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Título: PSM – UM

Autor : carlos peres feio


Capa: Chinesa do Norte – Produções sobre desenho de carlos peres feio

© carlos peres feio e chinesa do norte produções , Maio 2008

Composição, paginação, impressão: chinesa do norte – produções, lda

Depósito nº : 0012305/08

2
talvez

alguém sinta a falta dos versos que não escrevo

carlos peres feio

nos dias iguais


a tantos outros
cinzentos
a tua palavra
luz viva
fogo ardente
ilumina o silêncio

e-mfb

3
fui informado

fui informado
de que o mundo real não existia

stop

só existem imagens na tua cabeça


daquilo que o mundo é
em sonho

fiquei surpreendido
e despedi-me
definitivamente
da realidade.
(2000)

4
morte de manhã

é a que pode apanhar qualquer um


numa bela manhã,
preparando uma fatia de pão saloio
com doce de frutos vermelhos, escuros e doces,
que nos atiram para trás, para o odor da meninice,
da adolescência,
que meninice e adolescência são frutas da mesma árvore,
e doces.

é a que nos persegue todas as manhãs da vida, digo,


todo o caminho,
como um míssil, daqueles que apontados ao alvo em voo
não mais o largam,
pois farejam a fonte de calor,
que nas guerras sobre golfos são tubos incandescentes,
vomitando gases da combustão do jp4,
e que na nossa vida toda
também farejam a fonte de calor, que é sempre o coração
e raramente o cérebro.
(1997)

5
coisas revoltas

algumas coisas revoltam-se ao serem tocadas


e poucos saberão porquê.
revelam na atitude invisível
a agonia em que têm existido
obrigadas ao espectáculo dos humanos
face ao auditório dos inertes,
das pedras semipreciosas, preciosas e simples pedras,
as que amo.
como as compreendo,
incrédulas com este fim de século,
a lembrarem,
a desejarem
voltar aos tempos
antes de a história ser feita,
em que a ordem universal,
a gravidade e o silêncio,
só eram vagamente acordados
pelo passar onírico
de um meteoro
(2000)

6
Senhor

tenho pena que não haja


um senhor
para lhe agradecer o bem
que me sabe
estar bom e em paz
ouvir um vento forte
e lembrar as catedrais
onde entrei

não encontrei o Senhor


mas a calma
que reina em Seu lugar
(2003)

7
fabricante de postais

a basílica da Estrela
as duas basílicas da Estrela
a que de longe aparece como uma escultura gigante
e a outra
a de perto
onde as três dimensões vencem
e nos mostram ao fundo
o iluminado corpo grosso
contra o céu
e na frente
duas torres
uma sem luz, ali estão.

mas talvez seja outra ainda


a que tenho dentro da cabeça
a que imprimirei
quando me tornar fabricante de postais ilustrados
será nessa profissão
que a reforma me encontrará
artesão de imagens muito vistas
artífice de tarefas sem prazo de entrega
na espera de que os dias tenham cinquenta horas
e que o eléctrico, o vinte e oito
breve me leve
ao encontro comigo mesmo.
(2000)

8
arte plástica

gosto de pensar que a arte plástica


é flexível
e estou disposto a aprender
o limite das formas
aceito como fim
ter feito à mão livre
uma elipse
sem nunca
a ter terminado
(2001)

9
infelicidade

a infelicidade é
quando Cole canta
tu não estares à volta
e nunca termos
o par certo
na certa noite
deixa lá
também não estou
certo
de que o mundo assim
seria maravilhoso
já não é mau
ter esta infelicidade
só esta
(2001)

10
estilhaços

espalhados pela rota


do nosso riscar de superfícies
foram ficando estilhaços vários
muitos
que numa função integrada
levada ao máximo
reunia a minha vida toda.
e daí?

dessa visão não irá resultar nada


senão com tristeza sentir
que para mais há uma sensibilidade crescente
e para menos não se atinge o êxtase.

programada a próxima explosão,


venham mais estilhaços.
(1985)

11
a uma desconhecida

vejo-te como estrela


que viaja no espaço
e na noite dos tempos

será atracção
saber da tua existência
conhecer tua luz
receber confidências
beber tua música
desenhar teu rosto

não nos tocámos


mas tua força
alterou meu rumo

gravito agora à tua volta

és estrela nova
desconhecida
e no firmamento
sigo-te

quem sabe um dia


eu possa entrar
em rota de colisão
(1999)

12
esboço de um take

ó moon!
ó lua!
porque apareces grande? às vezes
sem tiras, sem riscas, ilesa.
porque me impressionas?
tens muita certeza,
apareces branca, mostras-te toda.
ó moon!
tu ficas feliz por me saberes sempre
encantado.
dás-te, talvez, num alívio forçado,
de quem tem de ser amado.
ó lua!
acreditas que quando voltares,
branca, forte,
passarão por debaixo de ti
duas mulheres, lindas
e sem te olhar?
é um sem olhar de inveja,
mas eu ainda te chamarei:
lua! lua! sou eu!
sou teu.
(1988)

13
Alentejo confirmado

volto ao que chamo um lugar de criação


onde sobreiros pássaros e calma
me acolhem.

a casa, o espelho de água e os cães


também são indispensáveis.

esta escrita é só um esboço


para me sentir vivo atrás da câmara.
(2002)

14
à natureza

ver terra vermelha entre verdes vários


é tão necessário à nossa paleta de cores
todos os dias acrescentada de cinzentos.

por isso fujo das auto-estradas da informação


e me refugio nos vales da ignorância
procurando a essência do profundo.

e evito como um contorcionista


o complicado sem pássaros e o contacto
com os corpos e almas em anestesia.

já não peço no meu mundo imaginado


a presença de pessoas
que figuram noutros cenários
onde o apreço é só o de ocuparem espaços.

a mim basta-me a cor da música


o fluido deste mergulho
e o pensamento fixo
num ser que me compreenda.
(2001)

15
sentir

a teia que nos liga na vida


não é por nós tecida.

fornecedores do fio emocional


somos.
o destino a tece.

pouco mais fazemos


além de quebrar ligações
e levar outras ao limite.

chamo-te um fio luminoso


frágil na superfície
mas feito de filamentos fortes.

a teia que nos liga na vida


já não resiste sem a tua luz.
(2003)

16
estrada irreal

a estrada que aqui nos trouxe


é a que nos levará
a ti e à minha sombra

não há programa sem ti


só pensamentos
na quietude da noite
escutas feitas confissões
sem um piscar de olhos

para perder o coração


basta um piano forte
em fundo
e tua mão no meu peito
(2004)

17
GRITO

Grito
Porque tenho medo
Grito mais
Porque ouvi o meu grito
Grito ainda
Cresce o pavor

Não me ouço
Mas sinto-me gritar
Grito com mais força
Começo a gostar
Grito para me lembrar
Altero a postura
Grito por gritar
Finalmente
Atingi
A loucura
(1994)

18
2004

em 2004
eu ainda lia Virginia Woolf
e resumia toda a vida
a um diário por escrever.

fazia o balanço
e os braços caíam sem força,
fechava capítulos
com pontes para a Europa
e Escolas de Sagres para o mundo.

abria a porta
às pessoas com talento
a quem não cedo nada
senão o desejo,
para que o estandarte
da força de viver
não caia comigo
(2004)

19
respirar (manual prático)

nasce em portugal e por aqui gravita.


apercebe-te tarde de mais que o ar
está rarefeito.

coloca-te, peça A,
no espaço B,
um país europeu dito
da linha da frente.

olha para trás,


para o teu passado, e encolhe os ombros.

verifica que B é igual


ao país onde nasceste.

verifica os neurónios
e faz um auto-teste:
onde eras mais feliz?
na terrinha,
ou em paris?

entristece,
renasce em portugal
e aprende a ser diferente.

cumpriste a missão,
e aprendeste
a respirar finalmente!
(2001)

20
todas as noites

todas as noites
quero remendar a minha vida
e a onda resultante é uma fortaleza
ritmo frenético onde um solista
tem seu tempo de brilho
vontade
de fundir reciclar remendar

esta noite
com um astro próximo
brilhante, ameaçador
qual gás de explosão
esta noite
vai redimir todas as noites
em que quis remendar a minha vida
com resultado
próximo de zero

21
esta noite
será o sótão arrumado
(esperou dez anos para que dessem por ele)
é, tenho a certeza, a noite da reconciliação
a noite em que encontro o bálsamo
para continuar
extrair
a raiz do que magoa
aspirar os cantos da memória
endireitar livros tombados
sobre personagens inventadas

é nesta noite que as verdades por fim descansam


exaustas sobre mentiras
inteiras de uma vida
(2001)

22
excitação

o que paira no ar
o que não se adivinha
vontade de colar lábios
a lábios
a face
a pescoço

a bruma, fábrica de mistério

as coxas
a mão curva
o olhar turvo
mármore de monumento
branco
sem aviso iluminado
tontura
raio
excitação
(1995)

23
oitenta e oito

o meu olhar chama-se Pentax


a minha mão lápis
meu cérebro Vax
a minha imagem Osíris
a minha mente
Cinema
todo o mundo Movies
toda a gente Sixties

pelas imagens
podem crer
viveremos para sempre
(1988)

24
Em voo (poema religioso)

Deus nunca viu a Terra


do ar
porque não há Deus
e porque coube ao homem
inventar a máquina

o Profeta teve de subir toda uma montanha


para fazer crer que fora iluminado
e trazia novas

esse visionário viveu num tempo


de máquinas simples
mas teve a ideia complicada
de falar em nome de um Deus
que nunca existiu

25
o Profeta, Deus e eu
- de notar que eu existo -
mesmo em equipa
e trabalhando muito
nunca conseguiríamos explicar
porque olho para baixo
e vejo novelos brancos
sem fim
que julgo saber serem água
numa forma bela
de pairar
e mais abaixo ainda
os verdes e castanhos da Terra
desta minha terra
povoada por profetas
e sem Deus
(2002)

26
pássaros da costa

porque estou condenado a ver pássaros voar


tenho asas mas não as sinto
são os pássaros no seu voo que mas cortam
e disso
nem sequer se apercebem

vejo o que quero


mas fora do alcance
e é no preciso momento
em que perco a visão
com os olhos rasos de água
(2004)

27
o eclipse

deu-se agora mas já se pressentia.


o sol, laranja às vezes,
amarelo fogo despertou,
e estava com pouca atenção,
lá em cima.
foi preciso
a lua,
pálida, direi até insignificante,
atravessar-se para criar o facto novo,
o olhar novo para o sol,
agora com precauções,
filtros, barreiras,
reflexões.
e tudo voltou ao mesmo.

deu-se agora, mas já se pressente


o próximo,
em 2090.
sorry,
não vou cá estar.
(1999)

28
Guiness da tristeza em simultâneo
com Óscar

quero arrebatar a marca


estou em posição de fazer pena ao próprio júri
que os tristes assistentes
só de lerem a nomeação se desfaçam
em lágrimas
o cinzento
exterior
ajudou muito
quero agradecer a quem me apoiou
na obtenção deste galardão
não agradeço a familiares
pois só me deram
alegrias
quero dar uma
palavra esta sim
de agradecimento
ao que se passa lá fora
de horrível
ajudou

29
mas quero sobretudo agradecer-te a ti
sem ti este prémio
seria como a minha vida
sem sentido
sem o teu contributo
de rejeição
não estaria neste podium
foi com suprema tristeza
que me coloquei
a este nível
para subir alto
e de lá me atirar
para o abismo
(2004)

30
ao destino

É de minha vontade que o destino me comande


e que o meu abandono a essa lei
seja entendido
como um sinal para me concentrar no que toda a vida
deveria ter
privilegiado

Mas assim não foi

Que passe o resto da minha vida


neste subtil martírio de ir escrevendo e percorrendo os
caminhos de uma aprendizagem
tardia
com o remorso de não estar já num estado mais avançado de
aproximação
à verdade

E que sejam as máquinas a forçar a minha natureza e a


impelirem-me
para o que já adivinhava desde sempre

31
Esta ladainha em forma de prece
é um requiem pelo século que deixamos
e pelo desperdício de metade dele roçando a arte sem a
tocar

Lanço um grito rouco que só eu ouço


para que no além o destino me atenda
e me faça gastar os restantes dias
com preocupação maior
por quem amo
pelas artes

Só fiel tenho sido ao destino


pois nunca me deixou ficar mal
nem com mais força posso crer em qualquer outra coisa

(1999)

32
comigo

comigo
o ano 2001 descia a avenida
da liberdade

os murmúrios intensos
a recusa
de ficar na rotunda do tempo

descíamos os dois com uma visão armada


de tesouras para limpar
as folhagens do sentimento

retive-me ao ver que este ano


ia ficando para trás
espantado por ser eu tão veloz

tudo estremeceu com as imagens registadas


e pairou a ameaça
de agora
ser tempo de câmara escura
(2001)

33
sons cheiros visões

os sons indispensáveis
à minha bússola
orientam dia e noite
melodias e palavras
no limite
ouço um órgão em catedral
o humano está
nas vozes do coro
os cheiros
pairam em desafio
tão diferentes como sândalo
alfazema ou o teu corpo

no bosque dos aromas


recolhem para novo ciclo
as cores, simples frequências
por si só já nos cativam
aprisionadas em linhas
contam a história do mundo

sê para alguém
uma linha envolvente
do seu som sua cor
seu odor
(2004)

34
homenagem aos répteis

nascer com a sina de ter sangue frio


é tarefa para que muitos se treinam
sem chegarem a nascer
sente-se o deslizar
da pele a roçar as ervas
em economia de sons
começa a fazer sentido
o sangue o som e a viagem

saudemos o fim da tarde


provoquemos os bem comportados
para que de nós se digam
cobras e lagartos
(2001)

35
espanto

espanto
é conhecer
que um dia
haverá um momento
único
na terra:
o último que se lembrava
de nós
morreu

momento a que chamamos


o nosso encontro
com o cosmos
(1998)

36
trocas sincronizadas

conto a história
do pintor de paisagens
apanhado por um tornado
quando viu o rosto
e os olhos ternos
da mulher da sua vida

esqueceu as belas artes


mudou o perfil de artista
e na incrível transformação
tornou-se um pintor fantasma

sentiu-se câmara com tripé


encontrou a necessidade da filosofia

e não mais deixou de pensar nela


(2004)

37
lugar de criação

para a escrita não basta


a caneta
o papel pode ser
obrigatório
mas mais necessário
é o lugar de criação
no momento fatal
o som certo
nem sempre música
uma esfera envolvente não identificada

então o tremor interno


e a poesia
sai-te da mão
(1999)

38
reter lágrimas

retive as lágrimas,
invertendo programas em curso

fiz-te caber inteira na minha ogiva,


arriscando passageiros em viagem

nada correu como antes

senti
que emitias energia positiva

peça nuclear,
acolhi-te como és - virtual.
(2002)

39
felicidade

um solo de violino,
acordes de Beethoven
lembranças de Nyman
e odores de mulher

a calma de bosque
um castelo ao longe
abandono de dois seres,
um a outro.

sejas quem fores


mata-me agora ou nunca
– em beleza se deve morrer –

desafio-te a que me fulmines,


ou a que te rendas para sempre.

êxtase –
sei agora o teu código.
(1994)

40
amor de provinciana

quer mesmo com muita força


um homem que deve ser forte
ele deve ser o sol
ela deve ser o norte.

quer com a força do vento


por vezes a quem não deve
será como ir para o deserto
com os hábitos da neve.
(1984)

41
Sophia 99

saber a poesia viva


na noite dos cegos poetas
carentes da lanterna
que ilumina

marcham penosamente
para salvar a alma
sonhando ver
escrito nas pegadas
SOPHIA
(1999)

42
7º dia

a raiva apareceu desta vez


com pulseiras

agitou-as no brilho e no som


sem pudor

vomitou argumentos
magnéticos

pisou mágoa e desespero


com desprezo

o resultado
é mais este
crucificado.
(2001)

43
conversa

a mensagem
parecia estranha
para quem
a não esperasse

estranha seria
para um incrédulo

eu sabia
que chegariam
explicações
esperadas
desejadas
necessárias
fundamentais

esta era de Vincent, o pintor


que de cores viveu
e de cores morreu

lamentava ter usado


o carvão sobre papel

alguém soubera
mostrar o cinzento da vida
o preto da solidão
sobre o branco de Lisboa

o branco, o cinzento, o preto,


é Pessoa
(1997)

44
flutuar

já nem aos escombros ligo


desprezo o que flutua em meu redor
ignoro se alguém me salvou
não me lembro do desastre
alguém me procurou?
se bastasse uma canção, a quem a dedicaria?

e sem porquê
continuo
flutuo
(1991)

45
no fundo – história curta

estremeceu e parou
sentiu uma luz forte em cima
ouviu perguntar
lembras-te dela?
deviam estar a gozar
queriam o seu embaraço
por certo
cego pela luz
atordoado pela questão
disse
se me lembro?
e há algum minuto sem a ver
dentro da minha cabeça?
sua pele prometia sempre
seus olhos eram risadas
com o choro em fundo
seu corpo em geral
uma mistura de fêmea desejo e cor
seu andar
dramático ao afastar-se
ondulante à vinda
se me lembro?
sufocou, tudo andou à roda
e caiu, fulminado.
(2001)

46
África

todos os dias perco palmares


mares quentes
vistas sobre águas
gentes

no sonho de todas as noites


chegam-me
a Praia das Chocas
a África de menino
e o calor daquela noite
em que decidi
preferir
a recordação
à vida
(2004)

47
A capital de Lisboa

nem todos sabem


é o Largo da Estrela
quando aqui estamos
tudo é equidistante
basílica branca
sem ponteiros no relógio
tão perto de Sintra
como do Rossio
só aqui temos
a sensação
de centro
Estrela
capital de Lisboa
de Portugal
capital moçambicana
capital de roças
de São Tomé
centro da dor
quando irmãos que perdemos
em guerras por explicar
aqui chegavam
sem vida

48
ainda hoje
na Estrela nos despedimos
de portugueses
dos nossos hábitos
de vozes do fado
da televisão
preto e branco
aceitando
que algum ponto desta cidade
seja o centro
o princípio
e o fim
(2004)

49
como apanhar Condores

há um momento
de preocupação
reflexão
quando surge a dúvida
como perseguir o Sonho?
a explicação
está na frase
lida num jornal antigo
alcançar um sonho
é apanhar Condores
com um caça-borboletas
(2004)

50
Veneza

apaixonei-me por uma diva


digna Leila
de Bizet
o canto foi o isco
mas
os cabelos o rosto
a calça preta
que a cada momento
salientava as
curvas de encanto
depois
o passeio de gôndola
onde as ramagens da blusa
rejeitavam o cinza das águas
tudo é passado
e ainda hoje não compreendem
porque não quero voltar
a Veneza
(2004)

51
noites de encantamento

pequeno tributo
aos que nas ruas caminham
música na cabeça
versos atrás dos olhos,
aos que respiram
dança, canto,
representação,
aos que tudo cozinham
fabricantes do sonho
que no palco
recriam vida,
delírio, paixão
ópera, opereta
flores-de-lis, margaridas
à beira do caminho
(2004)

52
Poema

num conjunto de madrugadas


o início do tempo
na febre com que estou
a visão clara do que para mim és
não te quero ouvir
já assim sofro
e se o domingo vai longo
que os próximos crepúsculos
sejam o princípio do fim
(2004)

53
madrugada

por ser madrugada


em descanso revestida
surgem os desejos
dum destino qualquer
esboçados não cumpridos
mortos ao nascer
(2004)

54
da viagem à descoberta

porque a fazemos?
para que a alma continue colada ao peito
evitando a surpresa de um dia
não estar lá

dela vêm as descobertas


nutritivas para a floresta da imaginação
geradoras das voltagens que nos ligam
às redes que levam longe
nossos passos

sei agora
o que é o salto da gata
de olhos verdes
feitiço da serra iluminada
por candeeiros
tudo será diverso
na doce asfixia
experiência única

sinto-me preparado
para uma nova era
(2001)

55
inadaptado

oh, meu amor


estamos a deixar passar
um tempo precioso
sem nos termos

vai ser
nosso choro
como os filmes que vemos:
preto e branco da memória
no colorido
dos dias

talvez nos sirvam,


sem motivo
(2004)

56
uma história

um copo de vinho
― coisa simples

os sonhos emanados
da destilaria que somos
― números difíceis

os sons incríveis
nas faixas de uma vida
criam grande eco na muralha
construída
― nosso palco

o copo vazio
a alma esgotada
― saída sem glória

salva a peça
bebe outra dose
retira pedras ao muro
marca uma nova actuação
( 2004)

57
praia

não tem que ser mar


é cor pura
quando acontece
espaço
espuma
ar frio
pegada na areia
o amor desembarca
mesmo quando ninguém
espera
(2004)

58
desejo

não luto contra a morte


não contrario a vida
mas o desejo
oh! esse não,
não pode expirar
venham folhas caídas
flocos de neve
flores em botão
quando o desejo morrer
leve-me também com ele
(2004)

59
CANÇÃO SOBRE OS CAÇADORES DO

PÔR-DO-SOL

empoleiravam-se em mastros
passavam as mãos pelos cabelos
quando era tempo
de esperar a partida do sol
naquele dia, de tão curto,
havia no ar um tremor
um medo que o sol não voltasse
pois do solstício se tratava
a noite seria a mais longa
e o sol era tudo para eles
nem a lua, também amada,
lhes dava coragem

sem sol
não haveria
lua
caçadores
noite e dia
nem o amor grande
à praia com esse nome
(2004)

60
desalento

quando me atraso
nas tarefas de todos os dias,
a seguir castigo-me, produzindo mais,
sempre devagar, claro.
pela falta de hábito
de ser velho,
passo o tempo
forçando barras
das que torcia em novo
uma coisa há em que certamente
serei maior
no desalento
(2005)

61
ouço a luz

lembra-te que és meu pôr do sol


mas sou eu que me afasto
enquanto brilhas ainda
amor
mergulho na terra
com os ouvidos na luz
os meus olhos em ti
(2005)

62
ar de moinhos

chega de cantar locais de encanto


não mais recordar
pontos altos vistas largas
se para os sentimentos só trago lastro
de dias felizes
nocivos para o próximo naufrágio,
dos sítios encastrados
em tardes de doçura
renego as gravuras
feitas marcas de fogo
na pele curtida
do passado já desfocado
exorcizo e evito
toda a recordação
salvo a do ar fresco
no monte dos moinhos.
(2005)

63
tu

teu rosto
tuas formas
teu corpo
salva-vidas deste náufrago
nas tempestades do fim
da vida
(2005)

64
onde estás

onde estás
para te dizer
das estúpidas dores que sinto
das brilhantes ideias que tenho
e tudo o mais
tudo o que cabe num dia vazio
e acaba no sonho
ter-te tido
uma delícia
uma ternura
junto à espuma do mar
revolto com a tua ausência
(2005)

65
quarto não habitado

agora,
porque nem sempre foi
assim,
a falta
o que não se vê

os odores são os mesmos,


bem-haja o reconhecimento,
apanho no ar
pedaços de uma memória
estilhaçada

a viagem,
última consequência,
pode ser
um bater de porta
o entender
do adeus
(2005)

66
Amor

não dei por ele


talvez brisa
no pescoço
e na orelha,
o primeiro arrepio de prazer
talvez tenha sido isso
leve começo a senti-lo
refresca-me
mas cresce
torna-se forte
antevejo um tornado
com todos os sentimentos
no centro
a elevar-se
em espiral
para fora de mim
e do mundo dos ventos
amor-vento
já uma tempestade
abre-me os olhos
amor-água
escorre-me pelo rosto
pelo corpo

67
as cordas das velas do meu passado
esticam rangem vibram
as cruzes nelas bordadas
partem com o vento
e a minha alma fica
branca
pura
disponível
para receber as tuas marcas,
só as tuas!
(1990)

68
fim do sonho

tivesse havido o amor


fosse ele um estratificado
existisse uma só verdade
festiva seria a morte

conhecida então por ti


a única duplicidade
de muito muito te amar
de alma de coração
( 2005)

69
informação

a má
influência que temos
sobre nós próprios
pode ser curada
pelo remédio do passado

agora
só devo escrever
o que me passa
pela cabeça
sem qualquer outra
consideração

se uma seta
me atingir em qualquer momento
quero estar bem
(1985)

70
digital

houve um tempo
em que a escrita
ela só
gerava as imagens
delicadamente impressas
em células cinzentas
e por aí ficavam

noutro estamos
cérebro adormecido
aguardando o que virá
onde as imagens
são digitais.
(2005)

71
recusa

não quero ser do vosso universo


prefiro ouvir músicas dentro de mim
e não acreditar que existe algo mais
convencido que o fim é hoje
e também já foi há muito
recuso trazer mais nomes
ou objectos ou ideias
ou pessoas para esta nave em queda
escrevo o poema último e possível
tudo o que vos mostrar no futuro
é mentira para acreditarem
também em dias de desespero.
(2002)

72
perda

pode ter acontecido


quando minha mente repousava, elevada

a meditação será desculpa


para entender a perda,
e também ela a terá provocado ?

digam que não - que o asfalto abra frestas


onde jardins inteiros penetram,
e de perda falarei

sofro com ela.


(2005)

73
se

se
quiseres saber quem te ama
e
tiveres dado sinais, da cabana onde estás
podes
medir a afeição de que dispões
pelas
visitas recebidas
e
a mais profunda mágoa
sempre
pelo silêncio dos intervalos
(2005)

74
a Castro

tudo foi dito.


tudo.

resta somar mais este choro


a tantos.
este atestado à crueldade
na velha, na média,
na nova idade.

vamos a canis
salvar da morte animais,
e apunhalamos
mulheres e crianças.

terá a humanidade um fim feliz?


julgamos aprender,
mas os lobos
em nós
são mais fortes.

a Castro é também uma adaga


no coração do mundo
para os crentes,
oremos.
para os outros,
sangremos.
(2005)

(a minha neta Inês)

75
prata

oferta de rio
na superfície
escondendo as três dimensões
olhar que faz bem
e garante para depois
transmissão à alma

brilho de reposição
nas faltas sentidas
substituição
do prateado
por cinzento-escuro

voz na noite
favorita das artes
afastada de mim
retiras-me a prata
sem defesas
para a feitiçaria
mudo de rumo
construo
meus próprios escombros
(2006)

76
convite

quero reduzir-te a uma imagem


condensar-te
não permitir cópias
filtrar sinais

ouve
avança
ilumina-te na noite
coloca o breu no escuro
dá de ti o que não tens

mostra o que há para ver


o sonho impõe
sai de ti
mexe com o que te rodeia
perfuma-te
à entrada do bosque

alterna-te contigo
consome a vida num todo
e sê para sempre
no teu estar e no teu modo
(2005)

77
sou contra

sou contra termos abandonado


a tinta permanente
a falta que a cor sépia faz
o abandono da arte superior
chamada caligrafia

sou contra as ideias que surgem nas pontas dos dedos


quando tocam em teclados
que ordenam a correntes fracas
que imprimam a facilidade

serei sempre contra o que nos transformou


a ideia que tenho de mim
contra o que de mim esperava
ainda contra o ter esperança
quando esta partiu
por isso olho ondas e sóis mergulhantes
contra um mar que reconheço
lamentando a maré cheia de desespero
cúmplice de tudo o que não aconteceu

quando me faço ao mar da contradição


não há céu risonho que trave esta cruzada
ou armada de luzes brilhantes
capaz de abortar o projecto
sou mesmo contra

assim navego para o escuro


levando em contentores os medos gigantes
sem nunca os soltar

78
vejo no mistério envolvente um sinal
de estar na rota certa para a condenação
os sonhos que à pressa embarcaram vieram a tempo
do naufrágio garantido pela previsão

sou contra levar na cabeça melodias de voltar para trás


agentes subversivos que escapam ao controlo
clandestinos na minha cabeça
transportando a droga do prazer
em restos de seringas
picando a vontade de respirar ainda

contra meu sentir passam imagens a estibordo


dos locais que longe amei
das coisas-animais-de-companhia
e a bombordo este país onde o contrário do programado
aconteceu
só posso ser contra as portas fechadas e tudo o que foi
difícil
desse lado passa também o apego à terra pessoas e animais
agora num pacote de amor-ódio
transportando o que queima
exalando vapores rutilantes azuis sem classificação
veneno esperado para cumprir este ritual

sou contra a ideia esgotada


o fosso aberto
o juízo final.
(2005)

79
MEU FOGO

no deserto dos pensamentos


encontro na sombra
areias em movimento
sem fuga possível
procuro o azul luminoso
com rochas salgadas
mas tudo me foge
o mergulho é profundo
cumpro o destino
de me imolar pelo fogo
que em mim arde

TEU FOGO

que incêndio vai na tua cabeça!


o crepitar desse fogo
sentem-no alguns
quero ajudar-te na detecção desses perigos
garantir meios para os anulares
não fiques em combustão eterna
com a tua carga térmica de gigante
há que compartimentar com selagens
montar uma barreira corta-fogo
para que entres em lume brando
protegendo as tuas fronteiras
e possas por fim
arder de amor
(2005)

80
Irreparável

porque não escrevi versos


quando meus filhos dormiam
no mesmo quarto,
sonos que não se repetem?
olhava-os nas viagens
que suas mentes faziam
em sonhos separados
mas unidos pelo meu olhar.
mais valiosa,
porque não me preocupava com as suas respirações,
não tinha nada de prática a minha vigília
era pura e lúdica
só os olhava
e com tal amor
que me esqueci de escrever estes versos
em devido tempo
embora irreparável
- porque do que passou
não há registos -
faço fora de prazo esta declaração
de uma saudade grande
de um amor maior.
(2006)

à Mónica e ao Alexandre

81
às mulheres dedico

encontrar alegria
no sexo praticado ontem à noite

abrir janelas sorver ar


sair do canto cuidar da casa

ignorante de seu valor para o mundo


afogada nas tarefas

construtora única da vida melhor


esperança final do remedeio

corpo celeste maior


mãe irmã filha amante

mulher a quem um dia


devolverão a dignidade

seja esta a homenagem


que às mulheres dedico
(2006)

82
fui informado

fui informado
de que o mundo real não existe

stop

existem imagens na minha cabeça


daquilo que o mundo é
em sonho

fiquei surpreendido
despedi-me
definitivamente
da realidade.
(2006)

83
Porquê ?

porque somos fragmentados?


será que o caminho
nos faz caminhantes?
e a rota não escolhida
faz de nossa partida, a chegada?

pela estrada
absorvemos no início
desenhos da calçada portuguesa
pregão anunciando fava-rica
e uma gare marítima
que nos empurra para o mar

quando a margem do rio


se deixa de ver
é quando os detalhes
surgem mais vivos

o pescador à linha
terá a alma no seu corpo
ou afogada e espetada no anzol?

84
na partida começa a dor
sabendo que à chegada
ela será reforçada
por mais dor
- a de ter estado ausente

porquê?
se nas terras de outro oceano
há encontros índicos
inadiáveis
outro mundo por descobrir
com um xicuembo-feiticeiro
à espreita

estranho?
sim. descobrir entre máscaras e
esculturas primitivas
que os deuses do Olimpo
habitaram a savana

o homem só e
os medos desse homem
cabem numa mochila
ou numa arca de casa provinciana

a descoberta pelo estudo


da civilização europeia
feita debaixo de um embondeiro
mordendo o agridoce
de uma toranja
fará sentido?

85
conhecer Mozart e Haendel
num salão onde o calor aperta
e à saída
ouvir os marimbeiros de Zavala,
tem lógica?

há pontos do percurso
onde a mensagem do regresso
aparece em cada esquina
é a nossa sina?

ver de novo o Tejo


regressar à origem
sentir que o fim da viagem
agora foi conseguido

alguém sabia
da certeza de voltar
vou chamar-lhe Destino.
porquê?
não sei.
(2006)

86
boa hora

qualquer hora é boa


para uma declaração
ninguém me levará a sério
meu passado será sempre ameaça
quem quer ver através de mim
terá sempre nevoeiro pela frente

não se pode viver sempre


acertando onde devemos
as falhas são abismos
sou consumido pela falta
pela cegueira que tive
e agora que te encontrei
cego na tua luz
(2006)

87
fulgor

nem todos os dias


o sangue corre com pressa
nas veias do mais íntimo de nós
na contradição da ânsia e do torpor

mas quando tal acontece


não há montanha nem rio
mais próximo do sentir
só o mar se aproxima
do bater do coração
nas tardes de tempestade

partindo de toda a gama de cinzentos


mostrando o brilho de muito azul
com vento sal e água no ar
um destino está marcado
o esplendor do arrepio
no branco que cega
na espuma.
(2006)

88
Poema de nunca sentir abandono

sinto
o teu sofrimento
corro à procura da caneta
minha ferramenta
também do papel
teu suporte amado
com teu rosto em visão
quero escrever
um poema amuleto
para que o tenhas junto ao peito
quando o dia desfeito
a noite caída
te sentires perdida
com o mar na mente
usa-o estandarte
emblema talismã
que teu coração sossegue
adormeças serena
e acordes feliz
pela manhã
(2004)

89
4 fui informado
5 morte de manhã
6 coisas revoltas
7 Senhor
8 fabricante de postais
9 arte plástica
10 infelicidade
11 estilhaços
12 a uma desconhecida
13 esboço de um take
14 Alentejo confirmado
15 à natureza
16 sentir
17 estrada irreal
18 GRITO
19 2004
20 respirar (manual prático)
21 todas as noites
23 excitação
24 oitenta e oito
25 Em voo (poema religioso)
27 pássaros da costa
28 o eclipse
29 Guiness da tristeza em simultâneo com Óscar
31 ao destino
33 comigo
34 sons cheiros visões
35 homenagem aos répteis
36 espanto
37 trocas sincronizadas
38 lugar de criação
39 reter lágrimas
40 felicidade
41 amor de provinciana
42 Sophia 99
43 7º dia
44 conversa
45 flutuar
46 no fundo – história curta

90
47 África
48 A capital de Lisboa
50 como apanhar Condores
51 Veneza
52 noites de encantamento
53 Poema
54 madrugada
55 da viagem à descoberta
56 inadaptado
57 uma história
58 praia
59 desejo
60 CANÇÃO SOBRE OS CAÇADORES DO PÔR
DO SOL
61 desalento
62 ouço a luz
63 ar de moinhos
64 tu
65 onde estás
66 quarto não habitado
67 Amor
69 fim do sonho
70 informação
71 digital
72 recusa
73 perda
74 se
75 a Castro
76 prata
77 convite
78 sou contra
80 MEU FOGO – TEU FOGO
81 Irreparável
82 às mulheres dedico
83 fui informado
84 Porquê?
87 boa hora
88 fulgor
89 Poema de nunca sentir abandono

91
Nota da editora

Já é demasiado tarde para a aquisição de saberes oficinais,


para a aprendizagem de regras de concorrência. Por isso,
embora o nosso querer, querer muito, tenha a mesma força
de há um ano, o labor-artesanal-cliente-único manteve-se.
A dedicação total, absoluta, também. Eventuais falhas são
da nossa responsabilidade. O Poeta, ser especial, saberá,
relevá-las e – proverbial bom humor – murmurar: é o
Destino!

Lisboa, 19 de Maio de 2008

92

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