, a primeira transa e os planos
sempre grandiosos e sonhadores dos jovens.

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Como sempre, para não fugir à regra, Mozart preci-
sava mostrar para o amigo dileto as novas e também as
melhores poesias que ele produziu.
— Essa aqui: olhe e leia. Não! É melhor eu ler para
você. Gostei muito dela. Acho que você também irá gostar.
Penso em entrar num concurso de poesias que será realiza-
do em Brasília, as inscrições já foram abertas, talvez entre
num em São Paulo, mas esse vai demorar mais. Até lá farei
outras poesias e pintarei um ou dois quadros. Você vai fi-
car emocionado com ela.
Pedro, apressado e aborrecido ao mesmo tempo, ti-
nha dificuldade de ir contra os desejos e entusiasmos do
amigo, além disso tinha dó da vida que ele levava. Por tudo
isso, contrariado, Pedro ouvia a poesia declamada com en-
tusiasmo pelo amigo. Entretanto, por mais que se esforçasse
não conseguia prestar atenção a um único verso, não sentia
a menor emoção durante a narração, ficando difícil para ele
comentar com o poeta alguma coisa interessante.
— É... essa é muito boa. Penso que você ganhará o
concurso. Nesses momentos lembrava de Dr. Milton, que
dizia que certas pessoas precisam da mentira para viver,
pois não têm condições psicológicas para suportar a ver-
dade. Ele jamais se emocionou com as poesias ou quadros
do artista.
Apesar do fanatismo de Mozart pela poesia e pela
glória futura com a qual sonhava, por outro lado Pedro era
bastante indiferente à literatura de modo geral, pouco ou
quase nada lia, detestava ler até as notícias publicadas nos
jornais e que poderiam ser de interesse para ele.

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Avesso à leitura, jamais lia um folheto informativo
por mais interessante que fosse, mesmo os relativos a pro-
blemas que enfrentava, como a plantação de um tipo de
capim para o pasto, uma doença que estava atacando seus
animais e assim por diante. Parecia que, apesar de sua inte-
ligência ser normal ou acima da normal, ele só compreendia
e raciocinava com estímulos auditivos, isto é, as conversas
que ouvia. Por outro lado, desacostumado de ler, quando
forçado ou livremente começava a ler, os sinais das letras,
palavras e frases não lhe forneciam nenhum sentido, não
se relacionavam com nenhuma outra experiência sensorial
ou auditiva. Sendo assim, cada vez mais Pedro evitava ler
qualquer tipo de escrita, pois nada entendia do que lia.
Mas Pedro interessava-se pelo bem-estar de Mozart e
desejava que seu amigo realizasse seus sonhos e fosse re-
conhecido como um grande poeta. Pisando em terra firme,
Pedro não acreditava que o imaginado por Mozart fosse se
realizar.
Apesar de trabalharem com planos e objetivos muito
diferentes, os dois continuavam bons amigos. Pedro, mes-
mo torcendo honestamente para Mozart obter sucesso, não
se interessava, nem achava a menor graça no que ele fazia.
Eram bons, grandes e leais amigos, conservavam a amiza-
de dos tempos de criança, mas ele fingia que gostava para
não desagradar ao amigo.

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14º Capítulo

A revelação: suspeita e confirmação

Na fazenda, curioso, Pedro às vezes perguntava a seu


pai como estava o casal Mozart e Clara. Notava claramente
que José Alencar evitava falar sobre eles, no máximo co-
mentava a respeito do menino e de Clara.
No feriado da Sexta-feira Santa, Pedro, após passar
mais de uma semana sem visitar seus pais, no fim da tar-
de decidiu ir dormir na sede da fazenda. Ele dizia que de
forma nenhuma trabalharia na Sexta-feira Santa. Seguindo
esse princípio, nesse dia santo não tirava o leite das vacas,
deixava os bezerros mamarem à vontade. Além do mais,
a cooperativa onde o leite era entregue todas manhãs não
funcionava naquele dia.
Pedro tinha o propósito, quando retornasse da sede para
seu rancho, de levar o trator do pai para consertar alguns tre-
chos da estrada. Devido à chuva continuada que havia caído,
houve queda de barrancos que obstruíram várias passagens.

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Ao chegar, estranhou a ausência de sua mãe na fa-
zenda e só depois soube que Donana fora a Brasília passar
a Semana Santa na casa do filho. Ao encontrar Clara na
fazenda, ficou sabendo que ela decidira passar o fim de
semana junto ao pai, sem ter levado Plínio e sem a compa-
nhia do marido.
Apesar de não se preocupar com detalhes, nesse dia,
automaticamente mais atento com os fatos observados, ele
relacionou a presença da irmã na fazenda com outras si-
tuações vivenciadas semelhantes e a estreita ligação entre
seu pai e Clara. Não tinha provas concretas, mas a ligação
entre os dois parecia ser exagerada. A liberdade que Clara
tinha com José Alencar era muito grande e diferente da
conhecida por ele com respeito a pai/filha.
Apesar disso, Pedro forçava seu pensamento em ou-
tra direção, tentando imaginar que tudo aquilo era uma
suspeita tola de sua parte. Sua cabeça girava, ora para o
lado da desconfiança, ora para o de confiança em seu pai e
na irmã de criação. Estava tenso e se perguntava:
— Será que meu pai e Clara estão traindo meu amigo
Mozart?
— O que devo fazer? Ficar quieto, ou tomar alguma
atitude?
Ao encontrar seu pai e Clara, Pedro conversou com
os dois, fingindo naturalidade. Sem querer, imaginou que
os dois se assustaram com sua presença inesperada naque-
le fim de tarde.
Ele não sabia que eles, sem o desejar, haviam trans-
mitido pistas para ele.

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Aprofundando seus pensamentos, Pedro imaginou
que eles pareceram não ter gostado de sua presença.
— Será que atrapalhei um encontro dos dois?
Pedro continuava a martelar sua cabeça com esses
pensamentos, sofrendo com suas próprias fantasias.
Para refrescar a cabeça, largou os dois assentados
na varanda da fazenda, desceu as escadas e foi verificar
se o trator estava funcionando bem. Para isso Pedro an-
dou uns trinta metros até chegar à garagem onde o tra-
tor ficava guardado. Ligou-o, andou para a frente e para
trás, percebendo que não havia nenhum problema no seu
funcionamento. Após guardar o trator na garage, decidiu
observar no curral, localizado ao lado, alguns bezerrinhos
recém-nascidos que ainda não conhecia.
Nesse instante encontrou um vaqueiro que estava
guardando as ferramentas após terminar seu trabalho do
dia santo. Iniciou com Raimundo uma conversa aparen-
temente sem objetivos diretos, fazendo uma e outra per-
gunta sobre o gado, o leite e a chuva, até chegar onde que-
ria. Através de Raimundo, Pedro soube que Clara estava
dormindo na fazenda desde quarta-feira santa. Que ela
dirigia todos os dias o jipe de José Alencar até a cidade,
para visitar e saber como o filho estava passando. Soube
ainda que o restante do dia ela o passava na fazenda com
José Alencar e que os dois frequentemente saíam de jipe
para as várias partes fazenda, sempre alegres, sorridentes
e felizes.
Nessa noite Pedro jantou sem fome a comida feita
por Clara.

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Ele não se sentia integrado às conversas do pai com
Clara.
Apoiado em suas suspeitas, passou a observar peque-
nos comportamentos dos dois, um olhar, um tom de voz,
um oferecimento, como indícios de que havia algo mais do
que uma simples relação de pai e filha.
Sentindo que atrapalhava o que eles tinham progra-
mado, Pedro, cada vez mais desconfiado da maneira de um
tratar o outro, e sem saber o que conversar com os dois,
decidiu ir se deitar mais cedo. Ele temia ser verdadeira a
suspeita imaginada por ele e esforçava-se para tirá-la de
sua mente.
Uma vez deitado, tentando parar de pensar na rela-
ção de Clara e seu pai, por mais que se esforçasse Pedro
não conseguiu dormir como queria. Transtornado, após ter
tirado uma primeira soneca muito leve, acordou com o ba-
rulho de conversas e risadas contidas que vinham do lado
da cozinha onde eles estavam.
Os sons, tanto das conversas entre os dois, apesar de
serem num tom baixo, como as risadas de Clara, contidas e
nervosas, podiam ser ouvidos com nitidez no quarto onde
Pedro se deitara.
Todos os dormitórios da casa se situavam em torno da
sala de jantar. Pedro, deitado num desses quartos, durante
a noite só escutava, fora a conversa de ambos, o tic-tac do
relógio dependurado na parede da sala.
O calor era intenso, um mormaço abafado invadia o
quarto todo fechado onde Pedro se deitara, pois só assim
evitava ser picado à noite por pernilongos famintos.

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Tendo a boca seca, levantou-se e caminhou em direção
à cozinha em busca de um pouco de água da geladeira. Seu
pai e Clara, sem perceberem sua aproximação, continuaram
suas conversas e brincadeiras bastante descontraídas.
Para chegar até à geladeira Pedro saiu do quarto sem
acender as luzes da sala, pois a luz muito clara da cozinha
clareava o caminho que teria que percorrer. Caminhou em
direção à cozinha onde os dois conversavam. Para isso ti-
nha que caminhar através de um corredor comprido, liga-
ção da sala de jantar com a cozinha, iluminado apenas pela
luminosidade proveniente da cozinha.
Após caminhar um pequeno trecho, quando estava
quase entrando na cozinha, ainda no escuro, Pedro pôde
enxergar, sem ser visto, que Clara e José Alencar estavam
abraçados e se beijando. Ao escutar um possível barulho
vindo do corredor, os dois rapidamente se afastaram um
do outro, retornando à conversa anterior como se nada ti-
vesse acontecido, olhando, de soslaio, em direção do corre-
dor por onde Pedro caminhava, mas que não estava visível.
Assustado diante do que viu e percebendo que os dois es-
tavam se afastando, Pedro deu um passo rápido para trás,
fugindo desse modo do ângulo no qual podia ser visto da
cozinha onde o casal estava.
Após alguns segundos de apreensão esperando a
chegada de Pedro, a única pessoa que estava na casa além
deles, e não percebendo nenhum barulho nem a presen-
ça de alguém, José Alencar e Clara reaproximaram seus
corpos, voltando aos abraços e beijos, indiferentes por um
longo e bom tempo.

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Pedro, com o coração disparado, sentindo crescer a
secura na boca, transtornado e pisando devagar nas pontas
dos pés, retornou ao quarto de onde viera sem fazer baru-
lho algum. Abriu a porta e ao entrar com extremo cuidado,
atrapalhado por sua tremedeira nas pontas dos dedos, fe-
chou o quarto sem provocar suspeita. Encostando os ouvi-
dos na porta, tentando ouvir e decifrar os sons vindos de
lá, assim permaneceu por muito tempo. Escondido atrás da
porta do quarto pôde se certificar que pouco depois Cla-
ra, após ir ao banheiro, se dirigiu ao quarto onde sempre,
desde solteira, dormira. Em seguida seu pai, após apagar
as luzes da cozinha e do resto da casa, também entrou para
o quarto onde ela entrara momentos antes, um quarto que
fora mantido e reservado somente para ela, mesmo após o
seu casamento com Mozart.
Confuso e irado, Pedro afastou-se da porta onde es-
tava, não mais conseguindo dormir naquela noite revela-
dora. Seu coração batia desordenadamente, sua respiração
estava ofegante, sua boca mais seca ainda. Tinha vontade
de chorar de raiva e de desespero ao ver a irmã de criação
dormindo com o pai dele, na ausência de sua mãe. Seu
primeiro impulso foi ir até o quarto e colocá-la para fora
de casa. Entretanto Pedro era uma pessoa controlada, mui-
to raramente usava condutas dominadas por uma cabeça
quente. Lembrou-se de outras ocasiões nas quais quis to-
mar atitudes intempestivas como a desejada agora, mas
pensou melhor e uma solução apareceu menos drástica.
Assim, intranquilo e sem dormir, pensou em bater na por-
ta e pôr fim a tudo aquilo que o atormentava.

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Mas novamente criticou sua própria ideia. Além dis-
so ele estava semi-paralisado, portanto incapaz de tomar
qualquer decisão coerente. Depois de algum tempo desis-
tiu de todas as ideias que lhe vieram à mente naquele mo-
mento trágico, evitando dessa forma tomar uma conduta
precitada. Pensando assim, mais calmo, achou melhor es-
perar o dia seguinte, consultar seu “travesseiro”, pois tal-
vez este lhe trouxesse alguma ideia melhor do que a que
tivera.
Pedro levantou-se, ou melhor, saiu da cama ainda
muito cedo pois não dormira nada. Sabendo que seu pai
se levantava antes do sol nascer, decidiu esperá-lo para
assistir à saída dele do quarto de Clara.
Às cinco horas da manhã ouviu os primeiros sons
vindos do quarto em frente ao seu, onde os dois dormi-
ram. Esperou com ansiedade aquele momento. Seu corpo
tremia todo. Ainda não sabia o que iria fazer, pois não
conseguira estabelecer um plano em virtude de seu ner-
vosismo.
Num certo momento ouviu-se um barulho maior: a
taramela tinha sido virada, forçando a porta a se abrir. José
Alencar, com calma, abriu a porta do quarto, procurando
não fazer o menor barulho. Após sair com todo o cuidado,
fechou a porta da melhor forma possível, pois Clara não
saiu da cama para tornar a passar a taramela. José Alencar
percebeu que Pedro estava postado na frente da porta do
quarto onde dormia. Assustou-se. Em seguida, como ho-
mem experiente e decidido, encarou seu filho e demons-
trando calma e falta de medo, interrogou-o:

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— O que está querendo? Está me esperando? Levan-
tou-se cedo. Hoje é dia de descanso...
— Agora sei de tudo, - respondeu Pedro, num tom
de voz demonstrando raiva e perplexidade.
— Está sabendo muito tarde, continuou José Alen-
car, seguro. E continuou no mesmo tom:
— Quer conversar? Se desejar, lhe darei mais expli-
cações.
Nesse momento, sem demonstrar nenhum constran-
gimento, segurou o filho pelo braço de maneira firme mas
delicada, levando-o até a cozinha. Após acender a luz, re-
tornou à sala para certificar-se de que Clara ainda dormia.
Percebendo tudo calmo no quarto onde Clara dormira com
ele, convidou o filho para assentar-se e andando de um
lado a outro foi preparando um café para eles beberem.
José Alencar tentou negar o acontecido, explicando
que fora até o quarto de Clara a chamado dela. Segundo
ele, Clara havia passado mal à noite e fora ajudá-la. Agora
havia entrado para saber como ela estava.
Pedro, mais corajoso devido à sua irritação, após ou-
vir o relato e sabendo que era mentira do pai, decidiu reve-
lar o que presenciara. Aproveitou para descrever também
suas desconfianças anteriores, ou seja, tudo o que lhe veio
à memória naquele instante.

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15º Capítulo

Encontro do pai e do filho: a confissão

O encontro entre José de Alencar e Pedro foi tenso.


Diante das informações do filho, impossíveis de serem refu-
tadas, José Alencar continuou tranquilo e seguro. Ele parecia
não estar emocionado, mas sim aliviado com a descoberta
do filho. Ficou ansioso apenas no instante que viu Pedro em
pé na sala, esperando-o sair do quarto de Clara. Logo que
seu filho expressou o que tinha observado, a calma do pai
retornou. Dava impressão de que José Alencar expressava
até certo orgulho pelo ocorrido, agora do conhecimento de
Pedro. Enquanto preparava o café, a conversa continuou:
— O que quer saber? - perguntou José Alencar falan-
do duro.
— O que queria saber, já sei. Não sei se tenho direito
de perguntar.
— Não é tão espantoso assim uma pessoa perceber,
ou descobrir, como você disse, que um homem sadio ame
uma mulher sadia e bonita.

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— Mas o senhor é casado! Clara é sua filha, além dis-
so é também casada! Casada com meu grande amigo! Isso
faz a diferença. Para mim isso não é tão comum assim. Se-
ria certo?
— Não e sim. Tudo dependerá do ângulo pelo qual
você irá examinar esse fato, das ideias iniciais do seu pensa-
mento, dos princípios que você usa, das circunstâncias atu-
ais e passadas. Eu tenho meus modos de avaliar esse fato.
Penso com minha mente, naturalmente diferente da sua.
— Está tudo confuso. Para mim vocês cometeram
uma falta grave. Acho tudo isso muito errado.
— Por acaso seria certo eu ter relacionamentos car-
nais com sua mãe, não tendo nenhuma atração física por
ela? Saiba você que temos, após anos juntos, aversão física.
Eu não iria sentir prazer em abraçá-la, beijá-la e rolar numa
cama excitado com o seu contato físico. O mesmo acontece
com ela. Isto já existiu durante anos, mas acabou. Não de-
pende de nós querer retornar ao que já morreu. A atração
física ocorre ou termina independente de nossos valores
aprendidos socialmente.
— Se forço minha mente, tentando representar ou
imaginar uma relação sexual com Donana, sabe o que sin-
to? Sinto-me mal, asco, nenhum prazer, apenas uma aver-
são terrível. Meu organismo, por mais que minha cabeça
tentasse, não aceitaria isso como agradável. Repito, a atra-
ção terminou para mim e para ela. Ninguém tem culpa. Se-
ria absurdo e indigno para ela, bem como para mim, fingir
que aprecio fazer sexo com sua mãe. Sinto-me mal só de
pensar. Entendeu?

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— Mas esteve e está ligado a ela. Já a amou e gos-
tou de abraçá-la. Agora simplesmente não mais aceita essa
ideia.
— Amor e atração física não são determinadas por re-
gras éticas, sociais ou religiosas. Elas são comandadas por
regras de nossa natureza e não do nosso código de ética ou
de religião. Não sei se está me entendendo. Quem orde-
na tudo é todo o meu organismo e não meus pensamentos
aprendidos numa sociedade hipócrita. Não adianta desejar
conforme as regras da sociedade isto ou aquilo, forçar uma
conduta que eu me sinto mal em realizar. É como querer
forçar um boi de raça a cruzar com uma égua. Os orga-
nismos de um e de outro se repelem, como o meu e o de
Donana.
— Nesse caso, a maioria das pessoas deveria trocar
de parceiros constantemente, logo que o organismo se sen-
tisse sem atração?
— Talvez! Sei que existem outros fatores. Sei, tam-
bém, que a atração que eu tinha por Donana acabou! Isso é
mais fácil de saber, pois basta perguntar ao meu corpo.
— Se vocês não se gostam mais, deviam se separar.
— Porque perdi minha atração física por ela, não
indica que eu deixei de gostar dela como pessoa, amiga,
mãe dos meus filhos, que nunca me fez nada de mal. Você
não entendeu! Ela nunca foi e nem é minha inimiga. Não
quero lhe fazer mal! Ao contrário, gosto muito dela como
pessoa, agora como uma grande, talvez a melhor amiga
que tenho. Seria absurdo para mim deixá-la, se continuo
a gostar dela.

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— Gosta? E não tem atração física?
— Isso mesmo. Aproximamo-nos de uma mulher ou
de qualquer outra pessoa devido a um amor tipo amizade,
gostamos da maneira como a pessoa nos trata. Dessa forma
gosto de vários homens. Mas há também uma outra atra-
ção, além da amizade. Trata-se de um amor carnal, do sexo,
o que um homem tem geralmente por algumas mulheres
e estas por alguns homens. Os homossexuais têm também
essa segunda atração por alguém do mesmo sexo. Isso não
vem ao caso que estamos discutindo.
— Continuo discordando. Se gostamos de uma mu-
lher, temos também desejo sexual por ela.
— Nunca! Encontro-me com várias mulheres que
gosto, bem como vários homens e jamais tenho desejo se-
xual por elas e eles. Por outro lado, já gostei carnalmente,
tive atração física por muitas mulheres pelas quais, algu-
mas delas, tinha até antipatia e mesmo raiva, isto é, não
tinha a menor amizade por elas. Entendeu? O que devo
fazer agora? Fingir como a maioria finge? Não sou homem
para agir assim...
— Isso é uma parte da história. — Pedro interrompeu
a conversa e continuou: — Existe uma outra história talvez
mais séria ainda.
— Ainda não! Deixe-me terminar. Vamos encerrar o
primeiro capítulo: eu e Donana.
— Mãe sabe do que ocorre, ou está tudo escondido,
como sempre aconteceu?
— Mentira! Nunca escondi nada de ninguém. Você
não quis ver. Estava e está tudo escancarado.

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Você faz parte dos que têm dificuldade de viver a
verdade e dos que, para viver harmoniosamente, precisam
da mentira.
— Eu? De onde tirou isso?
— De você e principalmente seu grande amigo Mo-
zart. Isso é sabido por todos. Dr. Milton, que fala o que pensa
afirma que seu amigo precisa, para viver, das mentiras, pois
não suporta a realidade. Mozart só vive dos sonhos irreali-
záveis. O que é um sonho irrealizável? Nada mais do que a
mentira para se apoiar. Mas não vamos falar nele ainda.
— Não sabia que o senhor me via assim. Mozart, eu
notava. Sei que não gosta dele.
— Sua mãe sabe de tudo! Talvez goste da maneira
como administrei o meu relacionamento com ela e Clara.
— Tudo? O quê?
— Vamos com calma. Eu e sua mãe somos amigos; ain-
da gosto dela como amiga, não desejo mal a ela, já lhe disse!
— Entretanto não se importa se é ou não vergonhosa
a situação para ela: o marido tem uma amante diante dela.
Pior ainda: na casa dela e com a filha adotiva.
— Parece-me que para você não seria vergonhoso
para ela e para a sociedade, caso eu saísse de casa, ou pe-
disse a ela para sair, deixando-a viver sozinha e abandona-
da, administrando mal o que ela nunca soube administrar.
Mais tarde ficando na miséria e implorando a um parente
uma ajuda para viver.
— Porque você nunca a ensinou.
— Ora, que bobagem. Aqui em Cachoeira do Assento
sempre foi assim.

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— Existem fazendeiros, não fazendeiras mulheres.
Clara talvez se torne uma delas, ela foi treinada por mim,
desde cedo para isso. Assim é mais capacitada. Fui eu, des-
de quando ela era criança, que lhe ensinei a gostar, princi-
palmente gostar, de mexer com a terra, plantar, cuidar de
animais.
— Para o senhor eram essas as duas únicas saídas:
largá-la sozinha ou morar com Clara, afrontando-a. O se-
nhor confessa que nunca viu outra saída melhor? Ou finge
que nunca viu?
— Não! Talvez exista. Essa me pareceu boa. É fácil
falar acerca do que fazer. O difícil é se equilibrar diante de
situações complicadas e difíceis. Você certamente sabe de
outras soluções melhores. Uma delas é a clássica da qual
nós já falamos: dos hipócritas que fingem ser santos. Lar-
go minha mulher, abandono-a como inimiga que não é e
passo a morar com a nova mulher. Esse modelo, como é
muito usado, ninguém acha estranho. Para mim, além de
estar me ajudando, penso que estou ajudando também sua
mãe, Clara e Mozart. É um ponto de vista. Não sou o dono
da verdade, do conhecimento. Sei que existem outros. Hu-
mildemente esse ponto de vista é o meu. Julgue-o como
quiser.
— Acredita sinceramente que está ajudando Mozart?
— Por que não?
— Penso o oposto: o senhor ludibriou Mozart. Des-
conheceu a existência de mãe e de Clara. Entregou-a para
viver com um homem que para o senhor não tem nenhum
valor.

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— Não é que não tenha nenhum valor. Talvez esse seja
o erro pior que cometi. Preso às regras sociais que detesto e
critico, conversando muito com Clara, resolvemos, de comum
acordo, agir dessa forma. Você e eu, como todas as pessoas,
sonhamos. Sofremos as pressões de dentro de nós mesmos,
de nossa singularidade onde entra o sexo, idade, profissão,
religião e outras crenças, além das condições atuais. Por ou-
tro lado, sofremos as pressões externas das regras de conduta
que se esperam daquele indivíduo. Ora vamos para um lado,
ora para o outro. Eu ajo mais segundo o princípio individual,
o José Alencar mais real, o experimentado. Outros, ao contrá-
rio, seguem o social, fazem o que é esperado, a obrigação ou
mesmo o imaginado lá longe, muito distante.
— Quando o senhor entregou, repito, entregou Clara
para Mozart, seguia as regras sociais, não as suas.
— Concordo, esse foi meu grande erro. Sofri muito
e ainda sofro com isso. As pressões sociais são terríveis.
Poderia deixar tudo correndo ao sabor do vento, deixá-la
ter o filho, criá-lo na fazenda ou ainda colocá-la para fora
de casa, como inimiga, para justificar o ocorrido e conti-
nuar com Donana, fingindo um tipo de amor que não te-
nho mais. Muitos agem assim: expulsam a mulher de casa,
abandonam-na como criminosas, safadas, sem-vergonhas
ou outros termos pejorativos. Essa solução que dei não foi
ótima. Mas diante do inesperado, a gravidez de Clara, não
enxerguei outra melhor, uma que pudesse englobar meus
desejos e os de Donana, de Clara, Mozart e do menino que
ia nascer, somados às pressões da sociedade de nossa pe-
quena cidade, cheia de preconceitos e valores arcaicos.

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— Não penso assim. Para mim, o senhor seguiu seus
próprios desejos e não os dos outros.
— Talvez tenha razão, todos nós só podemos agir
conforme os conhecimentos que temos e quando esses
mesmos conhecimentos aparecem, num certo momento,
em nossa mente. Não posso raciocinar com sua cabeça,
nem com a de sua mãe e de ninguém. Não posso resolver
um problema com uma ideia, mesmo quando a tenho ar-
quivada mas no momento de minha decisão ela não apa-
rece em minha memória.
— Nesse caso não há força de vontade ou determi-
nação? Estamos sempre presos aos pensamentos que nos
ocorrem num instante?
— Claro! Mas quem gosta de palavras são os inte-
lectuais como Mozart. Nós, mais burrinhos, vivemos da
realidade, por isso vamos aos fatos, trabalhamos com o
sentido, com a intuição e não com o intelecto. Mas jamais
invejei um intelectual, ao contrário, tenho uma péssima
ideia acerca deles. Quer saber da verdade dos fatos? En-
contro-me e tenho relações íntimas com Clara desde seus
quinze anos. Tentei ser bastante discreto no início, mas com
o passar do tempo fomos nos acostumando. Sua mãe sabe
de tudo como lhe contei. Meu casamento com Donana, no
seu aspecto de atração física, já acabou há muito tempo.
Devo lhe confessar: muito tempo, muito tempo mesmo,
antes de minha paixão por Clara. De certa forma sua mãe,
que nunca aprovou ou gostou de sexo, indiretamente me
empurrou para cima de Clara
— Como?

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— Evitando, de todos os modos possíveis, relacio-
nar-se comigo. Ela não tem culpa nisso, foi a educação que
recebeu. Para ela sexo é um ato feio, só possível após o ca-
samento e apenas para procriar. Essas ideias foram sempre
defendidas por ela. As minhas eram diferentes, sexo é uma
forma de prazer. Sua mãe me forçou, através de subterfú-
gios diversos, para que eu saísse do quarto dela e dormisse
no quarto de Clara. Chegou a dizer, nas horas das brigas,
que ela, Clara, poderia me atrair mais que ela, já que eu
gostava tanto de sexo. Falou outras coisas mais, tudo no
momento de muita raiva, das brigas. Eu sei e compreendo.
Entretanto, é nesses momentos que revelamos muito do
que se acha escondido e não expressamos quando nossa
censura nos domina. Ela me falou outras coisas de que te-
nho vergonha e que, por respeito a ela, prefiro não falar.
— Terrível! Sinto-me mal em ouvir o que o senhor
está me contando! Não imaginava nunca isso!
— Com o passar do tempo Clara foi ficando como mi-
nha mulher. Sua mãe, por sua vez, tornou-se minha amiga,
uma pessoa de quem gosto, que foi e é uma boa compa-
nheira. Como disse, há anos não temos relações sexuais.
— Há anos? Como nós não ficamos sabendo?
— Decidimos nada falar, também, para quê?
— Para que nós soubéssemos. Fazendo parte da fa-
mília poderíamos, talvez, dar alguma ajuda para vocês.
— Acontece que Clara, que eu amava muito como
filha e amiga, passou, com o tempo, a ser amada também
como uma mulher que me atraía fisicamente, ou seja, com
os dois tipos de amor: um de amizade e ternura — que

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tenho por você — e também o sexual, o físico, o que deixei
de ter por sua mãe.
— Muito estranho minha mãe aceitando isso! Não
acredito!
— Você acha que minto? Não preciso disso para vi-
ver. Já disse, não sou como seu amigo Mozart, que vive
da mentira que ele mesmo fala para si próprio. Sei encarar
a verdade sem ser derrubado por ela. Sempre enfrentei a
realidade sem receio de ser massacrado. Voltando ao que
dizia, tudo corria bem até que houve um problema sério.
Apesar dos cuidados que tinhamos, Clara ficou grávida.
— Ficou grávida? Fizeram um aborto?
— Não, nada disso. Fizemos o casamento dela com
Mozart. Tudo de comum acordo: eu e ela.
— O quê?
— Isso que você ouviu! Plínio é seu irmão por parte
de pai. Gosto muito dele. Ele é meu filho!
— O filho de Mozart então é, na realidade, seu filho?
— Claro. Agora é que descobriu? Depois que falei?
Nasceu sadio com oito meses. Não precisava prestar muita
atenção para ver que havia alguma coisa errada.
— É pior que pensava. Não imaginava que fosse tão
longe. Tenho meus princípios também. Um deles é o de
que devo ser leal aos amigos, ou seja, que devo falar com
Mozart o que sei acerca do filho.
— Pode falar. Usando este seu princípio de ser “sem-
pre honesto”, você destruiria todo um castelo de areia cons-
truído pelo seu amigo. Em nome da “verdade”, acabaria
com o falso alicerce, uma vida construída de fantasias.

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— Não percebe que ele precisa viver sob o manto da
mentira? Ele não suporta a verdade. Você irá estourar seus
pilares mais fortes: a fantasia.
— É minha obrigação.
— Voltaremos a esse ponto.
— Por que Mozart se casou com Clara? Ele sabia que
ela estava grávida? Perguntou Pedro.
— Acho que não. Não contei. Mas convidei-o a casar
com Clara, pois dessa maneira ele passava a ter uma vida
mais confortável conforme seus sonhos. Ele é um eterno
sonhador, gosta de uma vida boa: comer, dormir, fazer po-
esia, recitá-las e imaginar ser um grande homem... Eu lhe
dei parte dessa vida, torná-lo um homem famoso não foi
possível. Ajudei-o mais do que nunca. Só depois de casado
ele pôde fazer, sem se preocupar com o futuro, o que sem-
pre quis: compor suas poesias que ninguém lê ou escuta,
ter um lugar para morar e o que comer. Ele pouco liga para
Clara e para o filho, que ele acha que é dele.
— Mas ele nunca desconfiou de nada?
— Não sei. Caso tenha desconfiado, preferiu ficar ca-
lado, pelo menos tem sido seu comportamento até agora.
Ela dorme num quarto e ele em outro. Eu vou, quase todas
as manhãs, à sua casa. Quando lá chego, ele geralmente
ainda está dormindo. Frequento sua casa também em ou-
tros horários.
— Isso é um abuso! Inacreditável. Sinto-me mal de
ouvir isso. Além de enganá-lo com respeito ao filho que
não é dele, visita o filho e a amante na casa do tapeado,
como se nada de errado estivesse acontecendo.

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— Não penso como você, que tem certeza do que
pensa. Eu, pessoalmente, não sei se estou prejudicando ou
ajudando Mozart. Não sei se sou seu maior amigo ou seu
pior inimigo. Tudo isso depende do acontecimento focali-
zado. Não sei com seria a qualidade de vida dele sem minha
ajuda. Sei que para ajudá-lo, como estou fazendo, estou
ajudando também a mim. Às vezes, como agora, quando
sua mãe fica fora da fazenda, Clara vem dormir aqui. Sua
mãe, uma vez informada de sua vinda, nem discute e nem
atrapalha o encontro. Acredito que para Donana seria mais
trágico se ela se separasse de mim, do que viver dessa ma-
neira: aceitando Clara e eu. Ela não sabe viver sozinha. Sen-
do dependente, está sempre precisando de alguém para
orientá-la quanto às decisões, isto é, que a proteja e pense
por ela. Muitos são assim.
— Ela prefere ficar calada e quieta, fingir estar casada
comigo do que separar-se. É uma opção. Não sei se há outra
forma melhor de viver nas condições dela. Parece que nós,
seres humanos, vamos, sem querer, arrumando a melhor
solução para os nossos problemas, cada um a sua. Não há
uma solução correta para todos os problemas e para todas
as pessoas.
— O que parece esquisito e desonesto para você, pode
não ser o mesmo para outro. Para os olhos de um solucio-
nador de fora, alheio às minúcias relacionadas às decisões,
o que está sendo feito poderá aparentar ser absurdo e estra-
nho. Entretanto, para as condições dos envolvidos, naquela
situação e época específica, a estratégia escolhida pode ser
a mais acertada ou, se quiser, a menos ruim.

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— Além de tudo, não há interesse nem meu, nem
dela, como também não há nem possibilidade do casamen-
to retornar ao que foi no início. Nosso casamento, como
tudo nesse mundo, morreu para nós dois há muito tempo.
José Alencar, à medida que falava, ia se sentindo cada
vez mais aliviado. Ele pressentia que precisava contar para
alguém sua segunda vida, a relação não revelada verbal-
mente, os anos vividos com Clara. Estava há muito tempo
pronto para explodir. Sem querer, através de sua conduta
ele contava para todos que tinham condições de enxergar
seu grande amor por Clara, aparentando ser um amor de
pai para filha. Também disfarçava seu amor por Plínio —
na verdade seu filho — como se ele fosse apenas o filho
da filha adotiva e de Mozart. Sempre quis cuidar de Plínio
como seu filho e não como um filho que não pode saber
que o é.
José Alencar, mais calmo à medida que deixava suas
ideias fluírem, foi descrevendo os fatos para o filho. Pedro,
perplexo com o que ouvia, não sabia o que fazer. Ele tam-
bém era muito amigo de Mozart, por isso sentia-se na obri-
gação de lhe contar tudo.
— O que pensa fazer? Perguntou Pedro, sem saber o
que falar.
— Ainda não sei. Talvez deixar continuar tudo como
está. No fundo sou também medroso. Não muito. Pode ser
que um dia passe a morar com ela, constituindo uma famí-
lia de fato e não disfarçada ou clandestina como esta.
— Não seria melhor? Decidir e mostrar a realidade?
Devemos ser, antes de tudo, verdadeiros. Você defende

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esse ponto de vista. Foi o que mais aprendi quando criança
com o senhor, que sempre dizia: “Devemos falar a verda-
de”, não acha?
— Ainda não sei, não decidi nada. Cheguei a procu-
rar o advogado da cidade. Mas como todos, estou também
preso às normas, às regras sociais, pois do contrário serei
“excomungado” para sempre do convívio social.
— Procurou Dr. Milton? Aquele bêbado irresponsá-
vel!
— Ele mesmo, Dr. Milton. Ele tem a cabeça melhor do
que quase todos os moradores daqui. Não sei se a bebida
o ajuda ou o atrapalha. Para ele, segundo entendi e prestei
bastante atenção, nem tudo deve ser dito, por mais verda-
deiro que seja. Poucas pessoas suportam ouvir a verdade.
A maioria escolheu viver no mundo da mentira, nos
contos de fada. Parece haver uma atração dos homens pelo
sobrenatural, pelo falso. Eu não sou pregador, não quero
mudar o modo de pensar dos outros. Além disso já estou
velho demais para ser modelo para os demais.
— Isso é um absurdo. Meu primeiro impulso seria
acabar, o mais depressa possível, com todo esse teatro, essa
representação que o senhor, Clara e talvez Mozart, fazem.
Eu, no lugar dele...
Pedro interrompeu a frase no meio e, em seguida,
continuou desolado: - Eu, de fato, não sei o que faria.
— Ele não faria nada. É o que faz e sempre fez. Nada!
Nas minhas conversa com Dr. Milton, tenho conversado
com ele sobre isso, apenas com ele. Agora você sabe de
tudo.

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— Quando o procuro, levo para ele algum dinheiro e
alguns mantimentos para pagar a consulta que ele não co-
bra. É advogado, mas quase não tem clientes, só os muito
pobres.
— Como vai consultar com um traste desses?
— Ele, para mim, é ainda melhor do que os não-alco-
ólatras, dos chamados sérios e acima de qualquer suspeita.
Não gosto dos arrumadinhos, dos intelectuais. Já lhe disse,
Dr. Milton, pelo menos eu acredito, conhece melhor o ho-
mem que nós, principalmente os presunçosos que vivem
de ilusões.
— A maioria procura se iludir de todas as maneiras,
esses imaginam que têm muito mais capacidade que real-
mente têm. Eles não sabem que não sabem.
— Queremos nos iludir? Todas as pessoas, segundo
meu conhecimento, lutam pela verdade!
— Nada disso! Para Dr. Milton nós devemos, para
não atrapalhar a felicidade de grande parte das pessoas,
– gente como Mozart e elas são milhões – ampará-las atra-
vés do uso de palavras falsas, em resumo, dizer-lhes tudo
aquilo que desejam ouvir, somente isso. Eles querem e pre-
cisam ser ludibriados para suportar a vida falsa que levam,
enganando os outros e, principalmente, a eles mesmos.
— Não estou entendendo mais nada. Isso vai contra
tudo o que aprendi até agora.
— Para que revelar para a pessoa que ela é medíocre?
Escancarar para Mozart sua ingenuidade, desleixo, incapaci-
dade ou impotência perante a vida? Para que ele faça uma po-
esia sobre isso, esquecendo em seguida tudo o que ouviu?

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— Continuo achando que é melhor ser honesto com
ele que enganá-lo. Ainda estou imaginando que o melhor é
contar tudo a ele.
— Ele quer e precisa ser enganado. Não entende! Caso
não seja enganado, ele perderá a identidade que construiu
através de seus sonhos. Sem se apoiar na sua imaginação
que não tem suporte real, ele se arruinará, brigará com to-
dos, perderá a felicidade frágil que dá força à sua vida e
também se desesperará ao perceber que não é como ele diz
e conta para os amigos. Não sei se sozinho, quando conver-
sa com ele mesmo, se nessas ocasiões continua a se tapear,
como se descreve para os outros.
— Mas poderá se recuperar e aprender com a queda
das ilusões? Ainda estou em dúvida se conto, ou não, para
Mozart, tudo o que sei, o que descobri e o que ouvi aqui
nesse terrível dia.
— Se você acredita que é amigo dele, não faça uma
besteira dessas. O homem não quer perceber a sua real ori-
gem, não quer perceber a sua real família, não quer perce-
ber sua real burrice.
— Somos todos assim, uns mais outros menos. Mo-
zart tem essa característica mais acentuada. Facilitamos a
entrada de fantasias na ilusão de tornar mais fácil a vida.
Vivemos de ilusões, mentiras, paixões e fantasias, pois pre-
cisamos delas para tolerar a vida realmente vivida.
— Por isso os políticos a usam sem parar para que o
povo possa dormir e trabalhar calmamente no dia seguinte.
— Os religiosos – orientadores de alma – pregam há
séculos mentiras e mais mentiras, forçando nossa natureza
a agir contra ela em nome de princípios duvidosos.

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— Os comerciantes mentem para ganhar nosso di-
nheiro, para vender-nos artigos imprestáveis como ótimos
e de excelente qualidade. Nós nos arrumamos, usamos rou-
pas vistosas, fazemos a barba, as mulheres usam cremes,
arrumam os cabelos, para se tornarem diferentes, deixando
de lado o seu lado “natural”, pois só assim elas e os outros
irão achá-las bonitas e vistosas. Todos nós acreditamos sem
questionar nas propagandas lidas e ouvidas, os médicos
mentem sem parar acerca de nossa saúde, quando ela já se
foi. Os advogados mentem — e como mentem — na defesa
de seu cliente ou na acusação do cliente do colega. Esconde-
mos, através das palavras, a realidade que não suportamos
ou que não deve ser exibida. Assim é o homem — concluiu
desolado José Alencar, pesaroso de fazer parte desse grupo
de animais e não de outro e continuou, já sem forças:
— Somos um animal em busca da trapaça, por isso,
desde cedo, lemos, ouvimos, assistimos novelas e filmes
mostrando ficções, a não realidade.
— Eu, como todos nós, participo desse jogo, estou
vivendo da mentira. Agradeço a você, meu filho, que con-
seguiu fazer com que eu falasse a verdade nessa manhã.
Vivemos apoiados na “mentira ideal”, uma representação
nossa a nosso respeito do que construímos mentalmen-
te e que, de fato, não somos na maioria das vezes. O que
desejamos ser ou atingir está muito distante do que real-
mente alcançamos. Por outro lado, apoiados na “mentira
obrigação”— uma pressão para agirmos de um certo modo
conforme os valores culturais — nos forçamos a fingir que
somos honestos, corretos, gentis etc.

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— A cada momento torno-me mais confuso. Os pi-
lares sobre os quais eu edifiquei meu raciocínio e minhas
decisões, com essa conversa, estão sendo demolidos. Tudo
vale.
— Temos a tendência, alguns mais, outros menos, a
nos imaginarmos como capazes de estarmos muito próxi-
mos desse “eu-ideal” e desse outro “eu-obrigação”, tam-
bém chamado de “eu-dever”. Nesse modo nos imaginamos
perfeitos, pois nos encaixamos nas duas quimeras inventa-
das pelo homem, esses dois fantasmas: o “eu-ideal” e o
“eu-dever”. Vivemos à procura desses objetivos fantásti-
cos para vivermos socialmente. Mozart vive disso, pois é
um poeta frustrado, um falso artista, um falso gênio e falso
caráter, leviano, medíocre, acreditando um dia fazer uma
grande proeza: produzir uma grande poesia ou uma bela
pintura. Ele não trabalha, Clara é quem faz tudo para ele.
Vive com meu dinheiro, finge não saber que sou eu quem o
sustenta junto com o filho que também não é dele.
— Como afirma, sem pensar, essas acusações?
— Você, Pedro, é um fanático da verdade, apresenta a
“exigência ideal”. Acredita que é necessário mudar o rumo
da vida de Mozart, reconstruir o amor dele e tirar a sua mu-
lher de mim. Isso melhoraria a minha vida, a de Mozart, de
Clara, de Plínio? Acredito que nunca! Acabaria com a vida
de todo o grupo. Nós todos estamos apoiados nesse supor-
te falso com o qual vivemos. Caso ele se quebre, não temos
como ficar em pé. Portanto, a maioria das pessoas precisa
acreditar que eles são parecidos com as fantasias existentes
em suas mentes.

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— Acredito que se você contar a ele, você irá destruir a
vida rotineira e pacata do casal, causará o desespero do filho.
Talvez Mozart, o que você mais quer salvar, após a tempesta-
de sobreviva, consolando-se nos seus belos versos inventados
para comemorar o acontecimento inesperado. Acredito que
para ele o desespero do filho e da mulher, ou mesmo a morte
deles, irá lhe fornecer, nada mais nada menos, que um lindo
tema para declamações na “Academia” diante da seleta pla-
teia que, ao terminar, baterá palmas e em seguida irá lanchar e
contar casos. Ele se inspira na mentira, vive à custa dela, ela é
seu principal remédio estimulante. Ele, como Piquira, que en-
controu de maneira engraçada também um estimulante para
viver suas fantásticas caçadas. Se você destruir a mentira de
um homem como Mozart, você destruirá, ao mesmo tempo, a
felicidade dele e da família. Você, Pedro, está pensando como
diversos reformadores ingênuos que pregam a verdade para
pessoas que vivem e precisam viver das fantasias irrealizáveis,
pois são incapazes de viver sem elas.
— Assim como o diabo é indispensável na construção
de Deus, a mentira é indispensável na construção da verda-
de. Também o demônio tem um papel crucial na criação de
Deus. As convenções sociais e políticas, mentiras acerca de
nossas obrigações, asfixiam a individualidade de cada um
de nós, impedindo o crescimento das pessoas.
Nesse instante a conversa entre pai e filho foi inter-
rompida: a porta do quarto de Clara se abriu. Ela, ao sair
do quarto foi direto à cozinha e após dar o “bom dia” a
José Alencar, expressando um sorriso calmo e afetuoso, em
seguida virou-se para Pedro e fez o mesmo.

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A fisionomia serena de Clara transformou a face car-
regada de José Alencar. Essa comunicação entre os dois afe-
tou as emoções negativas de Pedro, acalmando-o também.
Automaticamente e sem muito pensar e após respon-
der com carinho ao afetuoso sorriso de Clara, Pedro deci-
diu dar por terminadas para sempre toda aquela tumultu-
ada discussão e dúvidas ocorridas naquela noite e início da
manhã.

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