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ROTEIRIZANDO:
UM ENQUADRAMENTO CONCEITUAL
PARA OLHAR A CIDADE
(...) A cidade é redundante:
repete-se para fixar
alguma imagem na mente.
(...) A memória é redundante:
repete os símbolos para que a cidade comece a existir
Calvino (1991:23)

Quando se fala em roteiro, vem logo à cabeça a idéia de imagens em seqüência. Por
que, então, não partir desta linguagem para, nestes tempos interativos, roteirizar o
ambiente? O exercício proposto é, pois, uma primeira leitura ambiental de um lugar
(espaço/tempo) onde se desenrola um drama em múltiplas escalas (o cotidiano, o
urbano, o metropolitano) com o transitar de diferentes personagens e o
1
entrelaçamento de incontáveis histórias, formando um fascinante mosaico cultural .
O que se quer é “aprender do ambiente”. Descobrir as lições do ambiente para poder
fazer parte do jogo urbano interativo, (re)inventar suas lógicas e descobrir sua
complexidade, traduzida nas relações sócio-espaciais que animam a vida da cidade.
Nesta perspectiva, roteirizar traduz-se como aventurar-se em um percurso
visual/perceptivo. Para isso, é preciso que se defina um ponto de vista. Ou seja, um
olhar - ou uma forma de olhar - do observador-ator. Localizar no tempo e no espaço, a
ação de que trata o roteiro. Exercício desta natureza deixa de ser vago quando se
parte de um sistema de explicação que permita realizar a necessária tradução teórica
- ao mesmo tempo, descritiva, interpretativa e projetual. É o primeiro passo da
investigação-ação.
A arquitetura da cidade, protagonista - mais do que cenário - do drama urbano é tema
recorrente na literatura e no cinema. Blade Runner de Scott (1982), mostrando uma
Los Angeles, em 2019, ao mesmo tempo high-tech e miserável, orientalizada nos
costumes, banhada por uma chuva constante, tornou-se rapidamente um clássico
cinematográfico cult. Em A vida: modo de usar, Georges Perec (1991) faz de um
típico edifício parisiense da era Haussmann, o personagem principal. Calvino, em
suas Cidades Invisíveis (1991) parece tentar condensar, como ele mesmo afirma, em
um único signo - a cidade - todo o sentido da experiência humana.
Como coloca Kevin Lynch (1982), a imagem (a percepção) que se tem do ambiente
resulta de um processo interativo entre observador e o meio. Neste sentido, o
observador trata de traduzir o que vê em uma linguagem compreensível. Dota de
sentido as imagens selecionadas do ambiente em função dos seus próprios objetivos.
Desde esta perspectiva, a idéia de roteirizar o ambiente toma forma na medida em
que se possa - “com grande adaptação e a luz de (nossos) objetivos próprios”
(Lynch,1982:16) - construir um instrumento de investigação que articule, partindo da
nossa percepção das coisas e dos ritmos do ambiente, um conjunto de técnicas de
pesquisa social aplicadas à leitura ambiental, consubstanciando um método na forma
de “(...) um manuscrito que roteiriza o objeto que se procura conhecer e que permite
lê-lo. Ela (a metodologia) reconstrói a unidade significativa para um determinado
grupamento humano, levando em conta o sentido das possíveis incoerências, rasuras,
emendas, desvios, interpretações e comentários de seus membros sobre eles
mesmos e sobre agentes externos.” (Santos e Vogel,1985:13).
É neste sentido que este ensaio metodológico procura aportar o exercício de análise
ambiental urbana.

1
No sentido dado por Alexander et Al. (1980) para o pattern Mosaico de Subculturas (pp. 64-70).
2

2
PRIMEIRA LEITURA DO AMBIENTE:
UM OLHAR SOBRE TRÊS CIDADES
Nos últimos quatro anos (ao longo, portanto de oito períodos letivos), três cidades da
Região Metropolitana de Porto Alegre foram objeto dos estudos de investigação-ação
propostos pelo Ateliê de Planejamento e Desenho Urbano: as cidades de Guaíba,
Eldorado do Sul e Portão.
Em cada uma delas, em seu contexto sócio-histórico e a partir de suas
particularidades de configuração e desenvolvimento urbano, foi possível reencontrar
Leonia, Pentesilea e Zora. Em cada uma, convivem os conflitos que Pesci (1985)
denuncia como paradigmáticos do quadro urbano-metropolitano atual.
De forma mais ou menos transparente, ali estão os traços da sociedade consumista
que alimenta-se continuamente de um ciclo produção-consumo-dejeto; as franjas
periurbanas da exclusão da cidadania plena: amontoados de bairros sem
infraestrutura, sem arraigamento, sem história, sem dignidade; os pedaços da
inconclusa utopia modernista, fagocitada pelas ideologias dominantes, caricata como
espaço-retrato (Choay,1985) da cidade funcional.
Os que vem de fora trazem, ao olhar cada cidade, já uma perspectiva pré-concebida,
uma maneira de ler o ambiente (dotá-lo pois de sentido) onde pesam os valores
selecionados da vivência de cada um. É necessário, então, exercitar a capacidade de
“estranhar-se de si mesmo”, procurando um ponto de vista de observador participante
(ou seja, incorporando a experiência de viver em uma outra realidade - em um outro
ambiente - à seleção das percepções urbanas consolidadas).
A história de cada cidade (nova, para o observador) revela-se, em grande medida na
construção de uma historicidade cotidiana (Certeau,1985), ou seja, na maneira com
que seus moradores apropriam-se dos espaços urbanos públicos e privados,
revelando atos de prática de lugar.
Neste sentido, cabe enfatizar as palavras de Braudel, ao referir-se que “(…) a história
não é somente a diferença, o singular, o inédito—o que não se verá duas vezes. E por
outro lado, o inédito nunca é perfeitamente inédito. Convive com o repetido e o
regular” (1991:89). E rejeitar a neutralidade meramente científica como postura para
descobrir os fatos, abrindo-se a uma busca exploratória e projetual.
Em cada caso, procurou-se a leitura possível do contexto. Uma imersão na
historicidade cotidiana, na fruição dos lugares urbanos. A cidade (cada cidade) revela-
se, em uma primeira tradução, através do ponto de vista do
observador/investigador/projetista e sua percepção: ferramentas para roteirizar o
ambiente, iniciar a investigação, tratar de legitimar-se para poder agir.
3

O Olhar e a Memória

Impressões do Alto da Escadaria2


O que mais atraia a atenção do menino (...) eram
as numerosas cidadezinhas encerradas na cidade,
as fortalezas na fortaleza, isto é, os claustros
rodeados de muros e espaços mais ou menos
fortificados que restavam de séculos pretéritos (…)
Goethe (1986:25)

D e todos os lugares de Guaíba, o que mais gosto é esta


escadaria parada no tempo, que liga a cidade baixa à
cidade alta, ladeada de portões de ferro e chalés com
varanda. A cada degrau que se sobe, a faixa escura
azulada que é o rio aumenta sua presença, e faz subir o
horizonte desenhado de morros e edifícios da cidade grande do
outro lado do rio.
Do alto da escadaria, fazendo uso de meus olhos e pincéis,
enxergo as coisas como gostaria que elas fossem: tranqüilas,
vagarosas, preguiçosas. Nestes momentos, posso fingir que me
esqueço da Pentesilea que se espalha, subindo a colina,
ladeando a estrada, ocupando as várzeas.
Daqui posso ver a fonte colonial, mais embaixo, a rua
estreita, o caisinho. O casario mal cuidado, a antiga
prefeitura, o canteiro florido da avenida. As pessoas-
formiguinhas, lá embaixo, caminham pelas ruas da cidade. Cada
uma é uma história diferente. Suas casas, suas famílias, os
amigos, o trabalho. Cada pessoa um mundo cotidiano escrevendo
a historicidade: a história da cidade que passa como um filme
na tela dos olhos de cada cidadão.
Mirando ao norte, vejo o centro velho, a praça, o mercado, o
presídio. os edifícios públicos, as lojas e os bancos. Veja a
esplanada esboçada onde param os ônibus; a casa de bombas da
Corsan; os restos do trapiche abandonado, de onde, um dia,
saiam as barcas; os ambulantes vendendo toda sorte de
bugigangas made in Paraguai, ervas medicinais, raspadinha,
cachorro quente, pipoca, amendoim, sorvete, churrasquinho.
São dez horas da manhã de uma terça-feira ensolarada, águas
de março fechando o verão, um vento morno vem do rio. A
cidade, o coração da cidade, fervilha dessas pequenas
historias de cada um. Escreve-se, assim, uma história mais
completa, complexa, cheia de variações em cada olhar. Há uma
fila na porta de um banco: pessoas que estão ali para pagar
contas, receber a aposentadoria, sacar um pouco de dinheiro,
conversar com o gerente para tentar um empréstimo.
Sentado em um banco da praça, um velho está lendo o jornal.
Outros dois se aproximam. Sentam-se. A conversa logo está
animada. Não posso ouvi-los, mas sei que os assuntos são
importantes: o Inter que perdeu de novo, a última dos
deputados, dizem que não tem inflação mas tudo sobe…
Nos ônibus, pessoas sobem e descem, carregando sacolas,
pacotes. Vejo tudo com os olhos convictos de que tudo vai
bem. Nem presto atenção quando um menino - uns dez ou doze
anos, talvez - arranca a bolsa de uma senhora que esperava
para atravessar a rua. Corre, envereda-se por entre as bancas
dos ambulantes. Desaparece mercado adentro. Sei que ele vai
2
Texto em forma de crônica, escrito após uma visita a Guaíba, fora das atividades de ateliê (outubro, 1994). A cidade já era,
então, uma velha conhecida.
4

voltar: a cena se repetirá outra e outra vez. É um pequeno


drama, o mesmo drama, que se reprisa todos os dias. É um
drama entre muitos dramas no cenário urbano, na paisagem da
cidade.
Ao sul, a Riocell, na minha imagem (na minha imaginação) um
estapafúrdio monolito de concreto, ergue-se sorvendo do rio o
seu alimento. Sua chaminé beijando o céu, deixando sua marca
de fumaça branca. É uma história antiga, uma história e
tanto, uma já quase lenda, os noruegueses chegando, trazendo
o progresso, a riqueza, os empregos… e a poluição, o cheiro
insuportável, os peixes morrendo, as casas fechadas na
Alegria e na Florida. As praias mais ao sul, com seus
casarões quase invadindo o rio, parecem adormecidas quando
vistas aqui do alto. Mas é um outro cenário, onde certamente
outros dramas acontecem escondidos pelas paredes e portas
fechadas.
Às minhas costas, sinto o peso da história. O cipreste
centenário. Foi ali, a sua sombra, que os bravos farroupilhas
se reuniram para planejar a invasão de Porto Alegre. A Igreja
domina o conjunto, cria sentido para as duas praças
contíguas. Olhando para o oeste, descortina-se a paisagem da
colina - agora tomada pelo repetitivo casario - e as terras
baixas, alagadiças. A prefeitura nova, o novo hospital. O
trevo de acesso à cidade, a estrada: o roadstrip
metropolitano tão recorrente.
Com cores de aquarela, eu traduzo a cidade enquanto a vejo do
alto da escadaria. Sua origem: um caminho aberto pela peonada
que trazia os bois da campanha. O matadouro Linck é a
história em pedra. Patrimônio cultural ameaçado (como de
costume), abandonado aos interesses de uns poucos, mas ao
mesmo tempo, mostrando tanto da cultura tangível na
arquitetura de feições inglesas.
Guaíba: impressões imprecisas de um visitante eventual. Ao
final da tarde (passou o tempo, nem percebi), o sol se pondo
a oeste, esparrama seu reflexo sobre a cidade e faz o rio e
as fachadas de cristal dos edifícios em Porto Alegre, arderem
como em chamas. É a imagem que guardo ao descer, com vagar,
cada degrau da escadaria, procurando colecionar na retina, um
pouco desta geografia feita das percepções passageiras de
“turista acidental”.
5

Diário de Bordo

Uma Crônica on the Road 3


A verdadeira história da cidade contemporânea (... )
é a história da periferia.
Maurice Cerasi

U m ônibus azul, blue bird desasado corta a bê-érre sem


muita certeza. Indo para Eldorado do Sul, ninguém de nós
tem qualquer certeza, aliás! Hora de se perguntar “que
diabos a gente tá fazendo aqui?”, e outras tantas
perguntas e a gente - é claro - vai em busca de respostas. E
logo, talvez rápido demais, já é a cidade (“onde é a
cidade?”).
Quebra de certezas, o que é doloroso (diria Pesci), tão
esquisito, meio engraçado, um pouco deprimente... Inesperado?
Nem tanto, afinal se vive num big Brasil, cheio de contradições.
Tão pertinho de POA e ao mesmo tempo tão longe. -”Azar, eu
gostei... tá na hora de ir prá casa.”
Não tão rápido, existem coisas para ver. Eldorado do Sul merece,
pelo menos, um olhar menos fugaz. Talvez se a gente descesse do
ônibus, caminhasse um pouco, falasse com as pessoas, repensasse
(e isso é jogo duro!) nosso jeito de olhar o mundo…
Já então é tarde demais para voltar, pois zappeamos por
paisagens nunca dantes… Cidade Verde (“cidade” de verdade?
casinhas e casinhas e a larga avenida. Dizem que a cidade
“afunda”. Limites precisos: “a cidade acabou?”).
Medianeira, um outro padrão, a avenida se torna estrada que se
torna caminho que chega no nada. As casas das pessoas refletem
identidade. As pessoas olham curiosas este blue bird nada-a-ver.
Outra avenida que corta a cidade no sentido de ligar a estrada
com o quase nada: chamada, muito a propósito de Emancipação.
Escola, delegacia de polícia (“para quem precisa de polícia…”),
CTG, a praça. Um “centro” que se organiza linearmente. Faz calor
e blue bird segue seu caminho.
On the road again, o ônibus segue pela be-érre, a paisagem
industrial fora de lugar, desenho (in)urbano que se enxerga com
os olhos da velocidade.
Sans Souci é outra história: nos interessa essa margem de rio e
nos esquecemos que o “resto” é o ser e estar à margem de uma
metrópole terceiro-mundista quase na ponta do Brasil. Vamos
organizar um… ACAMPAMENTO! Afinal, uma idéia genial… carpe diem…
Perdidos em um incerto labirinto e on the road again.
Itai, lugar comum, nos embrenhamos por um caminho cheio de olhos
curiosos e cachorros mais ainda (nos convertemos em “ameaça”
porque somos alienígenas). O canal e o mau cheiro. Constatação:
“Eldorado fede!”. E dai? Faz calor, blue bird reclama mas cumpre
sua missão.

3
Texto em forma de crônica, elaborado após uma visita à Eldorado do Sul, com o grupo de estudantes “a bordo” do ônibus da
Universidade (Março,1994).
6

Chegamos à prainha, que tem praia e que tem rio, e que tem um
boteco e nos deliciamos com uma boa coca-cola semimorna que é,
afinal, um jeito da gente estar próximos das nossas (aquelas
velhas) certezas. Da prainha se vê o skyline recortado de POA.
Cheios de saudades, voltamos prá casa. Cheios, já, de saudades
de Eldorado do Sul.
On the road again, a FAU-UFRGS surge, depois de um absurdo de
pontes e viadutos, como um porto seguro (“E essa tal história de
periferia, cidade contemporânea e blá-blá-blá?”). Coisas para
pensar um pouco mais. Então vamos falar mais sério!
7

Olhar sobre Portão

Um Roteiro de Imagens4
Então é hora de olhar. Imiscuir-se no cenário/cidade.
Tornar-se personagem. Ator/agente dos fatos.
Retratar e retratar-se.
Perceber: aguçar os sentidos, aprender de Portão.

Take 1 Tomada 1

Strip Metropolitano

Cenário: strip metropolitano5, grandes infra-estruturas


regionais - viadutos, trens, aeroporto, fábricas, rio Gravataí,
megassuburbio viriliano6, congestão, entropia, desconstrução das
nossas referências urbanas. Travelling7 pela BR 116: alta
velocidade na infinita highway. Multiplot: a história de cada
um de nós. Elipse, passagem de tempo: o ônibus segue pela
estrada que é o caminho urgente da metrópole. A paisagem se
repete como um padrão8 caótico. Fade out: a memória é acionada
para criar seus próprios símbolos. estamos a caminho de Portão.

Take 2 Tomada 1

Aportando: primeira imagem

Cenário: a estrada, motéis, artesanato em cerâmica, postos de


gasolina, fábricas. O cheiro que vem dos curtumes supera a
imagem, halo desfocado. Travelling pela RS 240, sem muita
certeza do que esperar. Os signos urbanos começam a se agrupar,
o strip, aos poucos, perde a cara de estrada, começa a se
parecer com cidade. Hora de se perguntar “o-que-é-que-a-gente-
tá-fazendo-aqui?” e outras tantas perguntas que, por enquanto,
só terão respostas provisórias.

Take 3 Tomada 1

Viaduto, Portal, Portão

Cenário: o viaduto - concreto armado que é portão, portal,


“porteira” que (depois ficamos sabendo) dá origem ao nome do
lugar desde tempos fugidios. O viaduto define o novo ponto de
vista: megaestrutura marcando a paisagem, dividindo e
organizando o strip. Corte rápido: já é, então, a cidade. A
4
Texto em forma de roteiro, elaborado após uma primeira visita à Portão com o grupo de estudantes (agosto.1995).
5
Sobre a idéia de strip, ver Venturi, Izenour e Scott-Brown (1978).
6
Refere-se ao double de cineasta e urbanista francês Paul Virilio (1994,1996).
7
A definição deste e de todos os termos que se refiram à linguagem cinematográfica, foram tomadas de Comparato (1983).
Ver glossário no final do roteiro.
8
Padrão é conceituado no sentido dado por Alexander (1981,1982).
8

câmera fecha na busca do singular. O “Oh!” de exclamação,


surpresa. Gimmick, reversão de expectativas: o
edifício/instantâneo pós-moderno. A imagem é quasi virtual, o
espaço está fora do “lugar”. Referência arquitetural alienígena
respingando nos bordos da metrópole terceiro-mundista.

Take 4 Tomada 1

Learning from Portão

Cenário: o centro novo, interface cidade/rodovia. Interface


cívica, social por excelência. Panorâmica: prefeitura,
edifícios administrativos, um parque, galpão crioulo, âncora
(portão) nativa(o)… A câmera fecha - plano americano - no
arquiteto que nos revela a esperada storyline, telegrafa a
informação, simula o movimento da cidade. A câmera é subjetiva
(os olhos por trás da câmera…). Começamos a apreender: Estação
Portão, Portão velho, Rincão do Cascalho, lugares urbanos em
seqüência, permitindo antever o ritmo urbano que nos espera.

Take 5 Tomada 1

Flash-Forward Urbano

Cenário: a cidade. O parque, a avenida/ciclovia, a vila que se


espalha pelas margens do arroio Noque, o curtume beijando o
riacho (um beijo de morte…). Flash-forward: a cena revela o que
ainda está para acontecer, resume a estrutura, mostra sem pudor
a conflitualidade mascarada. O núcleo dramático aparece por
inteiro. Já não há como não olhar. Fade in: (re)começamos a
entender a história.

Take 6 Tomada 1

O coração da urbanidade

Cenário: a cidade. Estação Portão, núcleo inicial, “centro


histórico” que se revela na historicidade do cotidiano. A
praça, o velho prédio da Estação, o casario definindo uma
imagem visual que nos conta de um tempo da cidade. Flash back:
o cemitério, uma interface com a memória de outros tempos.
Patrimônio cultural tangível mesclado com a cultura subjetiva9
destas “gentes”: primeiro os alemães, os portugueses, depois
todo mundo - negros, italianos - “salada mista à brasileira”
que define o percurso da ação.

Take 7 Tomada 1

Pentesilea revisitada

9
A respeito de patrimônio cultural tangível e cultura subjetiva, ver Fundación CEPA (1989).
9

Cenário: o caminho dos trilhos. Travelling que traz, em si


mesmo, o drama da exclusão urbana. Pentesilea revisitada,
ausência de urbanidade, margem, o avesso da cidade. Linear,
segue o caminho do trem que um dia significou o avesso do
avesso. A imagem (a cidade) se dissolve, como em um espelho de
suas contradições. Um clichê periurbano - sem graça, sem ética
- do nosso processo de metropolização.

Take 8 Tomada 1

A invasão consentida

Cenário: o caminho dos trilhos, ainda mais além. Travelling


vagaroso, close profundo no drama da invasão consentida. Fruta
intragável das ideologias dominantes. Cidade-ilegal-barra-
pesada. “Entra quem quer, sai quem pode…” Insert: a parabólica
(um signo do absurdo e um pé no mundo). O habitat: as casas,
quase todas, com a latrina na frente. A nudez, a crueza, a
qualidade da experiência humana transformada em caricatura.
Insert: a “quitanda ambulante”, nossas próprias soluções.

Take 9 Tomada 1

Pegadas de Leonia

Cenário: a fronteira, o limite, fio-de-navalha entre campo e


cidade. A barreira: área interditada do antigo “lixão”. Pegadas
de Leonia: o que sobra da cidade (da sociedade) que tudo
consome e transforma em dejeto. A voracidade define o tempo
dramático. Não há argumento sustentável: fade in, a imagem
escurece lentamente. Em off, discursa o Senhor das Moscas.

Take 10 Tomada 1

Zora em "pequenas doses"

Cenário: o ”loteamento popular” da prefeitura. Embrião da


cidade artificial. Padrão: lote de 8,50 m x 22,00 m. A unidade:
26,00 m2 . No total, 267 unidades previstas, o que significará,
mais ou menos, umas mil pessoas. Personagem principal: o
“pedreiro mecânico”. Subtexto: o projeto disciplinar,
“arquitetura ou revolução” (Le Corbusier vive!). A casa:
resposta ideológica ou barganha política, tanto faz. Um process
shot para fingir urbanidade: Zora - a cidade in-urbana - em
“pequenas doses”10.

Take 11 Tomada 1

Quando a cidade vira campo...

Cenário: a interface campo/cidade. O território split screen:


meio campo, meio cidade. O urbano avança tentáculos sobre o
10
No sentido dado por Alexander (1978).
10

espaço rural, colocando em risco a estabilidade do sistema


ambiental. Enquanto isso, enormes vazios urbanos - terrenos com
pouco ou nenhum uso - permanecem como capital de especulação. O
reverso da medalha: o campo improdutivo, esvaziamento,
favelização.

Take 12 Tomada 1

Imagens de referência: landmarks

Cenário: a cidade vista do alto, de longe. Dolly back: a imagem


se afasta, a cidade revela seu ethos: o tecido, o grão, a
textura, a carne. Portão se espalha. Portão é descontínua, seu
crescimento é aluvional. Seu crescimento remete à cidade
natural de que fala Alexander11. Mas permite revelar seus marcos
significativos, sua linguagem, sua pontuação: a torre da CRT, a
prefeitura, o viaduto, a praça da Estação, torres de igreja
dando ritmo à paisagem.

Take 13 Tomada 1

O strip intermitente

Cenário: a RS 240 em direção do Rincão do Cascalho. Travelling:


intermitência, descontinuidade urbana, como que deixando a
cidade. The view from the road: a direita, as áreas baixas do
arroio Cascalho, a cidade invadindo o riacho. O hardware urbano
em conflito com a arquitetura do ambiente.

Take 14 Tomada 1

Townscape à moda Cullen

Cenário: Rincão do Cascalho, a esquerda, o posto de pedágio


sobre a rodovia. A torre da Igreja domina o vilarejo. Paisagem
quasi campestre, idealizada a la Cullen (1983). O tempo para, a
câmera é lenta, o ritmo é deliciosamente sonolento. Em Rincão
do Cascalho, tudo é “inho”, diminutivo carinhoso, como em uma
cidade de brinquedo. Travelling através da estrada que
acompanha o arroio Cascalho. Rua asfaltada, padrão residencial
alto. Basta “espichar” o olhar e o campo está bem ali.

Take 15 Tomada 1

A viagem inversa

Cenário: a estrada que acompanha o arroio Cascalho. Travelling:


o asfalto acaba, as construções ficam mais simples, uma vez
mais Pentesilea. Parece haver um domínio invisível que
diferencia o urbano vinculado à rodovia e o periurbano/rural
que fica a suas costas. A paisagem de campos cultivados, os
hortifrutigranjeiros (“eu quero carneiros e vacas pastando no
11
Noção sustentada por Alexander no antológico artigo A city is not a tree (1988).
11

meu jardim…”). A cidade já se avizinha. O viaduto, grande muro


cinzento se insere, cria significado: é ruidoso, cacofônico,
desafinado no território.

Take 16 Tomada 1

Epílogo: o olhar e a cidade

Cenário: o strip percorrido ao contrário: a imagem, a memória e


a imaginação. Travelling: voltando para POA. Dissolução de
imagens. E de certezas.

Glossário12
Ação: movimento em frente à câmera.
Cena: unidade dramática do roteiro
Close up: plano em detalhe
Corte: passagem direta para outra cena
Dolly back: câmera se afasta do objeto
Dolly in: câmera se aproxima do objeto
Elipse: passagem rápida de tempo
Fade in: gradual escurecimento da imagem
Fade out: gradual iluminação da imagem
Flash-back: cena que revela elemento do passado
Flash-forward: cena que revela o que vai acontecer
Fusão: sobreposição de duas imagens em uma só
Gimmick: reversão de expectativa
Halo desfocado: fundo desfocado, objeto em foco
Insert: imagem rápida antecipando um fato
Long shot: plano geral, incluindo todo o cenário
Loop: segmento do filme
Multiplot: várias ações importantes articuladas
Off: vozes de fundo sem mostrar o narrador
Percurso da ação: conjunto de fatos e conflitos articulados
Plano médio: ou americano, da cintura para cima
Process shot: truque para simular movimento
seqüência: série de tomadas
Split screen: imagem da tela dividida em duas
Story board: roteiro em forma de desenhos seqüenciais
Story line: síntese da história
Take: tomada
Travelling: câmera em movimento contínuo
12
Adaptado de Comparato (1983).

3
APRENDENDO DO AMBIENTE:
ROTEIRO PARA UMA ANÁLISE AMBIENTAL
Aprender da paisagem existente
é a maneira de ser um arquiteto revolucionário.
Venturi, Izenour e Scott-Brown (1982:22)

Iniciando O enfoque perseguido pelo trabalho de ateliê é eminentemente projetual, ou seja,


o processo objetiva construir, pelo grupo de estudantes, alternativas de configuração urbana e de
de Investigação-
ação
estratégias de gestão da cidade, fundamentadas em um processo de investigação-
ação. Esta abordagem não prescinde, por conseqüência, de um momento de análise
que subsidie as atitudes de planejamento e projeto.
12

No caso específico, o reconhecimento dos traços estruturais do sistema urbano será


buscado desde aportes analíticos referentes aos condicionantes físicos, à oferta de
facilidades urbanas/equipamentos de uso coletivo e, com particular ênfase, partindo
do ponto de vista dos moradores, aos aspectos relacionados à cultura subjetiva e a
percepção do ambiente em que vivem.
Procedimentos Neste sentido, desde a perspectiva teórica discutida nos documentos I e II, propõe-se
para uma metodologia de investigação e análise do espaço urbano que prioriza três
a investigação 13
procedimentos para a pesquisa empírica :
empírica
i. O mapeamento de interfaces físicas, ou seja, o reconhecimento do sistema
urbano que se pretende investigar a partir de sua configuração físico-espacial
visualizada em seus elementos naturais e construídos que configuram interfaces
ou padrões reconhecíveis;
ii. O mapeamento de interfaces sociais, ou seja, o reconhecimento do sistema
urbano desde a oferta de situações que potencializem as relações entre indivíduos,
atividades e grupos sociais, configurando lugares urbanos caracterizáveis no
sentido de acessibilidade e centralidade;
iii. A interpretação de aspectos de percepção ambiental e da cultura subjetiva dos
moradores, ou seja, seus valores, interesses, percepções e julgamentos, no que
se refere a si próprios, ao lugar onde vivem e aos agentes externos.

Identificação Conforme o mencionado no documento II - Notas sobre o Conceito de Interfaces


e avaliação 14
Urbanas, as interfaces físicas podem ser definidas como elementos da estrutura
de interfaces
físicas
urbana que cumprem a função de bordos ou articulações espaciais entre áreas
relativamente homogêneas do tecido urbano, ou ainda conectando elementos ativos
(interfaces sociais), nos quais processam-se relações de comunicação e troca.
Em outras palavras, as interfaces físicas cumprem o papel de arcabouço às relações
sócio-espaciais que acontecem entre indivíduos, atividades e grupos sociais distintos.
15
Servem, neste sentido, de espaço-intervalo de mediação nas relações
público/privado: conectam espacialmente distintas zonas da cidade, limitam usos
diferenciados ou, ainda, determinam barreiras à percepção, fruição e apropriação do
espaço urbano.
Identificação
e avaliação Nesta mesma perspectiva, as interfaces sociais
16
definem-se por oportunizar
de interfaces
sociais encontros e trocas sociais em distintos níveis. São os “espaços” da cidade que
funcionam como atratores urbanos, concentrando a oferta e aglutinando as demandas
e interações sociais em termos de produção e consumo, acesso aos serviços públicos
e privados de educação, cultura, saúde, etc.
Uma vez mais a questão do intervalo (Hertzberger,1996) entre os âmbitos público e
privado está presente: entre as interfaces sociais que melhor qualificam a urbanidade,
estão aquelas de fruição e apropriação não formalizada e de acesso gratuito, como
praças parques e jardins públicos, ruas e avenidas agradáveis que concentram
determinados tipos de atividade (muitas vezes dirigidas a um público específico),
áreas de praia, mercados informais, campos de jogos, etc. Muitas vezes, as práticas
de lugar cotidianas (Certeau,1985) fazem com que uma área qualquer da cidade (que
para um urbanista menos avisado e perspicaz pode parecer um simples baldio)
revista-se de significados muito particulares e queridos para determinados indivíduos
ou grupos
Sistema Mantendo este ponto de vista, torna-se bastante simples de entender que interfaces
de interfaces, (físicas ou sociais) estão diretamente relacionadas com acessibilidade e centralidade
centralidade e
acessibilidade
urbana. É da interação entre o conjunto de interfaces, o tecido urbano em suas
13
Os procedimentos operacionais para o desenvolvimento do trabalho de campo estão detalhados no documento I. Os grupos
de pesquisa receberão orientação específica em ateliê.
14
Para aprofundar o estudo da cidade como sistema de interfaces - em particular, quanto à interfaces físicas - centrar-se nas
fontes originais: Pesci (1985), Fundación CEPA (1987) e Perez (1995).
15
A expressão utilizada procura aproximar-se da noção de intervalo de Hertzberger (1996), aplicando-a ao conceito de
interface.
16
Em relação à interfaces sociais, idem a nota 12.
13

diferentes configurações, e as formas de percepção, fruição e apropriação da cidade


por seus moradores, na forma de um sistema, que se pode apreender, por fim, o
sentido - a imagem e a legibilidade - da estrutura urbana.
Os quadros-síntese 1. e 2. destacam as principais categorias tipológicas de interfaces
físicas e sociais, procurando ilustrá-las com exemplos recorrentes na estruturação da
cidade contemporânea:

Categorização tipológica de interfaces físicas


Tipologia Características a avaliar Exemplos recorrentes
Interfaces bordos ecológicos naturais florestas, matas e campos preservados
naturais ou implantados cursos d'água de qualquer natureza
áreas de produção rural elementos topográficos/geológicos significativos
intensiva ou extensiva parques regionais de preservação
áreas de produção agro-pecuária
produção de hortifrutigranjeiros
agro-indústria, etc.
Interfaces grandes equipamentos e instalações portuárias
construídas grandes infraestruturas aeroportos, bases aéreas
urbanas e/ou regionais terminais de carga e passageiros
ferrovias, rodovias, canais,
pontes, viadutos, túneis, diques
grandes plantas industriais
estações de energia, água e esgoto, etc.
Interfaces áreas residenciais com carências tecido residencial não consolidado:
periurbanas de infraestrutura urbana bairros periféricos
baixa qualidade do meio construído vilas irregulares
ausência de consolidação histórica áreas de invasão
ausência de participação vazios intra-urbanos
Interfaces limites entre distintas fronteiras nacionais ou estaduais
jurisdicionais jurisdições limites entre municípios
áreas especiais (p.e. bases militares,
terrenos pertencentes à União, etc.)
Interfaces definidas pelas regulamentações zoneamento de usos
normativas urbanísticas em distinos níveis controle de densidades
legislativos normas de parcelamento e loteamento
legislação ambiental, etc.
Interfaces de conectores urbanos e regionais sistema viário urbano e regional
acessibilidade avaliados em função da sistema de transportes públicos
quantidade e qualidade da oferta articulações intermodais

quadro-síntese 1.: oferta de interfaces físicas - baseado em Fundación CEPA (1987), Perez (1995).
14

Categorização tipológica de interfaces sociais


Tipologia Características a avaliar Exemplos recorrentes
Interfaces institucionais equipamentos institucionais orgãos públicos da administração direta
cívicas de uso coletivo (prefeitura, câmara, secretarias, etc.)
avaliadas em função: orgãos vinculados ao judiciário
da quantidade e distribuição (tribunais de diferentes âmbitos)
do dimensionamento x demanda sindicatos, federações e ass. profissionais
de critérios de localização instalações de saúde e segurança
dos usos e atividades específicas centros comunitários e ass. de bairro, etc.
qualidade dos serviços e
conservação
Interfaces institucionais vinculadas à rede de educação Escolas de I e II graus
Culturais formal ou não: faculdades e universidades
avaliadas em função dos creches, maternais, jardins de infância
mesmos critérios acima institutos e cursos científicos e culturais
bibliotecas, teatros, cinemas, auditórios
clubes sociais
templos, paróquias
estações de rádio, televisão, jornais, etc.
Interfaces institucionais rede de espaços abertos praças
não formais de apropriação informal: parques
avaliadas em função dos jardins
mesmos critérios acima áreas para pedestres
campos de jogos
"ramblas", caminhos agradáveis
Interfaces produtivas usos e atividades dos setores instalações industriais de
urbanas secundário e terciário, avaliados em diferentes setores
função dos mesmos critérios acima atividades de comércio: varejo, atacado,
oferta de emprego consumo cotidiano ou eventual
volume de produção prestação de serviços:
escritórios, consultórios, etc.

quadro-síntese 2.: oferta de interfaces sociais - adaptado de Fundación CEPA (1987), Perez (1995)

Compreendendo 17
Nas sociedades humanas complexas , cada indivíduo cumpre o duplo papel de
a cultura
subjetiva protagonista e desenhador do ambiente. Com isso se quer afirmar que viver em
sociedade significa viver constantemente situações de interação com o meio (como
protagonistas, portanto), em muitas das quais existe a exigência de tomar-se decisões
que afetarão, não apenas ao ator/protagonista, mas também a outras pessoas e,
possivelmente, ao “espaço” em que vive este grupo. Em outras palavras, cada
pessoa, na medida em que, para viver em sociedade, é chamada a tomar decisões de
maior ou menor complexidade, exerce uma ação projetual que afeta a ambiente em
que vive.
18
Projeto e “Não há projeto sem destino…”, sustenta Giulio Carlo Argan , no sentido em que a
destino ação projetual eticamente conseqüente, em qualquer escala, objetiva viabilizar uma
transformação positiva em relação ao meio. A ação projetual destina-se a alcançar um
objetivo, a mudar, neste sentido, o destino daqueles para os quais o projeto se
endereça.

17
Sociedade complexa está sendo definida, no âmbito deste texto, como grupamentos humanos em que a organização e
divisão das tarefas requer uma certa especialização dos indivíduos e papéis sociais, e uma distribuição hierárquica das
responsabilidades, referindo-se especificamente, no caso, às sociedades urbanas.
18
Citado como parte do enfoque conceitual e metodológico para o projeto do Parque Costero del Sur (Fundación CEPA,
1989:28).
15

Nestes sentido, na medida em que o homem protagoniza e desenha o “seu” ambiente,


ele está definindo o destino do projeto. No caso da cidade, o território urbano se
constrói como um puzzle combinado de projetos - físicos, sociais, econômicos - mais
ou menos complexos, afetando um maior ou menor contingente de pessoas e
destinos.

Projetos Todos nós temos projetos individuais (Velho,1981), que estão sendo postos em
individuais e prática ou aguardando a oportunidade para que possam colocar-se em marcha com
coletivos aceitáveis possibilidades de sucesso. Os exemplos para ilustrar esta afirmação
podem ser identificados na vida cotidiana de cada pessoa: uma família projeta
construir sua casa própria; um jovem casal planeja, após a formatura, passar um ano
na Europa; um grupo de garotos organiza um time de futebol; um homem já idoso
resume o seu “projeto de vida” em escrever suas memórias.
São projetos que dizem respeito especificamente a cada indivíduo ou a um pequeno
grupo de pessoas. E, pelo menos em princípio, uma vez que os projetos encontrem o
seu destino, quase nada mudará na sociedade como um todo.
Outros projetos, no entanto, mais complexos e envolvendo mais pessoas ou grupos,
quando realizados podem refletir-se - em maior ou menor grau, positiva ou
negativamente - na vida de toda a sociedade. São projetos coletivos (Velho,1981):
dependem, para serem viáveis, da articulação de indivíduos ou grupos, no sentido de
concentrar forças para alcançar um objetivo comum. Aliás, uma das características
que melhor define uma sociedade complexa é a existência de projetos coletivos que
dão “corpo” a esta sociedade: uma identidade própria, um “norte” a ser buscado
conjuntamente.
Compreender este emaranhado (por isso a analogia com o puzzle) de projetos
individuais e coletivos que incidem sobre o ambiente, embora faça parte do óbvio
cotidiano de nossas vidas, não é uma tarefa das mais simples.
Se cada pessoa protagoniza o seu próprio destino, não é menos verdade que o
ambiente condiciona, em grande medida, a concreção dos desejos individuais e a
interação de indivíduos, grupos sociais, agentes econômicos, etc. no território sobre o
qual a multiplicidade de projetos está sendo acionada.
Embora cada pessoa explique o ambiente em que vive de uma forma que lhe é
própria e particular, muitos elementos deste ambiente (coisas boas ou ruins) fazem
parte de uma explicação que, dentro de certos limites, é aceita pela maioria das
pessoas. Ou seja, algumas coisas, na cidade, são compreendidas e valorizadas por
todos ou quase todos os cidadãos.
Cultura urbana É neste sentido que se pretende definir o que, a grosso modo, poder-se-ia chamar de
uma cultura urbana: um conjunto de valores, percepções, correlações e significados
que é compartilhado (reconhecido e interpretado, mas não necessariamente aceito
em sua íntegra) por todos aqueles que vivem em um determinado contexto urbano,
em um mesmo tempo sócio-histórico.
Pode-se dizer, dentro desta perspectiva, que esta cultura responde a uma percepção
estruturada do ambiente. O que permite a interpretação daquilo que importa
objetivamente ao conjunto de moradores de uma cidade, quais são suas reais
necessidades, seus valores mais caros e arraigados, suas expectativas de mudança
em relação ao ambiente em que vivem, etc.
Cultura e Se é verdade que na sociedade urbana - ou, mais especificamente, em uma
subjetividade determinada sociedade que se define pelo mosaico social que vive em uma dada
cidade -, as pessoas passam a compartilhar de uma mesma cultura, esta não se
constitui por si só em um consenso. Sempre existirá lugar para discordância de
pontos de vista e discrepância na valoração atribuída às coisas dentro desta cultura.
Existe pois espaço para o julgamento subjetivo dos fatos. E, neste sentido, a
mediação que se dá entre indivíduo ou grupo e o ambiente (o que, como foi visto, é
16

um processo filtrado pela cultura objetiva) refletir-se-á em uma diversidade de


19
opiniões e ideologias .

O urbanista O urbanista, ao colocar-se no papel de mediador entre os interesses dos distintos


como agentes do desenvolvimento urbano, necessitará de instrumentos que lhe permitam
mediador compreender o conjunto variado de percepções e valores culturais, interpretando-os e
de conflitos dotando-os de uma significação coletiva, tanto no sentido de legitimar-se no papel de
e interesses
mediador, quanto para poder avaliar o quão legítimas são as demandas e pautas
identificadas, no sentido de respondê-las projetualmente. Dito de outro modo,
compreender a quem se destina o projeto, e em que medida uma ação projetual
legitima-se socialmente, faz parte da tarefa intransferível do projetista ambiental.
Técnicas de Desde este ponto de vista, é preciso familiarizar-se com algumas técnicas de
pesquisa social pesquisa social e de percepção ambiental aplicáveis à investigação-ação
aplicada 20
urbanística . No quadro abaixo, se fará uma referência sucinta a algumas destas
técnicas.
Questionários Conjunto de questões em que as opções de resposta estão pré-
fechados determinadas. Muito utilizada em pesquisa social em que a
informação buscada tem caráter quantitativo e presta-se a um
tratamento estatístico. Em análise urbana, de um modo geral
necessita de um amostragem ampla que lhe confira legitimidade
estatística.
Questionários Conjunto ode questões que admitem respostas abertas, ou seja
abertos formuladas espontaneamente pelo entrevistado. Por exemplo:
quais os lugares que o(a) senhor(a) acha mais bonitos em sua
cidade?
A informação presta-se a um tratamento tanto quantitativo
(dependendo do tamanho da amostra), quanto qualitativo (uma
vez que abre espaço para comentários que qualificam a
resposta dada, p.e.: sendo estes os lugares que acha mais
bonitos, por que eles lhe chamam mais a atenção?).
Entrevista não- Nesta técnica, não se parte de um questionário preestabelecido,
diretiva mas sim de um roteiro de questões em aberto que vai sendo
alterado/complementado ao longo da entrevista, na medida em
que assuntos importantes para o tema da pesquisa vão
surgindo. Fornece uma informação qualitativa altamente
subjetiva. É mais comumente usada em investigação
antropológica.
História de vida Geralmente partindo da entrevista não diretiva, o método
(método biográfico procura traçar a história da vida de um determinado
biográfico) indivíduo ou grupo (suas relações, sociais, espaciais, vivência
de episódios históricos, etc.).
É geralmente usado em estudos etnográficos, mas pode ser
muito útil em pesquisa urbana. Requer, do investigador e do
informante, bastante tempo em sua aplicação.
Construção de Outra das técnicas antropológicas, que consiste em estruturar-
“redes sociais” se uma rede de informantes para a aplicação de entrevistas ou
outras técnicas de pesquisa. A partir de um primeiro informante
(o primeiro elo da rede denomina-se ego), este indica um
segundo indivíduo para ser contatado e assim por diante.
Geralmente as redes são utilizadas na busca de informações de
caráter qualitativo. Em muitos casos, sua aplicação permite
identificar padrões (rede familiar, profissional, de interesse em
filatelia, etc.)
19
No sentido quase coloquial do termo, conforme é utilizado por João Ubaldo Ribeiro:”... uma maneira de pensar, uma espécie
de ‘fôrma’ na qual moldamos o mundo.” (1986:191).
20
Os comentários sobre as distintas técnicas de pesquisa social e percepção ambiental foram tomados, principalmente, de
Both (1977), Bourdier (1975), Castello et al (1986), Castello, Andrade e Marzulo (1995), Lynch (1982), e Saltalamachia (1992).
Sugere-se, para aprofundar a compreensão das técnicas, no sentido de aplicá-las, a consulta às fontes citadas.
17

Observação Também mais comumente associada à pesquisa antropológica,


participante trata da “imersão” do investigador na realidade a ser estudada,
participando do cotidiano do seu objeto, observando e
interagindo com ele.
mapas mentais Técnica de investigação sobre a percepção ambiental de
indivíduos ou grupos, sua origem está em estudos da psicologia
social. Entre os arquitetos, sua utilização passou a ser bastante
utilizada a partir dos estudos de Kevin Lynch (1982,
principalmente).
De forma simplificada, consiste em pedir ao informante
descrições gráficas ou verbais de um determinado lugar (cidade,
bairro ou percurso, etc.), enfatizando os elementos da forma
visual (ver documento II).
mapas cognitivos Procuram interpretar qualitativamente o grau de conhecimento
do informante sobre um determinado espaço ou percurso. Por
exemplo: descreva o caminho que você indicaria para que
alguém de fora da cidade pudesse se deslocar da estação
rodoviária ao Palácio do Governo.
mapas Existem vários tipos de mapas comportamentais. Uma das
comportamentais formas mais utilizadas em pesquisa urbana trata da observação
dos movimentos, hábitos, atividades, etc. que acontecem em
um determinado espaço (uma praça, por exemplo) que é
mapeada em termos, por exemplo, de hierarquia e freqüência.
cenário estruturado Outra técnica de percepção ambiental bastante interessante: o
investigador apresenta uma “história” (uma hipótese sobre fatos
que contemplem os objetivos de seu estudo) ao entrevistado,
apontando diferentes desfechos possíveis entre os quais o
informante deverá escolher o mais adequado.
grade de repertório Consiste em mostrar ao entrevistado um conjunto de imagens
(repertório) para que este identifique, comente, hierarquize, etc.
18

4
A INVESTIGAÇÃO EM ANDAMENTO:
CONSTRUINDO A ANÁLISE AMBIENTAL

Nos capítulos anteriores, procurou-se apresentar a experiência recente em análise


urbana do Ateliê, referindo-se aos estudos de caso desenvolvidos em três cidades e,
em rasgos gerais, o desdobramento teórico-metodológico aplicado. Cabe assinalar o
estado de construção da metodologia que vem sendo empregada. Neste sentido, a
cada nova experiência, tem-se buscado aperfeiçoar a base teórica e os instrumentos
de investigação empírica, objetivando realimentar constantemente, tanto o processo
investigativo-projetual (no sentido do produto alcançado pela análise ambiental),
quanto o processo formativo (com uma pergunta permanente: que arquiteto urbanista
- e qual o papel social deste profissional - está sendo formado no âmbito da
universidade pública brasileira?).
Trazer a discussão destas questões para o interior de uma ateliê de planejamento e
desenho urbano, pretende ir além de uma retórica acadêmica auto-indulgente ou do já
velho (mas ainda mal resolvido) dilema da interface entre universidade e sociedade.
Se quer afirmar que este questionamento fundamenta-se em algumas convicções: i)
porque o quadro de “desestrutura” das grandes e médias cidades brasileiras atinge
proporções insustentáveis em relação a conflitos de moradia, infraestrutura, emprego,
apropriação do espaços público, etc.; ii) porque o rol histórico da arquitetura na
construção da cidade merece uma reflexão crítica e realista quanto a sua dimensão
sócio-ambiental; iii) porque o enfrentamento deste duplo quadro de crise exige um
direcionamento acadêmico e profissional com base em novos paradigmas e; iv)
porque a perspectiva da projetação ambiental enquanto processo continuado e
interativo entre homem e ambiente parece apontar alternativas com capacidade de
resposta para uma cidade que enseje urbanidade e cidadania.
Desde este ponto de vista, a construção metodológica da análise ambiental (sempre
levando em conta a pequena experiência pregressa do Ateliê) não pode prescindir de
um contato participativo e constante com a cidade real: envolver-se em um exercício
de análise de interfaces e cultura subjetiva implica em um envolvimento com a cidade,
seus problemas concretos, demandas e aspirações legítimas, sua história e sua
gente.
Neste sentido, algumas recomendações de caráter operacional podem ser apontadas.
• O trabalho deverá ser desenvolvido efetivamente em equipe. Os indivíduos ou
grupos terão definidas suas tarefas específicas dentro de uma programação geral,
e serão responsáveis pela sua criteriosa execução;
• O trabalho em equipe pressupõe o cumprimento das tarefas nos prazos
estabelecidos pela programação: tarefas não cumpridas prejudicarão o trabalho
coletivo;
• A existência de determinados dados não significa informação confiável: todas as
fontes e todas as informações objetivas devem ser checadas em sua veracidade e
precisão;
• O mapeamento de interfaces físicas e sociais deve buscar a maior precisão
possível em termos de descrição e interpretação espacial, nos limites da
informação disponível, e ser facilmente compreendida por todos: deve-se buscar
uma linguagem gráfica de fácil leitura;
• A abordagem da cultura subjetiva é uma tarefa pessoal e intransferível de cada
integrante da equipe. Todos devem participar da aplicação das técnicas de
pesquisa junto à população da cidade;
• A percepção de cada integrante enriquece a discussão coletiva;
• O trabalho em equipe avança satisfatoriamente quando a informação é
compartilhada, em termos de sua elaboração e discussão;
• A investigação não se esgota com o seminário de análise. Ao contrário, apenas se
inicia. Será preciso constantemente buscar novos elementos e detalhes para
19

garantir credibilidade ao processo de projetação e a adequação das soluções


técnicas de projeto.

E, finalmente, é preciso que haja um profundo respeito em relação ao lugar e as


pessoas: o jeito particular de pensar e de apropriar-se do espaço urbano de cada
indivíduo ou grupo social define, em grande medida, o destino do projeto. O objetivo é
aprender do ambiente, o que significa tentar deixar de lado as certezas pré-
concebidas, adequar-se ao contexto e a escala, aos costumes e tradições, às
fantasias e diferentes visões de mundo. É a diversidade humana que dá sentido à
cidade, colorindo o ambiente com os matizes da sua cultura particular e única.

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