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ROTEIRIZANDO:
UM ENQUADRAMENTO CONCEITUAL
PARA OLHAR A CIDADE
(...) A cidade é redundante:
repete-se para fixar
alguma imagem na mente.
(...) A memória é redundante:
repete os símbolos para que a cidade comece a existir
Calvino (1991:23)
Quando se fala em roteiro, vem logo à cabeça a idéia de imagens em seqüência. Por
que, então, não partir desta linguagem para, nestes tempos interativos, roteirizar o
ambiente? O exercício proposto é, pois, uma primeira leitura ambiental de um lugar
(espaço/tempo) onde se desenrola um drama em múltiplas escalas (o cotidiano, o
urbano, o metropolitano) com o transitar de diferentes personagens e o
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entrelaçamento de incontáveis histórias, formando um fascinante mosaico cultural .
O que se quer é “aprender do ambiente”. Descobrir as lições do ambiente para poder
fazer parte do jogo urbano interativo, (re)inventar suas lógicas e descobrir sua
complexidade, traduzida nas relações sócio-espaciais que animam a vida da cidade.
Nesta perspectiva, roteirizar traduz-se como aventurar-se em um percurso
visual/perceptivo. Para isso, é preciso que se defina um ponto de vista. Ou seja, um
olhar - ou uma forma de olhar - do observador-ator. Localizar no tempo e no espaço, a
ação de que trata o roteiro. Exercício desta natureza deixa de ser vago quando se
parte de um sistema de explicação que permita realizar a necessária tradução teórica
- ao mesmo tempo, descritiva, interpretativa e projetual. É o primeiro passo da
investigação-ação.
A arquitetura da cidade, protagonista - mais do que cenário - do drama urbano é tema
recorrente na literatura e no cinema. Blade Runner de Scott (1982), mostrando uma
Los Angeles, em 2019, ao mesmo tempo high-tech e miserável, orientalizada nos
costumes, banhada por uma chuva constante, tornou-se rapidamente um clássico
cinematográfico cult. Em A vida: modo de usar, Georges Perec (1991) faz de um
típico edifício parisiense da era Haussmann, o personagem principal. Calvino, em
suas Cidades Invisíveis (1991) parece tentar condensar, como ele mesmo afirma, em
um único signo - a cidade - todo o sentido da experiência humana.
Como coloca Kevin Lynch (1982), a imagem (a percepção) que se tem do ambiente
resulta de um processo interativo entre observador e o meio. Neste sentido, o
observador trata de traduzir o que vê em uma linguagem compreensível. Dota de
sentido as imagens selecionadas do ambiente em função dos seus próprios objetivos.
Desde esta perspectiva, a idéia de roteirizar o ambiente toma forma na medida em
que se possa - “com grande adaptação e a luz de (nossos) objetivos próprios”
(Lynch,1982:16) - construir um instrumento de investigação que articule, partindo da
nossa percepção das coisas e dos ritmos do ambiente, um conjunto de técnicas de
pesquisa social aplicadas à leitura ambiental, consubstanciando um método na forma
de “(...) um manuscrito que roteiriza o objeto que se procura conhecer e que permite
lê-lo. Ela (a metodologia) reconstrói a unidade significativa para um determinado
grupamento humano, levando em conta o sentido das possíveis incoerências, rasuras,
emendas, desvios, interpretações e comentários de seus membros sobre eles
mesmos e sobre agentes externos.” (Santos e Vogel,1985:13).
É neste sentido que este ensaio metodológico procura aportar o exercício de análise
ambiental urbana.
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No sentido dado por Alexander et Al. (1980) para o pattern Mosaico de Subculturas (pp. 64-70).
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PRIMEIRA LEITURA DO AMBIENTE:
UM OLHAR SOBRE TRÊS CIDADES
Nos últimos quatro anos (ao longo, portanto de oito períodos letivos), três cidades da
Região Metropolitana de Porto Alegre foram objeto dos estudos de investigação-ação
propostos pelo Ateliê de Planejamento e Desenho Urbano: as cidades de Guaíba,
Eldorado do Sul e Portão.
Em cada uma delas, em seu contexto sócio-histórico e a partir de suas
particularidades de configuração e desenvolvimento urbano, foi possível reencontrar
Leonia, Pentesilea e Zora. Em cada uma, convivem os conflitos que Pesci (1985)
denuncia como paradigmáticos do quadro urbano-metropolitano atual.
De forma mais ou menos transparente, ali estão os traços da sociedade consumista
que alimenta-se continuamente de um ciclo produção-consumo-dejeto; as franjas
periurbanas da exclusão da cidadania plena: amontoados de bairros sem
infraestrutura, sem arraigamento, sem história, sem dignidade; os pedaços da
inconclusa utopia modernista, fagocitada pelas ideologias dominantes, caricata como
espaço-retrato (Choay,1985) da cidade funcional.
Os que vem de fora trazem, ao olhar cada cidade, já uma perspectiva pré-concebida,
uma maneira de ler o ambiente (dotá-lo pois de sentido) onde pesam os valores
selecionados da vivência de cada um. É necessário, então, exercitar a capacidade de
“estranhar-se de si mesmo”, procurando um ponto de vista de observador participante
(ou seja, incorporando a experiência de viver em uma outra realidade - em um outro
ambiente - à seleção das percepções urbanas consolidadas).
A história de cada cidade (nova, para o observador) revela-se, em grande medida na
construção de uma historicidade cotidiana (Certeau,1985), ou seja, na maneira com
que seus moradores apropriam-se dos espaços urbanos públicos e privados,
revelando atos de prática de lugar.
Neste sentido, cabe enfatizar as palavras de Braudel, ao referir-se que “(…) a história
não é somente a diferença, o singular, o inédito—o que não se verá duas vezes. E por
outro lado, o inédito nunca é perfeitamente inédito. Convive com o repetido e o
regular” (1991:89). E rejeitar a neutralidade meramente científica como postura para
descobrir os fatos, abrindo-se a uma busca exploratória e projetual.
Em cada caso, procurou-se a leitura possível do contexto. Uma imersão na
historicidade cotidiana, na fruição dos lugares urbanos. A cidade (cada cidade) revela-
se, em uma primeira tradução, através do ponto de vista do
observador/investigador/projetista e sua percepção: ferramentas para roteirizar o
ambiente, iniciar a investigação, tratar de legitimar-se para poder agir.
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O Olhar e a Memória
Diário de Bordo
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Texto em forma de crônica, elaborado após uma visita à Eldorado do Sul, com o grupo de estudantes “a bordo” do ônibus da
Universidade (Março,1994).
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Chegamos à prainha, que tem praia e que tem rio, e que tem um
boteco e nos deliciamos com uma boa coca-cola semimorna que é,
afinal, um jeito da gente estar próximos das nossas (aquelas
velhas) certezas. Da prainha se vê o skyline recortado de POA.
Cheios de saudades, voltamos prá casa. Cheios, já, de saudades
de Eldorado do Sul.
On the road again, a FAU-UFRGS surge, depois de um absurdo de
pontes e viadutos, como um porto seguro (“E essa tal história de
periferia, cidade contemporânea e blá-blá-blá?”). Coisas para
pensar um pouco mais. Então vamos falar mais sério!
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Um Roteiro de Imagens4
Então é hora de olhar. Imiscuir-se no cenário/cidade.
Tornar-se personagem. Ator/agente dos fatos.
Retratar e retratar-se.
Perceber: aguçar os sentidos, aprender de Portão.
Take 1 Tomada 1
Strip Metropolitano
Take 2 Tomada 1
Take 3 Tomada 1
Take 4 Tomada 1
Take 5 Tomada 1
Flash-Forward Urbano
Take 6 Tomada 1
O coração da urbanidade
Take 7 Tomada 1
Pentesilea revisitada
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A respeito de patrimônio cultural tangível e cultura subjetiva, ver Fundación CEPA (1989).
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Take 8 Tomada 1
A invasão consentida
Take 9 Tomada 1
Pegadas de Leonia
Take 10 Tomada 1
Take 11 Tomada 1
Take 12 Tomada 1
Take 13 Tomada 1
O strip intermitente
Take 14 Tomada 1
Take 15 Tomada 1
A viagem inversa
Take 16 Tomada 1
Glossário12
Ação: movimento em frente à câmera.
Cena: unidade dramática do roteiro
Close up: plano em detalhe
Corte: passagem direta para outra cena
Dolly back: câmera se afasta do objeto
Dolly in: câmera se aproxima do objeto
Elipse: passagem rápida de tempo
Fade in: gradual escurecimento da imagem
Fade out: gradual iluminação da imagem
Flash-back: cena que revela elemento do passado
Flash-forward: cena que revela o que vai acontecer
Fusão: sobreposição de duas imagens em uma só
Gimmick: reversão de expectativa
Halo desfocado: fundo desfocado, objeto em foco
Insert: imagem rápida antecipando um fato
Long shot: plano geral, incluindo todo o cenário
Loop: segmento do filme
Multiplot: várias ações importantes articuladas
Off: vozes de fundo sem mostrar o narrador
Percurso da ação: conjunto de fatos e conflitos articulados
Plano médio: ou americano, da cintura para cima
Process shot: truque para simular movimento
seqüência: série de tomadas
Split screen: imagem da tela dividida em duas
Story board: roteiro em forma de desenhos seqüenciais
Story line: síntese da história
Take: tomada
Travelling: câmera em movimento contínuo
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Adaptado de Comparato (1983).
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APRENDENDO DO AMBIENTE:
ROTEIRO PARA UMA ANÁLISE AMBIENTAL
Aprender da paisagem existente
é a maneira de ser um arquiteto revolucionário.
Venturi, Izenour e Scott-Brown (1982:22)
quadro-síntese 1.: oferta de interfaces físicas - baseado em Fundación CEPA (1987), Perez (1995).
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quadro-síntese 2.: oferta de interfaces sociais - adaptado de Fundación CEPA (1987), Perez (1995)
Compreendendo 17
Nas sociedades humanas complexas , cada indivíduo cumpre o duplo papel de
a cultura
subjetiva protagonista e desenhador do ambiente. Com isso se quer afirmar que viver em
sociedade significa viver constantemente situações de interação com o meio (como
protagonistas, portanto), em muitas das quais existe a exigência de tomar-se decisões
que afetarão, não apenas ao ator/protagonista, mas também a outras pessoas e,
possivelmente, ao “espaço” em que vive este grupo. Em outras palavras, cada
pessoa, na medida em que, para viver em sociedade, é chamada a tomar decisões de
maior ou menor complexidade, exerce uma ação projetual que afeta a ambiente em
que vive.
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Projeto e “Não há projeto sem destino…”, sustenta Giulio Carlo Argan , no sentido em que a
destino ação projetual eticamente conseqüente, em qualquer escala, objetiva viabilizar uma
transformação positiva em relação ao meio. A ação projetual destina-se a alcançar um
objetivo, a mudar, neste sentido, o destino daqueles para os quais o projeto se
endereça.
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Sociedade complexa está sendo definida, no âmbito deste texto, como grupamentos humanos em que a organização e
divisão das tarefas requer uma certa especialização dos indivíduos e papéis sociais, e uma distribuição hierárquica das
responsabilidades, referindo-se especificamente, no caso, às sociedades urbanas.
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Citado como parte do enfoque conceitual e metodológico para o projeto do Parque Costero del Sur (Fundación CEPA,
1989:28).
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Projetos Todos nós temos projetos individuais (Velho,1981), que estão sendo postos em
individuais e prática ou aguardando a oportunidade para que possam colocar-se em marcha com
coletivos aceitáveis possibilidades de sucesso. Os exemplos para ilustrar esta afirmação
podem ser identificados na vida cotidiana de cada pessoa: uma família projeta
construir sua casa própria; um jovem casal planeja, após a formatura, passar um ano
na Europa; um grupo de garotos organiza um time de futebol; um homem já idoso
resume o seu “projeto de vida” em escrever suas memórias.
São projetos que dizem respeito especificamente a cada indivíduo ou a um pequeno
grupo de pessoas. E, pelo menos em princípio, uma vez que os projetos encontrem o
seu destino, quase nada mudará na sociedade como um todo.
Outros projetos, no entanto, mais complexos e envolvendo mais pessoas ou grupos,
quando realizados podem refletir-se - em maior ou menor grau, positiva ou
negativamente - na vida de toda a sociedade. São projetos coletivos (Velho,1981):
dependem, para serem viáveis, da articulação de indivíduos ou grupos, no sentido de
concentrar forças para alcançar um objetivo comum. Aliás, uma das características
que melhor define uma sociedade complexa é a existência de projetos coletivos que
dão “corpo” a esta sociedade: uma identidade própria, um “norte” a ser buscado
conjuntamente.
Compreender este emaranhado (por isso a analogia com o puzzle) de projetos
individuais e coletivos que incidem sobre o ambiente, embora faça parte do óbvio
cotidiano de nossas vidas, não é uma tarefa das mais simples.
Se cada pessoa protagoniza o seu próprio destino, não é menos verdade que o
ambiente condiciona, em grande medida, a concreção dos desejos individuais e a
interação de indivíduos, grupos sociais, agentes econômicos, etc. no território sobre o
qual a multiplicidade de projetos está sendo acionada.
Embora cada pessoa explique o ambiente em que vive de uma forma que lhe é
própria e particular, muitos elementos deste ambiente (coisas boas ou ruins) fazem
parte de uma explicação que, dentro de certos limites, é aceita pela maioria das
pessoas. Ou seja, algumas coisas, na cidade, são compreendidas e valorizadas por
todos ou quase todos os cidadãos.
Cultura urbana É neste sentido que se pretende definir o que, a grosso modo, poder-se-ia chamar de
uma cultura urbana: um conjunto de valores, percepções, correlações e significados
que é compartilhado (reconhecido e interpretado, mas não necessariamente aceito
em sua íntegra) por todos aqueles que vivem em um determinado contexto urbano,
em um mesmo tempo sócio-histórico.
Pode-se dizer, dentro desta perspectiva, que esta cultura responde a uma percepção
estruturada do ambiente. O que permite a interpretação daquilo que importa
objetivamente ao conjunto de moradores de uma cidade, quais são suas reais
necessidades, seus valores mais caros e arraigados, suas expectativas de mudança
em relação ao ambiente em que vivem, etc.
Cultura e Se é verdade que na sociedade urbana - ou, mais especificamente, em uma
subjetividade determinada sociedade que se define pelo mosaico social que vive em uma dada
cidade -, as pessoas passam a compartilhar de uma mesma cultura, esta não se
constitui por si só em um consenso. Sempre existirá lugar para discordância de
pontos de vista e discrepância na valoração atribuída às coisas dentro desta cultura.
Existe pois espaço para o julgamento subjetivo dos fatos. E, neste sentido, a
mediação que se dá entre indivíduo ou grupo e o ambiente (o que, como foi visto, é
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A INVESTIGAÇÃO EM ANDAMENTO:
CONSTRUINDO A ANÁLISE AMBIENTAL