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Momento Marcante

Este momento é para mim ainda muito recente, e retrata o


facto mais incógnito e misterioso da vida humana, a morte. A morte é
por si só um tema ou conceito muito controverso. Cada um de nós
tem uma ideia diferente, utópica e as vezes romântica de como será
após o derradeiro sopro. Podemos fingir, ignorar e tentar manipular a
maneira como é visto este acontecimento mas no fim resume-se ao
desaparecimento de alguém para dar lugar a um vazio inexplicável
em cada um de nós.
Ouvimos todos os dias noticias de tragédias envolvendo mortes
as quais lamentamos e somos solidários, ouvimos casos de doença,
violência, acidentes e outras intempéries envolvendo mortes e
lamentamos as vitimas mas cedo esquecemos, até que, um dia, nos
toca a nós.
A morte tinha para mim um significado demasiado simplista e
ingénuo antes dos acontecimentos que aqui vou relatar.
Maria era minha mãe até bem pouco tempo. Não o deixará de
ser em pensamento e mesmo em momentos de desespero nos quais
falamos secretamente sem que os outros percebam para não
pensarem que somos “diferentes”. Era uma mulher forte de espírito
mas muito débil de saúde. Começou os seus problemas logo no dia
em que eu nasci, o parto foi difícil e com pouca tecnologia como
suporte fizeram o milagre de me fazer nascer com alguma saúde,
mas prejudicando irremediavelmente a que vinha a chamar de mãe.
Logo aí a vida dela esteve por um fio deixando mesmo os
médicos sem outra opção senão desistir dela e deixada descansar o
repouso eterno, mas eis que, um médico local que a nenhum custo
monetário e após sofrer inúmeras suplicas desesperadas da minha
avó e também meu pai decidiu arriscar ir contra todas as éticas da
sua profissão e operá-la minando a autoridade dos seus colegas
médicos e indo contra a politica hospitalar de então. Milagre ou não
para quem quiser acreditar ela sobreviveu e deixou a classe médica
em sérios embaraços mas não aquele médico rebelde e com um
coração do tamanho do mundo, anda hoje passados 28 anos
tentamos por varias vezes que ele aceita-se o pagamento daquela
intervenção cirúrgica mas ainda hoje ele rejeita dizendo que ele não
estava sozinho naquele dia, algo estranho ocorreu naquela mesa de
operações que ele não consegue explicar e por esse facto ele também
nos agradece pela oportunidade que teve. Tudo isto pode ser uma
alegoria ao que realmente aconteceu mas o facto é que aconteceu tal
e qual como descrevi.
Ricardo Ferreira
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A vida retomou o seu rumo natural, desde que me conheço e


desde que tenho memória sempre “vivi” com as maleitas da minha
mãe, era doença atrás de doença, eram operações diversas e
complicadas. O culminar de toda a vida de sofrimento aconteceu a
pouco mais de 2 anos. Mas ainda antes de resumir o facto marcante
para mim era importante realçar os atributos da pessoa em questão
para melhor compreender o que se iria seguir.
Poderia dizer-se que toda a família era unânime ao afirmarem
que ela era o pilar da família, era a figura mais respeitada por todos e
a mais predominante irmão de entre 9 outros. Era a conciliadora das
diferenças de feitios entre todos e era a confidente dos mais
improváveis personagens, a nível profissional era um exemplo de
lealdade, era delegada sindical, cargo esse que lhe foi “imposto” por
ser uma amiga entre amigas e a confiança era tanta para porem tudo
nas mãos dela. Ainda hoje passeio na rua e sou abordado por pessoas
que nunca tinha visto antes e vem dar-me palavras de carinho e
enaltecer o carácter e a importância que ela teve na vida dessas
pessoas. Sinto enorme orgulho mas também reforça a minha
saudade. Ela era uma pessoa que não suportava dar “trabalho” a
outros, não se mostrava fraca, fazia tudo por todos e era por vezes
demasiado compreensiva.
Voltando ao momento crucial e final deste relato, tudo começou
numa operação simples segundo os termos médicos, era uma
intervenção estética necessária para evitar mais uma complicação
física, era no estômago. Tinha sido encaminhada para o hospital
Santos Silva ao qual ela tentou evitar porque sempre lhe fora incutido
por muitos que seria melhor e oferecia outras condições e garantias o
hospital da Prelada. Felicidade, conseguiu, tinha sido chamada para
comparecer para internamento no hospital onde se sentia “segura”.
A operação correu bem segundo nos foi facultado e foi-lhe dada
alta médica. Já em casa e passado alguns dias ela sentia que algo
estava errado, sentia algo de estranho perto do local da operação o
que se veio a revelar com umas dores alucinantes. Depois de
ponderarmos decidimos recorrer a um médico particular e tentar
perceber o que estava a acontecer. Acompanhei-a ao consultório de
um especialista, no qual de imediato fez uma ecografia, na qual se
detectou um “elemento” estranho na área adjacente á operação.
Alarmado o médico, aconselhou a minha mãe a deslocar-se ao dito
hospital com estes novos exames e confronta-los com algum erro
médico ocorrido aquando da operação. Já no hospital foram feitos
exames complementares e foi descoberto um tumor que segundo
eles era benigno. Ficamos de rastos, não podia ser verdade, aquilo

Ricardo Ferreira
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que julgávamos só acontecer aos outros estava a ser agora uma


realidade para nós.
Recorremos então a opinião do nosso médico de família e este
aconselhou a transferir todo o processo para o hospital Santos Silva
de onde ele podia ter mais controlo e estar mais activo nas decisões e
nas “movimentações” médicas. Já sobre a alçada deste hospital deram
conta da negligência médica praticada no hospital da Prelada mas
nada puderam fazer senão tentar remediar o erro. Seguiu-se a
operação chave para todo este processo, a remoção do tumor.
Boas notícias por fim, o tumor tinha sido retirado por completo
e agora com o suporte de um tratamento a base da quimioterapia iria
anular a hipótese de voltar o mesmo problema. Foi um alívio ao qual
me é difícil descrever, até as lágrimas mudaram de sabor, passaram
de uma tristeza enorme para uma alegria eufórica. Comecei a
acompanha-la diariamente ao hospital para as sessões de
quimioterapia, não posso deixar de assinalar que nunca tinha entrado
naquela secção do hospital e fiquei comovido ao ver todas aquelas
pessoas e com um problema em comum, as experiencias que
trocavam e o espírito de luta que não julgava possível haver naquela
situação.
As sessões decorriam normalmente mas mal acabavam tinha
que “correr” para casa para ela se deitar porque quando começava a
fazer efeito os químicos no corpo era terrível e isso impossibilitava-lhe
de caminhar e ate as vezes de falar. Ao fim de vários meses de
martírio ela começou novamente a sentir que algo estava errado e
começou a desesperar, não aguentava mais. Solicitamos novos
exames e consulta com especialistas nesse hospital e decidiram
operar e ver o que se passava de errado, isto porque não era suposto
estar a sentir dores como estaria a sentir. Chegou o dia da operação,
a espera estava a ser tortuosa.
O médico responsável pela cirurgia sai da sala de operações,
chama o meu pai ao lado e dá-lhe as tristes notícias, o tumor
ramificou e dividiu-se em 3, um no esófago, outro no estômago e
outro no intestino, apenas puderam abrir e fechar nada mais. Davam-
lhe apenas 15 dias a 1 mês de vida, entramos em choque, e logo aí o
médico sentou-se connosco e deu-nos conselhos e atitudes a tomar
perante a situação. A muito custo chegamos á conclusão que seria
pelo melhor ocultar-lhe a sua doença e tentar dar-lhe os melhores 15
dias da vida dela. Finalmente saía da sala de operações com um
sorriso de tranquilidade e dizendo que era desta que ia ficar boa, que
se sentia bem e estava feliz por se ver livre de toda a dor.
Quase não conseguíamos conter as lágrimas e os gritos de
revolta mas por ela fomos fortes. Foi muito duro perceber que em 15
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dias já não estaria cá.


Controlamos a nossa dor de maneira a não dar a perceber a ela
que algo estava errado, foi confuso não poder abraçar a ela e chorar
ou despedir, mas estávamos unidos. O meu pai teve que tomar uma
decisão e pediu ajuda a mim e ao meu irmão de como deveria agir,
deixaria ela acabar os dias no hospital ou deixa-la ser feliz num local
onde amava e era acarinhada 24 horas por dia, não foi difícil, foi
unânime e ela regressaria a casa. Preparamos a casa para uma
recepção digna de uma rainha e com muito receio também por no
nosso intimo pensarmos se ao ocultar-lhe a doença estaríamos a agir
bem.
Foi comovente assistir a reacção dela ao chegar á sua casa.
Deitou-se na cama de onde não sairia mais e começou a chorar de
alegria e a olhar para nós a agradecer por tudo o que tínhamos feito
por ela, e nós acompanhava-mos o choro mas por motivos diferentes.
Ela exigia cuidados aos quais eu tinha alguma dificuldade em
realizar, mas nesses momentos descobri-me como homem, passava o
dia com ela enquanto os outros trabalhavam mas também tive muita
ajuda de familiares mais chegados que também diariamente se
disponibilizavam para tudo o que precisa-se. Por motivos inerentes á
doença em questão, cancro, ela teria de tomar imensos
medicamentos que tinham efeitos secundários incríveis aos quais era
incrivelmente doloroso assistir. Ela sempre foi uma mulher astuta e
logo começou a perceber que algo estava errado e que nos não
estaríamos a agir com naturalidade. Era difícil mentir-lhe fosse do que
fosse, e sabíamos que se ela descobrisse era bem capaz de cometer
um acto irreflectido só pelo simples facto de não queres dar
“trabalho” a ninguém.
Era muito difícil estar ao lado dela e não puder agarrar-me e
pedir-lhe conselhos e perdão por tudo o que possamos ter feito, era
difícil sequer ter que me despedir dela depois de 28 anos em que foi
para mim uma mãe e uma amiga. Era de facto uma mulher
extraordinária, lutava com todas as forças para ficar melhor e vimos
os 15 dias passar e ela ainda sorria para nós. Passaram-se meses
aliás, mas sempre na cama, ela começava a desesperar e a suspeitar
de algo, “porquê que ainda não estou boa?”, era uma pergunta de
resposta simples mas que mais uma vez fizemos muita força para não
responder e em compensação lançar umas palavras de alento e força
para superar tudo.
Ainda me lembro de ela me pedir para estar sozinha com ela e
pedir-me por tudo para que não lhe mentisse e lhe conta-se a
verdade, foi o pior momento da minha vida, ter de mentir a quem
nunca tinha mentido e logo numa situação destas. Julguei mesmo não
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ser capaz e senti-me a pior pessoa do mundo. Ela começou a piorar


muito, chegou ao ponto da dor ser tão intensa ao ponto de ela se
querer suicidar com o mais simples dos objectos. Eu estava a beira do
colapso, não aguentava mais, estava a corroer-me por dentro.
Havia manhas em que ela acordava com dores por volta das 4
ou 5 da manha e pedia-me muito gentilmente para a meter num carro
e passear com ela com os vidros abertos a beira-mar
independentemente do frio que pudesse fazer só para se sentir
liberta da cama e ver coisas que não imagina-se serem a ultima vez a
ser vistas por ela.
Não lamento nenhum desses momentos e recordo-os com um
sorriso. Chegou o declínio da doença e ela não mais se pode levantar
e passava mais de 20 horas a dormir por dia. Sabíamos que o fim
estava próximo, a angustia aumentava, a ansiedade pelo momento
fatídico era insuportável, e daí surgiu o momento que mais dor me
trás ainda hoje, ela quando percebeu que estava muito mal começou
a ficar torturada pela dor porque psicologicamente tinha perdido a
força e vitalidade, daí o médico receitar um medicamento que
consistia em “alucinar” o paciente para não ter a noção de nada do
que o rodeia.
Sim ela parou de pensar na doença mas, a nossa dor foi pior, e
demos conta desse facto quando estava alguns familiares de visita
como era frequente e ela tinha tomado o tal medicamento, e foi-lhe
feita uma pergunta simples, o que ela tinha comido ao almoço, e para
nosso espanto ela ficou a pensar e não conseguiu descobrir, o almoço
tinha-lhe sido servido 30 minutos antes. Ficamos todos com um rosto
de pânico a olhar uns para os outros e surgiu nova pergunta, a minha
tia (irmã da minha mãe) perguntava-lhe “quem é este?” apontando
para mim e foi quando o meu coração parecia parar quando ela se
vira na minha direcção e diz que não conhecia e perguntava a todos
quem era eu e o que estava ali a fazer. Não consigo por palavras
exprimir o que senti e sinto ao lembrar desse momento, tive que sair
do quarto e refugiar-me sozinho e “explodir” em fúria. Os dias
passaram rápido demais, o meu pai passou os últimos dias em casa
porque tinha também a percepção que estaria breve o momento
menos esperado.
O meu pai no dia 29 de Junho de 2007 aconselhou-me a sair um
pouco e distrair, eu por fim acedi ao seu pedido e por fim saí de casa,
não me diverti mas desanuviei um pouco, mas tudo se revelou um
fracasso porque quando regressei a casa deparei com um cenário que
não queria acreditar, estava o meu pai ao lado dela e ela mal
respirava, estava a sufocar, sabíamos que seria assim mas não
imaginávamos que iria ser tão difícil.
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Estávamos os dois ao lado dela e assistíamos impotentes


quando o coração dela parou a 1 vez, retomando alguns segundos
depois o seu normal funcionamento, ficamos “entalados” e não
sabíamos reagir, começamos a telefonar para todos os familiares a
informar o que se estava a passar e todos e foram para o nosso lado
excepto a minha avó porque já tem 83 anos e tínhamos receio que
não resiste-se também a este infortúnio. Eram 3 da manha e ela
ainda em sofrimento. Alguém se lembrou então que a minha mãe era
muito religiosa e certamente seria o desejo dela ter um padre a dar a
última bênção.
È importante dizer que durante todo este processo ela estava
desperta, os olhos estavam amorfos e apenas reagia ao toque, logo
não larguei a mão dela em nenhum momento. Foram a casa do padre
da freguesia mas este recusou-se a deslocar 500mts porque tinha
sono e de manhã iria ter que se levantar cedo. Recorremos a outro
padre conhecido que estava a 55km de minha casa que não hesitou e
fez-se a caminho. O coração dela entretanto tinha parado mais 3
vezes, chegou o padre e fez a sua função, foi indescritível a
humanidade deste homem, era duma simpatia rara, nenhum
agradecimento é suficiente para tamanho gesto. Ela insistia em
permanecer connosco, olhamos uns para os outros e decidimos que
tínhamos o dever de fazer um último gesto de respeito e carinho para
com ela e decidimos que tínhamos que a deixar sentir também a mãe
neste ultimo fôlego, assim o fizemos e como dá para calcular foi um
momento demasiado comovente para descrever.
O mundo e a vida é um mistério, pois depois da minha avó lhe
dar um beijo na testa ela deu um último fôlego e partiu deixando-nos
esta dor insuportável. Estranhamente e depois de não ter deixado de
estar ao lado dela todos este momentos e mesmo no aperto da mão
final senti que ela ainda estava connosco naquele quarto entre os
gritos e choros incontroláveis. Sorri discretamente em meus
pensamentos e disse umas palavras ao seu ouvido com a esperança
que ela ainda as pudesse ouvir.
Este momento é sem duvida o mais marcante para mim
enquanto ser humano, ainda não consegui superar a perda e não
acho que serei capaz de o fazer, a vida continua mas o dia-a-dia
tornou-se “pesado”, o fim do dia é o que custa mais, ter que chegar a
casa e sentir um enorme vazio, olhar para as fotos, ouvir os risos dela
em vídeos antigos e ter a imagem dela gravada mesmo de olhos
fechados dá uma saudade quase que insuportável.
Tudo isto mudou a minha maneira de ser e pensar, fez-me mais
maduro e realista. Somos agora apenas 2 homens em casa que nos

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ajudamos nestes momentos difíceis. Espero um dia o nosso


reencontro e espero ser digno de estar junto dela, espero orgulha-la.
Este foi um trabalho bastante difícil de realizar mas também
bastante gratificante pois dá-me a oportunidade de a relembrar
embora alguns aspectos prefere-se esquecer. Todos temos os nossos
momentos marcantes e cada um sofre e sente de maneira diferente e
é isso que a vida tem de fantástico. Obrigado.

Ricardo
Ferreira

Ricardo Ferreira

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