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A arte do (im)possível

Técnica cinematográfica e Cinema Marginal

O cinema, caçula das artes e filho da revolução industrial, se apoia num aparato técnico que
pode e está sendo minimizado, mas que de forma alguma é descartável. Para produzir imagens
em movimento são necessários equipamentos que empregam mecânica, óptica e eletricidade.
Não há como fugir disso.

Participei de alguns dos filmes selecionados para esta mostra, e quando fui convidado a refletir
sobre a cinematografia de então, algumas lembranças marcantes acabaram por delinear um
roteiro de idéias e impressões, que na falta de uma metodologia mais rigorosa, passo a seguir.

Eram tempos de furiosa antropofagia visual. Ambicionávamos sínteses improváveis: Irmãos


Maysles e Samuel Fuller. Camera na mão e chiaroscuro barroco. Mauro e Gláuber. Não raro,
como alguns momentos destes filmes atestam, conseguíamos operar senão uma síntese, pelo
menos uma explicitação das teses e antíteses com que nos debatíamos. Estas surgiram e se
consumiram ao sabor dos ciclos (ou quem sabe, surtos) que caracterizam a trajetória do nosso
cinema.
Do primitivismo dos cinegrafistas do início do século XX passando pelas tentativas de indústria
da Cinédia, Atlântida e Vera Cruz, até a onda autoral do cinema novo, mudaram os paradigmas
mas os métodos, ou a falta deles, permaneceram os mesmos.

Somos a pátria do improviso. E o que na musica é uma benção, no cinema nem sempre resulta
em mais do que confusão. Filmar com “jeitinho” era nada mais do que tentar superar as
deficiências de equipamento, material sensível, pessoal e infra-estrutura que enfrentávamos.

Como fotógrafos de produções mambembes, andávamos atrás da luz ambiente, presente do


Criador. Luz que dispensa listas e não gera faturas. Nosso problema é que filmávamos nos
trópicos, e nessas latitudes a latitude dos filmes não dá conta dos incríveis contrastes
existentes. Os “estouros” luminosos eram inevitáveis e não restava outra opção senão assumi-
los. Já os financeiros iam prá pindura. Ficou famosa a história do colega que, advertido por um
técnico mais experiente de que fora da sala onde filmavam, a luz estava fortíssima e as janelas
abertas estavam em quadro, retrucou: “E daí com lá fora? Eu estou filmando aqui dentro.” Nada
mais foi dito, nem lhe foi perguntado.

Não só assumíamos os contrastes como amávamos a fotografia dura. O preto no branco. Se


para os autores de então “ a moral era uma questão de travellings” para nós fotógrafos ela era
uma questão de contraste. E aí se instaurou um conflito, pois os laboratórios rezavam pela
cartilha dos fabricantes de filmes e queriam obter no processamento o máximo de gradação
possível no negativo (o que diga-se de passagem é o certo).

Vivíamos então o auge da contracultura. Um dos meus gurus prediletos era Buckminster Fuller.
Pensador multidisciplinar, duble de arquiteto e filósofo, pregava o princípio do Dymaxion: fazer
mais com menos. Se a natureza agia assim, quem éramos nós para fazer diferente? Na
cinematografia local sua inspiração calou e colou fundo. Tudo o que refletisse luz era bem-vindo
ao set. Até com os lençóis de casal da mãe de uma namorada construi rebatedores. As
lâmpadas fotoflood, relativamente baratas e que dispensavam refletores, eram as nossas
favoritas nos interiores. A sucata da Vera Cruz, os frankensteins do Honório Marim e os
gentilmente cedidos pelo Jaques Dehenzelein completavam o parque de luz.
Pelos Cahiers du Cinema, acompanhávamos atentos as experiências do Raoul Coutard com os
filmes para fotografia mais sensíveis (800ASA!!!), que ele tinha a manha de emendar na camera
escura para usar na sua Cameflex. Genial! Gianni Di Venanzo com suas calhas de fotofloods de
luz suave e sem sombras, virou um ídolo. Mas, mesmo sabendo tudo isso não escapávamos de,
como comentou com perspicácia Lauro Escorel, iluminar mais as idéias e o discurso do diretor
do que os cenários e os atores.
Muitos dos filmes na época sofriam de “síndrome da alegoria “, e o conceito acabava
sobrepujando a imagem, salvo raras exceções. Administrávamos com liberalidade a herança do
Cinema Novo, e na falta de outros recursos para movimentar a velha Arriflex IIB continuávamos a
leva-la nas mãos. Da alternância destes planos sacudidos com os longos gerais fixos, resultava
uma espécie contratempo rítmico, que ficou como uma marca registrada do movimento.

Do improviso, louvado na época e execrado no “surto” seguinte (o cinemão colorido da


Embrafilme) ficou uma lição preciosa, uma espécie de “navalha de Ockham” para o nosso
cinema (as instâncias não devem se multiplicar além da necessidade). Um apelo à racionalidade,
muito útil para cortar aqueles supérfluos, tão ao gosto do atual cinema para-publicitário.

Em suma: Foi ótimo enquanto durou. Dos sobreviventes, uns permanecem na atividade, outros
ficaram na saudade. Uma coisa não se pode negar; mexeu com a linguagem e acordou um
público já enfadado de tanta sociologia e boas intenções. Rebeldes, sim, mas todos de
excelentes famílias.

© carlos ebert, abril de 2001

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