You are on page 1of 94

Título: PSM – DOIS

Autor : carlos peres feio


Capa: Chinesa do Norte – Produções sobre desenho de carlos peres feio

© carlos peres feio e chinesa do norte produções , Maio 2008

Composição, paginação, impressão: chinesa do norte – produções, lda

Depósito nº : 0022305/08

2
embora irreparável, porque do que se passou
não há registos
faço fora de prazo esta declaração
de uma saudade grande
de um amor maior.

carlos peres feio, in PSM - UM

por fim sou mais


do que as células permitem
e é o mundo que cabe em mim

carlos peres feio, in PSM, 15-2-2008

3
A um anjo

quando noto que fugimos na bruma


somos ciganos da longínqua Turquia
com violinos que nos perseguem
em sons doces como tâmaras

procuro sempre sonhar contigo, acordado.


quando tenho tua mão em mim
sonho mais fundo
a tua mão é a entrada para um outro mundo
(1996)

4
avião de brincar

as mãos que dobram


folhas de papel
e as transformam
em aviões de brincar
feiticeiras com poder
da transformação
de um dever
em prazer imenso
são as mesmas
que curam
pois passando na minha fronte
removem o negro
do tédio
e lançam-me
no espaço do teu céu
onde sou
avião de brincar
(2001)

5
natureza

a minha verdadeira natureza


não é o que parece
circulo em automático
lubrificado
esquecido de mim
a minha verdadeira natureza
encontro-a de vez em quando
vagueando por Lisboa
ou outro sítio.
que alegria!
então sou eu.
vejo os detalhes, além de os olhar,
reconheço-me,
sou eu e sinto
as raízes debaixo dos pés.
mais fraco que há vinte
anos
fico com força para
percorrer Lisboa
e o planeta
lés-a-lés
(2006)

6
da passagem

felicidade da passagem
esse fluxo que atravessa as pedras e o tempo
essa vaga que deixa rasto.

nos momentos solares


nas construções de ausência,
felicidade, esse factor elevado e subtil
por vezes máscara de Veneza,
sempre irreconhecível.

quando temos nossa mão


na sua cintura,
felicidade,
sem medida sem forma
poderá finalmente ser,
tudo o que já fomos?
(2006)

7
testamento

quando me cortaram a carne


tive que me reinventar
então, porquê o mesmo?

volto mas sou outro


deixei pouco para trás
tenho tanto em frente

é desta vez

saberei arrumar gavetas vitais


bom vai ser
começar do fundo
o jogo será
ter esperança sem futuro
arquivar o que foi feito
mostrar a escrita em falta
palavras soltas no vento
testamento sem herdeiros
(2006)

8
território da mente

viagem pelo território da mente


meta onde a memória deixa
pousar ainda que brevemente
queixas com razão de queixa

a paisagem deste verde alemão


impregnado de Saxónia
motor da vontade
de viver um pouco mais
não impede o progresso
da dor que vem do fundo
misturada com sons musicais
das canções que agravam
quer o bem
quer o mal
essa dor profunda
que consome
o verde e o sol dos campos
desta terra,
deixa-nos para sempre
no azul de Cascais
a memória de quem
merecia viver mais.
(1998)

9
pontos brilhantes

deixa-me mostrar como vejo as coisas

temos o que nos rodeia,


algo mais lá em cima
no negro iluminado pelas estrelas,
só elas contam

uns sabem de mar


de grandes espaços
de verde disperso em folhas

outros do pano de fundo sem fim


onde moram os pontos brilhantes

também devemos atender


quem não olha o céu nas noites de lunário
mas traz a lua dentro de si
sem saber

existe a pessoa que ilumina a noite


pela vontade de entrega
do amor intenso
de um coração infeliz

vejo as coisas assim,


e coloco-te na morada que mereces
entre os pontos brilhantes.
(2006)

10
ondulado dos montes

é preciso ter velocidade


para perceber os montes ondulados

quando parados
são volumes que nos lembram
quem vai
quem fica, quem não existe

à partida
vi-te afastar
sem acreditar.
teu cheiro
deixou-se atrasar.

da balada que entoavas


ficaram notas pousadas
nos parapeitos
pintados de verde
muito escuro
(ou escureceram
quando partiste)

11
tentei chorar
percebi
que a comoção seca,
escurece,
torna o complicado
simples

ter-te não era fácil


penso agora
bom seria acompanhar-te
mas no estado de simplicidade
em que fui deixado

agora a sério:
tens meia hora
para voltares!
desconheces que
a contagem decrescente começou
há muito

tinhas um quarto de hora


mas ignoravas.

já não tens tempo algum.

ao dizer-te isto
esgotei-me.
ficas com todo o tempo do mundo,
deste mundo
com montes ondulados.
(1999)

12
imaginação em verde

durante uma viagem


concreta com paisagens
perdi a visão das coisas

uma luz fortíssima


tornou tudo branco
preparando o mergulho
no profundo negro

pensei: ora – é só mais uma


inconsciência

o que se desenhou
vindo do negro
nada tinha a ver!

fragmentos de passado
colados
sobe o pano verde
da esperança
formaram
um quadro irreal

13
com um pé no chão
outro no sonho
ainda identifiquei
a lua

fiz um grande esforço


para abrir os olhos cansados
e focar o pensamento

era o fim da viagem


sem qualquer gravura

restava o verde.
(2004)

14
mexe comigo

mexe comigo imaginar-te


e de mexer não paro.
mexe comigo receber teus escritos
imaginando tuas ideias fixas
mexe comigo teu provocar respostas
mexe comigo tua oculta imagem
onde te vejo para lá dos espelhos
também mexe comigo
tua poesia – tua escrita
mexe comigo o desenho dos teus cabelos
nas tuas fotos
mexe comigo o meu desejo de ti
acrescentado ao que de ti emana

conhecer-te foi meu Destino.


(2006)

15
alimentar o sonho

alimentar o sonho
sem o contaminar
com reflexos que nos ceguem

acreditar ainda ser possível


uma total entrega
às difíceis palavras

fazê-las chegar
ao bom porto
de uma alma nobre

assistir entre a multidão


ao seu voltar da cabeça
ter os olhos nos olhos

a minha missão
impossível
(2006)

16
informação

a má
influência que temos
sobre nós próprios
pode ser curada
pelo remédio do passado

agora
só devo escrever
o que me passa
pela cabeça
sem qualquer outra
consideração

se uma seta
me atingir em qualquer momento
quero estar bem
(1985)

17
Cérebro

o cérebro humano
essa máquina mais antiga que o arado
ideia que vem do escuro para a luz
perdida por vezes no percurso
onde tudo se passa
esse responsável por poetas e carrascos
devia ser o único projecto da humanidade
cruzada para o tornar bom
mas ele próprio determinou
o objectivo último de ser medíocre
deixando ao computador
a tarefa possível
de um dia atingir
bondade e perfeição.
(2006)

18
não existes

(para ouvir com Chopin em fundo ― qualquer peça)

tu não existes
mas Chopin também não
amo os dois de maneira diversa
mas esforçada

respiro o ar da noite
sinto Lisboa ao longe
mas a cidade não existe
tudo aquilo de que gosto
só existe no engarrafamento
dos sentimentos no meu cérebro

azinheira pinheiro e castanheiro


passam a ser locais onde me acolherei
faça sombra ou abrigo
para me sentir protegido
pelas arvores e por quem as inventou

de verão lembrarei sempre a oferta


para meu resguardo
de inverno pedirei que um raio me atinja
para morrer em êxtase

será a única maneira de num segundo


lembrar todos os beijos recebidos
numa fracção sentir como final
um beijo – raio de luar
(2006)

19
os teus versos

(nota de culpa)

ao lê-los senti que se despistavam


saiam da rota
sem travões
ou inibições
vieram à berma
levantaram poeira adormecida
e derraparam

contigo aos comandos


em alta rotação
sem sinais de travagem
entraram em terreno semeado
de sonho

eu estava sentado
na zona claro-escuro
sem caminho de fuga
fui por eles arrasado

deste incidente marcou-me


o foco do teu olhar
aceso no escuro
apontado ao firmamento
nessa noite com estrelas
(2000)

20
estragos em trânsito

história aluada
viagem sem rumo por países inventados

sempre achei os diários de viagem


tábuas preciosas
condição de exploradores

afirmo até
sem diário de bordo
não há viagem

dias tantos desta era


registo porque parti
sinal de proibido ficar
missão de um dia volver

partimos incompletos
até descobrirmos partes de nós
que escaparam um dia
para longe

21
tarde registaremos
que fizemos aguada no ombro de alguém
que trocámos as nossa bugigangas
por especiarias sob a forma de abrigo
nas fortalezas que atacámos
descobrimos a nossa fraqueza
fizemos diplomacia secreta
para nos escondermos o resto da vida

levámos nossas naus vazias de sentimentos


trouxemos saber sem construir futuro
os que não voltaram
são pouco mais que
estragos em trânsito
(2004)

22
álcool conta certa

dobro a esquina com a energia da alta tensão


ainda ouço as notas da música que na madrugada anterior
bebi no casino

estivesse numa rua de Chicago ou fosse português de lei


haveria sempre uma hora certa para ajustar contas com o
próprio

quando a noite aquece temos o direito de nos termos


enganado
não foi assim toda a vida?

todos os versos vão para a mulher amada no momento -


há segundos que são anos-luz!

senti a noite quente sonhar com tropicais fantasmas


afirmei: sim, sinto-me bem

tenho direito ao engano


não cobro nada por isso.
(2006)

23
fast

quando chegou dois mil e quatro


o tempo disparou
até então
a calma mandava
mas depois
a velocidade da luz
somada à do som
sem paragem
na penumbra
tomou conta de mim

terá sido por causa


do meu aniversário?
(2004)

24
há dias

de sofrimento e angústia
dias de sem resposta
em que se partem bicos de lápis
desenhos ficam aparcados
na mente
as palavras, essas,
conhecem o horror do escuro
receiam qualquer movimento
― de eterno luto carregadas ―
acolhem-se no charco
do nosso íntimo

há dias
de recordação plena
do falar com o olhar
da boca ser transferida para as mãos
dias de sempre
do brilho nos olhos
das curvas do corpo
em fusão
como se fosse
ao vivo
foto de gravura sensual
(2006)

25
sentada na luz tardia

sentada na luz tardia


a rapariga mexicana
lembrava
los angeles fora de seus avós
agora era estrangeira em casa

como se atreviam?

sentia a injustiça
queimar para além
do razoável

seu amor italiano


branco em má companhia
sofrera igual repudio
chamavam-lhe oleoso
insultos de crianças
treinadas para odiar
o diferente
constantemente

pátria da liberdade?

se voltamos às origens
temos a confirmação
uma vez trotadores do globo
a fuga é para a frente!
(2006)

26
tenho dez minutos

tenho dez minutos


para dizer que te amo
o tempo de ainda ouvir um piano de antigamente
será minha fuga antes das dez
embalado por um som que só a ti me leva
quero que cada momento seja especial
sei que mais tarde quando me leres
vais saber que esta contagem decrescente te pertence
terás dez razões para te interrogares
porque escrevo em carta aberta
mas terás outras tantas
para te convenceres que
por estares longe mais te amo

quando tu estás por perto


não me concentro em ti
sou desviado pelo teu olhar único
tua anca teus cabelos
tuas dores e sorrisos
tuas rugas teus vestidos
tua tristeza

já não tenho dez minutos


mas dez anos para te amar
dizem as frias estatísticas.
(2006)

27
tempo de trocas

levamos já tempo de trocas


conhecemos de perto nossos fluidos
sabemos como a mente funciona
mas em parte

o encanto está no parcial


nunca sabemos o todo
somos prisioneiros da atracção
mesmo anulado o dito
fica sempre o amor
esse que não se explica
em versos
mas é sentido
na expressão do olhar
no sorriso face à visão
na dor no peito

que nunca termine


o tempo de trocas.
(2006)

28
tolerância

há que explicar que tudo tem explicação


podemos ser descendentes de cruzados
sem nunca termos pensado ir fazer mal a Meca

Jerusalém foi uma obsessão


a nós, Ocidentais, já nos passou
falo de gente normal

quero dizer também Islão normal


distinguir de radicais
indispensáveis na química

um ateu como eu
aceita uma nova religião
vamos chamá-la
tolerância
(2006)

29
feminino de certo modo

é um mundo entre o caseiro e o mágico


onde os olhares não se perdem
é um clima de entendimento
muita palavra pelo meio
tanto fervor nas conversas

é uma carga de trabalhos


para além do razoável
sempre a alma de qualquer casa
é o lar das crias
a cozinha dos afectos

as mulheres entre si
são muralhas sem tempo
quando as brumas se levantam
só esperamos que lá estejam
origem do amor
doce recolhimento
(2006)

30
Douro triste

fui ao Douro em busca do nada


olhar suas águas brilho de ónix
ouvir margens enganadas pelo tempo
num choro que marca a manhã
com incêndios pôr-de-sol

esperanças em nova era


morreram na barca que habito

tornar a voltar ao Douro agora


num naufrágio de águas calmas
nevoeiro cerrado
humidade no ar
em mistura com lágrimas
(2006)

31
Cesar

ferro comprimido
pelas placas lisas da prensa
comandadas pelo cérebro do artista
mostra o retrato da sociedade actual
em que a força é o metal

expresso o acto final


o que a escultura encerra
na escolha
fica o metal
troca estranha da Terra

consumido esmaga o sentimento


durante o processo
mostra que saímos
da caverna
para mesmo sob
a marca da sucata
estarmos presentes
como nus
― expostos em Veneza
(1998)

32
por detrás dos sonhos

estou nos teus sonhos


pelo milagre do teu amor.
estás nos meus sonhos quando acordado,
e a dormir,
naquela área por detrás dos sonhos,
onde a vontade é só nossa.
(2005)

33
mulher ideal

deverá ter nascido quando havia


outra noção de ideal
será encantadora
quanto baste

terá dentro da cabeça


medidas de miss cultura
não perdoará
ser vista à lupa

nem vai permitir


risos nas costas
não será
deste planeta

vai sorrir
antes e depois
de saber que lhe chamo
mulher ideal.
(2006)

34
passeio

quando passeio
pelas avenidas de Madrid
sozinho
sinto-me equidistante

do passado
do esquecido
do futuro adivinhado

e de ti
tão longe
perto
(1996)

35
perdido

o céu tem debitado


água de cisterna antiga
nestes dias de folhas mortas

tapete castanho da minha rua


suporta o peso dos que voltam a casa
troncos são decepados com dor
no ritual do Outono

pássaros agora assustados


tentam habituar-se
aos poleiros alterados
novos braços elevados
prece desta cerimónia de água

fogo e tédio
são outras agonias

só eu de longe assisto

vem Inverno
com teu descontentamento.
(2006)

36
telefonia na cozinha

palavras são ouvidas


na elevação da poesia
as ideias fluem
espira emocional
no entanto
ouvem-se ruídos de tachos e panelas
a realidade continua ligada
refogar
alourar
sonhar
(2006)

37
quatro da manhã

quatro da manhã
mas mesmo quatro
depois de tudo ser posto a zero
sinto o plano o espelho a lâmina

quarto escuro para onde me empurram


vácuo obtido pelo reverso das coisas
gritar no vazio não adianta
vou em frente sem me mexer

vem a sensação de nada fazer


para que o inevitável aconteça
olhos para trás da esperança
para a frente da saudade

passo o testemunho
em última hora
garanto continuidade
tenho a última vontade
do aperto da tua fina mão
fica um voto
uma canção.
(2007)

38
minha morada

vou descrevê-la como um arbusto


das raízes invisíveis
ao ar que transporta o pólen
que ao longe sopra folhas
sobre o mar

estrutura que não se vê


tem encapsuladas todas as alegrias
e as mortes que nela habitam
porque marcadas em dias aqui inscritos

produzo os passos que me levam para sul


sinto o inevitável das ruas sem saída
sob árvores suplicantes
escolho o sentido que me leva
a colunas de pedra sem idade
padrões de um tempo de domínio
senhoras de terras e solares
e da sobrevivente arraia-miúda

deveria ter escrito nesses tempos


de pele suave e não osso descarnado
no azulejo onde ficou o traço de um pintor
talvez exilado infeliz
em busca de cura

39
o destino é uma praia onde as ondas são revoltas
no fim da jornada
prosseguir é tropeçar num outro mundo
com comboio sem silvos
sem fumo e sem paisagem
o que resta de verde
é uma luta em que este vencerá um dia
mas ainda está a passar pela agonia
do combate contra o concreto
neste espaço onde correm cães
sentimos a tristeza da condição destruidora

ao fundo a salvação do reencontro


com o azul e branco que nos acolhe
o mar sem dono nosso alimento
única hipótese dos nossos olhos serem poupados
espaço total água ar sal
as neblinas as rochas
hino que se transforma em dor no peito
de tanto o amarmos
este domínio apropriado
da minha morada em paz
(2007)

40
onde estão meus erros?

em te evitar
sabendo em verdade
ter no negro galáctico
onde sempre brilharás
minha última estação?

em te procurar
acreditando
no espaço infinito
onde uma luz cintila
mesmo antes da visão?
(2007)

41
concentração

na água concentra-se
nosso olhar para o mar

no ar sente-se o passar
de uma folha perdida

na galeria de uma mina


escorre a água que um dia
foi do Índico

falta o ar que preferiu ser livre


no sentir do peso
na pressão da matéria

quando olhamos uma parede de granito


então gritamos:
estamos na Terra.
(2001)

42
faz isso

faz tudo no teu ritmo, rapaz


não te deixes levar
também a tua poesia
tem pouca força política
mas tenta, tenta sempre
não te deixares arrastar
pela política dos nossos dias
que tem pouca força poética
mantém o teu ritmo, rapaz
tem esperança
ainda há quem se emocione
com a voz de Greco
com os versos de Brel
(2007)

43
Outono Agridoce

ao teres o sabor todo doce


pedes contraponto

quando um Outono desce


por ti
desce como mel

deslizas por estradas


da imaginação
que estão aí
e sem pedires

tens também o amargo


de que nada se repete
e então
estão
reunidas condições:

tens o Outono sonhado


o melhor da tua vida
o Outono
agridoce
(2007)

44
os nossos olhos

os nossos olhos
não envelhecem
mesmo a visão mais profunda
vê o mundo sempre igual
talvez com filtros de várias cores
mas por detrás dos olhos
temos sempre 17 anos

quando olhamos um espelho


é certo que aparece um desconhecido
mas a imagem que temos de nós
é a da época da esperança
sem plano definido

porém não somos só olhos


e o coração perdeu temperatura
o estômago não aceita fretes
temos ouvidos selectivos
as pernas escolhem as descidas
os ombros já não se encolhem
carregamos os sobrolhos
e o peito aumentou em capacidade
de amar
pela pélvis ainda moram
sensações antigas
e os pés, de chatos que são
contaminam por vezes o todo

no entanto
temos sempre 17 anos
(2004)

45
talvez

alguém sinta a falta dos versos que não escrevo


Na estrada
há momentos de paragem
Chega a hora de reclamar à vida
o que esta já não nos pode dar

Continuo a ver
a Lua dos outros
o Sol das manhãs
as Ondas, Pedras e Rios
com águas límpidas,
que gostava passassem
sob a nossa ponte
Na neblina dos sentimentos
vejo uma luz.

Acreditas que penso


seres tu?
(2007)

46
Limite

Aguentei até poder


Ainda controlei a mente
Senti as correntes na cabeça
Vendaval eminente
Tudo em vão
Quis conter-me
Conheci o impossível
Já estava tomado - tarde de mais
Aceitei a desordem
Sei-te
Sozinha sem mim
Conheço as arribas e a espuma
Se me esqueces
Morro sem teu afago
Sei de um destino de lágrimas
Não me negues teu rosto - preenche meu abraço
Cala-me com tua boca
Confirma-me teu corpo
Corrige-me
Faz-me pagar as faltas
Rendo-me a ti
Aguentei até poder
(2007)

47
dedico-te, Pablo Neruda

a poesia habita em mim


e eu habito este corpo
e este corpo é finito

comunhão negra multifacetada


inquilinos uns dos outros
mas a poesia é infinita

a América do Sul
podia ser aqui
Pablo, estiveste por cá?

quando e porquê?
o último a chegar
é o que melhor vê!

as formas belas e a música completa


são oxigénio
podia viver sem ar

sem música não.


on the road again
going places were I have been again

Pablo, fazes falta


dita, dá ordens, exalta
a batida, as imagens e o verso certeiro

quem recente muito te louvou


em Itália, foi o teu carteiro
(1996)

48
overdose

quando a vida me dá imagens


sons cores e espaços livres para pensar
sempre que os afectos me rodeiam
envolvem e criam em mim
aquela sensação de carrossel de vertigem
com música de circo em fundo
sinto de outra maneira o que vejo nas fotos desenhos
rios mar velas na espuma galopes no imenso
e a minha alma lisboeta retorna ao Fado
num regresso de ternura
pelas calçadas das décadas em que me perdi
pelas estradas africanas do meu País de então

gravito bem fora de mim


espero a ressaca da overdose
(2007)

49
retomar

Pensam que a água lhes faz bem


E só pensarem assim
É bom.
Penso que junto ao mar estou bem
E só pensar assim
É bom
Pensamentos em conjunto
E num só tom
Mostrando que perseguir
A felicidade
É bom.
(1997)

50
do silêncio

só agora me deste o símbolo


só agora o meu silêncio se rompeu
o anel que me foi dado evoca pequenos pedaços de lua

entre elas escolhi a pequena lua gelada


do meu ressentimento
tua indiferença
tua armadura e muralha

continuo a navegar o cosmos


no corpo que habito
nave bem perto do ocaso.
(2006)

51
sinto o vento

a mente cavalgou na noite


cheia de mistério ritual
saiu em púrpura envolta
majestosa, imponente

ao longe o vulto que persigo


por trilhos desconhecidos
piso firme piso fraco
volto
sem vigor, sem alento
no fundo de mim
me acolho

e sinto o vento
(1987)

52
sentimento da vida

mesmo a vida
em lágrimas
sentida

do olhar, a beleza
sempre terá
(2007)

53
ver

ver uma luta interior


do poder sobre nós próprios

tomar nave para longe


ficando no mesmo cais

na ponte de comando
pensamento no porão

perco o sol
vem o olvido

no poder reafirmado
do esgotar de uma carícia
(2004)

54
mar

mar forte
disseram-me
que és dono do norte
mar azul
constou-me
teres comprado o sul
mar cruel
tratas aço
como se fosse papel
mar frio
mar indiferente
mar simplesmente
(1987)

55
não

não me vou conter


não é teu mau feitio
não são tuas mentiras legítima defesa
não são teus medos
tuas dores n’alma
teu amor frustrado
que me pregam ao chão
versos que acumulas dentro de ti
sentimentos que não são teu hábito
não me agrilhoam
a possível indiferença
só para me poupar

vou à luta
num dia de Maio
e sou só mais um
a reivindicar
o que lhe é devido
parte de ti
a que estiver disponível
sem contrapartida
que não seja
saber
que se correrem lágrimas
são de alguma alegria
(2004)

56
esse ninho

solta-me as asas cruzadas


serve-me de farol

garante meu aconchego


nesse ninho que é teu peito
(2004)

57
andarilho

vou andar pela casa


à noite
luzes apagadas
olhos fechados
ouvindo-o
como se ele aqui morasse

vou encher a boca


com um biscoito
mais pedaços de chocolate
dois gostos
qualquer deles bom
para mim a mistura vale

imagens caseiras
do aconchego
no ar vibrando
mesmo depois
de música calada

felicidade
esse bem que foge,
duende transformado
em chocolate e noite
acordes em Debussy
(1998)

58
questões

onde estamos quando dormimos?


quem o pode dizer?
o bom diabo? o mau deus?
quem nos atormenta?
quem nos dá prazer?

todo o dia ao telefone


a tentar contactar o eterno
e o belo
e o etéreo
e o irremediável

porque se produziu
na terra
um inferno
tão fiável?
(1990)

59
o dia verdadeiro

o dia das verdades mentirosas,


como é natural, veio sem se
anunciar,
o que é certo e como
premeditado
veio a calhar.
iremos aproveitá-lo
urgentemente
completamente
sem o desprezar.
é que a validade de
um dia como este
é curta.
(1970)

60
gorducha

se fosses gorda
tivesses um lacinho
ao pescoço
esfregasses mesas
num bar de auto-estrada
e eu fosse livre
iria tomar um café

curto
como seria o nosso romance
(1994)

61
crianças que andavam como cavalos

passam com ruídos grotescos


largas, as sapatas herdadas
dos meninos grandes, anónimos
diluídos no sonho

terás melhores dias


mas corre e brinca enquanto é hoje ―
amanhã pode ser nunca
(1970)

62
melodia

diz-me que a melodia


que oiço em ti
é verdadeira
é enviada
do teu espírito
para mim

ça maladie
ça melodie…
(1970)

63
promete-me

promete-me que sempre serás


a minha sombra constante
ora perto
ora distante
mas sombra iluminada
pelo sol do teu amor
por mim
e pelo que por ti
tenho
(1995)

64
sentimento

quando sentir que de mim só dependo eu


embarco em barco que já não há
Pátria, Império, Angola, Moçambique, Príncipe Perfeito
e volto ao sonho

aí ainda há África, e comigo viajam todos os que amo


os que restam, e são muitos
os que partiram, e vivem na minha cabeça
(1990)

65
pele

à força de me arrancarem a pele


não sangro
não temo

curtido em salmoura azeda


não mexo
não devo

transformo o couro em camurça


e penso
a medo

sou mais suave


algo cedeu
gostam de mim
mas não sou eu
(1986)

66
exercício de 85, de 86, de sempre

fotografar, escrever
olhar
estando mesmo a ver
sonhar
revelar
rasgar o escrito
ampliar o visto
ficar aflito
ficar nisto

fotografar, escurecer
(1986)

67
versinhos a você

você diz coisas


loucas
você tem duas
bocas
uma essa
outra outra
uma sábia
outra oca

se você alinhar
a espreitar
no meu prisma
primeiro pensa
depois cisma
(1987)

68
ponto crítico

ferve a mente em pensar


que
o que era já diferente
agora ainda é mais

o que pensas novidade


é passado do passado
e não volta
mais
(1997)

69
língua de fogo

é no ar a sua morada
sua luz no voo dos pássaros

pode ser
uma língua de fogo
um doce beijo
um amor tardio
um ritmo a esbater-se
um suave morrer

os teus lábios em mim


o meu entardecer
(2007)

70
não querer

para mim já é poesia


aquilo que se não diz
porque aquele que na maresia
conta ouvir um mar por trás
é o mesmo que não ouve
tudo aquilo que não quis
(1990)

71
destino

se fosse músico
de melodias te encheria a vida

se fosse pintor
nos dias cinzentos
só terias olhos para
as telas cheias de sol
que para ti faria

vejo-me a divertir-te
fazendo piruetas
mas não sei dançar

serias a estrela do meu filme


se te realizasse
e o alimento do meu zoom
tivesse uma câmara

pouco resta
amar-te com o coração que tenho
escrever
os versos que sei
(2007)

72
quero

a vontade de fazer versos


é como outras vontades
caprichosa
admiro-me ao escrever
como ainda há versos disponíveis
incríveis
a poder ler
lembrando outras idades
e pensamentos dispersos
(1989)

73
sem alma

venho do fundo de mim


do escuro da transformação
mineiro do descontentamento
arauto de difíceis tempos

volto para dentro de mim


coveiro sem alento
no breu da existência
pensamentos exauridos
(2004)

74
D. Sebastião

quero tornar-me o desejado


nem que o meu Alcácer Quibir
tenha de ser
uma cidade cinzenta

morrer
em cota de malha envolto
nas chamas dum apocalipse
agora

na cinza da cidade
asfixiado
com armas
de glórias, de falhas
sem sentido de viver

para ver pouco há


do interior vou partir
abraçando o destino
enjeitado, querido
todo ele muito meu
(1990)

75
engano

eu pensava
ter pais vivos toda a vida
que os ídolos não morriam
as cidades não mudavam
os dias eram sempre
longos e agradáveis

cria inesgotável a paixão


sempre pretos meus cabelos
imaginava animais de companhia
eternos
não os que com afecto
vemos partir

conhecia da vida tudo


menos o engano
(2005)

76
da memória

vem libertação
estado de alma
vazio a embrulhar o presente
― envenenado?

da memória
deste lado da barreira
o futuro é ávido
instalado está o cerco
pequena a hipótese de fuga
fresta iluminada
talvez de mais
fulgor que queima
mas é nesse
verso branco
que tudo reside

a esperança
(2007)

77
equívocos

não basta gostar de flores


regá-las com intenções
apanhá-las com carinho
à beira da estrada as deixar

sem um cartão para o destinatário


todos julgarão ser suas
(2005)

78
sinais de luz

passagem pela vida


olhos ao longe
percepção da noite que vai em ti
do encanto que queres esconder
e o desejo foi
o dos campos secos
pela água

senti o deslizar
de um fluido que em mim
te significava
foi a manhã do acordar
da consciência
de seres minha rede no abismo
vontade de comandar da ponte
meus sentimentos
em ordens e contra ordens
cujo destino era o teu corpo

agora estou atento


aos teus sinais de luz
(2005)

79
chave

não te deves
aproximar
do teu castelo de sonho
na proximidade
o começo do desmoronar

deixa-o palácio de luz


e penumbra
envolve-o de longe
rodeia-o com o olhar
garante que o sonho
se mantém

quando te sentires triste


usa então a chave
construída com metal dos dias
em noites de luar forjada

serás feliz
(2007)

80
o porquê

duas mentes
uma da outra ávidas
intermediário é o físico
na plenitude do encontro

será esse o mistério do amor


justificação para a fusão dos corpos?
(2007)

81
alma limpa

nas calmas águas


que teus temores pairem sobre elas
enquanto o reflexo do que és
mergulha na profundeza do teu ser

sairás deste banho


com a alma limpa
(2007)

82
Nirvana

acordei com a mente


povoada por imagens
de rara beleza
nuvens pairavam
como novelos
num silêncio absoluto
sentia a impulsão
sob as asas da consciência
sustentar-me na atmosfera
paleta de azuis

83
era um flutuar
prefácio do voo
lâmina sem gume
sem massa sem peso
próxima da perfeição
como a verdade que não se alcança
com um olho castanho e outro verde
espreitava o futuro e via a calma

quis lembrar as tormentas do passado


e o impossível aconteceu
do mal nada recordava
o todo das memórias felizes
estava contido num carrossel gigante
que desfilava lentamente
neste solstício de verão
numa viagem de gozo imenso
num tempo de ponteiros parados

fiz uma prece


ao meu deus que é o destino
com a esperança nunca antes conhecida
a luz modelou a intensidade
os olhos fecharam-se
acreditei ter sido atendido
pois os únicos sons sentidos
eram os dos pássaros
desta Primavera.
(2007)

84
2020

venha dois mil e vinte


idade de passar o testemunho

é que venho de longe


de quarenta e quatro
e alguns sabem como isso é difícil

aparecer
viver
desaparecer
parecem-me boas etapas

do nascer ao crescer
amadurecer
descobrir o prazer
passar pela dor
e fechar a loja
por pudor.
(1996)

85
tatuagem

marca para toda a vida


registo do corpo de mulher
tatuagem na memória
os cabelos alinhados
com vontade própria
quando os olhamos
não podem de outrem ser
brilho habitante de olhos
marca para toda a vida
rosto vitrina da alma
overdose de amor
sofrimento em reserva
linha do pescoço
que desce ao peito
paragem obrigatória
delícia das mãos
marca para toda a vida
na vertigem da cintura
a curva ondulante
do que vem em seguida
esplendente imagem
do mais generoso conjunto
fenda das delícias
esferas de meu prazer
marca para toda a vida
(2007)

86
corda de violino

há uma corda de violino


dentro da ideia
vibrante em sintonia
com a linha do horizonte
que
por simpatia
em movimento lento
procura fazer estremecer
o calmo mar

mas mar calmo não muda


antes
paralisa a linha do horizonte
que emite um sinal para terra
e havendo tocado
hoje
dia mundial da música
a mais bela melodia
cala-se o violino
(2007)

87
podemos ser muitos

o marido rabugento
o pai carinhoso
o amante protector
o namorado ausente
o que persegue o amor
onde ele se esconde
virtual
(2004)

88
Sintra renovada

para falar de um território


de uma ideia
ou das duas coisas
devemos decidir o dia
de preferência a tarde
escolher confortáveis botas
tomar o manto
de caminho beijar a mão amada
forma de convite para companhia

pegar alforje
é próprio de quem vai partir
com o sentido da descoberta
bem aceso
a passagem do portão da mansão
entrada em verde reino
(2004)

89
Tábua

90
4 A um anjo
5 avião de brincar
6 Natureza
7 da passagem
8 Testamento
9 território da mente
10 pontos brilhantes
11 Ondulados nontes
15 imaginação em verde
16 mexe comigo
17 alimentar o sonho
18 informação
19 Cérebro
20 não existes
21 os teus versos
22 estragos em trânsito
23 álcool conta certa
24 Fast
25 há dias
26 sentada na luz tardia
27 tenho dez minutos
28 tempo de trocas
29 Tolerância
30 feminino de certo modo
31 Douro triste
32 Cesar
33 por detrás dos sonhos
34 mulher ideal
35 Passeio
36 Perdido
37 telefonia na cozinha
38 quarto da manhã
39 minha morada

91
41 onde estão meus erros?
42 concentração
43 faz isso
44 Outono Agridoce
45 os nossos olhos
46 Talvez
47 Limite
48 dedico-te, Pablo Neruda
49 Overdose
50 Retomar
51 do silêncio
52 sinto o vento
53 sentimento da vida
54 Ver
55 Mar
56 Não
57 esse ninho
58 Andarilho
59 Questões
60 o dia verdadeiro
61 Gorducha
62 crianças que andavam como cavalos
63 Melodia
64 promete-me
65 sentimento
66 Pele
67 exercício de 85, de 86, de sempre
68 versinhos a você
69 ponto crítico
70 língua de fogo
71 não querer
72 Destino
73 Quero
74 sem alma

92
75 D. Sebastião
76 Engano
77 da memória
78 Equívocos
79 sinais de luz
80 Chave
81 o porquê
82 alma limpa
83 Nirvana
85 2020
86 Tatuagem
87 corda de violino
88 podemos ser muitos
89 Sintra renovada

93
Chinesa do Norte – Produções

Maio de 2008. Lisboa

94

You might also like