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Colegas.

Um dos objetivos que orientaram a criação da ABC virtual foi colocar em contato os profissionais da área,
que passaram a ter um fórum para relatar suas experiências, tirar dúvidas, obter informações etc.
Entretanto foram poucas as ocasiões em que isso aconteceu de fato. Sem arriscar um diagnóstico
definitivo, acredito que não faz parte da nossa cultura esta modalidade de intercâmbio intelectual. O
conhecimento via de regra é encarado como uma mercadoria, e quem a adquire acha que não deve
repassa-la sem auferir algum tipo de lucro. Assim, ficamos cada qual no seu canto, guardando para si os
conhecimentos, ao mesmo tempo que buscamos adquirir novos, sem efetuar a troca tão necessária.

Entre nós, pela ausência ou má qualidade do ensino profissionalizante , desenvolveu-se uma espécie de
“corporação de ofício”, em que os calouros vão aprendendo a prática com os veteranos no set de filmagem.
Este método tem suas vantagens, mas é incompleto, uma vez que quase nada do conhecimento teórico e
das bases científicas que fundam os procedimentos técnicos, é transmitido as novas gerações . Como
resultado vemos profissionais que repetem procedimentos aprendidos de outros na prática, sem saber
exatamente o porque deles. Claro que só o ensino profissionalizante feito em bases científicas e com
atualização tecnológica pode sanar estas deficiências. Entretanto alguma coisa pode ser feita ainda que de
modo informal, para melhorar esta situação.
Aqui na ABC temos o espaço privilegiado desta lista para publicar deste textos teóricos (originais ou
traduzidos) até o relato das experiências de cada um, que debatidas entre os colegas irá no mínimo levantar
algumas discussões esclarecedoras. Foi assim que para não ficar só na teoria e dar o exemplo, me propus a
escrever um relato sucinto da minha experiência filmando a série “O Povo Brasileiro”, criação de Isa Ferraz
com produção da SuperFilmes de São Paulo, e que deverá ir ao ar no ano que vem no canal GNT.

O Povo Brasileiro, é uma série de 10 programas de 26 minutos , baseada na obra homônima do


antropólogo, escritor e político brasileiro Darcy Ribeiro. Na raiz do projeto está uma longa entrevista com
ele, realizada pela Isa pouco antes do seu falecimento. José Guerra fotografou em 16mm e será ele que vai
informar aqui na lista o restante da equipe desta primeira fase ( Parabéns Guerrinha!!!). Entrei no projeto
em novembro de 98 para filmar entrevistas em São Paulo com Antônio Cândido, Aziz Ab’Saber, Paulo
Vanzolini e Judite Cortezão. Ouvir estes luminares falando do nosso povo, naquele estúdio improvisado na
casa da Isa, contra os lindos panos da coleção da Dona Lina BoBardi, foi uma experiência enriquecedora
para todos. Terminadas as filmagens fiquei triste, pois minha participação no projeto se encerraria ali, já
que as filmagens principais seriam realizadas pelo Guerrinha, parceiro da Isa desde o início. Porém, meses
mais tarde tive a grata surpresa de receber um convite para me juntar ao projeto. Guerrinha, com a
sabedoria que lhe é própria , logo se deu conta do tamanho do projeto e de que era uma tarefa para mais de
um diretor de fotografia. Já tinha tido esta experiência ao dividir com Adrian Cooper a fotografia do
belíssimo documentário de longa metragem “Fé” do Ricardo Dias ( que também vai virar série de TV), e
achei uma experiência maravilhosa trabalhar a “quatro olhos”. Nenhum dos espectadores até agora
conseguiu separar nossas imagens, o que indica o grau de integração que conseguimos sem que nenhum
dos dois tivesse que renunciar a sua forma peculiar de olhar. Durante os três anos da série de programas
“Gente que Faz”, eu, Adrian, Pedro Farkas, Guerrinha, José Tadeu, Guy Gonçalves, Flávinho Ferreira e
outros colegas, tivemos uma experiência semelhante, e a busca de uma unidade visual para a série, levou-
nos a buscar um olhar documental que sem abrir mão da sofisticação de equipamentos (HMI, travelling
etc.), mostrasse o nosso povo em sua diversidade antropológica, histórica, cultural e humana. Pela
repercussão junto ao público e os inúmeros prêmios obtidos pela série, parece que conseguimos algum
êxito.

O documentário é sempre um desafio. Um mergulho no desconhecido. Hitchcock ( que nunca fez nenhum)
dizia que no documentário Deus é o diretor e na ficção, o diretor é Deus . Minha experiência diz que o grau
de integração da equipe determina em grande medida a qualidade do documentário. Uma equipe afinada,
com uma simples troca de olhares se posiciona frente ao sujeito e sem desviar sua atenção, inicia uma
tomada sem que a espontaneidade se perca. Isso não significa que não haja interferência. Localizar a
camera num determinado local já é uma intevenção e tanto...
Minha entrada no projeto se deu bem antes do que eu esperava. Guerrinha que iria fazer o recôncavo e o
sertão bahianos, com os atrasos normais da produção teve que voltar para o Rio para honrar um
compromisso anteriormente assumido. Assim eu que ia entrar só na fase mineira, fui para Salvador
encontrar a equipe. De lá seguimos por terra ( e bota terra nisso...) para Canudos. Não conhecia a região. O
mais perto que havia chegado era Monte Santo, onde estive nos anos 70.
Tudo ali evoca a epopéia do Conselheiro e seus seguidores, barbaramente massacrados pelo Exército
Brasileiro, num dos episódios mais negros na República. Sua presença ainda esta por toda a parte. Na rua
somos cercados por meninos que nos mostram um exemplar desconjuntado de um livro com fotos
impressionantes da chacina. Oferecem por 5 reais, e a produção compra.

Foi minha primeira colaboração com o diretor Mauro Farias. Tivemos empatia imediata, o que
proporcionou ao trabalho um clima de tranqüilidade que iria render ótimas situações de filmagem. Sabendo
a importância de cada elemento num projeto desta natureza, tomamos todos os cuidados na escolha da
equipe. Fui chamar em Los Angeles onde estava residindo após um curso na Panavision, minha assistente
Janice D’Avila com quem fizera anteriormente o longa “O Filme da TV” de Roberto Moreira. Janice é um
fenômeno de eficiência, atenção e cuidados, deixando o fotógrafo inteiramente livre para atuar. Na elétrica
minha escolha recaiu em Cícero “Padim” Barbosa, colaborador há mais de dez anos, dono de uma
capacidade de improvisação notável que faz com que consiga ligar um HMI de 2.5 KW no gerador de um
carro de som, transporte e fixe um enorme cactus com cordinhas de algodão e use os faróis da kombi para
fornecer fill-light a um majestoso juazeiro filmado na hora mágica. No som, Renato Calaça sempre discreto
e eficiente captou com brilho as sutilezas sonoras do sertão. Suas intervenções culinárias também se
mostraram providenciais para aproximar nosso paladar da comida sertaneja. Fernanda Senatori, parceira de
muitos “Gente que Faz” brilhou na produção, secundada por Claudinha Reis, soteropolitana da hora, com
quem espero trabalhar outras vezes. Fomos muito ajudados também pelos motoristas e por Humberto,
nosso contato no local, que por sua atuação fez por merecer o crédito de “produtor local”.

Embora a entrevista que originou o projeto tenha sido filmada pelo Guerrinha em 16mm, concordamos
quando da reunião de pré em São Paulo, que seria melhor captar as imagens em super-16 pensando na
futura tv digital onde a proporção é 16:9. O equipamento de camera, enxuto e bem adequado foi montado
a partir de uma Aaton XTR fornecida pela HagaDê.
Examinando as situações previstas de filmagem, concluímos que nosso filme base deveria ser um daylight
de média sensibilidade. A escolha foi o Eastman 7246 250D. Para as noturnas, ficamos com o 7279 500T.
No laboratório tivemos alguns problemas com a limpeza, sendo necessária uma troca logo no início. A
telecinagem off-line ficou por conta da Mega S.Paulo.
Com pouco tempo para cumprir uma extensa pauta, tivemos que ser bem objetivos. Mesmo assim, foi
possível captar situações completamente inesperadas. Voltando uma tarde por uma estradinha de terra,
avistamos ao longe um cortejo. A primeira vista parecia uma procissão com uma cruz de madeira levada à
frente. Ao aproximarmos ainda na van , constatamos que se tratava de um enterro. Saltamos rapidamente e
com a zoom fechada no tripé fizemos uma primeira tomada frontal. Ao final o cortejo saiu pela esquerda de
quadro. Paramos de filmar e saímos correndo em direção ao cemitério. Mauro ainda teve uma dúvida se
deveriamos filmar lá. Respondi que se a nossa atitude fosse respeitosa (eu já tinha tirado o boné) , achava
que tudo bem. Paramos no portão do pequeno cemitério e dali mesmo filmamos o enterro que transcorreu
rapidamente. Na saída captamos magníficos closes dos presentes na maioria idosos. Mas o melhor ainda
estava por acontecer. Enquanto filmava na direção do cemitério ouvi atrás de mim dois senhores
filosofando sobre a morte. Mauro rapidamente virou-se para procurar Renato que já tinha percebido a
situação e gravava o papo desde o início. Eu virei a camera, foquei e enquadrei rapidamente, fechei o visor
e sai filmando às cegas, enquanto simulava estar regulando algo na camera. O resultado é um delicioso
papo cheio de sabedoria sobre a morte, filmado a menos de 2 metros dos falantes!

Filmando no Nordeste, somos invariavelmente levados a refletir sobre a exposição. Os contrastes de


luminância são brutais, e a atmosfera limpíssima e seca acentua ainda mais a dureza da imagem. A isso se
soma o contraste cromático decorrente da presença das cores primárias no céu, na folhagem e .na terra.
Nossa escolha foi trabalhar a favor, aproveitando e realçando estas características.
Desde o princípio adotei o uso do polarizador para definir o azul do céu (embora o contraste entre este e as
nuvens aumentasse) e saturar um pouco a vegetação, pela eliminação dos reflexos na folhagem. N-3 e N-6
se alternavam para chegar numa apertura não tão fechada. Mais uma vez confirmei a regrinha mágica que
atribui ao céu na sua região mais azul o mesmo valor de exposição que o obtido pela reflexão do sol no
cartão cinza 18% .
Nos planos gerais tentei deixar o branco das nuvens dentro do range de exposição, mas na maioria das
vezes ele ficava de 1 a 1 e 2/3 de stop acima. Nas situações de contra-luz, me baseei mais da média
avaliada olhando a proporção de luz e sombra na fotosfera do fotômetro de luz incidente, do que fazendo
várias medidas refletidas de spot- meter. O tempo manda... Quando dava, nos planos mais próximos com
pessoas ou objetos acrescentava um fillzinho de rebatedor, ora branco ora prateado, de acordo com o
aspecto desejado.
Grande parte do tempo de filmagem no Nordeste é gasto esperando as nuvens livrarem o sol. Conhecer
bem a latitude do negativo que se está usando é crucial nessas situações. Me vali muito dos testes que
fizemos nesta emulsão com o Bart Durkin da Kodak, durante o último workshop aqui em São Paulo, Um
teste que sugeri naquela ocasião, com relação à variação da temperatura de cor entre 8000 e 1800 K
também me foi bastante útil. Aproveitamos ao máximo as situações de nascer e por do sol, algumas vezes
em interiores, com a compensação de HMIs corrigidos para trazer o que estava na sombra para dentro da
latitude do filme.
Um forró noturno, foi a única ocasião em que usamos o 7279. Partindo das lampadas de 100W que
iluminavam o local, usamos algumas cabeças de 650W fresnel sub voltadas. O geral, simulando a luz que
existia realmente vinda dos postes de vapor de mercúrio da rua, foi obtido pelo rebatimento numa chapa
inteira de isonor ( é assim que chamam no Nordeste...) de um HMI par 2.5KW. O resultado, bem realista,
ficou interessante, com a vantagem do nível baixo de iluminação não constranger os presentes.
Usamos em todas as situações bastante camera na mão. A ergonomia da Aaton vale muito nessas horas. Em
alguns momentos usamos a 9.5 mm com camera cega, para permitir uma movimentação mais livre.
Infelizmente o video-assist p&b com tanta filtragem e tanta luz não serviu para nada.
Para captar fotos, documentos etc. levavamos uma camera de vídeo mini-DV. Acabei ampliando o seu uso
para fazer making-off da produção e para captar imagens em p&b bem contrastadas, que a toda hora me
recordavam aquelas inesquecíveis captadas nos anos 40 e 50 por Gabriel Figueroa no deserto mexicano.

Em todos os episódios da série vai ser utilizado extensivamente material de arquivo proveniente de n
formatos, suportes, sistemas etc. Nessa situação a fotografia principal tem reforçada sua função de
elemento unificador da narrativa. A telecinagem on-line do material produzido por nos dois deverá
permitir que um estilo final seja encontrado e a unidade, tão necessária, seja alcançada.

Se o tempo permitir, nos próximos segmentos da filmagem tentarei dar continuidade a este relato.
Aproveito para convocar o Guerrinha para contar suas aventuras no recôncavo. Convido todos os colegas a
usarem este espaço para falar um pouco de seus trabalhos e repartirem suas experiências. Um abraço a
todos.

Carlos Ebert

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