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Janelas, a Lei do Quadrado da Distância, Vermeer e outras observações.

"A intensidade da luz sobre determinada área é inversamente proporcional ao quadrado da


distância da fonte da luz."

Essa é uma lei importante para fotógrafos. Quando se lida com o sol, é fácil: na
distância em que ele está, sua intensidade não varia se nos aproximarmos ou
afastarmos alguns metros dele. Mas se v. está simulando o sol com o auxílio de
um refletor, a coisa complica um pouco. Vejamos um exemplo: Se com um refletor
de 2Kw a 3 metros v. obtêm um iluminamento de 10800 lux, a 4 metros você vai
ter 6100 , a 6 metros 2700 e a 10 metros apenas 970 lux. Problema...

Estas observações têm como ponto de partida o filme "Uma Vida em Segredo",
dirigido por Suzana Amaral , fotografado por Lauro Escorel, ABC e com direção de
arte de Adrian Cooper.

No filme, a casa onde a personagem principal, Biela, passa a viver após ficar orfã,
é uma personagem tão importante no filme quanto aquela representada pela atriz
Sabrina Greve. Situada no centro de uma pequena cidade, ela existe como um
mundo paralelo em oposição ao seu mundo de origem - o "fundão"- , o espaço
aberto da fazenda onde vivia.
Nesse novo mundo, a casa de seus primos, as janelas são interfaces. É por elas
que esse mundo fechado e convencional se comunica com o exterior urbano que
ela irá explorar timidamente. Da exuberância de seu mundo anterior restará
apenas o som monótono de um monjolo batendo. Lauro explora até as últimas
conseqüências os fundamentos desta interface. Regula com método e rigor as
luzes que por elas entram, desvelando o que se passa no interior da casa e dos
personagens.

Ilustração 1

A janela aberta é a fonte de luz natural por excelência. Sugerir, recriar e reproduzir
fotográficamente esta luz pode parecer fácil, mas não é. A lei do quadrado da
distância esta sempre lá, cobrando atenção. O problema é velho e antecede em
muito a fotografia.

-o-O-o-

O pintor flamengo Vermeer (1632-75), em toda sua vida pintou por volta de 30
quadros apenas. São em sua maioria mulheres, em diversas situações, frente à
uma janela invariavelmente situada à esquerda de quadro. As pinturas
reproduzem maravilhosamente luminosos tons de azul e amarelo, brilhos intensos
e sutis gradações nas luzes refletidas, além de uma perspectiva
impressionantemente exata para o padrão da época.

Ilustração 2
Recentemente, alguns estudiosos, entre eles Philip Steadman e David Hockney ,
observaram que Vermeer deixou em suas obras, sinais bem evidentes de ter se
utilizado de uma camara escura para captar as cenas que depois trabalhou com
tintas e pincéis. Bem antes disso em 1891, o gravador norte americano James
Pennell já havia notado a presença de "uma perspectiva fotográfica" no quadro "O
Soldado e a Garota Sorrindo", onde a figura do soldado em primeiro plano é
desproporcionalmente maior do que o esperado, mostrando um tipo de aberração
óptica típica de uma lente grande angular.

Ilustração 3 ilustração 3A

Neste outro quadro "A moça de Chapéu Vermelho", o tratamento dado às altas
luzes nas superfícies brilhantes mostram pequenos círculos brancos, exatamente
iguais aos círculos de confusão que pontos de luz intensa e ligeiramente
desfocados, produzem numa fotografia. Notadamente no brinco e no entalhe do
braço da cadeira, nota-se um desfocado típico de objetiva fotográfica.

O fato de Vermeer ser conterrâneo e contemporâneo de Anton van Leeuwenhoek,


o inventor do microscópio, e da Delft de então ser quase uma aldeia, induz-nos
a especular se as lentes usadas por Vermeer em sua camera escura não teriam
sido fornecidas por Leeuwenhoek...

Lawrence Gowing num livro de 1952 , observou com muita perspicácia que
Vermeer parecia transpor as cores, luzes e sombras diretamente para o quadro,
sem se apoiar num traçado de contorno feito anteriormente sobre a tela.

"Uma Vida em Segredo" me lembrou imediatamente "La Dentellière" 1977, filme


dirigido por Claude Goretta e fotografado por Jean Boffety, onde a extrema
timidez da personagem central ( interpretada por Isabelle Huppert), tinha como
referência iconográfica o quadro de Vermeer de mesmo nome ("A Rendeira"). No
filme a expressão final da personagem, introvertida e irremediavelmente fechada
sobre si mesma, era comentada em off enquanto se fundia com a pintura.

Ilustração 4

No caso de "Uma Vida em Segredo" a imagem do cartaz exibe igualmente a


mesma luz modulada pela janela dos quadros de Vermeer, com a personagem
olhando para fora e buscando escapar para o exterior.
"Luz, mais luz " teriam sido as palavras finais de Goethe em seu leito de morte,
pedindo para que abrissem as janelas do quarto. Nossos olhos, também janelas
(como atesta o "Janela da Alma" de João Jardim e Walter Carvalho), buscam
sempre mais luz.
-o-O-o-

Voltando à questão da simulação da luz originaria de uma janela: Se a condição


no exterior é de sombra ou tempo nublado, a fonte artificial colocada na direção
da janela será ampla e difusa, quase não criando sombras no interior. Se lá fora
brilha o sol, o facho do refletor pode irromper direto através da janela e projetar
sombras definidas na parede oposta.
Em "Uma Vida em Segredo", verifica-se mais a primeira opção. Mesmo nas
poucas ocasiões em que ela incide diretamente, é trabalhada por difusão, e não
chega a atingir diretamente os personagens. Em determinados momentos as
janelas permanecem apenas entreabertas, acentuando ainda mais um clima
denso.
A luminosidade das imagens no interior da casa percorre um trajeto que vai da
treva, à luz radiante da cena do vestido de noiva, para depois voltar
progressivamente à penumbra. Exatamente como o animo da personagem que
esmorece após ser preterida pelo noivo de ocasião.

Cromáticamente, ambiente interior da casa é dominado por um tom sutil de


magenta que vem das paredes. Não por acaso, a cor complementar que se
opõem aos verdes da fazenda que ficou para trás.
Com uma luz difusa mas sempre direcionada, o colorido do ambiente se esbate
suavemente, até alcançar tons profundos nas sombras e no mobiliário. Essa
escala, rica em gradações, é quase sempre realçada pela presença simultânea no
quadro de uma área bem clara e outra bem escura. Minimalista, a paleta de cores
acompanha o rigor da narrativa extraindo sua expressividade de uma
funcionalidade quase natural, sem afetações ou modismos. Daí talvez a evocação
de Vermeer em minha memória...

Ilustração 5

No decorrer da narrativa, a personagem cada vez mais deslocada nas


dependências "sociais" da casa, muda-se para um quarto de despejo fora. Ai, as
imagens tornam-se mais sombrias. Menos luz ingressa do exterior. Em alguns
momentos cruciais, como na cena da das moedas sobre a cama, a intervenção de
uma luz zenital, nada naturalista mas perfeitamente justificada, sublinha as
intenções sem contudo torna-las óbvias.

-o-O-o-

Recentemente, durante um debate realizado após a Sessão ABC de São Paulo,


em que Walter Carvalho, ABC debateu a cinematografia de "Abril Despedaçado", o
diretor de arte Cassio Amarante reconsiderou algumas observações feitas por ele
no passado sobre a impertinência de se discutir referências pictóricas à imagem
cinematográfica. Fiquei agradavelmente surpreso pois acredito ser essa
aproximação fundamental.
A história da representação gráfica e pictórica tem milhares de anos, e a não ser
que queiramos ficar reinventando tudo a todo instante, é nosso dever estuda-la e
extrair de seus nexos tudo aquilo que possa ser pertinente esclarecedor e
expressivo para a cinematografia.
Se a arte de Vermeer e a Lei do inverso do quadrado da distância podem de
alguma maneira ajudar a expressão visual e a narrativa de um filme passado no
sertão de Goiás, ótimo. Vamos a elas.

Ilustração 6

Carlos Ebert, ABC / julho 2002

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