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familia, trabalho e direitos entre as classes trabalhadoras urbanas* Vera da Silva Tellos Felar da pobreza numa sociedade como a brasileira como falar de um paradoxo: perturbadors nas suas formes de exposigo no cendrio urbano das grandes cidades, es- candalosa naquilo que 2s estatisticas revelam da situagéo de miséria das grandes maiorias, presente nos discursos pabli- cos enquanto divida social que haverd de ser resgatada para que este pals se mostre 3 altura de uma modernidade pre- tendia como projeto, a questi da pobreze est’ af numa ‘evidéncia que se multiplica por todos os lados @ da qual nin- guém pode se furtar. Mas é nessa evidéncia mesmo que 0 paradoxo se constitui, pois @ légica que constrdi a sua visibi- lidade como que @ pulverize no interior de temas “maiores” gue server para qualificé-le como problems. Chaga eberta 8 lembrar 0 tempo todo 0 subdesenvolvimento de um pas que se acostumou a pensar ser 0 pals do futuro, a pobreza aparece como 0 efeito perverso de década de desenvalvi- mento econémico, cobrando agors seu tribute ne ameaca perturbadora de uma legiéo de excluidos e deserdados & que se associa o fantasma da convulsio social, da violencia urbena e de aumento da criminalidade que atemorize @ elite civilizada de sociedede, Por uma lado, @ pobreza & vista como variével de~ pendente de um projeto de crescimento econémico capaz de Eee ago co tapein om save raalizace sobre vabato olan ene clssos FEARS, SSE iis ble hace m come cance aus (1 Areepate, ver Sexton. Profstor do Daptramente de Seceogie ‘Sho Paulo om Porepoctva,4(2:37-48, abrivjunho 1980, absorver os que foram até entéo dele excluidos ~ nesse ca- 80, ela desaparece sob a cronca liberal nas virtudes reden- toras do mercado. De outro, nas suas conseqdéncias mais draméticas, & vista como patologia, Na sua referéncia & multid3o dos miserdveis, 6 vista como caréncia que clama pela ago tutelar e assistencial do Estado pera minorar a desgraca dos “descamisados”. Nesse caso, cria-se a figura do necessitado, numa l6gica perversa em que os direitos se transformam em ajuda, a participac3o em tutela estatal, a justiga em caridade e a condigo de pobreza em estigma que diferencia 0 pobre de todos os outros, os trabalhadores, que ‘esto supostamente capacitedos para garantir sue sobrevi: véncia com os frutos de seu trabalho (1), Entre a figura tu- telada do necessitado e a figura modelar do trabalhador produtivo, 8 pobreza se transfigura em questéo de seguran- ga publica, por conta de uma dramatizacgo da criminalidade (2) que recria, a cada momento, a imagem ameacadora das classes perigoses. E precisamente nessas formas de encena¢ao pilblica da pobreza que se explicitam os aspectos mais autoritérios & discriminadores de ume sociedade em que 3 justica sempre foi confundida com aco tutelar do Esterio, em que os di- reitos, quando existentes, née so formulados por referéncia @ uma nogio de igualdede, mas numa légica que cris seg- mentagdes que impedem @ sua universelizagéo, seja por conta do critério tutelar que define aqueles que estéo cre- denciadas, pela sua prépria pobreza, aos servicos assisten- ciais do Estado, seja por conte do critério corporative, em que 0 acesso & Previdéncia Social vira privilégio daqueles ‘que conseguem vencer os azares do mercado e se creden- 7 iar perante a sociedade (e 0 capital) como trabalhador pro- dutivo. E nessas formas de encenagdo publics, ainda, que se explicita a tradigéo de uma sociedade atravessada por hie- rarquias de todos os tipos, em que a conhecida prétics de estigmatizacéo e criminalizacao das classes trabalhadoras se ancora num imaginério social que constréi as imagens mo- deleres do trabalho responsével e da familia organizada co- mo lugares exclusivos para uma forma de existéncia social legitima, fora dos quais as classes trabalhadoras aparecem numa figuracao ambigua (e suspeital em que se confundem ‘a imagem do trabalho, @ de vadiagem ee da marginelidade; uma sociedade, enfim, que resiste em reconhecer as classes populares como suieitos de reivindicacées leaitimas. que construiu ume peculiar concepedo de cidadania que exclui a liberdade publica como valor politico e que se confunde com © respeito & ordem e & eutoridade, de tal forma que a reivin~ dicagdo, a movimentacéo e a demanda coletivas sempre es- to nes fronteiras daquilo que 6 percebido como transgres- séo, como desordem, como subverséo, como convulséo. (© que espanta na sociedade brasileira 6 a persisténcia de um senso comum construfdo em torno das evidéncias que essa encenacéo piiblica de pobrezs produz e que parece ter sido pouco atingido pelos ventos da democratizagéo que agitaram toda a década de 80, O que espanta, sobretudo, 6 como 0 aumento visivel da miséria nao foi suficiente para a constituigao de uma opinigo publica critics capez de equa- clonar a questo da pobreza e da justice social nos termos da cidadanie, e nao da tutela estatal. A comecar pelo pro- blema ds fome~ essa realidade banalizada @, no entanto, re- corrente na histéria brasileira, atingindo a grande maioria da populacgo -, que Geraldo Muller toma como prova cabal da ‘subordinacéo do direito a ter direitos 80 poder econdmico privado, o que significa concretamente a ndo realizacao dos direitos enquanto regra normativa auténoms, dotade de uma objetividade independente das vontades privadas & sustentade por uma opinigo publica que exige padrdes mi nimos de sobrevivéncia como con: merecer a qualificagéo de civilizada (3). Aldaiza Sposati, por sua vez, mostra em seu estudo sobre as politicas essisten- clas do Estado que as multiddes daqueles que slo classifica- dos como “carentes” no se constituem em interlocutores politicos, ¢ no mobilizam a apiniéo publica, jé que pele sua condi¢do de vide so excluidos da vida civilizada e, na sua relagdo com o Estado, s80 reconhecidos como necessitedos @ néo como cidadéos (4). Paulo Sérgio Pinheiro jé chamou @ atencdo pera 0 fato de que a violéncia policial contra as clas- ses populeres nunca engontrou, na histéria brasileira, lugar no discurso democrético (5). E todos os que estudam a vio- lencia urbana ~ af incluindo a sua forma mais emblemética e dramatica, 0 chamado problema do menor ~ mostram, & exaustéo, a persisténcia de uma opiniéo pablica que insiste na étice da seguranca publica ¢ que acusa as classes popu- leres pela sua prépria desgraca, uma vez qua identifica nas suas formas de vida, de trabalho e de moradia a sede de uma desordem moral geradora de todos os males socia SaaS oh ite te ttn re ten er ta, oe sacar ee Se aqui se esté sugerindo pensar a questéo da pobreza nna sua relacio com os direitos, nfo & para, novamente, faz6- la desaparecer sob 2 predominancia do tera msior da cida~ dania. Na verdade, € na perspectiva daqueles que fazem 2 experiéncia da pobreza que essa relagio se esclarece, So- bretudo quando se leva em conta que as clivagens entre 0 pobre e o trabalhador produtivo, o marginal eo trabelhador honesto perdem todo o sentido para aqueles que vivem co- tidianamente as incertezas do mercado de trabalho e fazem 2 passagem periédics pelo desemprego © 0 subemprego; para equeles cujos imperatives da sobrevivéncia cotidiana 0s obrigem a formas de organizecéo da vida doméstica que no correspondem ao modelo de moralidade associado 3 familia organizada em seus papéis tradicionais; ¢ para todos, enfim, que convivem em seus locals de moradia com uma heterogeneidade de estratégias de vida, trabalho e moradia que se articulam e converge numa condigso comum @ compartiihada de privag80. Se do ponto de vista de suas condigées de vide e trabalho aquelas clivagens perdem sen- ‘ido, elas importer e esto presentes em suas vidas, pois 80 elas que montam o cenério no qual 6 representado 0 seu lugar na sociedade. Entre a repressio e a tutele, parece ‘no haver um lugar reconhecivel e reconhecide para todos os que vivem a violéncia cotidiana do emprego instavel, do salério insuficiente e da moradia precéria. E isso significa di zor quo a oxperiéncia da pobreza 6 algo mais do que as cifi- culdades objetivas da sobrevivencia cotidiana. E também a experiéncia de uma sociedade que os coloca na condicéo de péries sociais. Nesse caso, 8 questéo de violéncia urbana esclarece muita coisa sobre o que é ser pobre na sociedade brasileira, A associac3o entre criminalidade e pobreza é cotidiana- mente construfda néo s6 pela forma como a criminalidde 6 tratada nos meios de comunicago de massa, mas também @ sobretudo pela prética rotineira da priso por vadiegem de trabalhadores sem carteira de trabalho essinada; pela sus- peita que recai sobre o trabalhador no mercado informal sempre sujeito a ser confundido com 0 marginal; pela acu- sago de comportamento suspelto, razéo suficiente para a priséo para “averiguago”, cirigida contra qualquer um que, por raz6es diversas, cai nos critérios usados pelas forgas po- liciais para diferenciar © bandido perigoso do pobre ordeiro, trabalhador honesto e chefe de familia cumpridor de seus deveres; pelo estigma que sofre o favelado, vivendo entre a j@ncia das betidas policiais, 0 temor que sua presenca Provoca e @ recusa de oportunidades de trabalho, prova evi dente de que sua condig&o de moradia serve como um cre- denciamento em negativo pera o mercado de trabalho. Mas 0 que chama a atongdo nisso tudo 6 a eficécia pro- priamente simb6lica desses préticas na medida em que pro- duzem as evidéncias que constroem a verdade do crime na sua relagdo com a pobreze. Verdade que & de algum modo incorporads 3s formas mesmo com que as classes trabalha- doras concebem suas identidades ¢ 0 seu lugar na socieda- de, As pesquises mostram o quanto essas identidades e es- 05 lugares so elaborados num esforco reiterado de de- marcacSo des disténcias e diferengas com 0 bandido e 0 marginal, Como mostra Alba Zaluar, a oposigSo trabalho- delingdéncia 6 central nas formas como os trabalhadores elaboram uma nogéo de trabalho honesto que se refere me- nos & experiéncia no mercado de trabalho do que a uma condigéo de vida regida por uma &tica do provedor, pela qual conferem valor moral 8 persisténcia de uma vida an- ‘corada no trabalho regular @ na familia orgenizada. Persi ‘tEncia pereebida como escolha apoiada no exercicio de uma rezéo e de uma vontade que os diferencia moraimente de ‘todos os que no fazem do trabalho regular um meio e uma ‘ocdo de vida, que sucumbiram ciante das adversidades ‘comuns a todos, entrando no caminho sem volta do crime e da marginalidade (6). A pesquisa de Teresa Caldeira mostra ainda a vigéncia de uma auto-representaco do “pobre or- deiro” construfda numa I6gica de diferenciacao frente a to- dos os que "no 80 dircitos”” © que, por isso mesmo, nao merecem ser reconhecidos nos seus direitos. Daf essa pecu- liar expresséo popular do “procurar os direitos”, prerrogati- va exclusiva daqueles que se saber “bons cidadéos" por- que trabalham honestamente, cumprem suas obrigagées, tm ficha limps ¢ carteira de trabalho assinada, porque ‘constroem seu destino através da forca de vontede, de persisténcia e da coragem para enfrentar as adversidades de vide, porque “apesar” da pobreza, garantem a dignidade de suas vidas através da familia unida, de casa limpa ¢ bem cuidada, da boa aperéncia e da cordialidade de seus com- portamentos (7). ‘Chama @ atencio nisso tudo © quanto @ nogdo do “tra balhador honesto", do “chefe de familia responsével” ou do “pobre ordeiro” & carregada de um contetido moral que faz referéncia @ uma nogdo de ordem legitima de vida intel ‘mente construida na perspectiva da vids privada. Em outras palavras, esse esforco para escapar de homogeneidade es- tigmatizadora da pobreza 6 regido por uma ética moral que define o valor daqueles que, como pessoas, souberam en- frentar os azares da vida através da razBo, de vontade e de autodeterminaggo na construcao de seus destinos. E é isso precisamente que parece armar o drama de suas vidas coti- dianas, pois esse esforco 0 revela inutil na medida em que 1s categories que tipificam 0 criminoso sé0 as mesmas que caracterizam @ pobreza como condicao de vide. Como diz Rosa Fischer, 0 pobre é aquele que no quer ser confundide ‘com © marginal, mas que esté sempre na iminéncia de sor assim considerado pela sociedade, pelas institulgdes do Es- tado e, mais do que nunca, pela policia. € ai que Fischer lo- caliza as dificuldades, dessa populacdo, de resistir 8 violéncia policial de que é vitima freqiiente, j8 que a propria mobilize: 80 contra a violencia & viste com desconfianga, devido a0 fisco de identificagao com a conduta criminosa. Por outro lado, 0 apoio & aco da policia “é uma via de diferenciacBo do comportamento e poderd identificar o cidadao que cum pre e valoriza as normas estabelecidas”. Por essa via, entdo, entra em acéo uma Iégica perverse em que se incorporam todos os astigmas da pobreza (a atitude suspeita, ma apa- Bnei, auséncie de certeira de trebslho ficheda) para en: ‘contrar as razces de uma violencia que nunca aparece como ome eee stains ¢h caBRR prin day st” olan dog pores cx pentane 0 [ensam do poser. S80 Pasi, Salons, 1005- Fister hea once £8 Pekno, Sor eal este cmolnso ga senor’ ms nadioar de claca te HEE Ye a Oupibel A moore ro Sale perspectivas, Seo Pui, Vor (10) ew StioPaulo em Perspective, 42:37=45, abrivjunho 1980, algo inteiramente arbitrdrio, mas de alguma forma motive- do por aqueles que, em boa ou mé f6, deram margom para a suspeita policial (8). E nessa espécie de aceitacdo da violéncie policial cons- trufda entre o temor @ o sentimento de impoténcia que se explicita uma experiéncia do arbitrio e de excluséo que & elaborade quase que exclusivamente a partir dos cédigos morais da vida privade e no consegue ser formulada na linguagem dos direitos e da justice. Essa é uma questéo en- fatizada por Luiz Antonio Paixdo, que mostre os obstéculos pare uma luta pela defesa dos direitos civis, na medida em que isso implica uma nocao de civismo que faz apelo a uma cultura publica igualitéria e aposta na existéncie de uma or- dem legal capaz de garantir as reciprocidades que a idéie de yualdade supde (8). € aqui que a privagao dos direitos se qualifice como construgao de uma ordem excludente, que se choca com esse universo moral construido pelo prisma da vida privacla e s6 pode ser vivida enquanto desordem, uma vez que rompe com todas as reciprocidades que se espera numa vida em sociedade. Desordem expressa no esforco do recompensado, no trabalho que no é reconhecido, na remuneragao que nao corresponde & dignidade de um chefe de familia; na justice que no funciona e deixa impunes os criminosos: na lel que penaliza os fracos e protege os po- derosos; nes “autoridades” que tratam o trabalhador ho- esto como marginal, que no reconhecem o seu valor e @ dignidade de sue pessoa; na policia, finalmente, que acusa 0 chefe de familia cumpridor de seus deveres, prende inocen- tes e deixe em liberdade o criminoso. Esse quebra das reci- procidades esperadas € certamente percebide como uma injustice vivida como sofrimento moral daqueles que néo encontram na sociadade a validacao e reconhecimento do valor de suas pessoas, de suas razdes e de suas vontades. O probleme € quando esse sentimento de injustice no en- ‘contra um espaco © uma linguagem por onde possa ser tra- duzido na reivindicagao de direitos que interpelam a socie- dade nos seus critérios de legitimidade. Isso esclarece, a meu ver, 0 significado da privacéo de direitos t80 caracteristica da sociedade brasileirs. As conse- qliéncias dessa privacdo nas condi¢des materiais de vide des grandes maiorias so @ contraface de auséncia de um espe- {G0 pubblico de pertencimento, em que seus interesses, razdes @ vontades possam ser elaborados e recanhecidos como demandas legitimes. Dai que falar dos direitos nao significa falar de uma determined esfera do social contemplada pela regulamentacao estetal. Significa falar, sobretudo, de uma forma de se conceber 0 lugar dos individuos na sociedede & as rociprocidades © responsabilidades que esses lugares demandam. Nesse caso, € possivel dizer que o direito é também uma forma de construcéo de identidades, implicada no modo como as situacdes de vide s40 problematizadas nas responeabiliiades envolvidas. Isso significe que ao di- reito come prética efetiva corresponde o que Francois Eweld define como “modos de julgamento” das circunstancias que, pelas sues conseaiiéncias, afetam 2 vida em sociedade (0) E nesses trés registros ~ das condicdes materiais de vi- da, dos lugares legltimos de pertencimento na sociedade € das formas de construcdo de identidades - que se pode pen- sar numa experiéncia de sociedade que tende a ser privati- 38

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