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Sumário

Lista de Imagens
5

Introdução
7

Seção I - Palavra, Imagem e Palavra-Imagem


10

Seção II - O Imprevisível na Imensidão Íntima


26

Seção III - O Lugar da Poesia


30

Considerações Finais
34

Referências Bibliográficas
35
2

Lista de Imagens

Figura 1 - “Eis os Amantes”, 1953. Augusto de Campos.


Fonte: http://www2.uol.com.br/augustodecampos/images/01_02.gif

Figura 2 - “Uma e Três Cadeiras”, 1965. Joseph Kosuth.


Fonte:
http://www.canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/archives/arteemcirc_kossut
-chair150.jpeg

Figura 3 - “Zero and Not”, 1985. Joseph Kosuth. Papel impresso sobre
parede e fita adesiva.
Fonte: http://www.users.zetnet.co.uk/richart/archive/kosuth.jpg

Figura 4 - “Zero and Not”, 1989. Joseph Kosuth. Instalação. Sigmund


Freud Museum, Viena.
Fonte: http://www.users.zetnet.co.uk/richart/archive/kosuth.jpg

Figura 5 - “I am Still Alive”, 1975. On Kawara.


Fonte: http://farm1.static.flickr.com/125/337757799_5934532607.jpg

Figura 6 - “Date Painting”, 1969. On Kawara.


Fonte: http://www.artnet.com/images/magazine/news/ntm/ntm5-1-08-14.jpg

Figura 7 - “Diaries”, 1978 - 1992. Sophie Calle. (excerto).


Fonte: Macel, Christine. M’as-tu Vue. Prestel Verlag, Munich · Berlin · London · New
York 2003. Catálogo da exibição.
Figura 8 - “Diaries”, 1978 - 1992. Sophie Calle. (excerto).
Fonte: M’as-tu Vue. Prestel Verlag, Munich · Berlin · London · New York 2003.
Catálogo da exibição.
Figura 9 - “Sebo”, 2004 - 2007, Fabio Morais e Marilá Dardot.
Fonte: Arquivo/Marilá Dardot, v.3. São Paulo: Associação de Amigos do CCBB, 2007.
Figura 10 - “Sebo”, 2004 - 2007, Fabio Morais e Marilá Dardot.
Fonte: Arquivo/Marilá Dardot, v.3.. São Paulo: Associação de Amigos do CCBB, 2007.
Figura 11 - “Monólogo para um Cachorro Morto”, 2008. Nuno Ramos.
CCBB.
3

Fonte:
http://www.overmundo.com.br/_agenda/img/1208767890_monologo_para_um_cach
orro_cred_andre_fossati_3.jpg

Introdução

O objeto não possui nenhuma autonomia lingüística.


Ele não é “belo”, não é “feio”. Ele não é equilibrado
plasticamente, e isto não é levado em conta. Ele é
desejo.

Gê Orthof

Com a I Exposição Nacional de Arte Concreta, em meados da


década de 1950, inaugura-se oficialmente o movimento artístico
brasileiro possivelmente mais marcado pela controvérsia: o
concretismo. No contexto desse movimento, intensifica-se uma busca
já em andamento por um caminho alternativo à produção poética da
4

época, dominada pela geração de 1945. Os poetas da chamada


terceira geração ─ de 1945 a 1978 ─ recusavam a liberdade formal
adquirida com o modernismo, bem como as ironias, sátiras ou o que
quer que descaracterizasse uma poesia formal, “séria e equilibrada” e
tinham como estratégia a retomada dos Parnasianos e Simbolistas
como modelos. Mas, num movimento oposto, os poetas Augusto de
Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald e
Ronaldo Azeredo, integrantes do grupo Noigrandes1, considerando a
visualidade da palavra em si, e não sua condição de veículo de uma
idéia, desenvolveram uma noção que integrava os aspectos sonoro,
semântico e visual da palavra. A expressão verbivocovisual, criada
por James Joyce, sintetizaria, segundo eles, a proposta colocada em
prática pelo movimento da arte concreta.

1. “Eis os Amantes”, Augusto de Campos, 1953.

1Palavra tirada de um poema de Erza Pound e que não significa nada.


5

O movimento concretista agiu para que a palavra se libertasse


de seu passado semântico, de sua carga simbólica e sua
decodificação predominantemente abstrata, para fundar seu sentido
no presente, no tempo mecânico e na espacialidade gráfica. Muito do
que se produz em artes visuais na contemporaneidade se vincula a
essa nova investida na significação ─ talvez possamos falar em uma
ressignificação ─ que conduz, em última instância, à transposição dos
domínios da visualidade estrita e à abertura à fluidez verbal. O artista
se vê em condições de aproximar signo plástico e enunciado verbal
em um mesmo instante, num cenário de assimilação da arte moderna
pela instituição e da demarcação do campo ampliado da arte2.
O mesmo se dá com o “Primeiro Caderno da Alumna de Poesia”,
que sobrepondo textos e imagens sem esperar que eles se fundam,
se traduzam, se complementem ou se expliquem, apresenta-os em
sua materialidade, em sua presença intraduzível.
Este texto se apresenta como discurso que segue o processo de
construção da obra e se propõe a tocar suas questões centrais. Seu
objetivo é servir de lugar possível de reflexão em torno da obra e de
parte no discurso que se forma e se reforma acerca das relações entre
a palavra e a imagem. Produzido simultaneamente à instalação que
se apresenta, está num território imprecisamente demarcado entre
processo distinto paralelo à obra e parte distinta do mesmo processo.
Mesmo incluído no campo enunciativo de referência, não se identifica
nem ao texto interpretativo ─ que parece sempre buscar uma posição
hegemônica ao lado da obra, não raro com vistas a um ajuste
definitivo e tantas vezes responsável por seu obscurecimento ─ e

2Deve-se a noção de campo ampliado à historiadora Rosalind Krauss, que se refere


à flexibilidade entre as fronteiras da escultura, da arquitetura e da paisagem, que
delineam, através de combinações e exclusões, possibilidades múltiplas para a arte
em sua relação com o espaço real. Ver: Krauss, R. A Escultura no Campo Ampliado
In: GÁVEA 1. Rio de Janeiro, Curso de Especialização em História da Arte e
Arquitetura no Brasil/PUC-Rio, 1984, pp. 86-93.
6

nem à crítica, embora se identifique um pouco com a segunda em


virtude de sua cumplicidade com o trabalho, no sentido de oferecer o
que poderia ser considerado um dos modos de vê-lo.
Constitui-se, portanto, paralelamente à prática, (que é) seu
pressuposto, como discurso criativo que a perpassa e por ela é
atravessado. É efeito do mesmo impulso que a constitui.
É, além disso, o resultado de um esforço contínuo de
considerar o olhar do outro, insubstituível e essencial para o
vislumbre das questões do trabalho.

Seção I - Palavra, Imagem e Palavra-imagem


Entre os desvios e fendas da galeria, papel escrito reveste a
parede; O espectador se depara com o código conhecido revestindo o
limite do espaço-obra, que solicita não apenas presença de corpo e
de intenção, mas a via dupla do olhar.
A parede branca costuma acolher o olhar vacante, desfocado de
alguma página, deslocado da intencionalidade. No interior da galeria,
a parede freqüentemente é o que não está para o olhar. Embora seja
barreira física, coloque em questão o “ir além”, não há razão em
aproximar-se dela, experimentar o óbice, já que ele é subentendido. O
suporte do suporte da pintura - por tanto tempo suporte da
contemplação - não fala, não demanda. Quase abstração dos limites
físicos da instituição, a despeito de sua concretude, repele qualquer
investida ou atenção, a parede.
A mesma parede que costuma acolher o olhar que vaga, por
conta do pensamento que se perde ou que se associa
7

clandestinamente à memória ou a idéias ainda informes,


indeterminadas, sugere na instalação, pela imagem caligráfica, que
se retome a intenção do foco. Pede leitura, (talvez pense). E pede o
engajamento da percepção em uma atitude de ver-ler. A palavra,
elemento visual dominante, não se dá permanentemente ao alcance:
em princípio, pelas sobreposições e interrupções dos fragmentos, em
seguida, pela distância. Neste ambiente, de forma algo caótica,
enfoque e divagação tensionam-se: a decodificação ou uma postura
interpretativa são inviabilizadas. Há um desconforto causado pela
acomodação da horizontalidade da palavra, das linhas, em um espaço
marcado pela verticalidade do suporte-objeto, o papel, e a escrita
acaba por se distanciar do olhar. Baixa visibilidade à distância da
letra que foge à decodificação. O espectador olha para o alto e talvez
já não saiba se procura ou se refaz.
Gostaríamos de relacionar à idéia de distância o aforismo de
Maurice Merleau-Ponty: “O corpo é vidente e visível” (equivalente à
máxima do filósofo George Berkeley3: “Ser é perceber e ser
percebido”). Nos manuscritos de O Visível e o Invisível, encontrados
em 1961, cujos traços mais remotos são de março de 1959, Merleau-
Ponty nos apresenta a identidade do vidente e do visível e, em um
momento, propõe um novo significado à noção de distância:
Basta-nos apenas constatar que quem vê não pode
possuir o visível a não ser que seja por ele possuído, que
seja dele4, que, por princípio, conforme o que prescreve a
articulação do olhar e das coisas, seja um dos visíveis,
capaz, graças a uma reviravolta singular, de vê-los ele que
é um deles.5 Compreende-se então porque, ao mesmo
tempo, vemos as próprias coisas no lugar em que estão,
segundo o ser delas, que é bem mais do que o ser-
percebido, e estamos afastados delas por toda a
espessura do olhar e do corpo: é que essa distância não é
o contrário dessa proximidade, mas está profundamente
de acordo com ela, é sinônima dela. É que a espessura

3Em cuja filosofia encontra-se a noção da convergência entre conceito e percepção


sensível. Ver: Berkeley, 2008.

4À margem do manuscrito: o UERPRÆSENTIERBARKEIT é a carne.

5À margem do manuscrito: o visível não é um zero de tangível, o tangível não é um


zero de visibilidade (relação de imbricação).
8

da carne entre o vidente e a coisa é constitutiva de sua


visibilidade para ela, como de sua corporeidade para ele;
não é um obstáculo entre ambos, mas o meio de se
comunicarem.6

O surgimento da distância como “meio de comunicação” cria


um tensionamento. Na falta do signo, onde refletir-me? Meu corpo,
“coisa entre coisas”7, é visto, mas tenho na idéia de distância, uma
noção pré-estabelecida de inacessibilidade. Mas a distância não
existe: é invisível. “É um conceito sugerido pela nossa experiência da
conexão entre coisas visíveis e certas sensações visuais que
acompanham o ver, de um lado, e nossa experiência tátil, de outro”,
responde Berkeley em An Essay Towards a New Theory of Vision
publicado em 1709.8 Para Merleau-Ponty, não é que ela não exista: ela
é a espessura do visível e o que o torna destinado a ser visível por um
corpo que ao mesmo tempo está em seu âmago e dele se afasta.9
Quem se coloca em situação de vivenciar o trabalho de arte, coloca-
se em situação de perceber a vida como matéria de sua percepção.
Dificultada a visão de uma parte da escrita, vela-se o significado
do discurso verbal: um fragmento se sobrepõe a outro. O que resta é a
visualidade da translucidez do papel. Há uma busca arqueológica pelo
significado do discurso, talvez pelo sentido, no contexto visual de
impraticabilidade em que é apresentado. É proposta uma situação de
indeterminação entre ver e ler. Essa sensação de inacessibilidade
semântica por impossibilidade física causará uma mudança na
relação entre quem vê com o que deveria ser lido, mas que não
chega a se dar à legibilidade. Daí a abertura ou o potencial de uma
situação de leitura-visão ambígua, tanto do texto quanto do trabalho.
O discurso, aqui, é verbal, mas se apresenta também como figura. A
idéia, longe de problematizar os pontos de contato entre discurso e

6Merleau-Ponty, 2005: 132.

7Conceito de Merleau-Ponty desenvolvido em O Visível e o Invisível.

8Berkeley, 2008.

9Merleau-Ponty, 2005:132.
9

visualidade, é a de atualizar a naturalidade na articulação verbo-


imagem, ainda que obliquamente, pela impossibilidade. Se vendo,
sou visto, já que estou englobado no espaço e o vivo por dentro10, a
linguagem é também algo de que participo.
A respeito da complexidade desde sempre imposta à relação
entre texto e obra de arte, Ricardo Basbaum11 em seu “Além da
Pureza Visual” esclarece que, no mesmo momento de definição dos
limites do visível da Pintura Moderna, há uma proliferação inédita de
textos críticos em torno da nova visibilidade. Essa produção se dá
simultaneamente ao início do percurso crítico do modelo clássico da
representação e em meio à pesquisa estrutural em torno dos
elementos constituintes da linguagem plástica e de uma possível
universalidade auto-referente da arte. Tudo se dá como se o domínio
dos limites do visível não bastasse ao homem do século XIX, mesmo
diante da instauração de uma intensidade inaugural em nova relação
com uma obra que se afirma em sua materialidade no mundo.
Portanto, concomitante à proliferação de discursos, a arte
moderna funda-se na expectativa do encontro da visibilidade pura
dos objetos com um campo enunciativo que os atravessa. Sua
identidade se constitui em campo híbrido e abrange objetos e
enunciados.
Embora possam atender a demandas específicas, seja em
termos de sua expressão ou em termos institucionais, persiste uma
tensão entre o enunciado e a imagem. Uma tensão latente e há muito
conhecida pela controvérsia, talvez pela simples razão de que a
separação entre articulação verbal e construção visual seja construída
para que cada um se enquadre, na medida da conveniência, à ordem
sócio-cultural ─ por sua vez enquadrada em padrões epistemológicos
e econômicos prescritos ─ dentro da qual se estabelecem
predomínios artificialmente situados: o da articulação verbal, na

10Merleau-Ponty, 1980.

11Basbaum, 2007.
10

produção de conhecimento e o da construção visual, na produção


artística.
Apenas iniciado o movimento pela autonomia da arte como
campo de conhecimento no contexto moderno, essa cisão já passa a
ser problematizada por uma modernidade definida pela potência do
simulacro.12 Todo movimento de emancipação da imagem e da
sensorialidade acaba por expandir-se para além do próprio campo de
conhecimento. A força da produção visual atravessa o século XX em
todos os campos do saber em um contexto de interdisciplinaridade e,
deslocando-se a ênfase da busca de essências ou fundamentos
(embora adotada por certas linhas de pesquisa modernas), abre-se
um caminho para um regime complexo de interfaceamentos
disciplinares. É o “pensamento como heterogênese” deleuziano13 e o
conseqüente entrelaçamento (não sintético) entre filosofia, ciência e
arte. O objeto extrapola então a noção de campo e se mostra em sua
complexidade. Assim, concebe-se o visível, a imagem, como
pertencente a uma ordem própria de construção do real, mas em
intercâmbio com o dizível, o enunciado discursivo. Na poética, a
utilização dessas formas de significar revela-se como estratégia de
potencialização da produção de sentido.
A arte moderna transita pelo verbal já nas primeiras invenções
de novos sistemas visuais, nos discursos das vanguardas históricas,

12“Definimos a modernidade pela potência do simulacro.” In. “Platão e o Simulacro”


(Deleuze, 1974: 259-271). A noção de Simulacro, desenvolvida por Gilles Deleuze
de forma abrangente, pressupõe sua ligação imanente a processos igualitários como
movimento natural. Trata-se de uma espécie de matriz para vários modelos
filosóficos inovadores que sustentam o pensamento de Deleuze, modelos tais como
agenciamento, rizoma e dobra. Aqui, a ênfase é no poder da imagem e na
afirmação do simulacro ─ que é, para Platão, o erro, o falso ─ “entre os ícones ou as
cópias” (Deleuze, 1998, p. 267), e em sua afirmação como paradigma dos modelos
não-lineares que lutam por espaço estético, epistemológico e filosófico.

13Deleuze e Guattari introduzem a noção de pensamento como heterogênese ao


discorrer sobre o primeiro e o segundo princípios do rizoma: os princípios de
conexão e heterogeneidade. Afirma-se o descentramento do sujeito, nega-se a
genealogia e se propõe a heterogênese em oposição à ordem filiativa do modelo de
árvore e raiz. A distinção do rizoma é a de não fixar pontos ou ordens - mas apenas
linhas e trajetos de diversas semióticas, estados e coisas, onde nada remete
necessariamente a qualquer outra coisa. (Deleuze e Guattari, 2004: 15).
11

muito antes dos atuais desdobramentos de uma produção


autodenominada conceitual. Os textos de Marcel Duchamp
reivindicavam artisticidade muito antes da atual assimilação da
heterogeneidade da linguagem. A palavra, que talvez sempre tenha
sido de alguma forma solicitada a tomar parte na construção da obra,
toma parte agora em sua visualidade.
Cabe então, ao invés de prosseguir problematizando tensões
construídas, sondar as possibilidades de produção de sentido nas
relações entre a palavra e a imagem, conceber pontos de partida
textuais ou materiais ─ ou o que quer que resulte de suas interações ─
e, a partir dessa natureza híbrida básica, dar seguimento ao processo,
à construção de espaços de intensidade que recebam um espectador
produtor de potência artística. Desta forma, permite-se ao fruidor a
fruição de sua proximidade ─ condição imprescindível para esse
tempo-espaço de intensidade e experiência ─ e se propõe uma
entrega ativa aos enunciados e às visibilidades que formam o campo
da arte.
A palavra e o visível possuem elementos constitutivos únicos e
irredutíveis um ao outro. As aproximações entre elas nada tem de
assimilação no sentido de ilustração de teorias ou de “tradução” de
imagens. Uma não explica a outra, porque não há equivalência.
Permanecem íntegras, numa relação que, segundo Michel Foucault, é
infinita:

Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do


visível, num déficit que em vão se esforçaria por
recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se
diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que
se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo
por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas
resplandecem não é aquele que os olhos descortinam,
mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.14

Portanto não há fusão. Na arte contemporânea elas, palavra e


imagem, se contaminam. A escrita se flexibiliza em grafismo, A

14Foucault, 1992, p.25.


12

imagem se torna permeável à escrita, a linha é desenho e palavra,


elementos formais interagem e como no primeiro caderno de um
aluno de poesia, há mesmo um contágio visual, poético, em via dupla.
A proximidade com a obra produz sentido na medida em que se
relacionam as “duas metades do verdadeiro” 15
, um verdadeiro não
definido pela conformidade, um verdadeiro essencialmente móvel,
constituído a cada vez que se o evoca.
No que diz respeito à produção contemporânea, cujas
estratégias são incontestavelmente tributárias das questões
suscitadas pela obra de Marcel Duchamp, apenas nos anos 50 surgem
pesquisas que dialogam diretamente com sua produção16 para, nos
anos 60, surgirem as primeiras oportunidades de investigação da
dimensão conceitual da obra, o que ocorreu sem prejuízo de sua
autonomia plástica. Acontece que já em “A Noiva Despida por seus
Celibatários, mesmo” (1915-23), “O Grande Vidro”, é revelada a
simultaneidade do campo enunciativo e do objeto dado ao olhar: “A
Caixa Verde”, guarda 93 notas, cálculos e desenhos realizados
durante os quase dez anos que Duchamp dedicou à produção do
Grande Vidro. Uma das notas diz que a Cascata e o Gás de iluminação
produzem, literalmente, a Noiva. E diz que a água e o gás operam na
escuridão e na escuridão aparecerá a “aparência alegórica”, a Noiva,
como uma “exposição ultra-rápida”. De maneira geral, as obras de
Duchamp parecem funcionar dentro de uma lógica discursiva auto-
referente. Otávio Paz descreve assim a ocorrência dos ecos na obra
do artista:
Estamos frente a uma verdadeira constelação, na qual
cada quadro, cada ready-made e cada jogo de palavras
estão unidos aos outros como as frases de um discurso.
Um discurso regido por uma sintaxe racional e uma
semântica delirante. Sistema de formas e de signos
movidos por leis próprias.17

15Deleuze, 1988:73.

16Como trabalhos de Jasper Johns, Robert Rauschenberg e John Cage.

17Paz, Otávio, 2004: 80


13

Diante da abertura da construção visual à fluidez do enunciado,


não se consideram mais como caracteres da arte a “unicidade,
privacidade e inacessibilidade” modernistas. A arte assume sua
multiplicidade e sua publicidade institucional. O que traz vida à obra
não é mais uma espécie de fonte de energia intocável no centro da
matéria, mas sim, a atualidade da experiência em sua tangibilidade.
Na atualidade os artistas se concentram em aspectos
específicos desse mecanismo de simultaneidade. Desde trabalhar
com palavras e conceitos como único material, como preconizado
pela arte conceitual18, a quaisquer outros deslocamentos da relação
plástico-verbal que possam constituir para o espectador um tipo
específico de campo de fenômenos e processos, como cadeias de
associações-livres, articulações conceituais, narrativas híbridas e
outros.
O artista contemporâneo tem a liberdade de trabalhar com a
palavra em sua obra e verbalizar em paralelo sua teoria primária19,
seja por razões contingenciais da instituição ou por razões éticas ou
poéticas.
Joseph Kosuth, proeminente artista da tendência conceitual,
define, em seu ensaio em três partes “Art After Philosophy”, a
natureza tautológica da condição artística, onde ressalta a
responsabilidade de cada artista pela leitura de seu próprio trabalho.
Segundo Kosuth, a arte é uma proposição analítica, só existindo
conceitualmente. Questiona fortemente a crítica formalista sob o
argumento de que ela nada acrescenta à nossa compreensão da
natureza ou da função da arte, consistindo em mera análise dos
atributos físicos de certos objetos em particular, que por acaso
existem em um contexto morfológico. Independentemente do grau de

18No caso da arte conceitual não é totalmente precisa, segundo Basbaum, a


referência a esta corrente como “arte desmaterializada”, “uma vez que os suportes
não são escolhidos incidentalmente, mas de modo a buscar uma adequação entre a
estratégia de ação utilizada e a matéria-suporte escolhida.” Basbaum, 2007.

19Expressão utilizada por Kosuth em seu ensaio “A Arte depois da Filosofia”. In


Ferreira e Cotrim, 2006: 210-234, na acepção, aqui, de evidência de um processo de
pensamento.
14

assertividade a que chegam as proposições de Kosuth a respeito da


separação entre arte e estética, a intenção aqui é apenas de
reconhecimento da filiação deste trabalho ao pensamento fundador
da arte conceitual que em sua extrema diversidade, tem como um de
seus méritos a contribuição para a liberdade do trânsito artístico
entre a palavra e a imagem.
Um dos trabalhos de Kosuth que mais pode ter contribuído para
a conscientização do papel da linguagem na produção de imagens é o
seu conhecidíssimo “Uma e três cadeiras”. Diante dele, o espectador
se depara com uma cadeira, sua fotografia e a definição da palavra
“cadeira”. Dessa forma, palavra se funde a enunciado, que se funde a
imagem e os elementos flutuam por sobre divisas ontológicas entre
coisa e nome.

2. “Uma e três cadeiras”, Joseph Kosuth, 1965.

Em Zero & Not (1985), paredes com escritas. Mas uma tarja se
sobrepõe, suprime as palavras e os espaços entre elas, oblitera a
linguagem e reproduz silêncio. É como se a arte conceitual abrisse
mão da imaterialidade e se rendesse à condição de objeto poético.
15

3. “Zero and Not”, Joseph Kosuth, 1985.

4. “Zero and Not”, Joseph Kosuth, 1989. Instalação.

On Kawara, também ligado à arte conceitual, trabalha a relação


entre o campo visual e o discursivo numa ação de registros
instantâneos temporais, que eleva à categoria de acontecimento
artístico. Registra repetidamente datas, coordenadas geográficas,
listas de nomes, telegramas, cartões e assim resgata o efêmero
instante biográfico e o entrecruza com sua duração enquanto objeto.
Dois de seus trabalhos bastante conhecidos são a série de pinturas
“Date Paintings”, iniciada em 1966 e sua série de cartões postais.
16

“Date Paintings” consiste de pequenas telas (20,5 x 25,5 x 4,5 cm)


cuja superfície mostra nada mais do que uma data, como, por
exemplo, “JAN. 15, 1966”. As telas só são exibidas se iniciadas e
finalizadas no mesmo dia, caso contrário são destruídas. Já a série de
cartões compreende cartões postais enviados diariamente entre 1968
e 1979 para conhecidos com nada além do registro do momento
exato em que o artista acordou naquele dia: “I got up at 8:30 A.M.”.
Trabalhos similares são o “Calendário de Cem Anos”, uma listagem
diária das pessoas que encontra (“I met”) e “I am Still Alive” ─
telegramas que não iam além da simples confirmação da continuação
da sua existência ─ além de outras pinturas, como a demarcação de
uma mancha no deserto Saara em termos de longitude e latitude.
Embora haja uma evasão da poética óbvia na mecanicidade da ação,
nada impede o espectador de captar as entrelinhas da poesia na
instantaneidade e efemeridade do gesto. Possivelmente esse
paradoxo em Kawara deixa marcas na produção de sentido para além
da proposição analítica pressuposta.

5. “I am Still Alive”, On Kawara, 1975.


17

6. “Date Painting”, On Kawara, 1969.


Exemplos de referências mais próximas, principalmente com
relação ao uso da palavra, estão nos trabalhos de Sophie Calle, Marilá
Dardot e Nuno Ramos.
Sophie Calle engaja-se na descrição minuciosa da
vulnerabilidade e no exame das questões de identidade, intimidade,
assinatura, propriedade e sigilo. Reveste lugares públicos com uma
aura intimista, convocando o acaso segundo suas próprias regras, em
uma obra multiforme, entre a foto-novela, a confissão e o diário de
bordo.

Refere-se abertamente a si mesma, em primeira pessoa e sem


reservas. Usando linguagem direta expõe sua pessoalidade em
detalhes como em uma ficção e registra a própria banalidade, seja
através de sua própria narração, seja através de algum detetive que
ignora ter sido contratado para tal fim. De maneira geral, sua obra
parece ser uma rejeição das “deprimentes e, por vezes, perversas
18

asserções” 20
da crítica oriunda do estruturalismo. Asserções essas que,
no final dos anos 60, declararam a morte do autor e que produz ainda
hoje seus desdobramentos, segundo Cristine Macel “na forma de uma
glorificação da não-produção e uma preferência pelo real (em relação
ao trabalho de arte), demonstrando uma atitude, às vezes,
profundamente anti-humanista.” Na França foi por muito tempo
acusada do “crime da autobiografia” e de “egomania”. Razões para a
defesa do direito à auto-referência (ou ao “criminoso” conteúdo auto-
biográfico) à parte, o fato é que em seus diários escritos entre 1978 e
1992 registra eventos entre a factualidade e a ficção, entre a
autobiografia e o anonimato. Há um gênero literário conhecido como
“auto-ficção” 21
, onde o autor empresta seu nome ao conceito em seu
livro, resultando numa narrativa de ficção homodiegética. Nela o
autor declara: “Sou eu e não sou eu” 22
e, se há um gênero que possa
se aproximar desse jogo vertiginoso de espelhos, além da
autobiografia, seria a “auto-ficção”. Enquadrando-se os escritos de
Calle em algum desses gêneros ou não (provavelmente não), atente-
se aqui apenas para o fato de que seu trabalho assume um caráter
distintivo pela ligação com a imagem fotográfica adicionada a (ou que
inspira) essas narrativas.

20Cristine Macel in The Author Issue in the Work of Sophie Calle. Catálogo da
exposição M’as-tu Vue no Centre Pompidou em 2003. Munich, Berlin, London, New
York: Prestel Verlag, 2003:17. Cristine Macel é curadora da mostra. Tradução minha.

21Criado por Serge Doubrovsky em seu livro “Fils”, de 1977. (Macel, 2003:21.)

22Genette, Gérard. Fiction ET Diction, Paris, Seuil, 1991 Apud Macel, Christine In
The Autor Issue in The Work of Sophie Calle. Macel, 2003:21.
19

7.
“Diaries”,
Sophie
Calle,
1978 -
1992.
(excerto).

8. “Diaries”, Sophie Calle, 1978 - 1992. (excerto).


20

Marilá Dardot, jovem artista de destaque no cenário cultural


brasileiro, transforma sua coleção de mensagens mundanas soltas em
um livro, ou talvez um livro em registro de vivências. Sebo é um
apanhado de imagens e registros do que está fadado ao descarte.
Cada página, um retorno, o resultado de um teste, uma nota de
supermercado antiga, um exercício de francês uma embalagem, um
bilhete doméstico. Em sua instalação “Sob Neblina [em segredo]”,
cria um livro-ambiente, a partir de uma coleção de frases que
contenham a palavra “silêncio”. Um livro de devires de sensações e
progressões tonais do cinza. Cada capítulo, um tipo de silêncio. O
espectador, esforçando-se para continuar a enxergar as frases que
vão se acomodando às variações de luz, percorre uma trilha-metáfora
do ato de fechar lentamente os olhos, como num percurso oposto ao
da caverna de Platão. Ao fim, se depara novamente com a luz em sua
frieza: um baú fechado. Parece ir em direção oposta à Sophie Calle, no
sentido de velar em vez de revelar, de lembrar o valor do silêncio. E
aqui parece caber a lembrança de que:
O ser é sucessivamente condensação que se dispersa
explodindo e dispersão que reflui para um centro. O
exterior e o interior são ambos íntimos; estão sempre
prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade. Se há
uma superfície-limite entre tal interior e tal exterior,
essa superfície é dolorosa dos dois lados. 23

23Bachelard, 2003:221.
21

9. “Sebo”, Fabio Morais e Marilá Dardot. 2004 - 2007 (excerto).

10.“Sebo”, Fabio Morais e Marilá Dardot. 2004 - 2007 (excerto).


22

Nuno Ramos, um dos fundadores do “Grupo Casa 7”, direciona


sua produção, desde 1991 à escultura e às palavras que, presentes
nas obras plásticas e nos livros, assumem a cena principal. Nas obras
da exposição Fala, (2008) há uma constante material no uso das
palavras. Bandeira Branca - Instalação que mistura plástica e
literatura - poderia ser vista como um memento mori. Três urubus
sobrevoam um ambiente que é um recorte de uma paisagem negra
suspensa à altura do olhar. Breu, vidro e mármore se conjugam e se
difundem multidirecionando a experiência intensificada por três vozes
amplificadas que preenchem até o último espaço vazio. Realiza,
assim, o trânsito entre o sentido, a palavra e a matéria.
Em “Monólogo para um Cachorro Morto” cria um ambiente
composto por cinco pares de lápides de mármore com um texto
incrustado na pedra. A leitura aqui também é inviabilizada pelo
artista: uma espécie de duplo da lápide se interpõe entre o espectador
e a escrita. No vídeo, posicionado abaixo da linha da cintura, o artista
fala por doze minutos a um cachorro morto na estrada.

11.“Monólogo para um Cachorro Morto”, Nuno Ramos, 2008. CCBB


Brasília.
23

Estes artistas, de maneiras diversas articulam imagens,


discursos e conceitos que, em maior ou menor grau, sugerem
conflitos do sujeito descentrado da contemporaneidade e remetem o
espectador a estados desterritorializados entre a visão e a leitura.
Questionam, assim, o próprio estatuto da arte que produzem ou da
arte de seu tempo.

Seção II - O Imprevisível na Imensidão Íntima

E eu me crio com um traço de pena


Senhor do mundo,
Homem ilimitado.
Pierre Albert-Birot

Pela simples lembrança, longe das imensidões do mar e da


planície, podemos, na meditação, renovar em nós mesmos
as ressonâncias dessa contemplação da grandeza. Mas
trata-se realmente de uma lembrança? A imaginação, por si
só, não poderá aumentar ilimitadamente as imagens da
imensidão? A imaginação já não será ativa desde a
primeira contemplação?
Gaston Bachelard

O que, além de nossa própria expansão, poderia ser a


imensidão? Onde, além do devaneio, ela poderia estar?
Para Gaston Bachelard, a impressão da imensidão está numa
região sui generis da fenomenologia24. Ela conhece o fluxo de
produção das imagens sem que os fenômenos da imaginação se
constituam. Não sendo o imenso um objeto, remete-nos à nossa

24idem:189 - 201.
24

consciência imaginante, em virtude da qual se possibilita a produção


poética.
No caminho concreto da imensidão, diz Bachelard, quando o
sonhador realmente vive a palavra “imenso”, (talvez como
Baudelaire, segundo o mesmo autor, vivia a palavra “vasto”) ele se
liberta de seus pensamentos, liberta-se até mesmo de seus sonhos,
logo, também de sua memória. Esse devaneio da imensidão, essa
contemplação primordial, não traz lembranças, prescinde registros, é
obra da faculdade de imaginar. Muitas vezes é essa imensidão interior
que dá seu verdadeiro significado a certas expressões referentes ao
mundo que vemos.
Bachelard, coerentemente com a direção fenomenológica que
segue, ao discorrer sobre o que na poesia exprime o caráter íntimo de
imensidão, não se interessa por submeter esse percurso interior a
uma análise de ordem psicológica. Isso não anula, porém, dada a
profundidade com que trata o assunto, a possibilidade de nos
permitirmos certa liberdade em obscurecermos as divisas entre as
abordagens, no intuito exclusivo de sobrevoarmos um pouco mais
livremente nossos próprios processos íntimos, sem sabermos ao certo
onde nosso percurso é fenomenológico ou psicológico. O ponto crucial
aqui seria a constatação de que a auto-descoberta requer múltiplos
movimentos exógenos, endógenos, de abertura e de fechamento e
isso envolveria lapsos entre a nossa grandeza e o ser mirrado em que
nos configuramos. A descrição da revelação de uma grandeza íntima
é algo caberia com muito maior propriedade na poesia.
No devaneio que ruma à imensidão íntima, deve haver um
lugar, tempo ou instância oportuna a uma fusão entre aquilo de que
me lembro e aquilo que criei sem saber que se tratava de invenção.
Da mesma forma deve haver no presente um ponto de convergência
entre percepção sensível e o conceito, que não cristalize o mundo em
25

uma abstração, mas possa ser a experiência dessa similitude de que


nos fala Merleau-Ponty na expressão “metamorfose do ser” 25.
Uma cadeira de frente para a escrita na parede é quase um
convite. O espectador se defronta com uma indecisão reforçada por
um objeto que já ocupa a cadeira: um uniforme de criança (de um
tempo em que o nome da criança era bordado com a caligrafia da
mãe no grande bolso da frente). O nome próprio despreza a língua, ri
do nome comum. Poucos se importam com os usos que o
inconsciente poderia fazer do nome próprio, dada a variedade de
nomes estranhos no mundo. Ele foge às expectativas, muitas vezes
afronta bom senso, e relança os dados que porventura estiverem em
jogo:
Lucette teve uma menina na prisão. Tomou-a nos braços
e olhou-a com todo o amor do mundo. Nunca se
viu uma jovem mãe tão maravilhada.
_Você é linda demais! Repetia à bebê.
_ Como se chamará?
26
_ Plectrude.
Neste texto literário de Amélie Nothomb, entitulado “Dicionário
de Nomes Próprios”, a personagem Plectrude se converte em sua
assassina.
As formas com que o nome próprio pode servir aos propósitos
do inconsciente podem não ser a preocupação do espectador diante
do uniforme bordado, o que não o impede de fazer parte do grande
grupo de pessoas que já dedicaram alguma porção de seu tempo à
procura de identificação com o próprio nome, ou com a própria
imagem no espelho.

25Noção encontrada em Merleau-Ponty, 1980:91, aqui, no sentido de uma


existência dupla equivalente, semelhante.
“Cumpre que ele confesse [o pintor], como diz um filósofo, que a visão é espelho ou
concentração do universo, ou que, como diz outro, o ídios kósmos, abre-se por meio
dela para um koinòs kósmos, enfim, que a mesma coisa está lá no coração do
mundo e cá no coração da visão, a mesma ou, se se fizer questão, uma coisa
semelhante, porém segundo uma similitude eficaz, que é parenta, gênese,
metamorfose do ser em sua visão.” (Merleau-Ponty, 1980, p. 91).

26Nothomb, 2003:16.
26

No lugar do nome, um imperativo bordado, construído pela


caligrafia da mãe num tom mais claro e mais honesto do que
qualquer outra coisa que ela possa ter dito: “Vá sozinha” é o que se lê
no bolso do uniforme. Um bolso é um continente. Talvez guarde a
primeira centelha de consciência de privacidade, propriedade, de
memória ou de crime. Este bolso guarda um livro. Um híbrido, na
verdade, que poderia ser um manual de sobrevivência, um presságio
do porvir ou um caderno de música, caligrafia, desenhos ou poesia. A
decisão também é solitária. Seu marca texto tem a forma de uma
gota: bem posicionado, impede que se desperdicem as gotas de
vinho.
A escrita na parede tanto se reveste de sua própria
materialidade quanto pode servir de pista às relações inconscientes de
sua escolha como elemento visual do trabalho. Para Lacan a letra
está do lado do real27. É sempre ruptura, de onde quer que venha,
pra onde quer que vá. Define-a como “terra do litoral”, “rasura de
28

todo traço que esteja antes”, fundante, no mesmo movimento, do


tempo e de sua negatividade.29 Em Freud a escrita se encontra
implicada na análise das repetições, das falhas e das transposições que
constituem os mecanismos da atividade psíquica inconsciente. A
fantasia (imagem) é identificada à encenação de uma frase.30 Em
“Lembranças Encobridoras”, percebemos de que forma imagens
construídas substituem o desejo recalcado e a partir dessas
articulações e outras, menos definíveis, a um momento em que a
escritura na parede é ao mesmo tempo materialidade e gesto de
reinvenção, de fronteira e de ruptura, onde, como em Robinson
Crusoé, a “escrição” 31
diante do real é o gesto simbólico “que conduz

27Lacan, J. D’um discours qui ne serait pas du semblant, Seminário 8, 1970-71,


Apud Kauffman, 1996.

28Lacan, J. Les nondupes errent, Seminário 21, 1974-5, Apud Kauffman, 1996.

29Kaufman, 1996: 285.

30Freud, 1996.

31Kauffman, 1996: 285.


27

o corpo a apreender o que ele vai detectar, manipular, classificar,


depois ligar como signos do mundo.” 32

O nome próprio, que deveria ser o signo bordado, cede lugar ao


seu significado, diante de uma busca humana tão cara a todos nós: a
busca compulsória de si, independentemente do nome que se tenha.
Ter um nome é estar separado. É estar fadado à falta que, segundo
Lacan, nos constitui como sujeitos.
O ambiente criado pode ser intransitivamente. Ser o que é; ou
transitivamente, se isso significar ser o que nele surgir de vivência ou
de ausência. Entre um amontoado de representações de traços de
memória à possibilidade de recomposição de fantasias, pode surgir
como simples abertura à reinvenção, à ressignificação. Ou talvez uma
forma de um abandonar-se com desapego, diante dos discursos e
imagens que tecem a construção da subjetividade, letra a letra, um
não mais esperar, uma ruptura com o que não está.

Seção III - O Lugar da Poesia


O termo atualmente utilizado para designar as poéticas que
incorporam o espaço onde a obra se instala como parte da mesma,
criando, a partir daí, uma série de relações é instalação. Uma das
principais questões recorrentes suscitadas pelo conceito de instalação
é a intenção manifesta do artista de inserção da arte na realidade, na
concretude do mundo. O desejo de trabalhar com dados reais do
mundo.33
Embora a percepção do espaço tridimensional tenha sempre
sido tratada pelas questões da escultura, o mesmo não se pode dizer

32Lacan, J. L’Identification, Seminário 9, 1961-2, Apud Kauffman, 1996.

33 A respeito dos conceitos de instalação, ver Junqueira, 1996.


28

com relação ao espaço que diz respeito ou envolve o corpo do


observador. O espaço de domínio crítico e conceitual da arte na
primeira metade do século XX ainda não envolvia o espectador. Brian
O’Doherty indica essa delimitação espacial no comportamento dos
observadores da Merzbau de Kurt Schwitters, que a observavam
como a uma imagem fotográfica, do lado de fora. Não havia ainda a
noção consciente de espaço circundante, que é explorada em todos
os campos de conhecimento a partir dos conceitos lançados por
Maurice Merleau-Ponty em “A Fenomenologia da Percepção”,
publicada a primeira vez em Paris, em 1945.

Agora se manifesta o verdadeiro problema da memória na


percepção, ligado ao problema geral da consciência
perceptiva. (...) Recordar-se não é trazer ao olhar da
consciência um quadro do passado subsistente em si, é
enveredar no horizonte do passado e pouco a pouco
desenvolver suas perspectivas encaixadas, até que as
experiências que ele resume sejam como que vividas
novamente em seu lugar temporal. Perceber não é
recordar-se.34

A consciência desse outro modo de perceber a arte muda muita


coisa na poética, na observação e nos discursos que permeiam a
produção prática.

O processo de construção do “Primeiro Caderno da Alumna de


Poesia” envolveu tanto a preocupação em que o espectador se
colocasse em uma posição de questionamento em relação ao espaço,
quanto a preocupação de colocá-lo dentro, no sentido perceptivo.
Essa posição de interiorização ao espaço físico da obra é sutil, pois
não se trata aqui estritamente de um ambiente em que se adentra.
Mas de um espaço físico de restrição, onde o corpo é levado a se
posicionar de acordo com possibilidades limitadas em função do que
a atenção e a subjetividade são evocadas. Como num ambiente de

34Merleau-Ponty,1999, p. 49.
29

leitura, que poderia ser toda a biblioteca ou apenas um canto. Como


estratégias de convocação da subjetividade surgem possibilidades ou
fragmentos de uma narrativa que não acontece. Tanto na parede, em
forma escrita, quanto nas imagens de um uniforme de criança, um
bordado, um livro, uma cadeira.
Um ambiente que se dilui entre outros se configura em refúgio
de memórias de discursos e, ao mesmo tempo, de discurso da
memória. A escrita nesta obra é sempre caligráfica. Quem escreve?
Para quem se escreve? Roland Barthes sabia da impossibilidade de se
escrever sobre, de se escrever para o outro. Escrever: verbo
intransitivo:
(...) saber que as coisas que vou escrever não me farão
nunca amado por aquele que amo, saber que a escritura
não compensa nada, não sublima nada, que ela está
precisamente aí onde você não está ─ é o começo da
escritura. 35
Como o cenário onírico descrito por Freud, a instalação é
primariamente visual.
A presença do signo verbal é percebida pelo olhar que se vê
percorrendo os detalhes nas dimensões expandidas dos formatos
usuais de leitura. Uma coluna de escritos sobrepostos em papel
translúcido eleva o olhar aos limites físicos do lugar. O papel parece
ter sido rasgado por uma busca que poderia ser considerada
arqueológica. Se os escritos representam um construção subjetiva, as
camadas superficiais poderiam estar “encobrindo” algo mais
profundo. Os escritos se estendem além do alcance das mãos. As
possibilidades de um achado são remotas e demandam bem mais que
um gesto impulsivo. Há uma cadeira que sugere um lugar de leitura,
mas que poderia ser também o lugar não de ler, mas sim de perceber
o que há para ser lido. Toda escrita é caligráfica e todos os textos são
apropriados. O escritor se identifica com o leitor. Os escritos são
inalcançáveis, como se o ato de ler fosse infinito e a busca, inelutável,

35 Barthes, 1990.
30

ainda que não se pressuponha um objeto específico de busca ou


qualquer garantia de revelação.
O primeiro impulso seria o de ler, o de decodificar os signos.
Mas impõem-se aqui outras duas características do sonho. Uma, a de
que seus significados não emergem da decodificação, mas sim
através de conexões afetivas e verbais. Outra, a de ser uma estrutura
composta: o todo não é objeto de interpretação. Ao se falar em
estrutura composta pode-se ter a impressão de uma sugestão de
“decomposição” das partes num escopo hermenêutico ou de um todo
analisável. Mas aqui nada, a não ser o relance de olhar, um detalhe
ou outro do lugar, fornece as partes que o espectador relaciona, ou
com as quais se relaciona e cujos vínculos talvez nem ele reconheça.
Como num quebra cabeças não se separam elementos unitários: a
cadeira não se separa da parede, que não se separa do uniforme ou
do livro. Não se trata de uma narrativa a ser entendida em seu
sentido manifesto, ou de imagens que devam ser compreendidas em
seu valor pictórico-narrativo. Há aqui uma relação espinhosa entre o
latente e o manifesto, que nos leva à comparação freudiana do sonho
com o rébus:

(...) só podemos formar um julgamento adequado do


rébus se pusermos de lado críticas tais como essas de
toda a composição e de suas partes e se, em lugar disso,
tentarmos substituir cada elemento separado por uma
sílaba ou palavra que possa ser representada por aquele
elemento de alguma maneira ou de outra. As palavras que
juntamos desta forma não deixam mais de fazer sentido,
mas podem formar uma frase poética da maior beleza e
significado. Um sonho é um enigma de figuras desta
espécie e nossos antecessores no campo da interpretação
cometeram o erro de tratar o rébus como uma
composição pictórica e, como tal, ela lhes pareceu sem
sentido e destituída de valor. 36

A leitura não se mostra linear e o impulso de ler se converte em


impulso de olhar. Esse olhar pode perder o foco ou se dedicar a

36Freud, 1987:296.
31

perscrutar as camadas translúcidas de escrita caligráfica, num ato


voyeur, arqueológico, num ato de aprofundamento. Se se perde o
motivo da sobreposição, se ela não mais se dá a insinuar o elemento
anuviado pelas camadas, ainda há a possibilidade de elevação do
olhar, o outro fragmento, outra pista visível de sentido. A lógica da
horizontalidade na leitura é subvertida: o olhar condicionado à
sucessão descendente das linhas move-se para o alto em busca de
um significado cada vez menos acessível. O hábito da interpretação
do que está grafado levará tanto à descoberta do fragmento
reconhecido quanto à frustração diante de uma exposição
fragmentária. A tentativa de decodificação da superfície escrita numa
tentativa de síntese não levará a outro sentido que não o da polifonia.
Aqui a fragmentação é o que mais poderia se aproximar do sentido e
quem tenta ler estaria mais perto dele se se entregasse livremente às
suas associações, adicionando intertextualidade e sentido. Se
significados houver, emergirão de conexões afetivas, de uma
identificação com um território, porque a visão do todo é sempre
inacabada. A escrita está lá, há pistas legíveis, sobrepostas, mas a
imagem, por sua vez, se sobrepõe à forma enunciativa, revira e
reverte a lógica, abala o conjunto do estabelecido. O todo só está
para se oferecer em partes de significado prontas a acolherem
sentido e se renovar ad infinitum, tanto na intertextualidade, quanto
na multiplicidade de possibilidades de relação. Tanto na memória
quanto na presença. Assim se torna possível o restabelecimento de
uma unidade que pode chegar a resolver as dicotomias vigentes e a
forma emergente pode se tornar a circunstância inapelável, a todo
que inclui o sujeito que ali se proponha a estar.
32

Considerações Finais
Dentre as possibilidades de articulação entre palavra e imagem
que se apresentam, procurávamos alguma que pudesse suscitar o
oposto da qualidade factível de comunicação dessas formas de vida
da linguagem. Optamos pela investigação em torno de sua
incomunicabilidade. A idéia da incomunicabilidade nos levou à
proposta de uma configuração espacial que busca alterar, ainda que
de forma sutil, o estado usual de percepção na presença das palavras
ou das imagens, o que acaba por inviabilizar para o espectador a
identificação de uma narrativa transferível, comunicável.
Fizeram parte do processo poético o gesto de subtração de
partes da escrita impregnada ─ o qual carrega uma tentativa de
anulação dos limites daquilo que porventura se esconda por trás dos
limites da escrita ─ assim como o gesto de subtração do nome próprio
─ em cujas entrelinhas se lê o despojamento do que nos marca como
interlocutores. Diante do livro-caderno vazio da condição de ser
humano, evoca-se o silêncio que não leva à verdade e sugere-se certo
desapego do que está estabelecido, como única possibilidade de uma
revelação.
A presença do espectador, nesse trabalho, é solicitada
paralelamente em um espaço maior, um espaço sem respostas, o da
imensidão íntima, onde se perde o vislumbre das fronteiras entre o
que está para ser lido, visto, construído, percebido, lembrado ou
perdido.

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Dardot; São Paulo: Associação de Amigos do CCBB, 2007
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