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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDI9ÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanga a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenca católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca
no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga


depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
ANO IV

40
ABRÍ

1 9 6
ÍNDICE
Pág.

I. CIENCIA E RELIGIAO

1) "Que dizer das tentativas recentes, amplamente divulga


das pela imprensa, de provocar a fecundacáo artificial humana em
laboratorio ?
Haverá nisso oposigdo aos ditatnes da fé crista?" 135

2) "Que pensar do livro 'Porque nao sou. crist&o' do escritor


inglés Bertrand Russell, que em 1950 obteve o premio Nobel ?" ... UO

n. DOGMÁTICA

S) "Que dizer dos textos da epístola aos Hebreus (6,4-6 ;


10, 26-31 ; 12, 16s) que parecem denegar todo perdáo a certos
pecadores ?
Nao haverá realmente culpas t&o graves que Deus nao as
queira mais perdoar ?" H9

in. SAGRADA ESCRITURA

i) "Como se hdo de entender as estranhas palavras de Jesús


em Mt 10, 8b-87: 'Nao julgueis que vim trazer a paz á térra...
O homem terá por inimigos os próprios membros de sua familia.
Quem ama seu pai ou sua mñe mais do que a Mim, nao é dipno
de Mim' ?" 15$

TV. MORAL

5) "Que é prdpriamonte a consciéneia f


Será que diante da mentalidade moderna ela ainda pode signi
ficar alguma coisa ? Nao se deveria adaptar o clássico e rígido
conceito de consciéneia as exigencias da vida contemporánea ?" 160

6) "Poderia enumerar os diversos tipos de consciéneia que -na


prática ocorrem, assim como os deveres da pessoa frente aos im
perativos da consciéneia ?" 169

CORRESPONDENCIA MIÚDA 179

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»

Ano IV — N? 40 — Abril de 1961

I. CIENCIA E RELIGIÁO

LEONARDO (Sao Paulo) :

1) «Que dizer das tentativas recentes, amphuneate di


vulgadas pela impreasa, de provocar a fecundacao artificial
humana em laboratorio ?
Haverá nisso oposicáo aos difames da fé crista ?»

Em resposta, apresentaremos, antes do mais, o teor exato das


mencionadas experiencias; a seguir, procuraremos avaliá-las do
ponto de vista cristao.

1. As experiencias recentes

Em Janeiro de 1981 noticiavam os jomáis o feito sur-


preendente de dentistas italianos de Bolonha, o Prof. Daniele
Petrucci, assistido pelo Dr. Raffaele Bernabeb e a Dra. de
Paulo: após quatro anos de estudos especializados, haviam
extraído o óvulo feminino e o esperma masculino do corpo
humano, provocando, a seguir, a fecundac.áo em tubo de en-
saio. Pudéram mesmo observar o desenvolvimento do embriáo
assim formado, controla ndo-o com o microscopio e fotogra-
fando em cores, em preto e ein branco, as diversas fases
da experiencia durante 29 dias consecutivos. Ao termo déste
período, o novo ser já mostrava cabec.a, pernas, bracos, etc.
bem definidos ; ao que parece, porém, comecava a apresen-
tar certas deformagóes anatómicas. Diante disto, os dentis
tas italianos se deram por satisfeitos e resolveram encerrar
o processo, destruindo o feto. — Os telegramas da imprensa
acrescentavam que semelhante experiencia foi repetida qua-
renta vézes com éxito !

Tais empreendimentos ultrapassaram as táticas de fecundacao ar


tificial conhecidas nos últimos tempos, táticas que consistiam apenas
em transplantar para o organismo feminino o esperma masculino,
a fim de obter com a colaboracao mesma dos hormónios naturais
um novo ser humano.
A opiniáo pública internacional se impressionou com as experi
encias de Bolonha, divulgando naturalmente os mais diversos comen
tarios a respeito. De tudo quanto se seguiu, será interessante sali-

— 135 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961. qu. 1

entar que os observadores consideram nao sómente o alcance cientí


fico dos feitos, mas também as suas conseqüéncias moráis e reli
giosas. É a ésses diversos aspectos do tema que devemos agora vol-
tar nossa atencáo, a íim de avaliar o significado auténtico dos feitos.

Z. üm juizo sobre os fatos

Nao há dúvida, as experiencias realizadas em Bolonha


bem podem suscitar a admiracáo dos que acompanham o
progresso da ciencia ; tomam lugar entre as conquistas do
homem moderno.
Contudo enganar-se-ia quem só considerasse tal aspecto
dos fatos. Na verdade, nao há empreendimento humano que
nao se relacione direta ou indiretamente com o Fim Supremo
ou com Deus. Ora, consideradas á luz de Deus (esta conside-
ragáo é de todas a mais importante, porque é a que projeta
a luz decisiva sobre qualquer ato da criatura), as menciona
das experiencias merecem reprovagáo; sao feitos que a cons-
ciéncia moral condena.
E porque condena ?
Porque, na verdade, longe detserem engrandecimento dos
homens, constituem um atentado contra a dignidade humana.
E isto, por dois motivos :

1) Os dentistas de Bolonha trataram os elementos ge


nerativos humanos como elementos meramente materiais, que,
postos em presenca um do outro, devem dar tal reagáo cha
mada «fecundagáo» e «produgáo de um embriáo». O processo
de fecundagáo humana é assim «despersonalizado», passando
á categoría dos fenómenos físicos e químicos, nos quais só
se levam em conta quantidades e qualidades dos corpos. Ora
na verdade a fecundagáo é no homem funcáo nao apenas de
quantidades e qualidades corpóreas, mas de um mundo inte
rior, psíquico, espiritual; a natureza fez que no ser humano
a fusáo de esperma e óvulo seja normalmente a expressáo
derradeira da fusáo de duas personalidades que comegam a
se unir no plano psíquico e que sao regidas por conhecimento
e amor. Em outros termos : a fecundagáo é a consumagáo
normal do amor consciente e recíproco de dois seres humanos
que se consociam para se tornar primeiramente esposo e esposa
e, conseqüentemente, pai e máe. A paternidade e a materni- ■„
dade jamáis podem ser separadas da realidade psíquica e cons
ciente que, no ser humano, as deve anteceder. No animal irra-
cional, sim, justamente por nao haver vida espiritual, pode-se
tratar a fecundagáo artificialmente qual mero processo físico-

— 136 —
FECUNDACAO HUMANA EM LABORATORIO

■químico, em que nenhum trago de personalidade interfere;


cf. «F.R.» 4/1957, qu. 2.

É a consciéncia de que a materia nao é tudo no homem, mas


vem a ser expressáo do espirito ou da alma, que leva a Igreja a
"dedicar grande respeito ao corpo e ás leis que regem as íuncdes
déste. ConseqUentemente, a Moral crista reprova as experiencias que,
interferindo no processo natural de fecundagáo, constituem derroga-
cáo ás normas impostas pelo Criador (entre tais experiencias se de-
vem certamente assinalar as de Bolonha).

A íim de ilustrar a proposicao de que o corpo humano nao pode


ser tratado como os demais corpos, sejam aqui mencionados os dois
seguintes tópicos :
a) O proíissional que prové á saúde dos corpos de animáis ir-
racionais, é chamado «veterinario», ficando o vocábulo «médico» re
servado para quem cuida do corpo humano. Estranha diíerenca de
nomenclatura! O médico e o veterinario parecem tratar apenas de
materia! A diferenca de termos nao se explicarla se nao estivesse
intimamente arraigada nos povos a consciéncia de que as fungSes
vitáis no homem se processam por eleito de urna realidade bem di
ferente da que rege as funches vitáis análogas do animal irracional.
b) Os psicólogos, com razáo, costumam relacionar o tipo físico
ou somático com o psíquico da respectiva personalidade; assim urna
estatura leptossomática (= longilínea, esguia) indicarla Índole de áni
mo diversa da de urna estatura pícnica (=largilínea). Verifica-se ou-
trossim que o desenvolvimento de certos traeos do temperamento de
urna pessoa pode acarretar modificac5es no respectivo físico. Táo
íntima correlagao entre corpo e alma evidencia, do seu modo, que
o corpo (materia) é o espélho da alma (espirito),' de tal sorte que
se torna contrario á natureza (e, por conseguinte, contrario á lei de
Deus) considerar alguma das fungñes do organismo ¡sólidamente ou
independentemente do elemento psíquico ou espiritual que a deve
sempre animar.
Eis o primeiro motivo que induz a consciéncia crista a desapro-
var as experiencias do Dr. Petrucci e de seus colaboradores.

2) O segundo motivo leva em conta nao tanto a digni-


dade de pai e máe como a do novo embriáo.
A sémelhanca da paternidade e da maternidade, a nova
vida cuja origem artificial os dentistas procuram obter, possui
valor transcendente ; nao é mero produto de corpos a reagir
entre si, mas é fungáo de urna alma espiritual (suposto, como
é plausível, que Deus consulta em infundir alma humana ao
embriáo produzido artificialmente). Disto se segué que a
consciéncia crista repudia qualquer processo que trate o feto
humano de acordó apenas com a sua configuragáo somática
íntegra ou defeituosa ; nao é a regularidade ou deformidade
dos tragos do organismo que justifica a conservagáo ou a
extingáo de um feto humano ; ainda que defeituoso, éste é
portador de urna alma colocada por Deus em tal corpo a fim
de que por ele volte ao seu Criador.

— 137 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961. qu. 1

A respeito dos individuos ditos «monstros», veja «P. R.» 34/


1960, qu. 1.
Verdade é que os médicos e moralistas nao podem dizer qual o
momento preciso em que a alma humana entra no respectivo em-
tariao : enquanto a teoria mais antiga admite um intervalo de 40 ou
80 dias entre a fecundado e a infusáo da alma, a sentenca dos mo
dernos (mais abalizada) admite seja a alma criada e iníundida no
momento da fecundacáo. Como quer que seja, a Moral crista rejeita
qualquer tipo de destruicáo de um feto humano, pois vem a ser aten
tado contra a vida humana iniciada e, conseqüentemente, um homici
dio. Cf. «P.R.» 3/1957, qu. 3.

Ora ñas experiencias de Bolonha o feto foi simplesmente


destruido após certo prazo pelo fato de comegar a apresentar
certas deformidades somáticas. Tal prooedimento merece a
reprovagáo da consciéncia crista, reprovacáo que arautos do
pensamento católico (pessoas e órgáos da imprensa) tém pro
nunciado (cf. «Osservatore Romano» de 14/1/61; «Osserva-
tore della Domenica» de 19/1/61). De resto, o Prof. Petrucci
mesmo, dois dias após a divulgacáo oficial das suas experien
cias, declaróu á imprensa que nao era materialista nem posi
tivista, mas católico praticante, pronto a suspender os seus
trabalhos, caso a Igreja os condenasse.

Seja permitido frisar aínda que os empreendimentos do D.r. Pe


trucci de_ modo nénhum visam produzlr a vida humana a partir da
materia inanimada ou do nada, mas apenas lidam com elementos
vitáis fornecidos pelo próprio corpo humano (nao atingem portanto
a questáo da origem da vida como tal). Nao tém, pois, cabimento as
conclusóes daí deduzidas por escritores materialistas, segundo os
quais o homem se vai tornando onipotente, e a idéia de Deus inútil.
A guisa de complemento, parece oportuno dizer aínda urna pa-
lavra sobre

3. Progresso científico e consciéncia moral

Já em «P. R.» 5/1958, qu. 10 procuramos elucidar a posigáo ía-


vorável que o Cristianismo assumiu frente á ciencia e á cultura da \
humanidadc. Seguem-se algumas observares complementares a tal \
propósito.

1. Após quanto acaba de ser exposto, talvez aflore k mente do


leitor a impressáo de que o cristao, por imposicáo de suas convic-
c6es religiosas, tem que ser um individuo retrógrado em relacSo á
ciencia, se nao mesmo um adversario desta. Haverá também quem
pergunte: que tém que ver a Religiáo e a Moral com os empreen
dimentos da ciencia ? Esta parece pertencer a um setor autónomo.
Em resposta, deve-se afirmar que o cristáo de modo nenhum-
é intenso ao desenvolvimento da ciencia ; contudo ele sabe clara
mente que a ciencia por si só nao o sacia ; nao satisfaz plenamente á
sede que o homem tem de verdade e de felicidade. Em outros ter
mos: a ciencia torna o homem um bom médico, um bom engenheiro,
um bom matemático; ela nao o torna, porém, um bom homem; dá-

— 138 —
FECUNDACAO HUMANA EM LABORATORIO

lhe determinadas perfeic6es, nao, porém, a perfeicao tdda de que é


capaz. Em conseqüéncia, o saber humano terá sempre que ser su
bordinado a ura ideal ulterior: a posse do Bem Infinito, ou seja,
de Deus e da vida eterna. Isto quer dizer que, por cima dos interésses
da ciencia, fica aínda a Lei de Deus, Lei que é expressa no Intimo
de cada individuo pela conscléncla moral. Qualquer atividade ou pes
quisa, portanto, há de ser subordinada aos ditames da moralidade;
a ciencia que pretenda ser independente, deforma o homem, pois
desenvolve apenas um aspecto de sua personalidade.
Para ilustrar esta afirmacáo, vai aqui citado o testemunho do
famoso Dr. Henri Bon:
«Querer cultivar a Medicina sem se preocupar com a Metafí
sica é táo impossivel como cultivar a Química sem se preocupar
com a Física».
Toda comparagáo é válida até certo ponto apenas, após o qual
ela comeca a mancar. É o que se dá também no caso ácima: ao
passo que a Física e a Química estáo inseparávelmente unidas no
mesmo plano, a Medicina e a Metafísica ou a Religiáo se conca-
tenam entre si em escala ascendente. A Medicina é subordinada
á Religiáo, pois aquela considera o homem primariamente como ser
corpóreo e temporal, enquanto a Religiáo o visa no seu aspecto mais
nobre, que é o de ser dotado de alma espiritual e destino eterno.
Disto nao se segué — é claro — que a Religiáo deva ditar normas
positivas para a Medicina, mas conclui-se que a Religiáo vem a
ser criterio negativo para a Medicina, de sorte que nada do que é
condenado pela consci&neia religiosa pode ser recomendado pela
consciéncia do dentista ou do médico.
Subordinando a ciencia k moralidade, o homem nao deve recear
detrimento para a cultura, Ao contrario, a historia comprova que esta
sempre foi incentivada pela consciéncia religiosa da humanidade;
cf. «P. R.» 19/1959, qu. 1.
2. Por último, será conveniente notar que a Igreja, ao repro-
var a fecundacáo humana artificial, fala nao própriamente em nome
da íé ou da revelacáo sobrenatural, mas simplesmente em nome da
natureza humana ou em nome de valares que sao comuns a todos
os homens. É o que o Pe. Benolt Lavaud expóe multo bem no
texto abaixo :

«De todas as doutrinas relativas k moral sexual vindas á luz


desde que há homens e estes refletem sobre a sua natureza e leis,
sobre os atos humanos e a sua regra, a dou trina ensinada pela
Igreja Católica é, mesmo para um observador sem fé, mas de boa
fé, a mais firme , a mais coerente, a mais constante...
Embora naja quem assim nao pense, ás vézes mesmo até en
tre os seus filhos, a Igreja nada exige que a lei natural já de si
nao exija, nada proibe que a lei natural aprove ou permita, nao
condena como grave desordem urna desordem sem gravidade, assim
considerada pela lei natural...
A Igreja nao pretende estender, mas simplesmente defender con
tra os erros que ela sabe serem nao só possiveis, mas dificeis de
evitar, o direito natural integral...
Tdda doutrina de acomodacao do direito ao fato, da moral aos
costumes, quer seja representada por reformadores Irreligiosos ou
aceita, nos seus principios ou apenas ñas suas conseqüéncias, por
pessoas isoladas ou sociedades, mesmo cristas, provoca necessaria-
mente a reprovagáo da Igreja, cuja vigilancia se inquieta tanto mais

_ 139 ^
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 2

quanto as doutrinas opostas á sua sao mais especiosas e sedutoras,


. mais perigosas para as almas a seu cargo. E ela senté sobre si ó
peso de toda a humanidade, pois o Evangelho tem que ser. pregado
a toda criatura e todas as almas carecem de ser resgatadas por
Jesús Cristos («Higiene sexual e moral sexual» na coletánea de ar-
t'gos intitulada «O Problema sexual», da autoria de Tristáo de Atal-
de, Lavaud, Biot, etc. Porto 1960, pág. 113-117).
No Brasil, o Prof. Otávio Rodrigues Lima, por motivos de cons-
ciéncia ética e de cultura médica, julgou condenável a prosseeucáo
das experiencias de Bolonha, declarando entre outras coisas: «É
sabido que na gravidez extra-uterina a má formacáo fetal se verifica
na elevada proporcao de 70% dos casos» (cf. «Correio da Manhá»
do Rio de Janeiro, aos 19/1/61).

PAULISTANO (Sao Paulo) :

2) «Que pensar do livro Torque nao sou cristao' do


escritor ingles Bertrand Russell, que em 1950 obteve o premio
Nobel ?»

O livro ácima referido apareceu pela primeira vez em inglés


(«Why I am not a Christian» by George Alien and Unwin Ltd. Lon-
don) no ano de 1951. Foi traduzido para o portugués (alias, de ma-
neira assaz defeituosa) e publicado em Sao Paulo em 1960, conse-
guindo logo a classificaoao de «best-seller»; conforme a pesquisa
inst'tuida pela Cámara Brasileira do Livro entre 23 e 30 de se
tenio de 1960 era a obra estrangeira mais vendida após as «Me-
mó-ias» do Marechal Montgomery (cf. «O Estado de Sao Paulo» de
2 de outubro de 1960).
Os d'zeres de capa do livxo consideram-no como «a mais in
citante e a mais atraente apresentacao do modo de pensar de um
ateu desde os d'.as de Hume (t 1776) e Voltaire (t 1778)».
Na verdade, nao fóra a fama do autor, nao fóra também o titulo
sugestivo da obra, é de crer que ela nao teria tido a projecao que
teve, nem merecería especial consideraciio da parte daqueles que
sinceramente procuram a verdade. Como quer que seja, já que se
trata de assunto que muito chamou a atengáo do público, nao nos
furtamos a abordá-lo ñas páginas seguintes.
Comecaremos por propor breve esbóco biográfico do autor ; a
seguir, apreciaremos a mencionada obra.

1. Traeos biográficos de Bertrand Bussell

Bertrand Russell nasceu aos 18 de maio de 1872 em Trelleck


(Inglaterra), como segundo fllho do Visconde Amberley. Estudou
pr-menamente no «Trinity College» de Cambridge ; adquifiu suces-
sivamente os graus académicos de «Feiiow» U905) e «Lecturer»
(19i0k Durante a guerra mundial de 1914-1918 desenvolyeu campanha,
paofista, em conseqüéncia da qual foi afastado do magisterio (1916).
Após 1918, viajou por tdda a Europa, passando algum tempo na
Russia Soviética em 1920. Estéve também um ano inteiro na China,
onde pronunciou urna serie de conferencias publicadas na coletánea
«The Analysis of the Mind» (1921). A partir de 1927, exerceu as

— 140.—
RUSSELL. «PORQUE NAO SOU CRISTAO»

íungóes de Diretor de urna escola particular, dedicando-se sempre


as pesquisas e á producto literaria. Em 1946, após a queda dos
regiones nazista e fascista, Russell publicava o estudo «A History
of Western Philosophy», que é tido como obra prima do autor. Em
1949, veio a receber a condecorado da «Ordem do Mérito», e em
1950 o premio Nobel. Multo dado as questdes de filosofía, sociología
e política, Bertrand Russell é por vézes considerado o representante
mais característico do pensamento inglés contemporáneo.

A mentalidade de Russell se inspira radicalmente na


matemática e ñas ciencias exatas, que para ele constituem a
fonte de todo o progresso humano. Depois de se ter dedicado
intensamente aos estudos de lógica matemática, o pensador,
a partir da guerra de 1914-1918, voltou sua atengáo para os
problemas particulares da filosofía ; ueste setor, ele continua
o empirismo inglés sob a influencia da G. Berkeley e D. Hume,
tendendo a conceber a realidade como algo que transcende
as categorías de materia e espirito ; propugna assim urna
especie de «monismo neutro», semelhante ao dos filósofos nor
te-americanos J. Dewey e W. James.
Urna das últimas produgóes de B. Russell é precisamente

2. O Iívro «Porque nao sou cristáo»

Ao deírontar-se com tal titulo, o leitor talvez seja levado a crer


que designa urna súmula de argumentos sistemáticamente cataloga
dos contra o Cristianismo. Na verdade, tal nao se dá. O livro é, an
tes, urna coletánea de artigos sobre Religiáo e assuntos correlatos,
dos quais o primeiro tem diretamente o titulo «Porque nao sou cris
táo». As afirmacQes désses escritos sao assaz superficiais e tenden
ciosas. A maioria délas já foi, por outras vias, considerada e es
clarecida em números anteriores de «P. R.». Sendo assim, limitar-
-nos-emos na presente resposta a focalizar um ou outro aspectot mais
interessante do livro de Russell.

1. O livre arbitrio

Eis as observagóes do autor :


«Pense-se o que se quiser a respeito da questáo do livre-ar-
bitrio como questáo de metafísica fundamental, o que é bastante
claro é que ninguém acredita nela na prática... O apostólo do li-
vre-arbitrlb afirma que o homem pode, pela fórga de vontade, evi
tar embriagar-se, mas nao afirma que, quando bébedo, possa dizer
«British Constitution» táo claramente como se estivesse sobrio» (edi-
cáo brasileira já referida, pág. 30).

Do fato de que o homem nao pode executar toda e qual-


quer agáo imagínável (como, por exemplo, falar táo lucida
mente em estado de embriaguez como em estado normal),

— 141 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 2

parece Russell querer deduzir que a criatura humana nao


goza de livre arbitrio... — O argumento é de todo impro
cedente. Com efeito, a liberdade é urna das potencias da von
tade ; ora a vontade humana pertence a urna alma a qual,
por sua vez, está unida a um corpo, e unida táo intimamente
que ela nao se manifesta senáo mediante a colaboracáo do
corpo. Disto se segué que, quando o corpo humano goza de
saúde e funcionamento normal de seus órgáos, a vontade se
pode expandir com toda a liberdade...

Desde, porém, que o corpo esteja afetado de perturbagáo


e desequilibrio (como se verifica no bébado), ele nao fornece
a colaboracáo necessária para que a vontade humana se afir
me ; conseqüentemente, o embriagado nao pode articular pa-
lavras táo claramente quanto o homem normal; ele gagueja
porque sua vida sensitiva e seus ñervos estáo sob a influencia
perturbadora do álcool. Contudo, mesmo nesse estado de trans-
tórno do organismo, deve-se dizer que a vontade conserva seu
livre arbitrio em estado latente.

A titulo de ilustradlo, segue-se ainda urna observagáo. O argu


mente de Russell se assemelha ao de quem dissesse: «O homem nao
é hvre porque nao pode respirar com seu aparelho digestivo». Nesta
última proposigáo é muito mais flagrante a improcedencia: todas
as íuncSes corpóreas, pelo lato mesmo de serem corpóreas, só po-
dem ser movidas dentro das limitacóes impostas pelos respectivos
órgáos ; se estes foram criados para determinada funcao, é claro
que nao podem ser utilizados para outra totalmente diversa (como
o azoto nao pode exercer as íüncoes do oxigénio); nem podem reali
zar devidamunte sua funcao específica se estao afetados de avaria.
De modo análogo, deve-se dizer: livre arbitrio humano nao signi
fica capacidade de executar toda e qualquer agáo... mas é simples-
mente a capacidade de mover o sujeito ás atividades que estejam
contidas dentro do setor próprio de cada órgáo do corpo humano.
Assim a livre vontade humana levará um individuo equilibrado a
pronunciar palavras bem articuladas ou a nada pronunciar: contudo
nao poderá suprir certos defeitos nos órgáos da voz ou no sistema
nervoso do respectivo sujeito.
De resto, a existencia do livre arbitrio se depreende do fato de
que a vontade humana é espontáneamente ávida do Bem Infinito,
mas nunca o encontra face a face aqui na térra ; cada um dos bens
que lhe oconrem, é limitado ou apresentado limitadamente, nao for-
gando portanto a adesáo da vontade; cf. «P. R.» 5/1958, qu. 6.

Negada a liberdade de arbitrio, cai toda a ordem moral


na filosofía de Russell; já nao há responsabilidade nem culpar
mas apenas doencas e perturbares psíquicas ; por conse-
guinte, nao se devem infligir sangóes, mas "sómente aplicar
processos psicoterapéuticos. Á pág. 31 chega Russell a preco-

— 142 —
RUSSELL, «PORQUE NAO SOU CRISTAO»

nizar, seja o ser humano delinqüente tratado simplesmente


como um automóvel avariado :

«Homem algum trata um a-itomóvel táo estúpidamente como


trata um qutro ser humano. Quando o automóvel nao quer funcio
nar, nao atribuí ao pecado a sua aborrecida conduta. Nao diz:
'Vocé é um automóvel mau, e nao lhe darei mais gasolina enquanto
n3o funcionar'. Procurará descobrir qual a faJha e consertá-la. Urna
maneira análoga de tratar as criaturas humanas é. no entanto, con
siderada contraria ás verdades de nossa santa religiáo».

É, pois, desejo de Russell seja o homem tratado como


máquina. O filósofo inglés nao vé diferenca essencial entre
aquéle e esta. Tal tese caracteriza nítidamente o seu pen-
samento.
«A nossa santa religiáo» de que fala Russell, ou seja, a
Moral crista, reconhece, sem hesitagáo, haver estados pato
lógicos que atenuam e por vézes cancelam a culpa dos réus.
Contudo ela reconhece a responsabilidade do homem sadio e
procura excitar em todo individuo o senso dessa responsabili
dade ; ela assim estimula o delinqüente a ser forte e corajoso
para se corrigir, desperta néle a consciéncia de que pode
melhorar de vida, em vez de o relegar sem mais para a cate
goría dos doentes, solapando-lhe o ánimo e o idealismo.

2. Deus ou o acaso na origem do mundo ?

A. Á pág. 24 da edicáo brasileira, Russsll recorre ao


acaso para explicar a origem do universo, rejeitando conscien
temente a existencia de Deus. E isto, por dois motivos :

se Deus existisse, teria feito um mundo melhor: «... nao me


é possível deixar de pensar que a Onipoténcia, agindo durante teda
a eternidade, poderia ter produzido algo melhor» (pág. 24);
a ciencia indica que o mundo presente acabará ; ora isto nao
se concilla com o conceito de Deus, julga Russell: «Sabemos que o
universo... irá arrastar-se através de fases ainda mais deploráveis,
até chegar a urna condigáo de morte universal. Se isto puder ser
encarado como urna prova do designio divino, nao me resta senao
dizer que tal designio nao tem para mim a menor seducao. Nao
vejo, pois, razáo para acreditar em qualquer especie de Deus, por
mais vago e por mais atenuado que seja» (pág. 25).

Diante dessas declaragóes seja lícito observar :

a) O acaso nada explica, pois nao é urna causa, mas o


encontró, para nos inexplicado, de duas causas já existentes
e postas em agáo. A quem admite o acaso, ainda resta a tarefa

— 143 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 2

de elucidar como tiveram origem os seres que «por acaso»


se encontraram, dando tais e tais efeitos (no caso,... produ-
zindo o universo). Em nossos dias, alias, nao há filósofo de
valor que recorra ao acaso, pois esta «solugáo» seria simples-
mente irrisoria. Cf. «P. R.» 6/1957, qu. 1.

b) A propósito do postulado de que o mundo deveria


ser mais perfeito, caso Deus existisse, deve-se notar:
Deus infinitamente perfeito só podia criar um mundo de
p^rfeicjío finita, pois dois seres infinitamente perfeitos cons-
tituem urna contradigáo ; o infinito, por definic.áo, exclui outro
infinito na mesma linha. Disto se segué que, fora de Deus,
nada é táo bom que nao possa ser ainda melhor (cf. S. Tomaz,
Suma Teológica I 25,6; De potentia qu. 3, a. 16); os seres fini
tos podem sempre crescer em perfeicáo sem que jamáis atin-
jam o infinito.

Leibnitz (t 1716) julgava nao ser condizente com a sabedoria


e a bondade de Deus escolher algo de menos bom, rejeitando o me
lhor. Donde concluía que Deus deve necessariamente ter criado o
melhor mundo possível. — Éste argumento rebaixa Deus á catego
ría das criaturas finitas. Para nos, sim, que, dada a nossa imperfei-
gáo congénita, devemos tender a nos aperfeicoar continuamente, se
ria insensato escolher o bem menor com desprézo do bem maior ;
todavia em Deus isto nao se dá ; possui o máximo de perfeicáo, de
bondade e de felicidade ; nenhuma criatura é capaz de aumentar a
perfeigáo ou a bem-aventuranga de Deus. Por conseguinte, resta
ao Senhor a liberdade de produzir criaturas em graus de períeicáo
livremente determinados pela sua sabedoria (cf. S. Tomaz, S. Teol. I
25, 5). Produzindo urna criatura menos dotada de perfeicñes do que
outra, Deus nao lhe subtrai coisa alguma do que )he é devido, pois
é Deus quem fixa o ideal e a regra de suas criaturas, ao tirá-las do
nada. O Criador nao deve coisa alguma a quem quer que seja; por
isto a produgáo de qualquer criatura representa sempre um ato de
liberalidade totalmente gratuita, da qual nao nos é licito pedir cori
tas ao Onipotente. Apenas se requer que Deus nao seja a causa de
desajustes ocorrentes na criacáo, como de fato nao é (cf. «P. R.»
36/1960, qu. 2).
O que ainda interessa frisar, é que, mesmo limitado em suas
perfeigoes, o mundo presente nao deixa de ser muito bom. Sim ;
o cristao, embora nao professe otimismo absoluto em relacáo ao
mundo (o que seria absurdo, pelo motivo indicado) professa um oti
mismo relativo. Com efeito, Deus distribuiu as perfeicfles de cada
criatura de modo tal que o conjunto do universo é, e sera, urna afir-
magáo esplendorosa do bem ; Ele fez que as fainas inerentes á' li-
mitacáo das suas criaturas desempenhem atualmente a. íungáo de
«silencios» ou «vazios» no desenvolvimento de urna bela melodia ;-
sem tais lacunas ou «silencios» a música nao seria música. Assim
nem mesmo as falhas que as criaturas livremente cometem, deixam
de cooperar para a afirmagáo do bem e da gloria de Deus. — Sao
Tomaz nota que, se se modificasse a esséncia ou a estrutura de
algum dos elementos do universo, estaría destruida a proporcáo que

— 144 —
RUSSELL, «PORQUE NAO SOU CRISTAO»

atualmente os concatena entre si, á semelhanca do que se daría num


violino se se entesasse demais alguma das respectivas cordas (ex-
tinguir-se-ia entáo o belo som do instrumento); cf. S. Teol. I 25,
6 ad 3 ; I 47, 2 ad 1. Conseqüentemente, quem no fim dos tempos
puder abarcar . a. historia inteira do universo, com os pecados e as
virtudes que a caracterizam, verificará que, por multo deficiente
que agora pareca, ela constituirá um grandioso hiño que atualmente
se vai desenrolando, com seus tons altos e baixos, suas fases sono
ras e suas fases silenciosas, em louvor da Sabedoria do Criador.

B. Ainda a réspeito da existencia de Deus, escreve Rus


sell : «Sabéis, certamente, que a Igreja Católica estabeleceu
como dogma que a existencia de Deus pode ser provada sem
ajuda da razáo... Estabeleceu... que a existencia de Deus
pode ser provada sem ajuda da razao» (trad. bras., pág. 3).
Mal informado está Russell a réspeito da doutrina cató
lica que ele quer combater. Nao terá jamáis ouvido falar de
alguma.das múltiplas proposicóes em que os Sumos Pontífices
tém incutido que a existencia de Deus constituí urna verdade
de ordem natural, racional, e nao própriamente de fé ? Justa
mente as primeiras dessas afirmacóes foram ocasionadas pelo
fideísmo do século passado, orientado por Louis Bautain
(t 1867) e Augustin Bonnetty (t 1879), os quais asseveravam
que só conhecemos a existencia de Deus pela tradicáo dos
mais velhos e pela fé. Em oposicáo a tal doutrina declarava
a S. Congregagáo do índice em 1855 :

«A razao-pode com seguranca provar a existencia de Deus...


A fé é posterior á Revelagáo ; por isto, nao pode ser evocada para
provar a existencia de Deus» (cf. Denzinger, Enchiridion Symbo-
lorum 1650).

Por sua vez, o Concilio do Vaticano em 1870 assim se pronunciou:

«Deus, Principio e Fim de todos os seres, pode ser reconhecido


com certeza pela luz natural da razáo humana, a partir das coisas
criadas» (ib. 1785).

Poder-se-iam multiplicar semelhantes citagóes (cf. Denzin


ger, Enchiridion 1622. 1670. 1672. 1785. 1806. 2072s. 2145).
Estas, porém, já sao suficientes para sugerir que Russell pouca
ou nenhuma autoridade possui para impugnar a religiáo ca
tólica (ele deveras mal a conhece).
De resto, desejando refutar os famosos argumentos pelos
quais («sem ajuda da razáo», como diz Russell) a Igreja
prova a existencia de Deus, o escritor inglés considera a cha
mada «via da Causa Primeira», vía estritamente racional, e
comenta:

— 145 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 2

«Durante longo tempo, aceite! o argumento da Causa Primeira


até que certo dia, aos dezoito anos de idade, li a autobiografía de
John Stuart Mili, lá encontrando a seguinte sentenca: «Meu pai
ensinou-me que a pergunta 'Quem me fez?' nao pode ser respon
dida, já que sugere imediatamente a pergunta: 'Quem fez Deus?'»
Essa simples sentenga me mostrou, como ainda hoje pensó, a fa
lacia do argumento da Causa Primeira. Se tudo tem de ter urna
causa, entáo Deus deve ter urna causa. Se pode haver alguma coisa
sem urna causa, pode muito bem ser tanto o mundo como Deus,
de modo que nao pode haver validade alguma em tal argumento»
(ob. cit. pág. 3s).

Como se vé, para evitar a afirmacáo de que existe Deus,


Russell está disposto a retroceder sem fim na serie das causas
que expliquem éste mundo. — Ora o retrocesso sem termo
final é escapatoria ilógica j deve haver urna Causa Primeira
Absoluta, nao causada por outra, pois urna serie infinita de
causas se assemelharia a um canal sem fonte ; se, porém, nao
há fonte, também nao há intermediarios (ou canal) nem há
efeito. Para dispensar a locomotiva de um comboio ferrovia
rio, certamente nao basta aumentar o número de carros da
composigáo; análogamente, ninguém pretende que, prolon
gando indefinidamente urna serie de zeros, se chegue á uni-
dade, nem que um pincel de cabo prolongado possa pintar,
dispensando a máo do artista.
Russell está outrossim disposto a admitir que o mundo
nao tenha causa fora de si ou seja a sua própria causa. — Ora
também nisto há incoeréncia, pois um conjunto de seres con
tingentes e relativos (dos quais nenhum se explica por si)
certamente nao pode dar algo de absoluto que se explique por
si mesmo; semelhantemente, um conjunto de espelhos que
refletem urna imagem, supóe a existencia de um objeto que
nao seja espélho, mas seja o prototipo cuja imagem cada
espélho reflete.
Ainda a fim de evitar a conclusáo de que Deus existe,
Russell aceita igualmente a hipótese de que o mundo nao te
nha tido comégo. — Ora esta nova suposicáo nao desvirtúa
as nossas consideragóes anteriores ; ela apenas implicaría que
desde toda a eternidade a serie de causas que focalizamos,
exige urna Primeira Causa náo-causada ou absoluta. O tempo
é u'a medida ; nao é urna causa nem urna fonte de atividade ;
a duragáo do funcionamento de urna usina elétrica nao dis
pensa o dinamo nem a queda de agua.

3. A sorte postuma das almas

A consideragáo da seguinte passagem de Russell ainda


contribuí para evidenciar quáo superficiais sao as informagoes

— 146 —
RUSSELL» «PORQUE NAO SOU CRISTAO»

que éste autor possui a respeito do Catolicismo; atacando o


Cristianismo através de tais prismas, é claro que o filósofo
inglés se priva de toda autoridade no assunto.

Conforme o -Catolicismo, «a alma individual... deveria gozar,


numa vida futura, de eterna bem-aventuranga ou de eterna aflicáo,
segundo as circunstancias. As circunstancias de que dependía essa
grave diferenca eram um tanto curiosas. Se se morria, por exem-
plo, ¡mediatamente após haver um sacerdote espargido agua sobre
a gente, ao mesmo tempo em que pronunclava certas palavras, her-
dava-se a bem-aventuranca eterna; mas se, depois de urna longa e
virtuosa vida, acontecesse de a gente ser fulminado por um raio,
num momento em que se estivesse proferindo palavras feias, por se
haver rompido o cordáo de um sapato, herdava-se o suplicio eterno»
(ob. cit. pág. 26 s).
Péssima traducáo portuguesa !

A estas afirmacóes se pode replicar quanto se segué: a


Igreja nunca pretendeu definir a sorte eterna de quem quer
que seja (a menos que se trate de santos, isto é, de justos cujas
virtudes sejam comprovadas por auténticos sinais de Deus).
O Senhor indicou quais os meios normáis para se obter a sal-
vagáo: os sacramentos e os sacramentáis. Dentre os sacra
mentos, um se destina precisamente a corroborar o cristáo na
hora da morte: é a Ungáo dos doentes, com a concomitante
aspersáo de agua benta ; por isto a Igreja insiste em que se
administre aos moribundos tal sacramento. O efeito, porém,
déste rito está longe de ser mecánico ou mágico: se alguém
nao está arrependido de seus pecados no íntimo do coracáo,
o sacramento de nada lhe serve ; se, ao contrario, está since
ramente contrito, o Senhor perdoa, ainda que o moribundo
haja cometido as mais graves faltas (Deus nao se deixa vencer
em misericordia). Quanto ao caso de quem, após vida virtuosa,
morra sem sacramentos em um momento de insensatez, nada
se pode dizer a respeito do seu destino eterno ; só Deus sabe
até que ponto tal pessoa incorreu em culpa (a sua responsa-
bilidade no ato final talvez tenha sido muito atenuada ou
mesmo tolhida, em conseqüéncia de algum disturbio patoló
gico) ; é de crer que Deus leve em conta os méritos de vida
de tal- alma e nao permita que se revolte conscientemente
contra o Sumo Bem na hora da morte ; costuma-se mesmo
dizer que cada qual morre ñas disposic5es em que passou seus
anos na térra.

Nem mesmo em caso de suicidio, a teología afirma que o de-


funto está no inferno, pois só Deus vé o que se passou no intimo da
alma antes do último suspiro (a Igreja aperas proibe sufragios públi-

— 147 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961. qu. 2

eos, nao, porém, sufragios discretos em favor de tais defuntos). Se


alguns cristáos pretenderam no decorrer da historia, ou aínda pre-
tendem, determinar algo de mais preciso a respeito da sorte postu
ma dos defuntos, baseando-se em nogáo mecanicista ou simplória
dos sacramentos, falaram ou falam á revelia do magisterio da Igre-
ja, e nao conforme a «doutrina ortodoxa» do Catolicismo, como ex
plícitamente assevera Russell: «Digo que isto (o mecanicismo da
salvacao) faz parte da doutrina ortodoxa e que se acreditou nisso
até tempos recentes» (ob. cit. pág. 27).

O filósofo inglés ainda cita, pretendendo mostrar melhor


os «absurdos» da crenca na imortalidade da alma, o proceder
dos colonizadores espanhóis, que «no México e no Perú...
costumavam batizar as criancinhas indígenas e esmigalhar-lhes
¡mediatamente o cerebro : asseguravam, por ésse meio, o iñ-
gresso de tais criancinhas no céu» (ob. cit. pág. 27).

Se o morticinio désses pequeninos era inspirado por ga


nancia e barbarie, está claro que era reprovável; a Igreja
nao o defende; tal modo de agir nao se inspirava nos ensina-
mentos do Catolicismo. O historiador sincero deve reconhecer
que os colonizadores cometeram muitos feitos repreensíveis,
na conquista da América Latina. Seja lícito, porém, lembrar
que os antigos nao raro cometiam de boa fé agóes que hoje
condenamos abertamente (a consciéncia dos antigos era me
nos apurada e desenvolvida que a do homem moderno; ora
Deus julga cada individuo segundo o íntimo da sua conscién
cia ; cf. pág. 173s déste fascículo).

Conclusao

Nao nos deteremos em ulterior exame das afirmacSes de Rus


sell ; cada página da obra apreciada forneceria margem a longos
comentarios, os quais em parte repetiriam o que já tem sido escrito
em números anteriores de *P. R.». Os poucos tópicos que acabamos
de salientar, já patenteiam o pensamento do autor. O que importa-
va era mostrar que o livro «Porque nao sou cristáo» nada de novo
representa na literatura antirreligiosa dos nossos dias; nao raro
combate proposicóes que a Igreja Católica de modo nenhum endos-
sa, mas que o autor sem multo discernimento lhe vai atribuindo.
Deve-se mesmo dizer que, pela fraqueza de sua lógica, é um ensaio
pouco feliz de disseminar o agnosticismo no público.

Russell deverá ser tido, sim, como grande matemático... Acon


tece, porém, que nem todos os que tém pendáo para as ciencias da
quantidade e da materia, possuem outrossim o genio da abstracto e
da filosofía. Tal parece ser o caso de Bertrand Russell.

— 148 —
HA PECADOS IRREMISS1VEIS ?

II. DOGMÁTICA

TIBÍ (Rio de Janeiro) :

3) «Que dizer dos textos da epístola aos Hebreus (6,4-6;


10,26-31; 12,16s) que parecem denegar todo perdáo a certos
pecadores ?
Nao haverá realmente culpas tao graves que Deus nao
as queira mais perdoar ?»

Antes do mais, eis os trechos de que se trata no cabeea-


lho ácima:

HEBR 6: 4 «Aqueles que foram urna vez iluminados, provaram


o dom celestial, se tornaram participantes do Espirito Santo, 5 sa-
borearam também a bela palavra de Deus e as maravilhas do mun
do vindouro, 6 e, nao obstante, cairam, é imposslvel renová-los ou-
tra vez para a penitencia, pois cruciíicam por sua conta o Filho de
Deus e O expQem públicamente á ignominia».

HEBR 10: 26 «Se, depois de ter recebido e conhecido a ver-


dade, a abandonarmos voluntariamente, já nao nos restará sacrificio
para expiar éste pecado; 27 só teremos que esperar um juízo tre
mendo e o fogo ardente que deve devorar os rebeldes. 28 Se al-
guém transgride a lei de Moisés — e isto é provado com ditas ou
tres tesmunhas —, deve ser morto sem misericordia (cf. Núm
35, 30). 29 Quanto pior castigo entáo nao julgais deverá merecer
quem calcar aos pés o Filho de Deus, e tiver profanado o sangue
da alianca em que foi santificado, e ultrajar o Espirito Santo, autor
da grac.a ?! 30 Pois conhecemos aquéle que disse: 'Minha é a vin-
ganca; eu a exercerei' (Dt 32,35), e outra vez: 'O Senhor julgará o
seu povo' (SI 134, 14). É horrendo cair ñas máos de Deus vivo».

HEBR 12: 16 «Nao haja entre vos algum sensual ou profa


nador como Esaú, que, por um prato de lentilhas, vendeu o seu di-
reito de primogenitura. 17 Sabéis que, désejando ele em seguida
receber a béncao de herdeiro, fol rejeitado e nao pode obter mu-'
da.nca de sentimentos, se bem que a tivesse procurado com lá
grimas».

Os tres textos ácima, por sua aparente dureza, muito


chamaram a atengáo de leitores e comentadores cristáos, prin
cipalmente na antigüidade. No séc. III montañistas e nova-
cianos abusavam de tais dizeres para negar pudessem ser per-
doados alguns pecados graves, mormente os de apostasia,
adulterio e homicidio. A fim de evitar esta tese, certos cristáos
tinham a epístola aos Hebreus na conta de náo-canónica ou
nao inspirada por Deus ; em certas regióes, nem era lida em
público. Dentre mesmo aqueles que admitiam a autoridade

— 149 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/196L qu. 3

canónica de Hebr, houve exegetas que deram aos textos ácima


citados interpretagóes artificiáis, pouco condizentes com as
regras da sadia hermenéutica,
Nenhuma dessas atitudes pode ser sustentada... Visto
que a epístola aos Hebreus pertence realmente ao patrimonio
da Sagrada Escritura, ela tem o valor de auténtica Palavra de
Deus e há de ser portadora de ensinamentos profundos e
constitutivos. Estes, porém, so se apreenderáo devidamente
caso se analise o texto sagrado a luz tanto da lingüistica antiga
como dos demais escritos do Novo Testamento. É o que nos
esforgaremos por fazer ñas páginas seguintes, considerando
sucessivamente cada urna das tres passagens citadas.

HEBR 6, 4-6

1. Tenha-se em vista a categoría de leitores aos quais


se dirige o hagiógrafo : eram judeus convertidos á fé crista
que atravessavam urna crise religiosa. No inicio de Hebr c. 6
(w. 1-3), o Apostólo diz que nao voltará a ensinar os rudi
mentos da catequese, pois a inidacáo na fé e na vida crista
deve ser algo de definitivo, algo que cada fiel percorre urna
vez por todas e nao repete. E, para provar que nao se repete
a inidagáo, o autor nos w. 4-6 considera o caso daqueles que
apostataram da fé e, por conseguinte, parecem precisar de
nova catequese: estes, diz ele, de modo nenhum se beneficia-
riam de mais urna catequese, pois a sua situacáo é irreme-
diável!...

2. É justamente aqui que surge o problema : porque


irremediável ? Será porque o Senhor nao perdoa, nao dá aos
apóstatas a graga de voltarem á fé e ao amor de Deus ?
Ou será talvez porque os próprios apóstatas estáo de todo
insensíveis á graca do Senhor? Ademáis, será a situagáo irre-
mediável de maneira absoluta ou admitirá excegóes ?

Eis como se delineia a resposta do hagiógrafo:


a) nos vv. 4-5 ele focaliza cristáos que receberam gran
des gragas e fizeram urna experiencia consciente e profunda
do que é o Cristianismo.

Quatro sao os íavores divinos que o autor sagrado se compraz


em enunciar, de antemao visando chamar a atencáo dos leitores
para a gravidade da apostasia :

«Iluminados». O verbo «iluminar», photizeln, no Novo Testa


mento refere-se geralmente á luz da verdade e da salvacño que
Jesús veio trazer ao mundo mergulhado ñas trevas do erro (cf. E£
1,18; 2,9; 2 Tim 5,10; Jo 1,9). Dessa luz os homens partidpam me-

— 150 —
HÁ PECADOS IRREMISSÍVEIS ?

diante a fé. A fé, por sua vez, está Intimamente associada ao sacra
mento do batismo, que, por isto, na antiga Igreja era chamado
photismós ou «iluminacáo». Em Hebr 6,4, o hagiógrafo parece ter
em vista simultáneamente as gracas da fé e do batismo.

«Provaram o dom celestial». A metáfora da luz sucede-se a do


alimento. Alguns comentadores julgam tratar-se aqui da S. Euca
ristía. Outros, mais acertadamente, entendem o conjunto dos bene
ficios messiánicos, ou seja, a vida de filhos de Deus que Cristo
trouxe aos homens e da qual um dos mais ricos elementos é, sem
dúvida, a S. Eucaristía.

«Tornaram-se participantes do Espirito Santo». É assim desig


nada nao sómente a graca dos sacramentos, mas também a multi-
plicidade de carismas ou dons extraordinarios (profecías, línguas,
caras...) com que freqüentemente eram agraciados os cristáos an-
tigos (cf. 1 Cor 12-14).

«Saborearan! a bela palavra de Deus e as maravilhas do mundo


vindouro». A «bela palavra» é a Boa Nova do Evangelho, que des-
perta nos fiéis o sabor da vida eterna (cf. Zac 1,13 : a Palavra de
Deus é Palavra boa e consoladora). «As maravilhas (literalmente:
as potencias) do mundo vindouro» nao equivalen» própriamente á
vida postuma celeste, mas, por já serem saboreadas na térra, sao
as energías sobrenaturais que inauguram o Reino de Dous em cada
alma justa, Reino que vai desabrochando lentamente dentro do cris-
tao e estará consumado na vida futura.

b) Após descrever táo eloqüentemente a riqueza sobre


natural que Deus outorga a seus amigos, no inicio do v. 6 o
autor sagrado admite urna hipótese muito misteriosa, mas
bem comprovada pela realidade: imaginemos que um désses
amigos do Senhor, apesar das suaves experiencias anteriores,
venha a cair para o lado ou para fora... (o texto grego nao
diz apenas piptein, cair, mas parapiptein, cair para o lado ou
para fora), isto é, venha a sair da trilha da fé e da vida
crista, abandonando tudo de maneira consciente e volunta
ria..., voltando-se diretamente, face a face, contra Deus Pai,
contra Cristo e contra o Espirito Santo. Trata-se, sem dúvida,
de urna falta muito grave, comparável ao pecado contra o
Espirito Santo, que é o pecado de endurecimento, de obstina-
gáo deliberada no erro, com desprézo formal das gragas e
dos apelos de Deus para a conversáo (cf. Mt 12,31s e «P. R.»
12/1958tqu. 2).

c) Pois bem ; a ésses tais (prossegue o autor sagrado


no v. 6) é impossível renová-Ios de novo para a penitencia...
Esta expressáo (redundante, sem dúvida) significa a volta á
fé e ao amor de Deus. A conversáo para tais apóstatas vem
a ser impossível, a menos que Deus queira intervir de ma
neira extraordinaria (coisa que nao se pode supor nem prever

— 151 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961. qu. 3

de antemáo) ; humanamente falando, a recondliac.áo de tais


pecadores nao é yiável, porque se fecham numa atitude radi
calmente contraditória ao chamado e á grac.a de Deus. Note-se
bem que o que o escritor sagrado declara impossível nao é o
perdao da parte de Deas, mas o arrependimento da parte do
pecador ; caso éste quisesse voltar ao Senhor, seria, por certo,
recebido e agraciado, como o filho pródigo (cf. Le 15,20-24);
ñas relacóes de Deus com o homem, portante, Deus jamáis se
nega ou se fecha; é, antes, o homem quem se subtrai, com
detrimento para si mesmo.

d) Corroborando a sua afirmagáo, o escritor sagrado,


na terceira parte do v. 6, salienta dois aspectos da revolta
ou da ingratidáo do pecador: aos quatro grandes dons de
Deus, éste responde «crucificando por sua iniciativa o Filho
de Deus e expondo-0 a burla pública».
Que querem dizer tais expressóes ?

«Crucificam o Filho de Deus».-. O apóstata imita os judeus


infléis: rejeita Cristo, declara-0 impostor, falso Messias, condena-O
á cruz e como que ai O prega com suas próprias máos ; o escritor
sagrado realga bem essa iniciativa pessoal do pecador ou ésses seus
sentimentos contrarios a Cristo: «... por sua conta, na medida em
que está em seu poder», diz ele. — Assim (mencione-se de passa-
gem) vé-se que a Paixáo do Senhor nao constituí mero acontecimen-
to passado, mas é um drama que se vai desdobrando no decorrer
dos séculos, pois todo homem, em última análise, ou se coloca do
lado de Cristo e é crucificado com Ele (cf. Gal 2,19; 4,19) ou toma"
posicao do lado oposto, com os carrascos, reproduzindo entao a ati
tude de quem crucifica o Cristo.

«Expoem o Filho de Deus a burla pública»... Renegar aberta-


mente a Cristo, abandonar a fé sao atitudes que o hagiógrafo com
para com a dos soldados que escarnecerán! o Senhor (cf. Mt 26,67 ;
27,38-43); o apóstata é alguém que despreza a Deus.
Os comentadores observam significativa particularidade do tex
to grego : os verbos «crucificar* e «expor á burla» estáo no parti
cipio presente, ao passo que «cair para o lado» se acha no participio
«aoristo» (com significado de pretérito). A mudanca de tempos in-.
dica bem que a queda ou o ato de apostasia é algo de transitorio
(aoristo), transitorio, porém, que dá origem a um estado de crime
ou de revolta permanente (sempre presente) no coracáo do pecador.
Deve-se notar outrossim a construcao da sentenca grega que
constituí os versículos 6, 4-6 de Hebr: é dominada por duas expres
sóes : adynaton, «impossível-», logo no hmiar da frase, e parapéson-
tas, «tendo Caído», no meio da mesma. «Do ponto de vista literario,
todos os comentadores, desde S. Joáo Crisóstomo (t 407), chamam
a atencao para o caráter particularmente enérgico de adynaton co
locado no inicio da frase» (Spicq, L'Epitre aux Hébreux II. Paris
1953, 149). Quanto ao participio «tendo caído», ele se segué á enu-
meracáo de quatro dons de Deus ; é urna expressáo breve que in-
terrompe bruscamente o hitmo da frase soleñe e harmoniosa; dá as-

— 152 —
HA PECADOS IRREMISSÍVEIS ?

sim a impressáo de um choque brutal, de urna queda, que significa,


no caso, a apostasia ou o abandono total da íé. Toda a passagem
é destarte enfática: ela afirma a impossibilidade — existente da
parte do homem, nao da parte de Deus — de que um pecador delir
beradamente obstinado no vicio se converta ao Senhor. Seja licito,
porém, repetir: mesmo r.este último caso, de acordó com a mensa-
gein geral do Novo Testamento, resta a possibilidade de que Deus
tome diretamente a.iniciativa de modificar o estado de espirito do
apóstata, dando-lhe luz e fórga especiáis para que se salve. A Deus
é possível mesmo aquilo que. do Donto de vista humano, é impossí-
vel, lembra Jesús no Evangelho (cf. Mt 19,26; Me 10,27; Le 1827).

HEBK 10, 26-31

Esta passagem enuncia as mesmas verdades que as do


c. 6,4-6. Acrescenta apenas urna comparagáo com o regime
de salvacáo do Antigo Testamento, a fim de corroborar a
admoestacáo aos leitores. Aqui procuraremos sublinhar um ou
outro tópico da seceáo 10,26-31 que comprove quanto acaba
mos de dizer.

No v. 26 o hagiógrafo acentúa fortemente o caráter vo


luntario e plenamente deliberado das faltas que ele focaliza;
logo no inicio do v. 26 está o adverbio «voluntariamente»
(ekousioos). Trata-se de faltas contra a luz ou contra a evi
dencia da verdade, contra a Palavra de Vida que cada cristáo
abraga quando é «iluminado» ou chamado á vida crista. O
hagiógrafo supóe que tais faltas cometidas com toda a adver
tencia sejam pertinazmente reafirmadas pelo pecador; éste
se fecha entáo nüma atitude de resistencia habitual á graca r
de modo nenhum quer mudar de disposicóes e render-se á
luz (é o que sugere o participio presente amartanontoon, em
vez do aoristo amartontoon).
As conseqüéncias práticas désse estado sao logo enuncia
das pelo autor sagrado : o sacrificio de Cristo, que por si é
apto a expiar toda e qualquer culpa, nao pode ser aplicado a
tal pecador, justamente pelo fato de que éste nao o quer ; nao
é a gravidade das faltas materialmente consideradas (assas-
sínio, furto, adulterio...) que fecha a via á reconciliagáo,
mas é únicamente a atitude negativa em que se obstina a
alma; Deus nao lhe forga a liberdade de arbitrio; nao obriga
criatura alguma a se converter.
Endurecendo-se no mal, acrescenta o hagiógrafo no v. 27,
o pecador vai experimentando já aqui na térra o terrível tor
mento de ter abandonado a Deus, tormento que chegará ao
auge na vida postuma ou no inferno, onde nao haverá os
paliativos ilusorios que as criaturas oferecem neste mundo.

— 153 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961. qu. 3

O texto sagrado menciona «fogo ardente que deve devorar os


rebeldes». Nao se entenda tal fogo estritamente á semelhanga do
que se vé sdbre a térra; já em «P.R.» 3/1957, qu. 5 dissemos que
a pena primaria do inferno é a «pena de condenacao», ou seja, a
tremenda dilaceracao que as almas dos reprobos experimentan! por
se perceberem inelutávelmente feitas para Deus, mas, nao obstante,
incompatibllizadas com ésse Supremo Bem por livre alvitre da sua
vontade. A pena de condenacüo sobrevém a chamada «pena dos sen
tidos», ou seja, a acáo de um agente corpóreo, dito «fogo», sdhre os
reprobos, os quais, pecando, abusaram das criaturas corpóreas. Ul
teriores explicacñes se encontram no citado artigo de «P. R.».

Os w. 28-31 se referem a textos do Antigo Testamento


que inculcam em termos aparentemente indignos de Deus
(«vinganca, sem misericordia, coisa horrenda»...) a inter-
vengáo do Senhor na punicáo do pecado. O teor veemente
désses dizeres nao'deve surpreender o leitor: a Biblia e, no
nosso caso, o autor da epístola aos Hebreus, utilizam a lingua-
gem rude dos judeus antigos para dizer verdades grandiosas
e perenes. Deus é perfeitissimo ; por isto é justo e, como tal,
reprime a injustiga ou o pecado ; nunca, porém, deixa de ser
Pai bondoso, mesmo guando inflige a devida sangáo ao pe
cado ; diante dos juizos do Altissimo compete á mente humana,
limitada como é, urna atitude de entrega confiante, e nao de
arrogancia crítica e de suspeita. Estejamos certos de que, se
a criatura tem o senso da justica, o Criador o tem infinita
mente mais apurado.

Conseqüentemente, dir-se-á que, mesmo nos casos de endureci-


mento do pecador no mal, a Onipoténcia Divina possui recursos para
o abalar. Já, porém, que tais recursos sao extraordinarios, ficando
fora das vías normáis da Providencia, a ninguém é lícito contar cer-
teiramente com tais meios, pois isto equivaleria ao que se chama
«tentar a Deus».

HEBR 12, 16s

No v. 16 o autor sagrado, desejando dissuadir os leitores


de toda mancha de pecado, cita o caso de Esaú, o qual vendeu
por um prato de lentilhas seus direitos de primogénito ou de
herdeiro das béncáos messiánicas ; destarte tomon-se despre-
zador dos preciosos dons que Deus lhe outorgara.
A conseqüéncia déste gesto vem exposta no v. 17, texto
cujo significado é controvertido pelos exegetas.

Urna corxente numerosa de autores antigos, medievais e moder


nos julga que o escritor sagrado aludía a penitencia de Esaú; éste
nao terá podido conceber verdadeira penitencia apesar das suas lá
grimas, pois os seus sentimentos nao teráo sido puros.

— 154 —
NAO A PAZ, MAS A ESPADA

Outra sentenca, porém, afirma que o hagiógrafo tem em vista


a retratagao de Isaque. Esaú, arrependido de sua venda interesseira,
terá pedido a seu pai, Isaque, retratasse a raaldicáo que merecerá, e
lhe desse a béncáo. Nao obteve, porém, retratacao, íicando conse-
qüentemente excluido da plenitude das béngüos messianlcas. Éste
modo de entender o texto é preferível ao anterior, pois respeita me-
Ihor a oposicáo, certamente intencionada pelo hagiógrafo, entre «de-
sejar» e «nao conseguir»; parece necessário deixar a estes dois ver
bos o mesmo objetivo : Esaú desejou, mas nao obteve, a retratagao
da maldicáo que seu pai lhe infligirá.

Contudo, qualquer que seja a interpretagáo dada ao texto


bíblico, seu ensinamento para os cristáos fica sendo sempre o
mesmo, a saber : caso os discípulos de Cristo renuncien!, como
Esaú, aos seus títulos de herdeiros do Pai Celeste e do reino
messiánico, arriscam-se a cair numa situagáo irreparável. Irre-
parável, sim, no sentido que expusemos ao analisar Hebr 6,4-6
e 10, 26-31: a situagáo será, humanamente falando, insolúvel;
nao será, porém, desesperada aos olhos da Onipoténcia Divina.

Eis o que se pode apurar sobre a pretensa irremissibili-


dade de pecados na epístola aos Hebreus. Como se vé, só há
um obstáculo real ao perdáo das culpas humanas : é a recusa
que o. pecador possa opor a Misericordia de Deus; desde,
porém, que a criatura a deseje com sinceridade, passa a usu-
fruir da Liberalidade das gragas do Salvador. É, alias, neste
mesmo sentido que se devem compreender as passagens sobre o
pecado contra o Espirito Santo e sobre o pecado para a morte
(cf. 1 Jo 5,16s).

SAGRADA ESCRITURA

ARIEL (Rio de Janeiro) :

4) «Gomo se hao de entender as estranhas palavras de


Jesús em Mt 10,34-37: 'Nao julgneis que vim trazer a paz a
térra... O homem terá por inimigos os próprios membros
de sua familia. Quem ama seu pai ou sua máe mais do que
a Mim, nao é digno de Mim...'?»

Os dizeres de Cristo, por seu teor desconcertante e suas


varias facetas, visam, em estilo semita muito vivo, incutir
urna grande ligáo, ou seja, a excelencia única da pessoa e da
obra do Senhor Jesús. Pessoa e obra de Cristo exigem do
homem tomada de posigáo absoluta, nao tolerando «compro-
missos» com valores heterogéneos; requerem a dedicagáo que
só as coisas de Deus podem reivindicar para si. A fim de

— 155 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 4

melhor apreciar o alcance de tal exigencia, analisaremos as


diversas frases do texto citado.

1. Jesús comega por afirmar :

«Nao julgueis que vim trazer a paz á térra ; nao vim trazar a
paz, mas a espada» (v. 34).

Com esta declaragáo, Cristo parece, antes do mais, ter


entendido aprimorar as concepgóes messiánicas dos antigos
judeus. Estes admitiam que a vinda do Messias na plenitude
dos tempos seria ¡mediatamente precedida de grandes catás
trofes e afligóes, as chamadas «Dores do Messias» (habélé
meshiah), comparáveis as dores do parto (é, alias, a essas
dores messiánicas que o texto do Evangelho se refere em
Mt 24,8). Contudo, logo que aparecesse, o Messias, conforme
os judeus, deveria apaziguar os ánimos e extinguir todas as
rixas e guerras ; restauraría sem demora a harmonía para
disíaca violada pelo pecado de Adáo e Eva ; um mundo novo
assim se originaria. O próprio Messias, em conseqüéncia, era
chamado «Paz» (Miq 5,4), «o Príncipe da Paz» (Is 9,5).

Eis alguns textos rabínicos que ilustram tal concepcao :


«Na semana de anos em que há de vir o Filho de Davi, as guer
ras se desencadearáo no sétimo ano ; no fim, porém, désse sétimo
ano, o Filho de Daví vira» (Sanhedrin 97 a).
Rabí Eleazar bar Abina (por cérea de 340 d.C), referindo an-
tiga tradicáo, declarava :
«Quando vires um reino erguer-se contra outros, ílearás saben-
do que a vinda do Messias está próxima... Nos dias de Abraáo, os
reinos se erguiam uns contra os outros ; íoi entáo que AbraSo co-
nhecéu a salvacáo» (cf. Strack-Billerbeck, Commentar I 585).

Ora, justamente ao contrario do que esperavam os rabi


nos, Jesús no Evangelho anuncia o sabio plano de Deus : o
Senhor houve por bem restaurar a ordem nao de maneira
repentina e imediata, mas em termos lentos, ou seja, durante
todo o período de tempo que vai da primeira á segunda vinda
de Cristo. Sim ; a Providencia Divina quis primeiramente, me
diante a pregagáo de Cristo, apresentar ao mundo a mensa-
gem da Redengáo e, a seguir, solicitar de cada individuo atra-
vés dos séculos urna tomada de posigáo consciente e Iivre (digna
da natureza humana) diante dessa mensagem. Ésse «solicitar»
se vai protraindo até hoje,... até o dia em que a Sabedoria
Divina houver por bem encerrar o curso da historia, dando
ao género humano o pleno triunfo sobre a morte (mediante
a ressurréigáo dos corpos) e sobre as demais conseqüéncias

— 153 —.
NAO A PAZ. MAS A ESPADA

do pecado (renovagáo da natureza irracional, céus novos e


térra nova) ; entáo estará consumada a obra da Redencáo..
Entrementes a opgáo «por Cristo ou contra Cristo» é opgáo-
«por Deus ou contra Deus», pela vida (verdadeira, «terna)
ou pela morte; quem escolhe Cristo e a vida, deve necessá-
riamente empgnhar toda a sua personalidade, nao pode mer-
cadejár hem pode p'actuar com algum outro bem, pois, fora.
de Deus' (Cristo) e da vida, nada é bom ; Deus e a vida sáo>
o pressuposto para que o homem encontré alegría em alguma
criatura. É sómente quando amados debaixo de Deus que os-
bens déste mundo podem oferecer deleite ao ser humano.
As exigencias de adesáo clara e total a Deus sao formu
ladas por Jesús mediante urna expressáo que, por ser muito-
enfática, se torna quase paradoxal: «Vim trazer a espada...».
Isto nao quer dizer que o Senhor tenha tido o fito de pregar
a guerra e agitar os povos. Muito ao contrario; Ele veio tra
zer a «Boa Nova», a noticia da restauragáo da harmonía.
Infelizmente, porém, essa mensagem encontrou um mundo de-
consciéncias embotadas para os verdadeiros valores, um mundo-
pronto a hostilizar quem quer que viesse sacudir o seu como-
dismo mórbido, pregando um ideal mais puro e elevado; em
conseqüéncia, aqueles que aceitam a mensagem de Cristo, tém.
que assumir simultáneamente o risco de lutar e morrer por-
causa da sua adesáo ao Senhor. É justamente ésse risco que a.
imagem da espada simboliza ; ela ilustra bem quanto o cristáo,
por sua vocagáo mesma de cristáo, é alheio a qualquer com-
promisso covarde ou a qualquer tipo de indiferentismo opor
tunista.

2. Nos versículos seguintes, o Senhor desenvolve aínda,


mais a fundo o seu pensamento :

«Vlm colocar o homem em oposicáo a seu pai, a filha contra,


sua máe, e a ñora contra sua sogra. O homem terá por inimigos
os próprios membros de sua familia. Quem ama seu pai e sua máe-
mais do que a Mim, nao é digno de Mim» (w. 35-37).

Para^inculcar que a mensagem do Evangelho visa real


mente o bem fundamental entre todos, o Senhor se refere
aos valores que o coragáo humano mais espontáneamente-
aprecia : os lagos muito temos existentes entre pais e filhos,
entre sogra e ñora, entre familiares e amigos íntimos (pessoas-
que chegam a compartilhar o mesmo teto e o mesmo pao).
Tais vínculos, por muito que paregam impor-se a todo e qual
quer ser humano, devem, em caso de confuto, ceder incon-

— 157 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»" 40/1961, qu. 4

dicionalmente ao amor de Cristo, mesmo que isto acarrete


expulsáo de casa, sonegagáo de bens, etc.
Está claro que o cristáo nao tem o direito de provocar,
por causa do Senhor, divisoes e rupturas em casa ou na so-
ciedade. Frisemo-lo bem: a Religiáo tende a unir, e nao a
separar. Contudo ao discípulo de Cristo nao é lícito hesitar
em aceitar todas as conseqüéncias 13 represalias que possam
decorrer de urna tomada de posicáo bem coerente no setor
da Religiáo.

A historia, de resto, indica múltiplos episodios em que de fato


os familiares se voltaram contra um cristáo por motivo de Religiáo.
Haja vista o que se deu, por exemplo, com Tito Flávio Clemente,
primo do Imperador Domiciano; criado cónsul em 95, foi nesse
mesmo ano condenado á marte por delito de «ateísmo» (título que
se dava ao Cristianismo, infenso aos deuses oficiáis de Roma). A sua
esposa, Flávia Domitila, soíreu a mesma sorte por idéntico motivo.
Compreende-se que os familiares se possam tornar os mais
requintados inimigos de urna pessoa: melhor do que os estranhos,
conhecem os hábitos de tal pessoa; em, conseqüénda, melhor sabem
como lhe podem causar dor e prejufeo.

A posicáo de Cristo e do cristáo, que por si sao os arau-


tos da verdadeira paz e ordem, mas, nao obstante, se tornam
alvo de contradigáo, é bem ilustrada pelas palavras de S. Paulo:

«Gracas sejam dadas a Deus, que... por nosso intermedio di


funde por toda a parte o odor do seu conhejcimento. Pois somos...
o bom odor de Cristo, entre os que se salvam e os que se perdem:
para uns, odor que da marte leva á morte; para outros, odor que
da vida leva a vida» (2 Cor 2,14-16).

Com efeito, Cristo e o cristáo, anunciando a «Boa Nova»,


propagam suave perfume, por si apto a fazer bem a todos os
que o percebem, isto é, apto a corroborar a vida sobrenatural
em todos os homens. Há, porém, organismos de tal modo
afetados pela doenca que o remedio, em vez de lhes ser útil,
só serve para lhes acelerar a morte. Tal é o caso dos que se
obstinam no erro moral e religioso : a apresentacáo da Ver-
dade que o cristáo lhes faca por suas palavras, ou simples-
mente pelo seu teor de vida reta, néles provoca obcecacáo
mortal. O discípulo de Cristo nao tem culpa disto, desde que
nao tome atitudes afetadas, mas simplesmente se comporte
como cristáo consequente com seus principios. Requer-se, po
rém, grande prudencia e discricáo por parte dos fiéis, para,
de um lado, nao provocar inútilmente o mau ánimo e o endu-
recimento dos náo-cristáos, e, de outro lado, nao atraicoar a
verdade e a virtude.

— 158 —
NAO A PAZ, MAS A ESPADA

3. Por fim, duas observagóes literarias podéráo ser úteis


áo leitor.

a) A fórmula de S. Mateus 10,37: «Quem ama seu pai


ou sua máe mais do que a Mim...» fornece a interpretagáo
auténtica dos dizéres paralelos consignados em Le 14,26s:
«Se alguém vem a Mim e nao odeia pai, máe..., nao pode
ser meu discípulo».
O semita nao tinha termos explícitos para indicar compa-
ragóes, como «amar mais... amar menos»; sendo assim, era
obrigado a dizer simplesmente: «amar... odiar». Está claro
que Jesús nunca preconizou o odio a pai e máe, nem mesmo
por amor a Deus; apenas exigiu que o amor filial e familiar
fósse menos forte que o amor a Deus, ficando sempre subor
dinado a éste.

b) O povo judeu que acompanhava a pregacáo de Jesús,


estava, mais do que nos, acostumado a ouvir dizer que o
amor a pai e máe tem que ser postergado a outros valores
(os rabinos talvez exagerassem um pouco ao propor tal ensi-
namento; interessa-nos, porém, a sua mentalidade).
Com efeito, nao era raro ñas escolas judaicas perguntar
quem mais deveria ser amado : pai ou mestre ? — A resposta
entáo comum era a seguinte :

«Se alguém perdeu um objeto e seu pal também perdeu um ob


jeto, procure o filho em primeiro lugar o objeto que ele mesmo
perdeu.
Se alguém perdeu um objeto e seu mestre também perdeu um
objeto, procure o discípulo em primeiro lugar o objeto que ele mes
mo p2rdeu.
Se o pai perdeu um objeto e o mestre também perdeu, procure
o jovem em primeiro lugar o objeto do mestre, pois nosso pai nos
colocou neste mundo, mas o mestre, que nos enslna a sabedoria,
nos dá a vida do outro mundo...
Se o pai e o mestre carregam cada qual um fardo, é preciso
que o jovem primeiramente ajude o mestre a depositar a carga;
a seguir, ajudará o pai.
Se o pai e o mestre estáo no cárcere, é preciso primeiramente
libettar o mestre; depois, o pai. Mas, se o pai fór um escriba tisto
é, um cultor, por excelencia, da sabedoria religiosa), deverá ser li
bertado em prlmeiro lugar; a seguir, o mestre» (tratado Baba
Mecía II 11).

Ora foi nesse mundo judaico, onde os rabinos valorizavam


o amor ao mestre mais do que o amor ao pai, que Jesús apre-
goou o amor a Ele, o Divino Mestre, ácima de tudo. E com
razáo ; nao é Cristo quem, pela sua palavra e pelos seus sa
cramentos, gera todos os homens para a vida, e a verdadeira
vida : a vida eterna ? !

_ 159 _
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 5

IV. MORAL

PIONEIEO (Sao Paulo) :

5) «Que é própriamente a consciéncia ?


Será que diante da mentalidade moderna ela aínda pode
significar alguma coísa ? Nao se deveria adaptar o classico e
rígido conceito de consciéncia as exigencias da vida contem
poránea ?»

Procurando abranger os aspectos principáis do tema, trataremos


da tradicional nocáo de consciéncia; confrontá-la-emos, a seguir,
com o parecer dos pensadores modernos, a íim de firmar conclusoes
que atendam devidamente á questáo proposta.

1. Que é consciéncia ?

1. Consciéncia («scientia cum...») é, obviamente falando, o ato


pelo qual se percebe ou apreende algum objeto. Ésse objeto pode ser

os afetos ou as agoes como tais do próprio sujeito ; sabemos


entáo que íazemos ou estamos fazendo tal ou tal coisa. Tem-se as-
sim a chamada «consciéncia psicológica», que nao _é senáo a pre-
senca do sujeito a si mesmo, sem referencia explícita ao Fim Su
premo da vida humana ou a alguma regra de conduta;

os modos como se relacionam nossos afetos e atos com a von-


tade de Deus ou com o Fim Supremo da vida humana : «seráo atos
conformes á Lei de Deus ? ou atos incompatíveis com as normas
do Senhor ?». Em outras palavras : «seráo aios moralmente lícitos
ou ilícitos ?» (sabemos que a moralidade é a relacáo dos feitos hu
manos com o Fim Supremo ou com Deus). A faculdade que res
ponde a tais questOes, avahando a liceidade do procedimento huma
no, é a chamada «consciéncia moral». Desta é que havemos de tra
tar no presente artigo.

2. Como se vé, a consciéncia moral consiste num julga-


mento prático proferido pela inteligencia sobre a honestidade
ou desonestidade de cada um dos nossos atos ; é um testemu-
nho que, pronunciado no intimo de cada pessoa, distingue en
tre o bem e o mal moral e tende a levar cada qual a praticar
o bsm e evitar o mal. Todo homem, por mais primitivo ou
rude que seja, possui urna consciéncia moral, como possui urna
consciéncia psicológica.
O testemunho da consciéncia pode ser anterior a deter
minado ato ; é entáo testemunho que manda ou proibe; tem-se
assim a consciéncia chamada «antecedente». Pode também ser
posterior a tal ato; é entáo testemunho que aprova ou desa-
prova, desculpa ou acusa ; tem-se assim a chamada conscién
cia moral «conseqüente» ou «posterior». Já S. Agostinho obser-

— 160 —
QUE É A CONSCIBNCIA ?

vava : «Consdentiae bona'e laetítia paradisus est. — A alegría


de urna boa consdénda é o paraíso» (ed. Migne lat. 34, 482).
Como quer que seja, ésse testemunho interior (seja ante
cedente, seja subseqüente) é sempre proferido diante de
Deus,... de Déüs clara ou confusamente conhecido, conhe-
cido, porém, como Regra Suprema da conduta humana, Regra
independente da vontade das criaturas (também o ateu expe
rimenta no seu íntimo o testemunho da consciéncia, por muito
que recuse alguma norma transcendente de conduta). Conse-
qüentemente, diz-se que a consciéncia moral nao é senáo a
prolongacáo da lei eterna ou do amor ao bem que existe em
Deus desde toda a eternidade e que, a semelhanga de um raio
de luz, vem atingir cada ser humano a fim de o orientar na
térra (cf. S. Tomaz, S. Teol. I/n 93, 2c); também se diz que
á consciéncia é a voz de Deus no intimo de cada individuo,
voz que comunica a cada um as normas da vida reta.

Sao paiavras de S. Boaventura (t 1274):

«A consciéncia é como o arauto e o mensageiro de Deus ; o que


ela dita, ela nao o dita por direito próprio, mas preceitua em nome
de Deus, á semelhanca do arauto que promulga o edito do rei; as-
sim é que a consciéncia tem o poder de ligar» (In II Sent., dist.
XXXIX a. 1, qu. 1).

3. Os moralistas distinguem da consciéncia moral, que é o ato


de julgar a conduta do homem, a chamada sinderese (em latim «syn-
deresis» ou «synteresis», palavra talvez devida a um lapso de copis
tas do comentario de S. Jerónimo sobre o profeta Ezequiel; terao
lido erradamente o vocábulo grego «syneidesis», consciéncia, trans-
creyendo-o para o latim como se fósse «synderesis» ou «synteresis»).
A sinderese vem a ser a disposicSo inata que cada um tem para re-
conhecer os primeiros principios da moralidade; ésses principios sao
congénitos em todo individuo, e com evidencia inelutável se im-
poem desde o uso da razáo ; dentre éles, o mals geral e obvio soa:
«É preciso fazer o bem, e evitar o mal». A sinderese é assim o co-
nhecimento que habituaimente temos das normas básicas da vida
moral; tal conhecimento ñas eriancas é pouco desenvolvido (o pe-
quenino nao sabe muito claramente o que é o bem que ele deve fa
zer, nem o mal que ele deve evitar). A sinderese, porém, se vai edu
cando e enriquecendo mediante o estudo e a experiencia da vida ;
o adulto já percebe que o bem consiste em amar nao apenas os
amigos, mas também os inimigos, consiste em agir nao sómente
por estrita obrigacáo, mas também por generosidade e magnani-
midade.

4. A luz da nocáo de sinderese, entenderse'aínda melhor


o que vem a ser a consciéncia moral: é o ato de julgar resul
tante de um silogismo (ou raciocinio) assim concebido :

— 161 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 5

«É preciso íazer o bem e evitar principio básico da sinde-


o mal». rese e de toda a vida
moral; evidente por si
mesmo.

Ora ñas circunstancias precisas (de julgamento da virtude da


lugar, tempo, etc.) em que me acho, prudencia (1) aplicada a
obedecer á autoridade constituida é um tal situacáo concreta.
bem, desobedecer é um mal».

«Por conseguinte, aqui e agora te- ditame da consciéncia.


nho que obedecer».

Ou ainda :

«É preciso íazer o bem e evitar norma básica da sinde-


o mal». resé.

«Ora ñas circunstancias concretas julgamento da prudencia.


em que me acho, beber mais vinho é
um mal (contraria ás leis da natureza)».

«Por conseguinte, na situacáo pre ditame da consciéncia.


sente tenho que deixar de beber vinho».

Como se vé, á virtude da prudencia cabe importante papel


na formaQáo do juízo da consciéncia ; é a prudencia que afirma
ou nega estar tal e tal situacáo concreta sujeita ás normas
gerais indicadas pela sinderese e pela lei moral.

5. A prudencia, devidamente exercida, pode levar por


vézes a conclusóes desconcertantes, mas muito verídicas. Eis
famoso exemplo:

«É preciso fazer o bem e evitar norma básica da sinde


o mal». rese.

«Ora restituir a determinada pes- conseqüéncia particular do


soa as posses (dinheiro ou outros obje principio ger a 1 ácima
tos) que ela tenha confiado a outrem enunciado.
em depósito, é um bem».

«Acontece, porém, que, no caso consideracáo da realidade


concreto em que me vejo envolvido, o concreta, á qual poderiam
proprietário que me confiou sua espa ser aplicados os principios
da em depósito, é um doente; está a ábstratos da Moral.
reclamar a sua arma para matar a si
ou a outrem».

(1) Nao se entenda aqui «prudencia» na acepc&o, muito co-


mum, de virtude tímida, quasé covarde, mas sim, na de virtude que
leva em conta devida (sem apreco demasiado nem menosprézo) tudo
que deve ser considerado para que o ato humano seja conforme k
vontade de Deus.

— 162 —
QUE £ A CONSCIENCIA ?

«Por conseguirte, aqui e agora é conclusáo d ita da pela


preciso nao devolver a espada a mlm consciéncia prudente após
confiada em depósito». o confronto dos principios
com a realidade.

Semelhante norma prática deveria eu deduzir, segundo S. Tomaz,


S. Teol. I/II 94, 4, no caso de que o proprletário me pedisse seu
dinheiro confiado em depósito a fim de o colocar a servico dos ihi-
migos da patria.

A propósito dessa variabilidade dos ditames concretos da


consciéncia, seja lícito frisar bem: ¿i lei moral, tal como ela
existe eternamente em Deus e se reflete no íntimo de cada
individuo, é imutável. As suas normas básicas tém que per
manecer sempre iguais, pois nao sao senáo apelos que Deus
dirige ao homem a fim de que éste imite a retidáo do próprio
Deus, amando o que Ele ama e praticando, do seu modo, o
que o Senhor pratica. Ora em Deus nao há mudanga, mas
estabilidade (= sinal de perfeigáo) j por conseguinte, nos prin
cipios básicos da moralidade também nao pode haver mudanga.
Essa imutabilidade, no homem, significa que em qualquer
época ou regiáo será preciso fazer o bem e evitar o mal,...
nao matar, nao roubar, socorrer o indigente, etc. Acontece,
porém, que nem todos véem com a mesma perspicacia as
conseqüéncias désses principios gerais; nem todos possuem a
mesma clarividencia para aplicar, como devem ser aplicadas,
as normas universais da moralidade ás situagóes concretas.
Essa variabilidade depende ou da educagio que alguém rece-
beu ou do ambiente em que vive ou — o que é mais grave —
de negligencia e menosprézo para com o que diz respeito á
vida moral.

No plano biológico, verifica-se que as articulacoes do organismo


deixadas por muito tempo na inercia se váo anquilosando ; os olhos
conservados por multo tempo em ambiente tenebroso perdem o seu
acume... Assim no plano moral a consciéncia cujos ditames váo
sendo sistemáticamente sufocados ou contraditados, torna-se aos
poucos atrofiada e cega; a 'continua recusa de ouvir as normas mo
ráis gexa dureza de coracáo e incapacidade de conhecer elevados ideáis.
É muito verídico o adagio : «Quem nao vive como pensa, co-
meca a pensar como vive». Isto se pode dar tanto nos individuos
como ñas • sociedades.

Em virtude dos fatóres ácima assinalados, o julgamento


da prudencia e da consciéncia poderá ser falho ou mesmo
erróneo, poderá também oscilar de povo para povo, de época
para época...; isto se dará, porém, em virtude das circuns
tancias contingentes em que os homens e os povos se acha-

— 163 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 5

rem. Os juizos erróneos em que a consdénda de tais homens


possa incorrer, seráo culpados diante de Deus na medida em
que provierem de negligencia do sujeito na educagáo de sua
sinderese e prudencia.

Assim se explica que, embora a lei natural proiba, por exemplo,


o morticinio dos inocentes, certos povos o tenham- praticado com
toda a naturalidade; urna tribo procurava exterminar coletivamente
a tribo adversaria em distinguir nesta entre culpados e inocentes.
Tal prática se entende pelo íato de que as tradicóes e as normas
de educagao désses povos nem lhes sugeriam a necessidade de dis
tinguir, dentro da «massa adversaria», entre inocentes c réus. Ésse
primitivismo moral, por sua vez, se explica ou por terem estado tais
povos numa etapa infantil da moralidade, tendendo a se aperfeicoar,
ou por haverem caido em decrepitude moral; pela entrega cons
tante e acintosa ao vicio teráo aos poucos embotado o seu senso
ético.
S. Tomaz atribuía a urna culpada cauterizagáo da consciéncia o
íato de que os antigos germanos, alegando favorecer a educagáo
física da juventude, pormitiam a livre depredagáo dos bens das po-
pulagóes vizinhas ; o S. Doutor frisa bem que tal praxe, apesar da
moda vigente, ficava e fica sendo contraria á lei da natureza (cf. S.
Teol. I/II 94, 4c e J. César, De bello gallico VI 23).
Também á luz dos principios ácima, entende-se que certas tri-
bos primitivas tenham cedido e cedam k poligamia, ao divorcio e á
lascivia, sem o mínimo constrangimento. — Seja permitido-repetir:
tal ¿naturalidades nao significa que os principios da moralidade se-
jam meramente relativos, mas apenas que essas populacóes viviam
e vivem (seja por infantilidade inocente, seja por decadencia culpa
da) em circunstancias tais que a consciéncia nao vía ou nao vé com
clareza, nos casos concretos, o que a lei moral imutável exige.
Como quer que seja, pretender hoje em dia tomar os exemplos
libertinos de povos primitivos como normas de condula significaría
decrepitude moral. É o comportamento dos homens que deve ser
adatado aos ditames constantes da Moral, e nao vice-versa ; nao se
ria lícito, portante, pretender criar leis novas aptas a justificar os
procedimentos arbitrarios dos libertinos.

Acrescente-se outrossim que ninguém tem o direito de se


deixar ficar voluntariamente num estado de consciéncia infan
til ou pouco esclarecida. Ao contrario, a dignidade humana
exige que todo individuo procure viver plenamente como ser
racional, deduzindo as últimas conseqüéncias dos principios
sugeridos pela sinderese. Seria indigno do homem restringir-se
á boa fé, isto é, a proceder de acordó com urna consciéncia
sincera, mas pouco ilustrada ; faz-se mister que cada um, na
medida do possível, se comporte de boa e verdadeira fé, isto é,
seguindo urna consciéncia devotada com toda a sinceridade
aos ditames da verdade.

O significado das nocóes ácima será realcado mediante ligeiro


confronto com algumas teses da filosofía contemporánea.

— 164 —
QUE -É A CONSCIfiNCIA ?

2. Mentalidade moderna e consciencia moral

1. Os homens de todos os tempos reconheceram em seu Intimo


urna voz misteriosa, independente da voritade- do individuo, pois ela
ressoa mesmo quando éste nao a deseja; tal voz sempre foi tida
como eco, ora mais pálido, ora mais vivo, dos ditames de Deus.
A filosofía moderna nao pode negar o fenómeno dessa voz da
consciencia; procura, porém, explicá-lo, reduzindo-o a outros fenó
menos de psicología. Todavía com isto o pensador contemporáneo
nao elucida senao modalidades ou aspectos laterais da consciencia.
Vejamos o que, a partir do séc. XVII, se tem dito de mais re
levante sobre o assunto.

A orientacáo geral do pensamento moderno é a seguinte:


os filósofos tendem a negar os valores moráis, reduzindo-os
ora ao que é útil, ora ao que é agradável (utilitarismo e he
donismo). Conseqüentemente, a consciencia já nao é tida como
ditame imutável; ela vem a ser simplesmente o reconheci-
mento do que é capaz de servir ou dar prazer aos homens ;
nesse reconhedmento nada há de absoluto, mas tudo é subje
tivo e transitorio.
a) Th. Hobbes (t 1679) julgava, na base désse relati
vismo, que a consciencia é mero produto de educagáo e cos-
tumes; as primitivas leis sociais teráo forjado a distincáo
entre o bem e o mal moral.

«Ésses vocábulos — bem, mal, desprezivel — sao sempre usados


em funcáo da pessoa que os emprega. Nao existe coisa alguma, á
qual tais palavras se possam aplicar de maneira cabal e absoluta ;
nem há alguma regra geral que distinga entre o bem e o mal, e
possa ser deduzida da natureza mesma dos seres. A distincáo, na
verdade, provém ou do individuo humano (onde nao há Estado) ou
da pessoa que representa o Estado (onde éste existe), ou ainda de
um arbitro ou juiz, que os homens escolham de acordó comum, fa-
zendo do seu julgamento urna regra» (Th. Hobbes, Levíathan I 6.
Oxford 1947, 41).

b) Stuart Mili (t 1873) desenvolveu essa tese no sentido


da sua filosofía associacionista: os homens aos poucos teráo
associado a determinadas acóes as idéias de «utilidade, louvor,
preceito, premio», ou também as de «proibicáo, censura, con-
denagáo, castigo», etc. O motivo dessa associacao eram, a prin
cipio, vantagens temporais ou o utilitarismo; com o decorrer
dos tempos, porém, os povos foram esquecendo tal motivo e
passaram a tachar as mencionadas acóes como boas ou más
em si mesmas...
c) Dentro dessa corrente de pensamento surgiram Dar-
win (t 1882) e Spencer (t 1903), que ampliaram as teses dos
anteriores, á luz do evolucionismo. Segundo estes pensadores,

— 165 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 5

a consciéncia moral nao seria senáo a etapa derradeira da


evolugáo de um «sentido moral» já existente em animáis in
feriores, que mostram tendencias sociais e altruistas : tendo
que viver em sociedade, mantendo relagóes cada vez mais
complexas com seus semelhantes, os homens haveriam culti
vado ésse «sentido moral»; a principio, consideravam-no qual
mero esteio do bem comum ? depois foram atribuindo valor
autónomo as agóes moralmente boas. Assim a consciéncia
moral nao seria mais do que urna modalidade da adaptacáo
do ser humano ao seu ambiente biológico ; também no setor
da Moral, poder-se-ia dizer figuradamente: «A necessidade
terá criado o órgáo».

d) Durkheim (t 1917) julgava ser a consciéncia moral


a expressáo da adaptagáo do individuo ao ambiente nao bio
lógico (como na teoría darwinista), mas social; seria urna
especie de compromisso entre o egoísmo de cada um e os in-
terésses da coletividade, compromisso necessário para ásse-
gurar a vida em comunidade. As convengoes sociais — artifi
ciáis e variáveis como sao — constituirían! o criterio para se
julgar se algo é moralmente lícito ou ilícito. Sao palavras de
Durkheim:

«Nao se deve dizer que determinado ato ofende a consciéncia


comum por ser criminoso, mas, sim, que é criminoso por ofender
a consciéncia comum. Nao o reprovamos porque seja ele um crime,
mas vem a ser um crime pelo fato de o reprovarmos» (citado por
A. Bayet, La morale scientifique. Paris 1905, 143).

Outro representante dessa tendencia, Lévy-Bruhl, assim se xe-


prime:

«Urna das principáis condicóes de existencia de urna sociedade


parece ser certa semelhanga moral entre os seus membros. É ne
cessário que todos sintam a mesma repulsa diante de certos atos. a
mesma reverencia diante de outros e diante de certas idéias,... que
todos se vejam igualmente ohrigados a agir de determinado modo
em determinadas condicóes... A consciéncia moral comum é o foco
onde as consciéncias individuáis se acendem. Ela as entretém e, ao
mesmo tempo, é por elas entretida» (ob. cit. pág. 141).

Sem nos deter agora em alguma crítica, passamos a nova escola.

e) Segundo Freud (t 1939), a consciéncia moral nao é


senáo o controle que o «Super-Ego» exerce sobre as fórgas
instintivas do individuo, impedindo que éste dé livre expan-
sáo as tendencias eróticas da sua natureza, a fim de que haja
certa «decencia» na vida social. O «Super-Ego» ou a conscién-
cia moral, por sua vez, nao seria senáo o reflexo da autoridade

— 166 —
QUE ■& A CONSCIBNCIA ?

dos país sobre a crianga, autoridade que submete artificial


mente o pequenino as «regras de jógo» na sociedade, provo
cando recalques e complexos no adulto. Conseqüentemente, o
freudismo julga haver vantagem em violar por vézes a conscién*
cia moral ou o jugo das «convengóes decentes».
f) Por fim, na mentalidade existencialista contemporá
nea, á qual principalmente Sartre deu expressao, dilui-se por
completo a nogáo de consciéncia moral soberana. Fica a cada
qual a liberdade de amoldar as categorías do bem e do mal,
do lícito e do ilicito, as circunstancias concretas, existenciais,
em que se encontra ; nao há, portante, valores moráis perenes,
mas a ética varia de acordó com o «bom senso» pessoal do
sujeito interessado. Cf. «P. R.» 22/1959, qu. 1.

Como se vé, as escolas filosóficas, do séc. XVII aos nossos dias,


embora sigam rumos diversos, sao marcadas pela tendencia comum
a tornar relativos a consciéncia e seus ditames ; nao admitem fora
do homem (seja individuo, seja sociedade) algum criterio para dis
tinguir entre o bem e o mal; é do homem mesmo que fazem depen
der estas duas noc.5es. Ora sem dificuldade se percebe que urna tal
atitude leva coerentemente á extingáo da ordem moral; o bem e o
mal, o licito e o ilicito vém a ser aquilo que cada um queira ; den
tro désses moldes, nem o Estado nem a sociedade podem pretender
ser respeitados como autoridades a cujas leis o individuo se deva
dobrar. Como se poderia desejar de maneira peremptória que um
homem se incline ao seu semelhante ? Nao sao todos os homens
iguais ? Na verdade, se nao se reconhece um fundamento transcen
dente para a ordem mcral — Deiis mesmn — como o concebe a dou-
trina crista, ficam sendo vas toda a legislacáo humana e toda a edu
cado ética.

2. Torna-se oportuno, porém, fixar de mais perto urna


ou outra das sentengas ácima recenseadas.
a) A teoría darwinista e spenceriana, que reduz o fenó
meno da consciéncia ap plano do evolucionismo biológico, des-
conhece por completo a realidade espiritual da alma humana.
Esta é transcendente, nao se origina por evolugáo biológica
do corpo; por isto também deve-se-lhe reconhecer urna cons
ciéncia que nao é mero produto de condigóes biológicas.

Nao nos demoramos aqui em tais consideracSes, pois já foram


objeto de estudo em «P. R.» 29/1960, qu. 1 ; apenas interessa lem-
brar que o próprio Darwin, no fim da vida, comecou a duvidar de
suas teorías, já que provinham de um psiquismo que o dentista in
glés equiparava ao de um animal irracional; poderia ele dar cré
dito á sua pretensa inteligencia, se esta se reduzia ao instinto do ví
vente irracional ?

b) A propósito da teoría sociológica de Durkheim, de-


ve-se dizer que as exigencias da vida social contribuem para

— 167 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961. qu. 5

desenvolver ou também sufocar os ditames da consciéncia nos


adolescentes; a teoría, porém, nao explica o surto e a afir-
magáo renitente de postulados moráis em individuos que a
sociedade combate. Em última análise, as exigencias sociais
sao ocasióes, mas nao sao causas, do despertar da consciéncia
moral nos individuos ; elas nao criam a consciéncia, mas a
educam ou, por vézes, a deformam, pressupondo-a em todo e
qualquer caso. A crianca que anda, anda também porque lhe
ensinaram a andar, mas fá-lo primeiramente porque tem
pernas desde que nasceu !

c) Com referencia á teoría de Freud, nao se poderá


negar a influencia dos genitores no controle ou na censura
que o jovem exerce sobre si mesmo. Contudo será preciso fa-
zer notar que, após certos limites, essa influencia provoca o
que se chama «infantilismo», ou seja, uma limitagáo doentia
da consciéncia pessoal, e nao a explicitagáo normal da mesma.
Nao se confunda, portante, genuino senso moral com recal
ques psicológicos; a consciéncia crista dá combate a estes.

Em conclusáo : todos reconhecem que há uma só verdade


e uma só ciencia possível da verdade (as proposigóes de Fisica,
Química... que se ensinam no Brasil também se ensinam no
Paraguai e na China) ; é certo, porém, que nem todos os
homens conseguem apreender do mesmo modo a verdade (al-
guns a mesclam com o erro) ; nao obstante, todos aspiram a
possuir a verdade, e a fazer déla o padráo do seu modo de
pensar. Pois bem; fagamos a aplicagáo déste fato ao tema
que acabamos de focalizar : será lógico reconhecer que há uma
só Bondade moral e uma só legislagáo ética natural (pois a
Bondade é correlativa a Verdade) ; nao há dúvida, nem todas
as consciéncias a apreendem do mesmo modo (algumas lhe
mescam o erro) ; contudo essa, legislagáo moral una e uni
versal há de ser tomada como criterio soberano para se ava-
liar os costumes dos individuos e da sociedade. Sejam, por
conseguinte, removidos o relativismo ético e a tendencia mór
bida a acomodar as leis moráis as modas da sociedade, em
vez de se fazer a adaptagáo dos costumes as normas que sem-
pre regeram a moralidade, incentivando nobreza e magnani-
midade.

De resto, o relativismo ético que vem mais e mais dominando


a filosofía dos últimos séculos nao é senao a conseqüéncia do re
lativismo metafisico ou do descaso dos pensadores modernos para
com tudo que tenha Índole de absoluto e transcendente. -Ésse des
caso, por sua vez, é indicio de cansago da mente e decrepitude da

— 168 —
OS DIVERSOS TIPOS DE CONSCIÉNCIA

filosofía. Parece, pois, chegada a hora de reagir e de se reerguerem


tanto os ánimos como as consciéncias!

V. T. (Cruz Alta) :

6) «Foderia enumerar os diversos tipos de conscienda


que na prática ocorrem, assim como os deveres da pessoa
frente aos imperativos da conscienda ?

A pág. 162 déste fascículo ficou dito que o julgamento ¡me


diato sobre a liceidade do ato humano é proferido pela consciéncia,
a qual tem por funcáo aplicar as leis moráis (que sao gerais e abstra-
tas) ás situacóes concretas em que a pessoa se acha. Esta aplicacáo
requer circunspeccáo ou consideracáo das circunstancias precisas de
cada caso, circunspecto que depende da virtude da prudencia. Pois
bem; levando-se em conta os diversos fatores que concorrem para
a formulagáo do juizo definitivo, distinguem-se algumas modalida
des de consciéncia... Vamos abaixo enumerá-las a fim de poder ti
rar conclusóes práticas áóbre os deveres do individuo em relacao
á sua consciéncia.

1. Os diversos tipos de consciéncia

Como se compreende, há mais de um ponto de vista a partir


do qual se distinguen! modalidades de consciéncia. Ei-los no esque
ma abaixo:

/ a) c. verídica ou reta
1) do ponto
de vista invenclvel- ¡ escrupulosa
da con- mente er
formida- rónea
b) c. erró
dade com laxa
nea
a lei mo venclvel-
cauterizada
ral mente er-
rónea farisaica

Consciéncia a) c. certa ou firme


2) Do ponto de vista
b) c. provável
do grau de as-
sentimento c) c. duvidosa ou he
sitante

a) c. imperativa
3) do ponto de vista b) c. proibitiva
da obrigagáo de-
corrente para o c) c. meramente con-
sujeito selheira
d) c. permissiva

Faz-se mister dizer agora urna palavra sobre as principáis mo


dalidades recenseadas.

169
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 6

1) Do ponto de vista da conformidade com a Iei moral

a) Sobre a consciéncia verídica ou reta, pouco ou nada


ha que observar: é o ditame que se apoia em principios mo
ráis auténticos, declarando lícito ou ilicito o que realmente é tal.
b) A consciéncia errónea é a que parte de falsos prin
cipios moráis tidos como gemimos, ou parte de genuínos prin
cipios falsamente aplicados ao caso. Em qualquer das duas
hipóteses, declara-se lícito ou ilícito aquilo que de fato nao
é tal. Os erros de tal consciéncia devem-se á ignorancia ou
a defeito de aplicagáo. Se estas causas podem ser debeladas,
tem-se urna consciéncia vencivelmente errónea (muitas vézes
culpada) ; dado que nao possam ser removidas, a consciéncia
é dita invenclvelmente errónea (é inculpada).

Mais precisamente: a consciéncia Invenclvelmente errónea 6


aquela que labuta em ignorancia sem que todavía haja faltado dili
gencia par parte do respectivo sujeito para conhecer a verdade. Um
tal estado de alma nao sendo culposo, os erros procedentes de tal
consciéncia nao sao tidos como pecados formáis.
A consciéncia vencivelmente errónea é a que se ressente de igno
rancia que o sujeito pode remover e que ele muitas vézes nao re-
move ou por negligencia ou pelo desejo atetado de nao saber para
nao ser estimulado a mudar de vida. Nestes casos, é claro que o
erro vem a ser culposo.

A consciéncia errónea (com ou sem culpa do respectivo


sujeito) subdivide-se, de acordó com a situacáo psicológica da
pessoa, em: escrupulosa, perplexa, laxa, cauterizada e fa
risaica.
A consciéncia escrupulosa é a que, por motivos de pouca
monta, julga ou receia que tal ou tal agáo seja pecaminosa,
quando de fato nao é tal. O escrupuloso vive em angustia
quase incessante, pois em tudo vé graves deyeres e perigos.
Muitas vézes é vítima de estado de alma doentio ou de sistema
nervoso abalado.

Merece especial atenea o o chamado «escrúpulo de compensaejio»:


costuma versar sobre um ou outro preceito apenas, cujos porme
nores a pessoa quer observar com o máximo rigor, enquanto é ex
tremamente liberal no tocante as outras normas da moral (em par
ticular, no que se refere ao amor do próximo e á prática da oracao).
O escrúpulo de compensaejio é urna especie de fuga ou auto-ilusáo;
tem que ser desmascarado e, a seguir, combatido mediante volta
enérgica ao cumprimento dos deveres primordiais negligenciados pela
fuga.
Nao nos detemos aqui sobre o tratamento dos escrupulosos, pois
éste assunto deverá ser objeto de questáo & parte no próximo núme
ro de «P. R.».

— 170 —
OS DIVERSOS TIPOS DE CONSCIENCIA

Da consciencia escrupulosa distinga-se a consciencia delicada,


consciencia que, movida por vivo amor de Deus. tem o ólho aberto
até para as mais leves ocasiSes de pecado, procurando zelosamente
afastar-se de todas.

A consciencia perplexa é aquela que, posta diante de um


dilema (agir ou nao agir ?... agir déste ou daquele modo ?),
julga haver pecado em qualquer dos alvitres ; sinceramente
nao vé como evitar a culpa.
Em tais casos, se a decisáo pode ser adiada, seja prote-
lada ; entrementes, a pessoa irá pedir as luzes de um conse-
lheiro prudente para resolver a situacáo. Caso nao seja possí-
vel contemporizar, o interessado optará pelo que julgar ser
«o pecado menor», comprovando assim a sua boa intencáo. É
claro que quem age numa situagáo dessas, em verdade nao
comete pecado algum, pois, para que haja pecado, é necessária
plena liberdade de escolha entre o bem e o mal — coisa que
a pessoa perplexa julga nao ter.

A consciencia laxa ou relaxada é a que, sem motivos su


ficientes ou com leviandade, julga nao incorrer em pecado ou
incorrer em falta leve, quando na realidade comete falta grave.
Resulta de tibieza no servigo de Deus, tibieza que há de ser
vencida mediante os recursos insinuados em Apc 3,16-20:
exame de consciencia, penitencia, zélo na prática das boas
obras, aceitapáo generosa das provagóes salutares que a Pro
videncia Divina envia.

A consciencia cauterizada representa um grau ainda mais


evoluído de frouxidáo ; embotada pelo hábito inveterado de
pecar, já quase nao percebe a iliceidade das suas faltas.

A consciencia farisaica é a que sem dificuldade aprova


atos gravemente ilícitos, ao passo que exagera a hediondez de
feitos de menor importancia (cf. Mt 23,24).

2) Do ponto de vista do grau de assentimento

a) Diz-se que alguém tem a consciencia certa quando,


sem temor prudente de errar, julga com firmeza e seguranga
ser tal ou tal agáo lícita ou ilícita.

Note-se bem : a consciencia certa diíere da verídica ou reta, pelo-


fato de que, embora isenta do temor de errar, pode nao estar de
acordó com a verdade ou com as normas objetivas da Moral; a cons
ciencia verídica, ao contrario, além de gozar de firmeza subjetiva,
goza de plena concordia com a verdade ou com as leis objetivas da
verdade. Pode haver, por exemplo, consciencia certa (firme, segu
ra), mas nao verídica, em quem julgue com toda a boa fé ser a men-

— 171 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 6

tira lícita em tal e tal caso (as normas objetivas da Moral repudiam
a mentira em todo e qualquer caso ; cf. «P. R.» 18/1959, qu. 6).

b) A consciéncia provável é aquela que, embora tema


errar, julga ser licita ou ilícita urna determinada agáo, basean-
do-se para isto em razóes nao desprezíveis, isto é, ou em
raciocinio concatenado ou em testemunhos de autoridade.
c) A consciéncia dnvidosa deixa seu juízo suspenso ou,
caso o formule, nao vé por- que nao aceitar o alvitre oposto.

3) Do ponto de vista da obrigatoriedade

A consciéncia vem a ser imperativa, proibitiva, meramente


conselheira ou permissiva, desde que preceitue, vede, acon-
selhe ou apenas faculte determinada agáo.
Diante de todos ésses possíveis estados de alma, torna-se
agora oportuno averiguar

2. Os deveres do homem em rclagáo á sua consciéncia

A materia pode-se compendiar sem dificuldade dentro das qua-


tro seguintes regras :

1) Toda e qualquer pessoa tem a obrigacáo de empregar


os meios oportunos para possuir urna consciéncia verídica
ou reta.

Compreende-se bem o «porque» desta proposigáo. A cons


ciéncia julga os atos humanos á luz de Deus e da salvagáo
eterna ; trata, portante, de assunto de importancia capital. Em
conseqüéncia, a ordem reta das coisas exige da parte do homem
todo o zélo a fim de que os pronunciamentos da sua conscién
cia sejam adequados e orientem a pessoa pelos caminhos de-
vidos. Negligencia na formagáo da consciéncia vem a ser ne
gligencia ou menosprézo do Bem Supremo. Ora tal negligen
cia, caso seja voluntaria, é culposa, constituindo urna injuria
nao sonriente a Deus, mas também á própria dignidade humana.

Em verdade, qual aplicac.áo mais nobre para a sua inteligencia


poderia o homem conceber do que a de procurar reconhecer os trá
mites que levam ao Bem Supremo ? Qual pesquisa teria objeto mais
importante ? Qualquer outra ocupacáo só dignificarla o homem de-
pois de esclarecida essa questáo capital.

Caso alguém, por negligencia, proceda em desacordó com


as normas objetivas da Moral, contentando-se com um julga-
mento superficial e inadequado, torna-se culpado do erro assim

— 172 —
OS DIVERSOS TIPOS DE CONSCDSNCIA

cometido. Está claro, porém, que o Senhor nao obriga nin-


guém a esforgo sobrehumano na formagáo da sua consciéncia
ou na procura das normas objetivas da Moral. As exigencias
de Deus visam erguer e alegrar o homem ; nunca o devem
abater ou desanimar. Deus sumamente transcendente é tam-
bém sumamente paterno e compreensivo da fraqueza humana.

Os meios principáis para formar urna consciéncia verídica sao:

a) diligencia para chegar ao devido conhedmento das leis mo


ráis. Nao se requer a máxima diligencia que se possa imaginar, mas
a que esteja ao alcance de cada um ;
b) a procura do conselho de pessoas prudentes e comprovadas
nos caminhos de Deus ;
c) oracáo perseverante;
d) o afastamento dos obstáculos respectivos, como seriam pai-
xóes e maus hábitos voluntarios, os quais sempre obcecam a cons
ciéncia.

2) Todo homem está, obligado a observar estritamente


os preceitos e as proibicóes de sua consciéncia, dado que esta
a) seja verídica ou b) seja invencivelmente errónea.

Note-se bem que na formulacáo ácima nao se trata de permis-


sSes nem de conselhos dados pela consciéncia, pois em tais casos
nao há obrigacáo de seguir o respectivo alvitre.

A necessidade de obedecer as ordens ou proibicóes da


consciéncia verídica evidencia-se fácilmente. Com efeito, a
consciéncia verídica é a que faz a aplicagáo fiel da lei á situa-
cáo precisa em que a pessoa se acha } ela vem a ser, portante,
a expressáo exata da lei moral em tal caso concreto. Por isto
o ditame de tal consciéncia obriga tanto quanto a própria lei
justa.
Quanto á obrigagáo de seguir a consciéncia invencivel
mente errónea, ela se depreende do seguinte raciocinio :
a qualificagáo moral (boa ou má) de urna agáo deduz-se
do objeto dessa agáo : objeto bom constituí agáo boa, objeto
mau constituí agáo má...,
deduz-se, porém, do objeto nao como ele é em si, mas
como ele é apresentado (ou como ele é percebido) pela cons
ciéncia de quem está agindo. Assim o julgamento da cons
ciéncia é que vem a ser a norma imediata da moralidade.
Por conseguinte, caso a consciéncia julgue ser tal agáo
obligatoria e tal outra proibida (julgue talvez erradamente,
. mas sem culpa sua), há obrigagáo estrita de seguir, porque

— 173 —
«PERPUNTE E RESPONDEREMOS* 40/1961, qu. 6

no caso o ditame da consciéncia é o ditame da moralidade.


Quem quisesse agir contra tal ditame, proferido nessa boa fé,
estaría querendo algo que aos olhos do sujeito seria mau;
querer, porém, o mal como mal é pecado.

Eis algumas aplicagSes desta norma: quem, de boa fé plena ou


sem a mínima culpa própria, julga ter que mentir para salvar seu
amigo, deve mentir ; mentindo, nao cometerá pecado formal. Se, ao
contrario, deixar de mentir, cometerá pecado formal, porque estará
contradizendo á sua consciéncia (embora esta erre de boa fé). — O
■católico que, em ignorancia invencível ou nao-culpada, julgue ser o
dia N. dia santo de guarda (embora nao o seja), tem obrigacjío de
assistir á S. Missa nesse dia ; nao o fazendo, peca, porque está des-
prezando a leí moral que ele julga existir no caso.

Breve reflexáo ainda se impóe : como acaba de ser dito,


o erro náo-culpado ou «de boa fé» nao impede que a conduta
do respectivo sujeito possa ser moralmente boa ; contudo o
erro nao é o ideal, de sorte que ninguém pode desejar «dei-
xar-se ficar» néle; terá que aspirar sempre á plenitude da
luz; em caso contrario, o erro deixaria de ser «erro de boa
fé» e já nao usufruiria dos privilegios da boa fé ; tornar-se-ia
erro culpado.

A guisa de ilustracáo, citamos o seguinte testemunho de J. H.


Cardeal Newman, que assim se referia á consciéncia invendvelmen-
te errónea :

«Sempre considerei a obediencia á consciéncia moral, mesmo er


rónea, como sendo o melhor caminho para chegarmos á luz» (Apo
logía pro vita sua c. 5).

Urna tal obediencia corrobora a vontade no amor do bem. Ora


o amor do bem dispóe a inteligencia a reconhecer, por conaturalida-
de ou afinidade, o Bem em sua plenitude ou tal como Ele é na ver-
dade. Assim o erro, numa pessoa de boa fé, tende a se limitar e a
se extinguir a si mesmo, cedendo á verdade.

3) Nao é licito seguir a consciéncia vencivelmente erró


nea : contudo também nao é licito agir contra tal consciéncia.
Por conseguintc, antes da acao, torna-se necessário dissipar o
erro de consciéncia.

Em urna palavra : quem age com consciéncia vencivel-


mente errónea, nunca se, isenta de culpa, quer obedeca, quer
contradiga á sua consciéncia.
Para compreender esta proposigáo, faz-se mister frisar o
.sentido preciso que aqui tem a expressáo «consciéncia venci-

— 174 —
OS DIVERSOS TIPOS DE CONSCIÉNCIA

velmente errónea» : significa a consciéncia que sabemos estar


insuficientemente informada e que podemos retificar, caso o
queiramos. Manter a consciéncia em tal estado implica em
negligencia ou descaso da pessoa na procura da verdade e do
tem ¡implica portanto num estado de desordem moral. E agir
de acordó com os julgamentos erróneos que se originam dessa
negligencia e desordem, equivale a reafirmar negligencia e
■desordem culposas ; equivale, por conseguinte, a urna culpa.

Observe-se que a norma ácima veda nao sómente obedecer á


consciéncia vencivelmente errónea, mas também oontradizer-lhe...
' Éste outro membro da proposigSo embora pareca desconcertante,
também se entende sem dificuldade; a pessoa que resolva sumaria
mente contradizer á sua consciéncia (que ela sabe estar venclvel-
inente no erro) e nao procure devidamente esclarecer-se, deixa-se
ficar voluntariamente na falsidade, aceita a negligencia em relagáo
ao Último Fim, e expóe-se ao perigo de cometer mais urna acao
errada. Ora nisso tudo há culpa grave.

Por conseguinte, para quem está no erro professado por


descaso ou má fé, só há um alvitre reto : dissipar quanto antes
ésse erro, a fim de poder agir esclarecidamente. Dado que nao
possa procurar esclarecer-se, abstenha-se de agir no caso. E,
se nao Ihe é possível deixar de agir, faca o que parecer mais
seguro.

Está claro, porém, que nao peca a pessoa que, embora aja com
•consciéncia vencivelmente errónea, de modo nenhum se expSe ao
perigo de pecar (p. ex., dando urna esmola ao seu alcance).

4) Sámente a consciéncia certa (nao a hesitante nem a


provável) pode ser tomada como reta norma dos costumes.
Em outros termos: Nunca é lícito agir com consciéncia
•duvidosa ou com a consciéncia a hesitar entre razoes positivas
«postas urnas as outras.

1. Compreende-se bem tal norma. A dignidade humana


exige que todo homem, ao agir, aja de acordó com as leis
objetivas do respectivo agir: o pintor, ao pintar, deve proce
der segundo as leis da arte da pintura ; o cantor, ao cantar,...
segundo as leis do canto ; o médico, ao atender aos doentes,...
segundo as normas da medicina ; e todo homem, pelo fato
mesmo de ser homem,... sempre conforme as regras da
Moral, que tornam o homem bom na sua acepcáo mais cabal,
ou seja, enquanto é ser racional. Ora, para conseguir esta
proximidade do ideal, requer-se que o individuo use de dili
gencia a fim de reconhecer quais sao as normas objetivas que

— 175 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961. qu. 6

o devem reger (no caso que nos interessa:... quais sao as


normas da moralidade) ; requer-se mesmo que use de tanta
diligencia quanta fór necessária para gerar a certeza (ao me
nos subjetiva) de haver encontrado a trilha devida. Enquanto
nao tem certeza, a pessoa se acha naturalmente em dúvida e
fica sujeita ao perigo de violar as leis moráis. Agindo, nao
obstante, com dúvidas voluntariamente entretidas, tal pessoa
aceita o risco de infringir a Moral e de pecar — o que já é
culposo.

Note-se que o esfórco para apreender as normas objetivas da


moralidade pode ficar em parte frustrado (consciéncia certa ou fir
me nao é necessáriamente consciéncia verídica, como já observamos
á pág. 171). Em todo caso, tendendo á veracidade objettiva, pes
soa deve chegar ao menos á certeza subjetiva; o seu esfórco lhe me
recerá ao menos a vantagem de ficar sabendo por que faz o que
faz,... vantagem de dominar a situacüo, em vez de se deixar mor-
b damente dominar por motivos menos razoáveis.

2. A certeza que se requer ao se falar de consciéncia


«certa», nao é certeza metafísica nem certeza física, mas
certeza moral.

Por «certeza metafísica» entende-se a que se deriva de conceitos


essenciais e imutáveis; é certeza que jamáis pode sofrer contradl-
Cáo; está envolvida, por exemplo, ñas proposites: «Deus é uno ;
um círculo nao pode ser quadrado ; o todo é maior que qualquer das
partes...».

Por «certeza física» compreende-se a que se baseia no curso na


tural das co:sas ; será firme, a menos que se dé algum portento na
natureza. Assim é físicamente certo que «cedo ou tarde todo lio-
mem há de morrer»...

Por «certeza moral» entende-se a certeza que excluí toda dúvi


da razoável ou todo motivo serio de duvidar. Assim posso ter por
mora/mente certo que Joáo, amigo bem eonhecido, nao mentirá;...
que a máezinha nao dará veneno a seu filhinho, etc.

Conforme os autores, basta a certeza moral para que a cons-


ciénc:a se torne reta norma de vida. Também esta posicáo se en-
entende sem dificuldade ao se tratar de atos humanos, livres e con
tingentes, é muitas vézes impossível conseguir certeza absoluta (me
tafísica) ou mesmo certeza física ; é preciso contentar-se com cer
teza moral, e, como observam os mestres... certeza moral que, em-
bora se apoie em sólidos argumentos, nao pode (por inculpada ca
rencia de luzes) excluir um leve receio de erro. — Já que ninguém
está obrigado ao impossível, é sonriente éste tipo largo de certeza
que se requer a fim de que haja retidao de consciéncia.
Pergunta-se agora : nao haverá meios que possibilitem & cons
ciéncia duvidosa chegar á certeza moral ?

— 176 —
OS DIVERSOS TIPOS DE CONSCIÉNCIA

3. Os principios reflexos

Para ajudar a consciéncia hesitante a conseguir a certeza


necessária, os moralistas indicam algumas vias, que, á guisa
de complemento, vao aqui sumariamente enunciadas. Agru-
pam-se sob dois grandes títulos:
a) vias diretas, tais como o estudo mais aprofundado
da situagáo, a consulta de bons livros ou de pessoas sabias e
prudentes;
b) vias indiretas ou principios reflexos. Os autores enu-
meram normas gerais que de algum modo projetam luz sobre
as diversas situagóes concretas, contribuindo para solucioná-
-las. Tais normas se reduzem todas á seguinte regra, que,
inegávelmente, exprime grande sabedoria :
«In dubio standum est pro quo stat praesumptio.»
Ou seja: nos casos de dúvida, deve-se optar pelo alvitre
mais recomendado pela praxe comum ou pelo direito vigente.
Em outros termos: as anomalías e aberragóes que possam
ocorrer no desenrolar dos acontecimentos, devem ser prova-
das, nao seráo simplesmente pressupostas ; o juízo da cons
ciéncia, portante, nao se baseará sobre excegóes que, embora
sejam possíveis, seriam gratuitamente supostas. Conssqüen^
temente, levem-se em conta as seguintes regras particulares:

Delictum non praesumltur, sed probar! debet

Um delito nao é coisa que sem mais se presuma ter. acontecido,


mas é algo cuja existencia deve ser demonstrada.

In dubio favendum est reo.

Na dúvida, é preciso poupar o acusado, até que se prove o seu


delito, pois de antemáo nao se pode supor seja alguém criminoso.

In dubio melíor est condlUo possidentis.

Na dúvida, quem possui algum objeto nao pode ser despojado


do mesmo antes que se prove nao ser ele o legítimo possessor.

In dubio praesumptio stat pro superiore.

Na dúvida em que o superior (o legislador) é posto em causa,


supóe-se tenha ele razao, pois é de se admitir haja sido íeito Supe
rior por possuir particular idoneidade.

In dubio standum est pro valore actus.


ou : In dubio omne factum praesumltur recte factum.

Na dúvida, o que foi feito deve ser considerado sólidamente íei


to; falhas e vicios háo de ser devidamente evidenciados.

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«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961, qu. 6

Factiim in dubio non praesunütur, sed probari debet.

Na dúvida da ocorrénda de algum fato, nao se proceda como se


tivesse ocorrido, mas primeramente prove-se que ocorreu.

In dubio iudíoandnm est ex ordinarie contingentibus.


Ou : Ex commnniter contlngentibns pnidens fit praesumptio.

Daquilo que comumente costuma acontecer, pode-se tentar con


cluir com prudencia o que no caso presente terá acontecido.

Alguns moralistas acrescentariam a seguinte regra, que outrosr


mais acertadamente, nao aceitam :

Lex dubia non obligat.

A leí duvidosa nao obrigu. (1).

Como se compreende, tal norma é apta a provocar arduas con


troversias (a diíiculdade está em avaliar quando é que a lei se tor
na duvidosa e como se pode averiguar que ela é tal). Todos os au
tores, porém, concordam em reconhecer que o principio controverttido-
nao tem aplicagáo nos quatro casos seguintes :

— na administracáo dos sacramentos. A validade dos sacra


mentos é de importancia capital para o culto divino e o bem das al
mas. Dal nao ser lícito utilizar materia ou forma que de algum modo
possam tornar duvidosos os seus efeitos ; por conseguinte, todas as
cátatelas razoáveis háo de ser observadas nesse setor, evitando-se
urna casuística demasiado sutil a respeito do que seria e nao seria
estritamente de obrigacáo ;

— na procura dos meios necessários a salracao eterna. É pre


ciso que todos íacam o que fór humanamente possivel para viver
e morrer na graga de Deus. Portante a ninguém é licito expor-se,
sem motivo imperioso, a perigo próximo de pecar gravemente, apcian-
do-se apenas na presuncáo de que «talvez nao caia» (certas opinióes,
por exemplo, concernentes á castidade sao aceitáveis em teoria, mas
na prática vém a ser, para muitos, gravemente perigosas ; nao será
lícito, pois, segui-las sem discernimento ponderado). Alguém que
nao possua clareza em questáo de íé, nao tem o direito de se basear
em probabilidades, dispensando-se de procurar zelosamente a ver-
dade e a vía da salvagáo.

— em perigo de grave daño (espiritual ou temporal) para o-


próximo ou para a sociedade. Principalmente o escándalo há de ser
evitado ; em vista disto, pode acontecer que alguém deva observar

(1) Tal proposiejio se pode desdobrar na seguinte:


«É lícito seguir urna opinláo realmente provável em si mesma,
ainda que haja outras opiniSes mais prováveis ou seguras sobre o
mes.no assunto».
Esta regra de Moral é aceitável, contanto que se Ihe fagam as
quacro restricSes que no texto váo enunciadas.

— 178 —
OS DIVERSOS TIPOS DE CONSCIENCIA

urna lei da qual provávelmente estaría dispensado (cf. 1 Cor 8,13v


Rom 14). Os direitos certos do próximo exigem respeito ; em con--
seqüémcia, nao é licito a um juiz proferir sentenca de acródo com
alguma opiniáo meramente provável sem levar em conta opinioes-
contrarias mais prpváveis (cí. Denzinger 1152); quando duas par
tes litigantes parecem" ter cada qual em seu favor razSes igualmente-
prováveis, o arbitro Ihes deve sugerir a repartig&o dos direitos ou.
a aceitacáo de acordó amigável;

— em perigro de vida do próximo. O médico, portante, tem a


obrigacáo de empregar os tratamentos e remedios mais seguros ; in-
corre em falta se, sem imperiosa necessidade, lancar mSo de ingre
dientes duvidosos. Ninguém tem o direito de beber urna pocáo da
qual suspeite seja gravemente venenosa. O cacador nao pode atirar,.
caso nao saiba exatamente se o objeto visado é homem ou animal-
de caca.

Após a apresentacáo destas diversas regras, que forne-


cem valiosa contribuigáo para solucionar casos perplexos, nao-
se poderá deixar de lembrar, á guisa de conclusáo, que o cristáo
deve, ácima de tudo, tender a se configurar generosamente ao-
seu Exemplar — o Cristo Jesús — sem se perder em casuís
tica mesquinha; o seu propósito nao será própriamente o de-
defender os seus direitos e as suas liberdades perante a lei
moral, mas antes o de chegar o mais perto possível do ideal
que o Cristo Jesús apontou a seus discípulos e que ressoa de-
maneira grandiosa no sermáo sobre a montanha (Mt 5-7) !

CORRESPONDENCIA MlODA

OLIVEIRA (Befo Horizonte) : Sobre a Logosofia, V. S. encontrará.


resposta em "P. R." 9/1958, qu. 2. Trata-se de um sistema de fundo
panteísta ou monista, que quer levar o homem a perfeigáo, fazendo que
este tome consciéncia de "ser urna parcela ou centelha da Divindade" !
É de todo ineompatível com a ideología crista.

CURIOSO (Sao Paulo) : A respeito da Psicanálise, veja "P. R."


8/1958, qu. 1. Distinga-se entre a técnica da psicanálise e a filosofía,
que Freud, seu fundador, associou a essa técnica. A técnica, ou seja, o
método de descoberta de motivos subconscientes de nossos atos, representa
um valor positivo em medicina (desde que seja criteriosamente aplicado).
Quanto á -filosofía freudiana ou á interpretacao que Freud dava ao
comportamento humano em geral, é deficiente, pois reduz os motivos-
subconscientes a afirmacóes sexuais; o pansexualismo de Freud, que yem
a ser materialismo, merece reprovagáo por parte da consciéncia crista.
Há nao poucos analistas que em Filosofía nao seguem Freud, mas-
concepedes sadias e cristas.

URUPBS BRASIL (Moji Mirim, Eat. de S. Paulo): Temos dianter


dos olhos sua carta portadora de 29 questóes complexas, sem enderéco-

— 179 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 40/1961

para resposta. Varios dos assuntos já foram abordados neste periódico;

aSS"o índice dos livros proibidos, em "P. R." 6/1957, qu. 10


e "P. R." 27/1960, qu. 5;
a criagáo do mundo «em seis dias", em «P. R." 26/1960, qu. 4 ;
o limbo e a sorte das criansas náo-batizadas, em "P. R. 10/1958, qu. 4;
os sinais de Deus e os sonhos, em "P. R." 19/1959, qu. 6 ;
"Todas as religióes sao boas ?", em "P. R." 2/1957, qu. 2 ;
5/1957, qu. 7 e 8 ;
1/1958, qü. 7 ;
a inseminacáo artificial, em "P. R." 4/1957, qu. 2 ;
o parto sem dor, em "P. R." 2/1957, qu. 1 i
A lista poderia ser prolongada ; queira ver os índices anuais da
revista. Seria oportuno mandar algum enderéco para esclarecimentos
mais rápidos e extensos.

RISEM SILMO (Curitiba): As questóes propostas por V.S. sao


í-ealmente objeto de pesquisa, sobre o qual nao se pode proferir sentenca
definitiva. Fazem parte do tema da próxima Semana Teológica Nacional
("O sacramento da Ordem") a se realizar em Curitiba no mes de Ja
neiro de 1963. Por enquanto, nao se detenha muito s6bre o assunto,
aguardando as conclusóes de estudiosos abalizados.

D. ESTÉVÁO BETTENCOURT O.S.B.

«PERGÜNTE E RESPONDEREMOS»

Assinatura anual de 1961 Cr$ 200,00


Assinatura anual de 1961 (vía aérea) Cr$ 250,00 ^
Número avulso de 1961 Cr$ 20,00
Número de ano atrasado Cr$ 25,00
Colesáo encademada de 1957 Cr$ 320,00
Colegáo encademada de 1958, 1959, 1960 .. Cr$ 450,00 (cada)

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