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PARADOXOS E PERSPECTIVAS
Adeljalil AKKARI1 ,
Natania Nogueira2 , Peri Mesquida3
1 - INTRODUÇÃO: A EMERGÊNCIA DO TEMA
A globalização tornou-se um tema de conferências, seminários e debates científicos nas
revistas especializadas. Há mesmo novos departamentos universitários, que se ocupam
exclusivamente do tema, oferecem cursos e atuam no sentido de adaptar a sociedade a
esse movimento "globalizador". No campo da educação a discussão gira em torno dos
meios capazes de tornar as instituições de ensino compatíveis com a globalização. A
primeira observação, que nos vem à mente, é que a globalização é, às vezes, apresentada
como uma realidade contemporânea, algo que surgiu subitamente. No entanto, parece-nos
que a globalização é o produto histórico de uma série de evoluções, que se inscrevem em
um movimento, que pode ser identificado como de longa duração. Essa evolução teve
como elemento catalisador a vontade de um certo número de países e de grupos sociais de
dominar e explorar outros países e grupos sociais, configurando-se em um duplo processo
de dominação: ao mesmo tempo em que reflete o processo de dominação dos países do
Norte sobre os países do Sul, expressa, também, a dominação de certos grupos sociais no
interior de um mesmo país.
Para resumir essas evoluções, podemos dizer que a globalização é o produto do seguinte
encadeamento:
A Europa constitui, com a América do Norte e o Japão, uma tríade de pujança, onde se
concentram de uma só vez um grande bem estar financeiro, os principais conglomerados
industriais e o essencial da inovação tecnológica. Essa tríade domina o mundo como
nenhum império de outro tempo jamais o fez (RAMONET, 1999).
Nessa perspectiva de dominação, os seguintes fatores exercem um papel importante no
âmbito da globalização:
(1) As inovações tecnológicas reduzem ainda mais os postos de trabalho não qualificado;
daí, a importância crucial dos investimentos em da educação;
(2) a globalização provocou uma redução relativa da importância dos Estados Nacionais.
Numerosos blocos regionais de Estados Nacionais se constituíram em diversas partes do
mundo. Esses blocos implicam necessariamente uma certa perda de soberania. Essa
redução do poder do Estado Nacional se traduz na área da educação pela necessidade de
edificar programas escolares transnacionais, fazendo com que a história e a geografia
nacional, por exemplo, não sejam ensinadas da mesma forma como vinham sendo
ministradas até então; 4
(3) a mundialização aproxima os povos e os países do mundo, na medida em que as
distâncias são praticamente abolidas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação. O
ensino virtual não é mais ficção científica. Atualmente os estudantes podem estar em São
Paulo e o professor no Rio de Janeiro, Nova Iorque, Genebra ou Tóquio;
(4) a globalização não é caracterizada pela uniformidade, pela tranqüilidade e pela
clareza, mas, ao contrário, pela diversidade, pela diferença, pela complexidade e pelo
acirramento dos conflitos. O processo de ensino - aprendizagem tradicional - sofre
significativas alterações, e o desenvolvimento dos conhecimentos científicos, que já é
rápido, tende a andar ainda mais depressa. Mesmo um brilhante professor universitário
não está mais seguro de ensinar o conjunto dos avanços científicos da sua disciplina. Os
alunos podem acessar informações recém "saídas do forno", cuja existência o próprio
professor ignorava, utilizando os meios eletrônicos, que se desenvolvem em toda parte do
mundo e são colocados à disposição daqueles, que possuem meios materiais para acessá-
los;
(5) a globalização não significa (e certamente não provocará) uma redução das
desigualdades entre os Estados Nacionais e, no interior de cada país, entre os diferentes
grupos sociais. Ao contrário, a configuração atual da mundialização fará perdedores e
ganhadores, dominantes e dominados.
Em suma, a globalização não transformará as regras das relações políticas, econômicas e
culturais nos planos local e internacional, marcados atualmente pelo conceito de
dominação. Como destaca Weisban (1989), os princípios, que sustentam as regras e as
práticas do FMI, do Gatt ou do Banco Mundial, refletem os interesses e as ideologias dos
países mais poderosos do sistema internacional. A globalização não é então a passagem
de uma inexorável tendência histórica e natural. Ela é, sobretudo, uma construção política
de um pacto entre as elites nacionais e transnacionais e da impunidade 5 à pressão política,
de que se beneficiam as multinacionais e as organizações internacionais, como o Banco
Mundial, o FMI e o Gatt.
Neste artigo a globalização não será, por conseguinte, considerada como uma realidade
incontornável, à qual a educação deve se adaptar, nem como um demônio a exorcizar e
sobre o qual os pedagogos devem evitar uma tomada de posição. O modesto objetivo
deste ensaio é analisar e compreender as principais estratégias da globalização, a fim de
poder construir alternativas educacionais viáveis. Dessa maneira, vamos desmistificar
esta "mitologia" pós-moderna, já que a globalização é mostrada como uma nova religião
fora da qual não há salvação. Desmistificar o significado soteriológico da globalização é
uma tarefa de todo intelectual comprometido com a igualdade, a solidariedade e com as
lutas populares em todas as partes do mundo, em particular nos países de capitalismo
periférico.
2 - AS CONSEQÜêNCIAS DA GLOBALIZAÇÃO NO CAMPO DA EDUCAÇÃO.
Como acertadamente destaca Wulf (1999), a educação e a formação se encontram no seio
de um conjunto de tensões, que precisam ser superadas:
- a tensão entre o global e o local; - a tensão entre o universal e o singular; - a tensão entre
a tradição e a modernidade; - a tensão entre o curto e o longo prazo; - a tensão entre a
competição e a colaboração; - a tensão entre a ideologia da "igualdade de chances" e a
igualdade de condições; - a tensão entre o extraordinário desenvolvimento do
conhecimento e a capacidade de assimilação; - a tensão entre o espiritual e o material
Parece-nos exagerado dizer que todas essas tensões são provocadas pela globalização.
Mas, podemos constatar que ela as acelera, as exacerba e as complexifica.
Com relação à educação, os efeitos da globalização podem ser abordados sob dois
aspectos: no plano institucional (sistema educacional) e no plano social (utilização e
representação do sistema educacional pelos cidadãos).
(a) Plano institucional
No plano institucional, a gestão local da educação e a descentralização tornaram-se atitudes
teoricamente dominantes. Sem dúvida, a gestão local da educação e o aumento da autonomia
das escolas passaram a fazer parte das reformas da administração pública empreendidas após
a "crise" das finanças públicas, que justificou o gradual afastamento do Estado de suas
responsabilidade sociais.
Entretanto, como destaca Barroso (2000), a mudança da forma de controle não implicou, na
maioria dos casos, em perda do poder do Estado nem de sua administração central. O
controle a priori, fundado na legislação e nas normas nacionais, é substituído por uma
vontade a posteriori de exercício do poder , fundado sobre modelos de eficácia, de qualidade
e de novos métodos de gestão.
A descentralização constitui um dos temas favoritos, que acompanham o discurso sobre a
globalização. Ainda que seus métodos e suas conseqüências não sejam ainda claros, a
descentralização é representada como uma solução milagrosa, que permite:
- responder às necessidades dos usuários dos serviços educacionais; - promover a inovação,
aumentando cortes da administração central; - lutar contra a ineficácia das estruturas
administrativas burocráticas, centralizadas e hierarquizadas. Weiler (1996) acredita que o
lugar de escolha de proposições descentralizantes nas agendas políticas não é devido à sua
possível eficácia (aliás, problemática e precária), mas à sua utilidade política como modo de
gestão do conflito social. A descentralização tem, também, um efeito perverso sobre as
tentativas de redução das desigualdades regionais.
Aproximando a administração e a gestão da educação e lhes oferecendo uma pretensa
"autonomia", são geralmente favorecidas aquelas regiões que, no plano econômico, são mais
desenvolvidas. A rigor, múltiplos observadores notam que seria contra-produtivo
descentralizar sem uma redução do clientelismo e da corrupção no nível local. Esta condição
está longe de ser preenchida na maior parte dos países do "Terceiro Mundo".
(b) Plano social
No plano social, os que defendem a globalização tentam convencer os cidadãos a depositar uma
confiança cega no mercado e na privatização.
Ball (1994) observa que os defensores da lógica do mercado no campo da educação levantam
diversos argumentos:
(1) o financiamento público através dos impostos não está diretamente ligado à satisfação dos
"clientes";
(2) a ausência de lucro conduz os diretores das escolas a utilizar os métodos conservadores, na
expectativa de obter proveito próprio;
(3) a tomada de decisão é dominada pelos interesses corporativos;
(4) o monopólio do Estado gera ineficácia e aumento da burocracia, encorajando o desperdício e
inibindo a responsabilidade dos educadores para com os pais;
(5) todos esses sintomas contribuem, segundo os neoliberais, a abaixar as "normas de qualidade"
e, ainda não estimulam a "excelência".
Dale (1994) acredita que as razões, que motivam os defensores da lógica do mercado aplicada às
instituições educacionais, não são prioritariamente de ordem econômica, mas, antes, política e
ideológica. Com efeito, a forma assumida pelo mercado é menos importante que a sua efetiva
instauração. A referência ao mercado funciona mais como metáfora, ou como um slogan
ideológico, do que como um guia explícito e detalhado para a ação. Esta é uma espécie de dogma
nesta nova religião (globalização - neoliberalismo).
Ressalte-se que os estudos sobre os efeitos da livre escolha da escola pelas famílias (um dos
argumentos preferenciais dos neoliberais) e sobre a competição entre estabelecimentos escolares,
mostram que a introdução do elemento "escolha da escola pela família" cresceu tão somente
entre os alunos de classe média na sua competição por diplomas profissionais, pois, nem todos os
grupos sociais ou étnicos dispõem de capital cultural e material indispensável para fazer as
"boas" escolhas (ZIBAS, 1998).
No seu livro, A riqueza das Nações, escrito em 1900, Adam Smith estimulou o poder público a
conceder aos pais os meios financeiros, para comprar os serviços educacionais para os filhos, a
fim de prevenir um possível monopólio público sobre a educação (SMITH, 1976). Cinqüenta
anos depois, Milton Friedman (1956), defendeu a tese de que somente o financiamento público
da educação atribuído às instituições privadas poderia garantir a livre "escolha" dos pais.
Atualmente, aqueles que defendem um papel mais importante do setor privado aumentam sua
influência, postulando que as soluções privadas em matéria de educação maximizam a
possibilidade de escolha, desenvolvem a responsabilidade em termos de resultados no interior do
sistema educacional e liberam os recursos financeiros públicos de sua responsabilidade social
para com a educação, podendo, em tese, ser aplicados em outros setores importantes da
sociedade.
A educação, que no pensamento iluminista, era vista como um direito de todos e, também, como
um instrumento importante para a construção das nacionalidades, transforma-se, no ideário
neoliberal e "globalizante", em um investimento nas "habilidades e competências técnicas dos
indivíduos, visando seu melhor desempenho no mercado de trabalho, ou como um bom negócio
para os investimentos capitalistas na venda de uma nova mercadoria, para a qual, potencialmente,
há uma grande massa de consumidores necessitados de treinamento técnico-profissional"
(GAMBOA, 2000, p. 100)
No entanto, mesmo o Banco Mundial reconhece, que os estudos científicos sobre as escolas
privadas não permitem concluir que elas são mais eficientes, que as escolas públicas, mesmo
acreditando que aquelas servem melhor do que estas à preparação de mão de obra técnica e
eficiente para o mercado de trabalho (WORLD BANK, 1999).
3 - PARADOXOS E IMPASSES DA GLOBALIZAÇÃO
Comparando as análises sobre a introdução da lógica do mercado nas políticas educacionais, na
França e na Grã-Bretanha, Ball & Van Zanten (1998) constataram tendências similares. Na
realidade, pode-se dizer que a privatização oficial dos estabelecimentos escolares não ocorreu em
nenhum dos dois sistemas. Mas, a educação transformou-se progressivamente de um bem
público em um bem privado. De um lado, houve um abandono mais ou menos importante das
políticas estatais de discriminação positiva em favor do livre jogo das escolhas familiares, da
autonomia dos estabelecimentos e das iniciativas de outros atores, como as coletividades locais
ou as empresas. De outro lado, houve um desenvolvimento da comercialização dos resultados,
dos processos e da comunicação pedagógica.
Um outro estudo realizado por Whiltey, Power & Halpin (1998) sobre os efeitos das políticas de
delegação e de escolha ( Devolution choise in education) em seis países (Austrália, Inglaterra,
País de Gales, Nova Zelândia, Suécia e Estados Unidos), não mostrou a existência de uma
relação entre o reforço (aumento) da autonomia escolar, a melhoria de sua eficácia e a qualidade.
Ao contrário, os autores mostraram que a criação de quase-mercados educacionais, aliada à
possibilidade de escolha da escola pelos pais, tem freqüentemente efeitos negativos sobre a
equidade do serviço público. Os autores estimam, que as políticas de educação recentes não têm
feito nada, para reduzir as desigualdades existentes para o acesso e a participação nos bens e
serviços da educação, e em numerosos casos contribuíram para exacerbá-las ainda mais.
No plano pedagógico, constatamos a emergência dos temas da responsabilidade dos educadores (
accountability of teachers), e a necessidade de testes " standards" e da qualidade total, na
educação.
A falta de "responsabilidade" dos educadores e dos administradores, no que diz respeito à
performances dos alunos e à ausência de mecanismo de avaliação e " standards" acadêmicos
adequados, é constantemente levantada pelas tendências pedagógicas e de gestão, que sustentam
a necessidade de reformas neoliberais em educação, para indicar a falta de qualidade da prática
educativa.
O termo inglês " accountability" não tem equivalente satisfatório em Português nem em Francês,
mesmo se o aproximamos de "responsabilidade". De certa forma, ele traduz a obrigação que os
parceiros na área da educação têm (políticos, planificadores, administradores, educadores,
supervisores) de perceber tanto na hierarquia administrativa, quanto junto aos usuários das
instituições educacionais, a capacidade de solucionar problemas e a qualidade da educação
ministrada.
O problema crucial em relação à responsabilidade dos educadores é o de saber o que os
educadores devem levar em conta. Afinal, trata-se de levar em consideração todos os grupo
sociais, ou somente os que são socialmente dominantes?
Além disso, é justo contar com alguma "responsabilidade" por parte de educadores, que não
podem viver decentemente com seus magros salários? Podemos igualmente nos perguntar se é
possível a " accountability" em uma sociedade marcada pela hegemonia cultural, na qual os
interesses das pessoas já privilegiadas são cada dia ainda mais dominantes?
Paralelamente a essa pressão sobre o corpo docente, o pensamento neoliberal em educação clama
pela necessidade de estabelecer testes " standartizados" em nível nacional e de comparar os
resultados obtidos por diversos países e pelos diferentes tipos de escola. Esses testes, às vezes
aplicados em vários países, são, acima de tudo, um jogo econômico controlado por alguns
centros de pesquisa em educação com base em países do Norte (afinal, quem estabelece os ISO
9000, em educação?). Longe de contribuir para melhorar a qualidade da educação, esses testes
servem para mostrar artificialmente a ineficiência da escola pública em relação à escola privada.
Pode-se dizer que a emergência do conceito da qualidade total demonstra nas sociedades
dominadas pelo pensamento neoliberal o triunfo do fator material sobre o humano, fato que
atesta o viés essencialmente materialista do capitalismo. Em muitas reformas pedagógicas
neoliberais nos países do Terceiro Mundo, os manuais escolares contam muito mais do que a
formação inicial e continuada dos professores. A evolução da administração em educação e de
seus modos de regulação da escola pode ser vista no âmbito da escola através do esquema I: