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ucação e Pssicologia

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MENTO
Marisa Forghiieri1 

A  crítica  do
o  conhecimmento,  prop posta  por  Nietzsche,,  está  paraa  além  de  uma 
ambiência temporal. A história devee restituir  os cumes d do devir e,  interrogan ndo a 
conssciência cieentífica, queestionar ass opiniões p
pré‐concebbidas acercaa de tudo o o que 
há de inquietan nte na pesq quisa e de pperigoso naa descoberrta. Mais dee cem anos após 
a moorte do auto or, seus questionamen ntos permaanecem vivvos e atuaiss. 

Giiacoia (200 00), em pub blicação quue celebra  o centenárrio da mortte de Nietzzsche, 


obseerva  que  sua  filosofiaa  está  parra  além  doos  limites  da 
d razão,  se  entrelaçça  às 
vivênncias,  à  exxistência  co
omo  projetto  estético.  O  caráterr  denso  e  p
poético  da  obra 
nietzzscheana reequer, também, interp pretações qque se insp pirem no teerreno da aarte e, 
nesse  sentido,  possam  produzir 
p l
livres  representaçõess  a  partir  dos  univeersos 
pessoais. 

O  pensamen nto nietzschheano incluui uma poéética da traagédia gregga, constitu
uída a 
partiir da interppretação on ntológica d
do trágico.  A luta entrre as forçass representtadas 
por AApolo e Dio oniso sugerre uma con nciliação tráágica, um p
pacto de pazz que dá orrigem 
à artte trágica. O
O caráter trrágico não sse refere a uma incommpletude a ser preencchida, 
mas a um transsbordamen nto de ampllitude. 

A  tragédia é marcada p pelo conflitto entre lib
berdade e ddestino; o h herói enfrenta o 
destiino  e  posssibilita  a  un
nificação  estética 
e da  contradiçãão.  A  expeeriência  esttética 
tambbém pode sser compreeendida com mo uma esp pécie de êxxtase e redeenção. 
O ser pró
óprio procurra também ccom os olhoss dos sentido
os, escuta tam
mbém 
com os ouuvidos do esppírito. 
NIET
TZSCHE, 188 85: 51 

1   Univversidade Anhembi Morumbbi, São Paulo. fo
orghieri@anh
hembi.br 
FORGHIERI, M. (2007) Nietzsche, arte e conhecimento. In, V. Trindade, N. Trindade, 
A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  
 
Em “A origem da tragédia” (1871), Nietzsche expõe a fragilidade da ciência para 
apreender  os  fenômenos  artísticos.  Apolo  e  Dioniso  podem  ser  compreendidos, 
para  além  da  Mitologia,  como  forças  polares  que  delimitam  nossos  conflitos  e 
vazios.  Apolo  é  luz  que  não  vive  sem  as  sombras  de  Dioniso.  A  aparente 
necessidade de compreender tendências opostas como expressões de bem e mal é 
suprimida  pela  possibilidade  de  alternância  dos  sentidos.  Como  forças,  se 
estabelecem pela oposição – os polos se chocam e se sustentam, simultaneamente. 

Machado  (1999:  27)  observa  que  a  arte  é  capaz  de  proporcionar  experiências 
dionisíacas, sem que se seja aniquilado por elas – possibilitando embriaguês sem 
perda  da  lucidez.  Compreende  que  o  dionisíaco  nietzscheano  implica  o  apolíneo, 
por ser necessariamente artístico. 

As  relações  que  se  estabelecem  no  interior  de  cada  homem,  a  partir  do  jogo 
estabelecido entre a pulsão dionisíaca e a apolínea, são descritas por Vattimo. Ele 
afirma que dionisíaco e apolíneo não definem apenas uma teoria da civilização e da 
cultura, mas também uma teoria da arte (1985: 18).       

A arte trágica representa o conflito entre Apolo e Dioniso. Expressa resistência 
ao sofrimento a partir de uma intensificação da vida. 

Vattimo observa que Nietzsche abre caminho para uma relação renovada com a 
classicidade,  o  que  comporta  uma  radical  atitude  crítica  nos  confrontos  com  o 
presente  (1985:  20).  A  transformadora  noção  de  interpretação  proposta  por 
Nietzsche  já  aparece  em  “A  origem  da  tragédia”  e  é  a  partir  do  jogo  estabelecido 
entre  o  apolíneo  e  o  dionisíaco  que  se  pode  compreender  a  atualidade  do 
pensamento nietzscheano. 

A palavra Dioníso significa mais para Nietzsche, de acordo com interpretação de 
Müller‐Lauter.  Para  ele  a  experiência  dionisíaca  deve  permitir  respirar  na  mais 
monstruosa paixão e altitude (1999: 26). 

Um  tal  exercício  requer  uma  saúde  peculiar,  que  para  além  de  perigosas 
escaladas, possibilite a aventura de percorrer os limites da alma. 
A saúde pertence a quem tem sede na alma de percorrer com sua vida todo
o horizonte dos valores e de quanto foi desejado até hoje, quem tem sede
de circum-navegar as costas deste ideal “mediterrâneo”. 
  NIETZSCHE, 1882: 280 

A experiência dionisíaca propõe a intensificação da vida em condições extremas. 

A inesgotabilidade do fundo dionisíaco do mundo (FINK, 1983: 20), permite que o 
fenômeno da arte seja colocado no centro, a partir dele se torna possível decifrar o 
mundo.     

A  arte  afirma  a  vida  em  seu  conjunto.  A  luta  entre  Apolo  e  Dioniso,  que  dá 
origem  à  arte  trágica,  suprime  a  unilateralidade.  Dois  princípios  antagônicos  não 

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FORGHIERI, M. (2007) Nietzsche, arte e conhecimento. In, V. Trindade, N. Trindade, 
A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

dão  lugar  a  reconciliação.  A  tensão  que  sustenta  Apolo  e  Dioniso  como  forças 
polares justifica a existência e a magnitude de ambos. Tal tensão desafia o círculo 
da ciência 

(NIETZSCHE,  1871:  115),  fazendo‐o  abrir‐se  ao  acaso,  ao  pensamento 


paradoxal, que percorre dois sentidos ao mesmo tempo.  
O essencial dos cultos dionisíacos consiste, para Nietzsche, num mergulho 
redentor na imanência, onde não se trata mais de instaurar um juízo que 
divide, condena, renega, mas de proclamar um sim à vida em sua crua 
integridade. 
  GIACOIA, 1997: 187 

O desejo de ultrapassar o próprio destino, enfrentando‐o, leva os heróis trágicos 
a  transgredirem  os  limites  da  existência,  desafiando  os  valores  estabelecidos.  A 
dimensão trágica representa a transgressão dos limites de finitude do homem. 

No  pensamento  nietzscheano  os  valores  estabelecidos  surgiram  em  algum 


momento,  em  algum  lugar;  novos  valores  podem  ser  estabelecidos  a  qualquer 
momento,  em  qualquer  lugar.  A  realidade,  eternamente  mutante,  só  pode  ser 
compreendida a partir do devir. 

O  devir  desfaz  o  conjunto  de  normas,  métodos  e  sistemas,  lança  o  homem  no 
vazio, obrigando‐o a compreender a existência como experiência. Nada além disso. 
A  preciosidade  está  na  impermanência  de  fórmulas  capazes  de  apreender  a 
existência como ponte, passagem. 
O que há de grande no homem é ser ponte, e não meta. 
O que pode amar­se no homem, é ser uma transição e um ocaso. 
NIETZSCHE, 1885: 31 
 
A justificada necessidade de lançar a existência na correnteza turva e incerta do devir
contrapõe-se à necessidade apolínea de luz e segurança suprema. Os contrastes mais perfeitos
produzem a existência mais fecunda. A luta entre Apolo e Dioniso intensifica-se, desaguando
em transmutação, criação.
Meus estudos e pesquisa com oficinas de criação apontam para a construção de novos
sentidos. Tais oficinas, destinadas à formação de psicólogos, incluem afazeres artísticos
mesclados ao exercício reflexivo de ler e buscar apreender significados próprios para os
aforismos nietzscheanos. Tal ritmo sugere imersão em uma dimensão mais complexa da
existência, que alterna ações pré-reflexivas àquelas meramente reflexivas. Desse jogo advém a
possibilidade de construir as próprias imagens, que acompanham o engenho de uma
compreensão mais vertiginosa da obra nitetzscheana. Enquanto a experiência do real nos
submete, a experiência artística nos liberta.
No pensamento nietzscheano o fenômeno da criação é considerado a partir de uma
perspectiva nômade, a serviço da liberdade. As tramas de permanência do mundo, dos
conceitos, das idéias, rasgam-se à partir das máximas que apresentam a transitoriedade de todos
os fenômenos. O devir é proposto como imagem fundamental da criação.

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FORGHIERI, M. (2007) Nietzsche, arte e conhecimento. In, V. Trindade, N. Trindade, 
A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  
 
Cada instante devora o precedente, cada nascimento é a morte de 
incontáveis seres, gerar, viver e morrer são uma unidade. 
NIETZSCHE, 1872: 45 
 
Criação e destruição apresentam-se de forma justaposta, estabelecendo contornos e
vazios. Para criar é necessário, por assim dizer, também morrer. Morte ampla, metafórica e
parcial; a morte de nossas próprias cascas e seivas.
As três metamorfoses, anunciadas por Zaratustra em seu primeiro discurso (1885: 43),
propõem infinitas mortes e renascimentos de aspectos e essências. Propõem crescimento
irregular, intensificação da vida. Nelas também é possível observar uma saga através da qual só
é possível libertar-se a partir de ações. Em cada etapa observa-se aspectos decisivos para uma
compreensão sobre a existência criadora.
Como o espírito se torna camelo e o camelo, leão e o leão, por fim, criança. 
(...) 
“O que há de pesado?”, pergunta o espírito de suportação; e ajoelha como 
um camelo, e quer ficar bem carregado.  
“O que há de pesado, ó heróis”, pergunta o espírito de suportação, “para 
que eu o tome sobre mim e minha força se alegre?”(...)  
Pesadíssimos fardos toma sobre si próprio o espírito de suportação; e tal 
como o camelo, que marcha carregado para o deserto, marcha ele para o 
seu próprio deserto. 
Mas, no mais ermo dos desertos, dá­se a segunda metamorfose: ali o 
espírito torna­se leão, quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser 
senhor em seu próprio deserto. (...) 
Qual o grande dragão, ao qual o espírito não quer mais chamar senhor 
nem deus? “Tu deves” chama­se o grande dragão. Mas o espírito do leão 
diz: “eu quero”. (....) 
Criar novos valores ­ isso também o leão ainda não pode fazer; mas criar 
para si a liberdade de novas criações ­ isso a pujança do leão pode fazer. 
(...)    
Mas dizei, que poderá ainda fazer uma criança, que nem sequer pôde o 
leão? (...) 
Inocência é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma 
roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer 
“sim”. 
Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado 
“sim”; o espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para 
o mundo conquista o seu mundo. 
NIETZSCHE, 1885: 44 
 
A riqueza metafórica com que os movimentos são descritos permitem aproximações com
a própria existência e incluem a possibilidade de observar em si tais transformações e tremores
de terras.
O espírito de suportação, para além de pesadíssimas cargas, carrega os fardos de um tipo
de moral que requer o cumprimento de deveres. Mas a marcha para o próprio deserto, uma tal
solitude parece engenhar o espaço necessário à transformação. O deserto como metáfora de
vazio e de desterro pode ser capaz de inspirar uma salutar confrontação consigo mesmo. Pode
inspirar, ainda, vontade de potência, dominação; o desejo de ser senhor em seu próprio deserto,
enfim.

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FORGHIERI, M. (2007) Nietzsche, arte e conhecimento. In, V. Trindade, N. Trindade, 
A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

Quando ocorre a segunda metamorfose observa-se a necessidade do estabelecimento de


uma luta para a conquista da liberdade. Uma luta que requer força selvagem. Tal força, que não
carrega fardos, é livre para se impor como vontade; para estender seus domínios.
Criar para si a liberdade de novas criações talvez seja um exercício necessário e uma
luta diária. Nesse sentido, as metamorfoses se realizariam com possibilidades quase infinitas de
reincidências. Mas tais fenômenos não seriam propriamente repetições, pois encontrariam no
homem outro campo de experiência, profundamente alterado pelas metamorfoses anteriores. A
idéia de eterno retorno aqui, é compreendida apenas como possibilidade transitória, a partir de
observação de Nietzsche.

(...) o mecanismo tem que valer para nós como hipótese imperfeita e 
apenas provisória. 
NIETZSCHE, 1884: 117 
 
A hipótese de que existem ciclos a serem percorridos durante a existência não cristaliza
os estados de passagem, tampouco estabelece compreensões definitivas sobre o fenômeno.
As noções de inocência e esquecimento propostas pela terceira metamorfose são
importantes para que as transformações também possam ser compreendidas em seu conjunto.
Conjunto que traz como elemento um novo começo. Um sim e um não; um jogo de criação e
morte.
Na conquista do próprio mundo afirma-se a vontade. Ela é o elemento através do qual a
existência pode fluir.
A relação fluida entre percepção e racionalidade revela-se como linguagem da própria
vida. O discurso de Zaratustra pode ser entendido como argumento racional e obra poética;
requer a compreensão da vida como fenômeno estético.

A existência considerada como fenômeno estético sempre nos parece 
suportável e através da arte nos são dados o olho e a mão e antes demais 
nada a boa consciência para poder criar, com nossos recursos, tal 
fenômeno. 
NIETZSCHE, 1882: 120 
 
Na confrontação entre o homem científico e o homem artístico proposta por Nietzsche,
Fink observa que o homem artístico é o tipo superior em comparação com o lógico e o cientista
(1983: 35). Para o homem artístico o questionamento e destruição dos velhos limites impostos
pela dureza dos conceitos pode ser uma resposta criadora da intuição. Nesse sentido, a criança
como metáfora de inocência e esquecimento nega um certo tipo de tradição do conhecimento,
que se constrói apenas a partir de uma criteriosa memorização e ordenação de saberes.
Nietzsche considera que para ser artista, também é necessário esquecer, ignorar! (1882:
14). Para além do esquecimento, ele observa que é possível experimentar uma segunda
inocência, que torna o homem mais infantil e, ao mesmo tempo mais refinado.
Inocência e refinamento. O esquecimento como hábito elegante é capaz de inaugurar
novas impressões, compreensões. Ao mesmo tempo, tal hábito enfurece os mais velhos e os
eruditos, que passam a ser entendidos como perspectivas, e podem até ser ignorados.
As três metamorfoses representam, para Fink, a modificação do homem a partir da morte
de Deus, isto é, a transformação de sua alienação na liberdade criadora que se sabe autônoma
(1983: 76). Ele observa que tal fenômeno põe em evidência o caráter lúdico e arriscado da

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A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  
 
existência, bem como problematiza todos os sistemas de interpretação do mundo que se fundam
na metafísica.
A intensa transformação existencial proposta no primeiro discurso de Zaratustra é
compreendida por Fink como princípio de todos os outros discursos (1983: 78). Observa que
antes da morte de Deus, a natureza criadora do homem encontrava-se adormecida, prisioneira
nas malhas de divinas certezas.
Vattimo entende que a morte de Deus não é uma enunciação metafísica da não existência
de Deus; tem de ser tomada à letra como o anúncio de um acontecimento (1985: 56). Anunciar
um acontecimento não significa, entretanto, demonstrar alguma coisa. Mas a simples
anunciação é capaz de provocar outros acontecimentos. A anunciação da morte de Deus
possibilita que se instaure uma profunda suspeita – de que não se pode mais considerar uma
verdade sem seus véus.
Se não é mais possível crer em uma verdade que não possua véus (NIETZSCHE, 1882:
15), há que se abrir espaço para as diversas e talvez infinitas interpretações da existência.
Espaço para a criação de novos sentidos.
A morte de Deus, para Fink, significa também o fim da negação do tempo, e o
reconhecimento do tempo como verdadeira dimensão de todo o ser (1983: 81).

O criador, que só pela morte de Deus conquista a sua liberdade mais 
completa e se abre para a Terra, insere­se expressa e voluntariamente no 
tempo, aceita o perecível e com isso a sua própria finitude    
FINK, 1983: 81 
 
Kaufmann considera que Nietzsche, como um profeta, anuncia a morte de Deus em
Zaratustra. Tal anunciação pode ter origem em seu pressentimento de um desastre universal.

Ele sentiu a agonia, o sofrimento e a miséria de um mundo sem Deus, tão 
intensamente em uma época em que os outros estavam cegos às 
tremendas consequências, que ele seria capaz de experienciar 
adiantadamente como seria o destino de uma geração futura. 
KAUFMANN, 1974: 98 
 
Apesar de alguns autores considerarem como principal premissa da filosofia de Nietzsche
o ateísmo, Kaufmann observa que essa interpretação também pode ser considerada
problemática. A anunciação da morte de Deus é uma tentativa para um diagnóstico da
civilização contemporânea e não uma especulação filosófica de uma realidade última (1974:
100).
Outra interessante interpretação para a questão do ateísmo é oferecida por Brusotti, ao
observar que Nietzsche diferencia o Cristianismo que arruína a saúde, dirigido pelo
ressentimento e o Budismo que, ao contrário, ele considera como uma forma de higiene
racional (2000: 25).
O ressentimento, que é em sumo grau prejudicial ao doente, está-lhe contra-indicado:
infelizmente é sua inclinação mais natural. O conceito é de Buda, fisiologista profundo. (...)
Libertar a alma do ressentimento, é o primeiro passo para a cura.
NIETZSCHE, 1888a: 39 
 
Libertar a alma do ressentimento requer, também, inocência e esquecimento.

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A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

A anunciação da morte de Deus possibilita o nascimento de um homem criador, que ousa


escrever sua própria história, e com isso se arrisca, inscrevendo-se no vazio.
Deus é uma suposição; mas quero que o vosso supor não vá além da vossa 
vontade criadora. 
NIETZSCHE, 1885: 99 
 
Não existe uma casa ancestral para onde o homem pode retornar, o que existe é só o
percurso.
Uma nova era de uma cultura pós-metafísica se inicia a partir do pensamento
nietzscheano. Essa interpretação de Penzo propõe um novo modo de “pensar”, no qual o
problema de Deus não é extrínseco ao do ser (1998: 18). Ele observa que em A gaia ciência
(1882) Nietzsche lamenta-se por ter perdido a fé na metafísica, onde se funda a ciência. Porém,
confessa não ter uma certeza inabalável da perda definitiva do fundamento divino (1998: 121).
Penzo observa que o pensar pós-metafísico proposto por Nietzsche é um pensar trágico
(1998: 20). O pensamento trágico deve mostrar as conclusões errôneas da ciência e os maus
hábitos da razão.
O fenômeno da criação está, portanto, para além de uma grande maturidade da razão
refletida. Corman observa que Nietzsche, um logicista e ao mesmo tempo um poeta visionário,
vê a criação como um retorno às origens, às fontes, como um mergulho nas forças vitais
primeiras, um retorno à inocência da infância (1982: 60). Ele observa que a criação obedece às
forças inconscientes, que podem se encontrar em oposição com o que o consciente pôs em
marcha.
Nietzsche destaca que não é com sua inteligência que o filósofo elabora suas idéias. Elas
nascem, sobretudo, das aventuras perigosas que ele enfrenta e, notadamente, das passagens
tormentosas da saúde à doença, que o fazem sentir a vida com uma intensidade particular.
(...) o verdadeiro filósofo vive antifilosoficamente, contrariamente à 
sabedoria e antes de mais nada vive imprudentemente e sente o peso e o 
dever de numerosas tentativas e tentações da vida ­ arrisca­se 
continuamente, joga o grande jogo. 
NIETZSCHE, 1886: 135 
 
Um ser naturalmente mórbido não pode sarar; para um ser naturalmente são, ao contrário,
a doença pode ser um estimulante energético, que excita o instinto de vida.
Corman observa que Nietzsche tece dura críticas aos filósofos dogmáticos que fecham-se
em seus gabinetes e se comportam como marinheiros que, por medo do mau tempo,
permanecem no cais (1982: 74).
O imperioso movimento da vida requer coragem; para correr riscos, para lançar-se ao
mar, para desafiar o senhor dos ventos. A ventura da exploração e conquista de novos litorais só
é possível a partir das incertezas da navegação. Há muito por descobrir, entretanto não existem
cartas náuticas.
Nosso barco sofre a tormenta! Serremos os dentes! Vigilantes! Firmes no 
leme! 
Naveguemos em linha reta acima da moral. 
NIETZSCHE, 1886: 40 

Viver imprudentemente, jogar o grande jogo requer superação de imutáveis leis, da moral
que acorrenta o homem a um universo governado pela fixidez dos valores. Universo regido por
uma moral que estabelece, de antemão, o caminho a ser percorrido, as ações a serem

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FORGHIERI, M. (2007) Nietzsche, arte e conhecimento. In, V. Trindade, N. Trindade, 
A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  
 
empreendidas, os desejos a serem negados; as imensas culpas a serem amargadas em casos de
desobediência às normas.
A coragem pode ser entendida como o meio através do qual a existência alcança sua
maior fruição devida. A capacidade de ultrapassar o que a moral instituiu como deveres
fundamentais é força capaz de dizer eu quero.
Há no homem uma força imensa, que aspira ser utilizada. Essa força, afirma Corman,
aspira à criação (1982: 94).
A criação é, ainda, superação de si, recriação do próprio espírito, nascimento de uma
nova vontade, morte de incontáveis certezas. Como no jogo de forças estabelecido entre saúde e
doença, aqui também a libertação do espírito atravessa sua servidão.
É de esperar que um espírito, no qual o tipo de “espírito livre” deve um dia 
tornar­se maduro e saboroso até a perfeição, tenha conhecido a sua 
aventura decisiva em um grande lance de dados, e anteriormente tenha 
sido um espírito mais servo que qualquer outro, parecendo para sempre 
acorrentado ao seu canto, ao seu pilar.  
NIETZSCHE, 1878: 9 
 
A intensificação da vida é fruto de contínuo embate. A conquista de uma maior fruição de
vida perspassa contínuos estrangulamentos de energia. A alpestre liberdade do espírito atravessa
profundezas de calabouços.
Qual a prisão mais forte? Quais os laços quase impossíveis de quebrar? 
Entre os homens de uma espécie rara e delicada, são os deveres. 
NIETZSCHE, 1878: 10 
 
Entre os deveres que ameaçam vôos mais altos, incluem-se aqueles que impelem o
homem a crer na unidade e previsibilidade do mundo e de si mesmo; na vida como obra
acabada, na identidade como imagem nítida em espelho d’água.
O eu, a infinita distância que separa todo pretenso conhecer-se de sua raiz na vivência, no
inusitado movimento que a tudo consome e renova; e altera uma vez mais. O eu, a bruma sobre
o lago, a névoa daquilo que no fundo de nós não podemos ensinar (NIETZSCHE, 1886: 172).
A cristalização do tempo, toda a fixidez necessária ao estabelecimento dos conceitos é
questionada por Nietzsche, ao observar que um filósofo não deve permitir conceitos, opiniões,
coisas passadas e livros para dar os passos entre ele e as coisas (KAUFMANN, 1974:105).
A racionalidade como instrumento técnico, como via lógica através da qual livros são
escritos, conceitos são estabelecidos, é criticada como única passagem para a compreensão da
existência. A própria linguagem, se apreendida ao pé da letra pode oferecer armadilhas à
compreensão.
Nietzsche está convencido de que a linguagem nos engana quando 
tomamos a palavra ao pé da letra, isto é , quando permanecemos nela e 
deixamos de perceber, por meio dela, a indicação  a processos que não são 
absorvidos nela. 
MÜLLER­LAUTER, 1997: 76 
 
Os escritos de Nietzsche dão origem a diversas interpretações. Alguns autores consideram
a questão do ateísmo particularmente importante na obra nietzscheana. Kaufmann, porém,
observa que Nietzsche declara-se devoto de Dioniso. Poderíamos chamá-lo de ateu? (1974:
102). Kaufmann acrescenta que rótulos como “ateísmo” e “agnosticismo” são inadequações.

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FORGHIERI, M. (2007) Nietzsche, arte e conhecimento. In, V. Trindade, N. Trindade, 
A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

Dioniso é um forte vento que, ao soprar intensamente e em diversas direções, concebe


infinitas mudanças no mundo e em si mesmo; uma inocente e renovada fúria que cria e faz
perecer.
Dioniso é a resposta para a Grande Nostalgia do homem: é ele que nos faz 
aparecer e desaparecer todo o existente; é ele que rege toda a mudança, 
que rege o decurso das coisas no tempo. 
FINK, 1983: 117 
 
Através de Dioniso pode-se vislumbrar um palco de criação, cujo fundamento é
incessante mutação. A mutante força dionisíaca aproxima o homem de seus aspectos divinos;
faz compreender que todo imperecível é apenas uma imagem poética (NIETZSCHE, 1885 :
100).
Uma tarefa dionisíaca tem justamente como indisputáveis pressupostos a 
dureza do martelo e o prazer da destruição.                     
NIETZSCHE, 1888a: 140 
 
A anunciação da morte de Deus, requer uma reavaliação, como sugere Kaufmann (1974:
101). Para além da uma aparente negação de Deus, anuncia-se sua face oculta.
O que nos diferencia não é que tenhamos descoberto que não há Deus ­ na 
história, na natureza ou por trás da natureza ­ e sim que o que tem sido 
reverenciado como Deus, seja semelhante a Deus. 
NIETZSCHE, 1888c: 85 
 
A outra face de Deus - que pode se encontrar representada na alegoria de Dioniso - faz
com que se creia, também, em uma luz vacilante.
O caráter dionisíaco da criação exige labor estranho e interessante: trazer um pouco de
sombra à luz, escurecer levemente o horizonte para que a excessiva claridade não ofusque os
olhos a ponto de se perder a delicada variedade de detalhes. A sombra, contrapondo-se à luz
diviniza-a, tornando-a mais forte pela oposição.
O fenômeno da criação só pode ser compreendido como incessante luta, energia que
emerge a partir da violência das águas que se precipitam em abismos. A imagem de uma usina.
Cume e abismo ­ resolveram­se numa única coisa! 
NIETZSCHE, 1885: 61 
 
Compreender a energia dos movimentos criadores requer envolvimento no incessante
fluxo de transformações. Misturar-se ao tecido do mundo, às irregularidades e arestas dos
fenômenos em permanente mudança requer coragem. A coragem que mata, ainda, a morte, por
que diz: “Era isso a vida? Pois muito bem! Outra vez!” (NIETZSCHE, 1885: 165)
Penzo (1998: 31) compreende que como nas tragédias, a morte marca o fim de uma
dimensão conhecida, permitindo o início de uma outra, sublime e fluida.
Kaufmann observa que Nietzsche, ao invés de racionalizar as avaliações correntes que
lhe parecem como prévias “criações de valores que se tornaram dominantes e têm sido
chamadas de verdades”, oferece uma crítica e assim prepara o campo para uma nova “criação
de valores” no futuro (1974: 109). Exercícios de uma tal natureza são capazes de estabelecer
espaços vazios, livres, em meio a um universo ocupado por dogmas.
Entretanto o próprio Kaufmann afirma que Nietzsche não apresenta novos valores (1974:
110), e a revalorização significa guerra contra as valorizações aceitas e não a criação de novas
valorizações. Cabe observar que, talvez, não existam novos valores pois, uma vez instituídos,

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FORGHIERI, M. (2007) Nietzsche, arte e conhecimento. In, V. Trindade, N. Trindade, 
A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  
 
descritos e caracterizados como tal, tornam-se passado. Porém há permanente necessidade do
processo de recriação de valores, do intenso embate que transforma, conferindo atualidade
àquilo que, como o homem, deve ser superado.
Não mais querer e não mais determinar valores e não mais criar: ah, 
sempre longe de mim fique esse cansaço! 
NIETZSCHE, 1885: 101. 
 
A capacidade de criação requer apropriação de múltiplas forças, de vontades de poder.
Aqui, como anteriormente, é necessário libertar-se do ressentimento inoculado pela tradição
metafísica: o desprezo pela vida (GIACOIA, 2000: 59).
Busca-se divinização da vida a partir de um fundo dionisíaco, observando que a própria
existência parece suficientemente sagrada para justificar sua dimensão trágica.
O homem trágico diz “sim” em face até do sofrimento mais duro: é 
bastante forte, bastante abundante, bastante divinizador para tanto (...) 
NIETZSCHE, 1889: 419 
 
Força que engenha transformação para além do sofrimento é vontade de poder e, como
tal, só pode ser compreendida como complexa multiplicidade.
Vontades de poder, para além de elementos vivos no caótico tecido do mundo, são
capazes de fender rochas. Como pluralidades complexas estabelecem imantados campos de
forças.
Sim, qualquer coisa invulnerável e que não pode tumular­se há em mim, 
qualquer coisa que fende rochas: chama­se a minha vontade. 
NIETZSCHE, 1885: 125 
 
Eu quero – assim manifesta-se a vontade, com ousadia capaz de ultrapassar a palidez das
geleiras, os perigos da escalada, a embriaguês do ar rarefeito nas alturas; intempéries de uma
natureza que atravessa a alma.
Também a Nietzsche o que importa é não apenas “interpretar” o mundo, mas
transformá-lo (MÜLLER-LAUTER, 1997: 135). Transpor os limites impostos por inóspitos
continentes, atravessá-los.
Como os grandes navegadores, exploradores, aventureiros, Nietzsche preparou-se para
passar por mau. Com original elegância interpretou as reações furiosas dos pensadores
fundamentalistas aos seus escritos. Outrora e ainda hoje há pensadores que sentem-se aviltados
pelas destemidas expedições nietzscheanas; ressentidos, choram por aqueles que resolveram
viver no inexplorado e não mais regressaram a um solo seguro. Outros, apenas sorriem e negam
qualquer ressentimento por não terem tido, eles mesmos, a intrepidez necessária para habitar
monstruosas altitudes.
Subir quer a vida, e, subindo, superar a si mesma. 
                           NIETZSCHE, 1885: 115 

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FORGHIERI, M. (2007) Nietzsche, arte e conhecimento. In, V. Trindade, N. Trindade, 
A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora.  

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